Introdução
O início súbito de um acidente vascular cerebral (AVC)tem um impacte negativo na vida da pessoa, resultando frequentemente em algum grau de dependência, sendo a deglutição comprometida uma das suas complicações.Esta impacta negativamente a capacidade da pessoa para a reconstrução da autonomia, resultando em graves complicações respiratórias, nutricionais e psicológicas (Cohen et al., 2016), sendo frequentemente negligenciada, quer do ponto de vista da prática clínica, quer do ponto de vista da investigação (Dziewas et al., 2017). A par disto, é reconhecida a necessidade de sistematização na abordagem terapêutica à pessoa com deglutição comprometida após o AVC pelos potenciais ganhos na prevenção de complicações, nomeadamente a pneumonia e na redução da incapacidade e mortalidade (Middleton et al., 2017). Neste contexto, relata-se a conceção e desenvolvimento de projeto de melhoria contínua da qualidade dos cuidados de enfermagem (PMCQCE), cujo objetivo foi o de conceber e implementar uma intervenção multimodal para a implementação da evidência na prática clínica na sistematização da abordagem terapêutica à pessoa com deglutição comprometida após o AVC.
Enquadramento
A integração de evidência científica clinicamente relevante no processo de tomada de decisão clínica, assegura a prestação de cuidados de qualidade, sendo esta uma das componentes para a prática baseada em evidências (PBE; Hartzell & Fineout-Overholt, 2017). A PBE melhora a qualidade e segurança dos cuidados, promove melhores resultados em saúde, reduz a variação geográfica na prestação de cuidados e reduz custos, no entanto, e apesar das vantagens da implementação de uma cultura de PBE, a mesma não se constitui como prática padronizada nos cuidados de saúde, existindo diferentes barreiras à sua implementação (Hartzell & Fineout-Overholt, 2017). A PBE parte sempre de uma indagação inicial que desencadeia todo o processo de pesquisa, síntese e integração da evidência na prática clínica. A translação dessa evidência para a prática é complexa e difícil; mudar práticas exige um esforço considerável, quer ao nível individual, quer ao nível organizacional. No entanto, existem poucas orientações claras sobre como diretrizes clínicas podem ser implementadas com sucesso nos contextos de prática clínica, para além de que a sua implementação é inconsistente ao longo da literatura (Flodgren et al., 2016).
A estratégia de integração e apropriação de uma cultura de PBE, interpretado à luz dos referenciais da profissão, poderá ser baseada em PMCQCE (Ordem dos Enfermeiros, 2013). Os PMCQCE, no contexto dos Padrões de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem (PQCE), partem da identificação de um problema, interpretado como uma oportunidade de melhoria (Ordem dos Enfermeiros, 2013). Seguidamente, o desenvolvimento do projeto assenta no ciclo da gestão da qualidade que pressupõe diferentes etapas: identificação, compreensão e dimensionamento do problema, compreensão das causas, definição de objetivos, o planeamento e execução de atividades, verificação dos resultados, padronização e treino da equipa e, finalmente, a partilha do sucesso (Ordem dos Enfermeiros, 2013). Estas etapas são sobreponíveis às definidas na metodologia de implementação de projetos de mudança para a implementação da PBE (Hartzell & Fineout-Overholt, 2017).
Assim, o desafio que se coloca aos profissionais de saúde e, de modo mais alargado, aos sistemas de saúde, é o desenvolvimento de intervenções que incorporem a melhor evidência disponível e que sejam ajustados aos contextos de prática clínica e à população alvo. A sistematização das intervenções dos enfermeiros, assente na melhor evidência disponível depende, em grande medida, do envolvimento e participação dos profissionais dos contextos de prática clínica, pelo que o desenvolvimento de modelos de abordagem e intervenção terapêutica poderá beneficiar dos resultados da implementação de PMCQCE.
Existe evidência de que a sistematização da intervenção dos enfermeiros, através da existência de orientações clínicas formais para a abordagem terapêutica à pessoa com deglutição comprometida após o AVC, tem um impacte significativo nos resultados adversos, como as infeções respiratórias e morte (Hines et al., 2016). Está identificado um hiato entre as recomendações internacionais e as práticas no nosso país (Oliveira et al., 2020), não se conhecendo, em Portugal, protocolos implementados que sistematizem a abordagem terapêutica à pessoa com deglutição comprometida após AVC.
