Introdução
A criação e manutenção de um acesso vascular funcional é crucial para uma terapia eficiente de hemodiálise. A fistula arteriovenosa (FAV) é amplamente reconhecida como o acesso vascular de primeira linha para a maioria das pessoas com doença renal crónica em hemodiálise, devido à menor frequência de complicações e maior patência em comparação com os outros acesso vascular disponíveis (Ibeas et al., 2017; Lok et al., 2020).
As linhas orientadoras para a prática clínica da Sociedade Europeia para Cirurgia Vascular, publicadas por Schmidli et al. (2018), vêm definir uma FAV funcional como aquela que permite uma canulação bem-sucedida com duas agulhas ao longo de, pelo menos, seis sessões de hemodiálise, durante um período de 30 dias, com uma velocidade de bomba de sangue de pelo menos 300 ml/min. A impossibilidade de atingir estes critérios de maturação funcional da FAV para hemodiálise pode implicar a execução de mais do que duas canulações por sessão de hemodiálise ou a eventual necessidade de paragem de utilização, por incapacidade de canulação, resultando na implantação de um cateter venoso central para realizar hemodiálise (Schmidli et al., 2018).
A canulação repetida da FAV é imprescindível para a realização de hemodiálise. Esta lesão sistemática, realizada sem critério e planeamento na seleção do local a canular, torna a FAV propensa a complicações como hematomas, aneurismas, problemas endoteliais e fenómenos trombóticos, que têm impacto na morbilidade e mortalidade da pessoa em hemodiálise (Marticorena, 2019; Peralta et al., 2021; Pinto et al., 2021).
Esta investigação teve como objetivo, construir e validar um instrumento de apoio à decisão para a técnica de canulação ideal da FAV da pessoa com doença renal crónica em hemodiálise.
Enquadramento
O trauma associado à canulação é clinicamente importante, podendo ser classificado como mecânico ou hemodinâmico. O trauma mecânico ocorre em cada canulação e resulta da lesão biológica verificada na pele e na parede do vaso, frequentemente relacionada com a variação das habilidades do enfermeiro na prática clínica. O trauma hemodinâmico é gerado, nos locais de punção, por distúrbios do fluxo sanguíneo provocados pela velocidade da bomba de sangue da máquina de hemodiálise (Marticorena, 2019).
A pessoa com FAV em hemodiálise é canulada três vezes por semana, o que representa um trauma mecânico repetido de enorme relevância, motivo pelo qual a escolha do local de canulação, de sessão para sessão, deve obedecer a um critério rigoroso, a definir ad hoc, ou seja, a técnica de canulação deve ser adequada a cada pessoa tendo em consideração as características da sua FAV (Kumbar et al., 2020; Pinto et al., 2021).
A inexistência de critério e planeamento na seleção do local de canulação resulta na punção sistemática em zonas circunscritas da FAV, o que pode originar dilatações aneurismáticas e despoletar estenoses nas regiões adjacentes. Este método, designado por canulação em área, caracteriza-se fundamentalmente pela ausência de qualquer regra para definição do ponto da punção. No essencial, a agulha é colocada no local onde a punção poderá ser mais facilmente executada com o mínimo de dor e risco de complicações. Não obstante, esta aparente facilidade de canulação apresenta a desvantagem de ocasionar enfraquecimento da parede da FAV, gerando dilatação localizada, aneurismas e consequente fragilidade da parede vascular (Parisotto et al., 2014). Este corolário gravoso inerente ao uso da canulação em área é o motivo pelo qual é desaconselhada por diferentes linhas orientadores de acessos vasculares, conforme descrito por Pinto et al. (2021). Ainda assim, continua a ser uma técnica que persiste na prática clínica como revela o estudo de Stolic et al. (2017), que evidencia uma incidência de cerca de 63% das pessoas doentes com FAV a serem canuladas pela canulação em área. Também Parisotto et al. (2014), num dos maiores estudos alguma vez realizado sobre a canulação em hemodiálise, verificou que a canulação em área foi identificada em 65,8% das pessoas doentes. Este estudo foi realizado em 171 clínicas de hemodiálise, em 9 países da Europa, entre eles Portugal, com 7058 participantes.
Persiste ainda um número considerável de barreiras no contexto clínico que impede os enfermeiros de desenvolverem competências na canulação: i) unidades de hemodiálise com carga de trabalho elevada; ii) pressão para o cumprimento de horários de tratamento; iii) recusa em ser canulado por parte da pessoa doente; iv) destreza/treino do enfermeiro para a canulação; v) e fundamentação sobre como aplicar e manter de forma segura a técnicas de canulação (Fielding et al., 2022).
A formação contínua em enfermagem no campo da hemodiálise, para a aquisição de conhecimentos teóricos ou para o desenvolvimento das suas competências inerentes, especialmente na canulação da FAV recém-construída, é essencial e pode ser benéfica para minimizar as complicações futuras. Fazer uma escolha fundamentada da técnica de canulação mais adequada, para cada pessoa e para cada FAV, é uma evidência do grau de proficiência do enfermeiro que a realiza. Só assim se obtém critério para uma punção feita num único gesto, sem reposição, rotação ou manipulação adicional da agulha (Van Loon et al., 2009).