Questão de investigação
Qual o contributo dos projetos de melhoria contínua da qualidade dos cuidados de enfermagem na translação da evidência para a prática clínica no cuidado à pessoa com deglutição comprometida após o AVC?
Metodologia
Foi desenvolvido entre abril de 2019 e dezembro de 2020 um PMCQCE, num serviço de internamento de um centro de reabilitação de Portugal, de acordo com o Guião para a Organização de PMCQCE da Ordem dos Enfermeiros (2013), enquadrado nos PQCE, em cinco fases: análise do modelo em uso (dimensionar o problema e identificar as causas); construção da intervenção (compreender as causas, definir objetivos e planear as atividades); implementação da intervenção (executar o planeado); avaliação (verificar os resultados) e partilha dos resultados. Este projeto envolveu a participação da totalidade da equipa de enfermagem do serviço, constituída por 20 enfermeiros. Para a recolha de dados utilizaram-se a análise à documentação, a auditoria e grupo focal, numa metodologia qualitativa. Foi adotada a visão de um processo de mudança organizacional orientado pelos passos propostos por Kotter (Kotter, 2009), a saber: 1) identificar e discutir constrangimentos e oportunidades; 2) formar um grupo para liderar a mudança; 3) criar e comunicar a visão; 4) empoderar a restante equipa; 5) planear e criar metas; e 6) consolidar ganhos e estandardizar o adquirido. Os resultados da primeira fase deste PMCQCE, que decorreu entre abril e julho de 2019, encontram-se já publicados (Oliveira et al., 2019; Oliveira, Almeida, et al., 2020).
A segunda fase (compreender as causas, definir objetivos e planear as atividades) decorreu em setembro de 2019; a terceira fase (executar o planeado) decorreu entre setembro de 2019 e março de 2020; a quarta fase (verificar os resultados) entre março e setembro de 2020 e a partilha dos resultados (que correspondeu à quinta fase), em dezembro de 2020. Como medida de validade das conclusões foi utilizada triangulação de dados (temporal e pessoal), com recurso a distintas estratégias de recolha de dados.
Contexto
O PMCQCE foi implementado num serviço de internamento de um centro de reabilitação de Portugal, com a participação da totalidade da equipa de enfermagem do serviço, constituída por 20 enfermeiros, com uma idade média de 36,7 ± 6,2 anos (mínimo de 28 e máximo de 52), média de tempo de serviço de 12,9 ± 6,5 anos (mínimo de cinco e máximo de 29), oscilando entre o mínimo de um ano e o máximo de 18 anos de exercício de funções naquele serviço e sendo que 15 (75%) eram mulheres. A equipa não sofreu alterações na sua constituição ao longo do desenvolvimento do projeto. Dentro desta equipa foram identificados cinco enfermeiros para constituir o grupo para a mudança: dois deles do sexo masculino, com idade média de 36,6 ± 8,7 anos (mínimo de 31 e máximo de 52) e tempo médio de serviço de 13,8 ± 8,5 anos (mínimo de 9 e máximo de 29). Para além de terem sido identificados como elementos relevantes para a implementação da mudança (grupo para liderar a mudança), foram também identificados como informantes-chave para constituírem o grupo focal.
Estratégia de recolha e tratamento de dados
A recolha de dados foi realizada com recurso a duas técnicas de recolha de dados - o grupo focal e a observação participantes sob a forma de auditoria clínica. Para além destas duas técnicas de recolha de dados, foi também realizada a análise da documentação de enfermagem. A segunda fase do estudo iniciou-se com a realização de um grupo focal, para compreensão das causas para o problema, que partiu da discussão dos achados da primeira fase deste estudo (Oliveira et al., 2019; Oliveira, Almeida, et al., 2020). Durante a terceira fase não se procedeu a recolha de dados. Na quarta fase, foi realizado outro grupo focal, em março de 2020, com o propósito de avaliar os resultados da implementação do PMCQCE e perspetivar desenvolvimentos futuros.
Os grupos focais foram realizados com os enfermeiros selecionados para constituírem o grupo para a mudança, liderados pelo investigador principal, o qual era externo à equipa. Para cada um deles foi preparado um roteiro de questões, moderadamente estruturado, construído no sentido de permitir uma reflexão sobre as práticas, as transformações necessárias e as já operadas, aprofundando assim a discussão sobre as oportunidades de melhoria, as barreiras e os facilitadores ao projeto. O grupo focal da segunda fase foi orientado pelas seguintes questões:‘‘Estes resultados vão ao encontro da vossa representação da realidade?’’; ‘‘Que oportunidades de melhoria identificam?’’; ‘‘Que estratégias são as mais apropriadas ao vosso contexto?’’ Para o grupo focal realizado na quarta fase, as questões partiram do seguinte: ‘‘Qual o impacto que este projeto teve na qualidade dos cuidados de enfermagem e na organização dos cuidados?’’; ‘‘Que oportunidades identificam para desenvolvimentos futuros?’’ Todos os grupos focais foram gravados em suporte áudio e integralmente transcritos.
Outra das técnicas de recolha de dados utilizada foi a observação participante, complementada por notas de campo, sobre as práticas dos enfermeiros inerentes à intervenção terapêutica à pessoa com deglutição comprometida após o AVC, desde a admissão da pessoa até à alta. Foi utilizada uma grelha de registo para a observação participante (Oliveira, Almeida et al., 2020), que foi realizada por um dos elementos do grupo para a mudança como parte integrante do processo de auditoria, que decorreu entre agosto e setembro de 2020. A grelha de auditoria apresentava 17 itens, 12 deles com foco na documentação da informação clínica e os restantes cinco com foco nas terapêuticas de enfermagem na interação pessoa/cliente. A observação participante foi realizada durante o tempo necessário até à saturação por redundância de dados. Paralelamente, foram sendo registadas notas de campo relevantes e complementares aos dados recolhidos quer através do grupo focal, quer da observação participante.
Para a análise da documentação foram recolhidos em março de 2020 os registos informatizados de todas as pessoas admitidas no serviço nos últimos três meses, com diagnóstico clínico de AVC e que consentiram ao acesso aos seus processos informatizados. Para a realização deste estudo foi obtida a autorização da Comissão de Ética para a Saúde da instituição, bem como o consentimento de todos os participantes ou seus representantes legais (no caso de doentes). Todos os procedimentos éticos foram suportados pela Declaração de Helsínquia e do Regulamento Geral de Proteção de Dados e foram fornecidas garantias de confidencialidade e anonimato aos participantes (enfermeiros e doentes).
No que concerne a análise e tratamento dos dados qualitativos, estes foram realizados por análise de conteúdo de acordo metodologia proposta por Charmaz (2006) e assistido pelo software Qualitative Data Analysis (QDA) Miner 4 Lite. A análise das transcrições dos grupos focais iniciou-se com uma leitura exploratória para planeamento da decomposição do texto, o que conduziu a uma codificação inicial. Seguiu-se a codificação focada que progrediu para o processo de categorização e de subcategorização. Relativamente aos dados da documentação em enfermagem, para a sua análise foram considerados os princípios concetuais da Classificação Internacional para Prática de Enfermagem (CIPE®) no que concerne os focos da prática de enfermagem e respetivos juízos para a construção diagnóstica, assim como as intervenções com integridade referencial. Foram também consideradas na análise os dados documentados na avaliação inicial. Os dados foram exportados de forma anonimizada para uma base de dados e dada a sua natureza foram sujeitos a tratamento por estatística descritiva com recurso ao software IBM SPSS, versão 25.0.
Resultados
A segunda fase correspondeu ao Compreender as causas, definir objetivos e planear as atividades e tal foi alcançado através da reflexão e brainstorming com o grupo para a mudança tendo partido da discussão dos achados da primeira fase deste estudo. Dos resultados do grupos focais emergiram as categorias que delinearam a intervenção multimodal, a desenvolver num horizonte temporal de seis meses, que assentou nas seguintes estratégias: a) estratégias educacionais: formação contínua e elaboração de materiais educacionais de suporte - um roteiro clínico (Lawal et al., 2016) e material de apoio com síntese da evidência; b) intervenção à medida direcionada a outros determinantes do contexto: trabalho de parceria com os elementos (enfermeiros) do grupo local para os sistemas de informação; c) opinião de líderes; e d) auditoria e feedback.
No que concerne à terceira fase (executar o planeado), todas as atividades foram executadas tal como planeadas, exceto o trabalho de parceria com o grupo local para os sistemas de informação.
A quarta fase do estudo decorreu entre os meses de março e setembro de 2020 com recurso às mesmas técnicas de recolha de dados utilizadas na primeira fase (Oliveira et al., 2019; Oliveira, Almeida, et al., 2020): análise da documentação efetuada pelos enfermeiros no SClínico®, grupo focal e observação participante. Apesar de planeada para acontecer entre março e maio de 2020, os constrangimentos vividos, fruto do contexto epidemiológico vivido no nosso país devido à pandemia COVID-19, atrasaram a recolha de dados.
A análise retrospetiva dos registos clínicos efetuados pelos enfermeiros no SClínico® foi realizada em março de 2020 e incidiu sobre 16 processos clínicos de pessoas admitidas com diagnóstico clínico de AVC durante o período compreendido entre 11 de dezembro de 2019 e 4 de março de 2020, sendo 87,50% (n = 14) do sexo masculino, com uma idade média de 62,0 ± 13,88 anos (mínimo de 31 e máximo de 80 anos), mediana de 67 anos e média de Índice de Barthel de 23,12 ± 13,52 pontos (mínimo de zero e máximo de 40 pontos) e mediana de 22,5 pontos. Usando o teste U de Mann-Whitney para comparação entre grupos (considerando as características das pessoas incluídas na primeira fase para análise documental comparativamente com as desta fase) verificaram-se diferenças estatisticamente significativas entre grupos para a variável idade (p = 0,029), com os indivíduos desta fase significativamente mais velhos, não se verificando diferenças entre grupos para a variável Índice de Barthel (p = 0,323). A média de dias de internamento no momento da análise dos processos de enfermagem foi de 51 dias (mínimo de um dia; máximo de 84). Da análise dos dados documentados na avaliação inicial foram identificados três clientes com deglutição comprometida no momento de admissão no serviço.
O foco de enfermagem mais frequentemente documentado foi o autocuidado (61,8%) de entre 275 diagnósticos de enfermagem documentados. Comparando com a análise à documentação em maio de 2019 (Oliveira et al., 2019), verifica-se que a deglutição surge identificada como foco de atenção dos enfermeiros em seis processos (2,2%), verificando-se igualmente um incremento de 39,59% no volume total de focos de enfermagem identificados (275 versus 197).
Analisado o foco autocuidado, os autocuidados alimentar-se, transferir-se e vestuário foram identificados em todos os clientes (n = 16), seguidos dos autocuidados higiene e uso de sanitário (n = 15), posicionar-se (n = 14), andar (n = 9), mover-se em cadeira de rodas (n = 8), beber (n = 6), andar com auxiliar de marcha (n = 5), levantar-se (n = 4). Os juízos mais frequentemente utilizados para a construção diagnóstica foram os apresentados na tabela 1. De salientar que a diferença mais significativa relativamente à análise feita em maio de 2019 é a identificação de diagnósticos tendo como cliente o cuidador/familiar cuidador.
maio de 2019 | março de 2020 | |||||
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Juízo | n | % | Juízo | n | % | |
Dependência | 116 | 58,9 | Dependência | 128 | 46,5 | |
Compromisso | 42 | 21,3 | Risco | 43 | 15,6 | |
Risco | 27 | 13,7 | Compromisso | 40 | 14,5 | |
Presente | 7 | 3,6 | Presente | 22 | 8,0 | |
Potencial para melhorar capacidade | 5 | 2,5 | Potencial para melhorar capacidade | 26 | 9,5 | |
Potencial para melhorar capacidade do prestador de cuidados | 16 | 5,8 | ||||
Total | 197 | 100,0 | 275 | 100,0 |
Nota. % = Percentagem; n = Número de itens.
Atendendo ao contexto do estudo, realizou-se a análise dos diagnósticos formulados considerando o compromisso na deglutição, sendo que este diagnóstico foi identificado em três pessoas, os diagnósticos compromisso da deglutição, potencial para melhorar a capacidade para o uso de estratégias adaptativas na deglutição e risco de aspiração em duas pessoas e os diagnósticos de compromisso da deglutição e risco de aspiração em outra pessoa. Verifica-se, assim, que para além das três pessoas identificadas com compromisso da deglutição no momento de admissão, mais três foram identificadas pelos enfermeiros durante o seu internamento.
Seguidamente, foram analisadas as intervenções planeadas (Tabela 2). De um total de 1199 intervenções planeadas, a intervenção do tipo observar continua a ser a mais frequentemente utilizada, tendo-se verificado um incremento de 45,33% no volume total de intervenções identificadas comparativamente com 2019 (1199 versus 825).
No que respeita especificamente às intervenções potencialmente relacionadas com a deglutição comprometida, foram identificadas 56 intervenções, sendo as mais utilizadas as intervenções de vigiar refeições (n = 16) e de supervisionar dieta (n = 13).
maio de 2019 | março de 2020 | ||||
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Tipo de Ação | n | % | Tipo de Ação | n | % |
Observar | 406 | 49,2 | Observar | 518 | 43,2 |
Atender | 177 | 21,5 | Atender | 289 | 24,1 |
Gerir | 85 | 10,3 | Informar | 163 | 13,6 |
Informar | 84 | 10,2 | Gerir | 146 | 12,2 |
Executar | 73 | 8,8 | Executar | 83 | 6,9 |
Total | 825 | 100,0 | 1199 | 100,0 |
Nota. % = Percentagem; n = Número de itens.
Da mesma forma, foram identificadas duas vezes mais intervenções relacionadas com o autocuidado higiene oral, com um aumento significativo das pessoas a quem a intervenção assistir autocuidado: higiene da boca foi implementada (12 versus 5).
Relativamente à análise dos dados do grupo focal, emergiram quatro categorias com diferentes subcategorias (Tabela 3).
A observação participante foi dada como concluída quando todos os processos clínicos de doentes internados com diagnóstico clínico de AVC e diagnóstico de enfermagem de deglutição comprometida ou risco de aspiração foram auditados e observada pelo menos uma interação enfermeiro/cliente para cada um dos itens de observação da grelha. Foram auditados 14 processos clínicos, registadas 109 interações enfermeiro/cliente, que resultaram em 263 observações. Com esta técnica procuraram-se complementar os dados obtidos a partir do grupo focal. Foi observada conformidade em todos os itens com foco nas terapêuticas de enfermagem na interação pessoa/cliente: rastreio/avaliação do compromisso da deglutição, implementação de intervenções compensatórias durante as refeições e acompanhamento por enfermeiro a todas as refeições, cumprimento do protocolo de higiene oral definido no âmbito do roteiro clínico e o envolvimento da família no processo de cuidados, com exceção para a realização da avaliação inicial (n = 1) e encaminhamento para nutricionista de doentes com risco nutricional (n = 6). Para além destas não conformidades, foram ainda identificadas mais 48 não conformidades relacionadas com a documentação das práticas, perfazendo assim um total de 55 não conformidades (20,9%), no total das 263 observações. Estes resultados vão ao encontro das barreiras identificadas pelos participantes no grupo focal.
A partilha dos resultados foi realizada em novembro e dezembro de 2020. Estes atrasos no cumprimento do planeado resultaram, tal como já referido, do contexto epidemiológico vivido no nosso país.
Discussão
Com a concretização das estratégias planeadas verificou-se um incremento na documentação dos dados relativos à deglutição, risco de aspiração, prestador de cuidados, assim como de intervenções no domínio do autocuidado e higiene oral, promovendo a coerência entre o realizado e o documentado. A evidência sugere que a utilização de diferentes estratégias, numa intervenção multimodal, conduz a uma maior adesão dos profissionais a orientações clínicas (Flodgren et al., 2016). Neste domínio, a estratégia de opinião de líderes mostrou-se eficaz na mudança desejada na equipa e corroborado pelos achados durante a fase de planeamento. A reflexão proporcionada sobre as práticas, durante os grupos focais anteriores (Oliveira, Almeida et al., 2020), a partilha dos resultados obtidos a partir da documentação e da observação participante produziram um impacte significativo e mesmo sem se ter iniciado a fase de implementação, havia já a perceção de mudanças significativas na prática.
A evidência sugere que a estratégia de opinião de líderes, usada de forma isolada ou combinada com outras estratégias, promove a PBE (Flodgren et al., 2019), reforçando assim o importante papel que o tipo de liderança tem na enfermagem enquanto facilitador da PBE, assim como na qualidade dos cuidados (Akbiyik et al., 2020). A associação desta estratégia com estratégias educacionais (formação em serviço e disponibilização de material didático), a criação de instrumentos para a implementação das orientações clínicas e o forte envolvimento do equipa mostraram-se efetivos na implementação do PMCQCE, reforçando a evidência que sugere que este tipo de intervenção parece aumentar a translação e utilização da evidência científica (Flodgren et al., 2016). Neste contexto, de salientar que numa revisão sistemática da literatura sobre barreiras e facilitadores para a PBE, tendo como foco profissionais em exercício em unidades de AVC (Baatiema et al., 2017), salientam como barreiras a falta de trabalho em equipa e a falta de protocolos ou roteiros clínicos para a implementação da evidência. Interpretando os facilitadores como o oposto das barreiras, o grupo para a mudança, enquanto elemento agregador da equipa, e a elaboração do roteiro clínico mostraram ser facilitadores da mudança verificada na equipa ao nível das suas práticas e da documentação. No que concerne a análise da documentação, verificou-se um incremento global nos dados registados, quer ao nível dos focos de enfermagem identificados, da atividade diagnóstica e do número absoluto de intervenções planeadas. Este aumento poderia estar relacionado com um perfil de dependência mais elevado das pessoas sobre a qual recaiu a análise documental nesta fase, no entanto, a comparação entre grupos sugere que o perfil de pessoas é semelhante em termos de dependência. A análise evidencia que se mantem o foco autocuidado como o mais frequentemente utilizado, sendo notado um incremento ao nível dos dados com foco na deglutição e no prestador de cuidados, indo ao encontro dos achados da primeira fase do estudo que evidenciou através do grupo focal a perceção pelos participantes de práticas adequadas e do foco na pessoa e familiar cuidador (Oliveira, Almeida et al., 2020). Estes resultados sugerem maior coerência entre o realizado e o documentado. No entanto, e apesar de um incremento na documentação, mantém-se algumas barreiras, evidenciadas na auditoria e identificadas pelos participantes no grupo focal. Se por um lado existe evidência que sugere que o envolvimento dos utilizadores e o treino para a utilização dos sistemas de registos eletrónicos melhoram a qualidade e facilitam a documentação (Vabo et al., 2017), por outro persistem barreiras, identificadas pelos participantes como oportunidades de melhoria e corroboradas pela literatura, nomeadamente a existência de sistemas de informação pouco intuitivos, dificuldade de adequar a documentação ao processo de enfermagem e a necessidade de uniformização da linguagem utilizada nos aplicativos (Tsai et al., 2020). De salientar que a maior parte das não conformidades identificadas na auditoria estão relacionadas com a documentação. A potencial dificuldade de medição dos ganhos sensíveis aos cuidados de enfermagem que daqui resulta, por constrangimentos na documentação, são um obstáculo à produção de evidência daquilo que é resultante da intervenção autónoma do enfermeiro (Oliveira et al., 2019). Importa ainda salientar que, no que concerne à auditoria, apesar desta não ter sido realizada no momento inicialmente programado, a sua realização mais de um ano depois do início do projeto e após um período de cerca de 6 meses conturbado pelos efeitos da pandemia nos serviços de saúde, ficou evidente, em grande medida, a apropriação pelos profissionais das recomendações clínicas expressas no roteiro clínico.
Relativamente à implementação do roteiro clínico, os participantes identificaram mais oportunidades de melhoria ao nível dos recursos materiais e organização dos cuidados e apontaram como barreira a falta de recursos humanos, traduzindo as barreiras identificadas ao longo da literatura para a PBE a para a translação da evidência para a prática (Baatiema et al., 2017). Outras das barreiras identificada pelos participantes e corroborada de forma extensiva pela evidência é a cultura organizacional (Baatiema et al., 2017). Os resultados sugerem que a cultura organizacional contribui significativamente para a desvalorização das competências dos enfermeiros, sendo que a dificuldade de utilização da evidência na prática é limitada pela falta de reconhecimento da enfermagem como profissão autónoma, o que se traduz na perceção que os próprios têm de que não detêm autoridade para alterar procedimentos baseados na evidência. Estes achados vão ao encontro da evidência encontrada a nível internacional (Shayan et al., 2019), perpetuando lógicas de hierarquização já há muitos anos identificadas igualmente no nosso país, ao invés da potenciação do papel de cada um dos profissionais e do seu contributo para o sucesso do plano terapêutico da pessoa.
Dentro dos achados mais relevantes para a concretização do objetivo deste estudo estão os ganhos percebidos pelos profissionais e corroborados pela análise à documentação e auditoria: a criação de um quadro de referência, a sistematização das práticas, a melhoria na documentação e o conhecimento (pela formação em serviço), indo ao encontro do enunciado descritivo da qualidade do exercício profissional da organização dos cuidados (Ordem dos Enfermeiros, 2013). De facto, são elementos chave face à organização dos cuidados a existência de um quadro de referência, de um sistema de registos, de metodologias de organização dos cuidados e política de formação contínua.
Também no contexto do AVC, a implementação de uma intervenção iniciada por enfermeiros na melhoria da qualidade na gestão da deglutição comprometida mostrou impacte significativo na redução da probabilidade de morte ou dependência e melhor estado de saúde à alta (Middleton et al., 2017) e um projeto de melhoria contínua da qualidade para melhorar as práticas de rastreio da deglutição comprometida, numa intervenção à medida do contexto, contribuiu significativamente para maior adesão às recomendações clínicas (Sivertsen et al., 2017).
Verifica-se que os PMCQCE dão um importante contributo, enquanto estratégia de translação da evidência para a prática, promovendo uma efetiva PBE.
Quando os enfermeiros incorporam na sua prática clínica os princípios da PBE, promovem a qualidade dos cuidados e satisfação do cliente, melhoram a saúde das populações, reduzem custos em saúde e aumentam a satisfação profissional (Hartzell & Fineout-Overholt, 2017).
As principais limitações deste projeto relacionam-se com a dimensão da amostra e de o mesmo ter sido desenvolvido num contexto de prática clínica específico, com foco na deglutição. Outra das limitações prende-se com o facto de não ter sido avaliado nos clientes o impacte deste projeto, nomeadamente ao nível da incidência de complicações e na satisfação do cliente, pelo que se sugere como opção em investigação futura.
Conclusão
Este estudo traduz o percurso de implementação de uma intervenção multimodal para a sistematização da abordagem terapêutica à pessoa com deglutição comprometida após o AVC, desenvolvida através dos PMCQCE. Os resultados evidenciam um incremento na documentação dos dados, assim como de intervenções, promovendo a coerência entre o realizado e o documentado. O PMCQCE foi igualmente um contributo significativo para a adesão a PBE, com a transposição para a prática relativamente bem-sucedida do roteiro clínico, concretamente ao nível da avaliação da pessoa, da sistematização das práticas, do acompanhamento da pessoa com deglutição comprometida durante as refeições e na higiene oral, sugerindo que a implementação de PMCQCE contribui para a transposição do conhecimento para a prática. Existirão barreiras que são próprias deste contexto e outros, nomeadamente relativos à cultura organizacional, aos sistemas de informação e à documentação das práticas, que carecerão de validação em outros contextos de prática cínica através da replicação de estudos desta natureza. Ressaltam ainda, como implicações para a prática clínica, o facto de que as práticas assentes numa lógica de intervenção interdependente comprometem negativamente o processo de tomada de decisão, o que se traduz no risco de perda de autonomia da profissão, sendo que a desvalorização das competências dos enfermeiros e da sua autonomia se constitui como uma barreira à PBE.