Em 2015, a Sociedade Britânica de Nefrologia e a Sociedade de Acessos Vasculares da Grã-Bretanha e Irlanda criou o grupo de trabalho MAGIC (Managing Access by Generating Improvements in Cannulation), com o objetivo de explorar e implementar melhorias nos cuidados ao acesso vascular para hemodiálise em todo o Reino Unido. Este grupo desenvolveu um programa para implementação de um modelo de decisão baseado na melhor evidência disponível, com o objetivo de promover uma boa prática na canulação, implementando um algoritmo de decisão para a técnica de canulação certa para a pessoa doente certa no momento certo (British Renal Society, 2018; Fielding et al., 2022). Inicialmente estas recomendações pretendiam ser baseadas na melhor evidência disponível. No entanto, e conforme é possível comprovar na revisão realizada por Pinto et al. (2021), poucas são as recomendações com suficiente suporte de evidência. Por este motivo, o grupo MAGIC gerou recomendações com base no consenso de especialistas integrantes no grupo de especialistas (British Renal Society, 2018). O foco destas recomendações de canulação em hemodiálise centra-se na pessoa, colocando-a no processo de decisão clínica. É recomendado pelo grupo MAGIC que a pessoa tenha a oportunidade de se envolver com o autocuidado do seu acesso vascular o mais cedo possível, idealmente na fase de preparação antes do início da hemodiálise.
Perante a necessidade de início de hemodiálise, e consequente canulação da FAV, o grupo MAGIC recomenda também a implementação de um esquema de canulação ideal, conseguido através da aplicação de um algoritmo de decisão tendo por base as características físicas da FAV. O paradigma gerado pelo grupo MAGIC foi o ponto de partida do presente estudo, que teve como objetivo o seu aperfeiçoamento por forma a ser aplicado em consulta de enfermagem numa unidade hospitalar da região centro de Portugal.
A consulta de enfermagem à pessoa com FAV para hemodiálise foi constituída com dois objetivos fundamentais: Aferir a maturação primária da FAV recém-construída e determinar a técnica de canulação ideal. Foi estruturada tendo em consideração os padrões de qualidade dos cuidados de enfermagem, nos referenciais emanado pela Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem e nos Sistemas de Informação em Enfermagem.
A consulta processa-se em duas fases. A primeira designa-se por avaliação do conhecimento da pessoa com FAV maturada para hemodiálise (Figura 1), dá foco à capacidade para o autocuidado da FAV da pessoa com doença renal crónica e foi dividido em 5 momentos: i) avaliação inicial; ii) avaliação do declínio cognitivo; iii) gestão do regime terapêutico; iv) perfusão de tecidos; v) e papel do prestador de cuidados. Nesta fase da consulta, emergem dois focos fulcrais que poderão constituir-se relevantes para uma intervenção de enfermagem: Perfusão dos tecidos e gestão de regime terapêutico.
A segunda etapa da consulta descreve o modelo de decisão para a canulação da FAV (Figura 2). Aqui pretende-se realizar a avaliação objetiva do acesso vascular com recurso ao exame físico, exame ecográfico, avaliação do medo de agulhas, risco de infeção, terminando com a determinação da técnica de canulação ideal.
O esquema de avaliação física desenvolvido foi adaptado das indicações descritas pelo programa Fistula First Catheter Last da National Coordinating Center (Lok et al., 2020). A avaliação ecográfica pressupõe a avaliação do diâmetro da veia de drenagem (mínimo de 4 mm), profundidade (máximo de 6 mm), fluxo interno da artéria de abastecimento (mínimo de 500 ml/min) e o segmento de canulação (mínimo de 6 cm; British Renal Society, 2018; Ibeas et al., 2017; Robbin et al., 2018).
A criação de uma consulta de enfermagem direcionada e estruturada para a pessoa com FAV permite não só determinar a técnica ideal, tendo em conta as caraterísticas físicas e ecográficas da FAV, como também atender às preferências e preocupações da pessoa doente. Este conceito de estação de canulação emergiu com o trabalho desenvolvido por Marticorena (2019) que desenvolveu um modelo de cuidados para otimizar a canulação no momento imediato ao início da hemodiálise. Este inovador modelo de prestação clínica de cuidados veio gerar um ambiente propício à capacitação da pessoa doente em vários aspetos do seu acesso vascular, direcionando os cuidados às necessidades individuais (Kumbar et al., 2020)
Com vista a análise para tomada de decisão e a natural transmissão da informação recolhida na consulta de enfermagem, tendo em vista juízos clínicos futuros, foi idealizado o instrumento de suporte da consulta de enfermagem à pessoa com acesso vascular para hemodiálise. Com o presente estudo pretende-se construir e validar o instrumento de apoio à decisão para a técnica de canulação ideal da FAV da pessoa em hemodiálise.
Metodologia
Trata-se de um estudo metodológico realizado num hospital central da região centro de Portugal entre outubro e novembro de 2021. Realizou-se a validação de aparência e de conteúdo a partir da técnica de Delphi, a qual permite que os profissionais de saúde, a partir das suas experiências em determinado tema, construam de forma anónima um consenso de opiniões consistentes em relação a um determinado assunto a ser estudado (Humphrey-Murto et al., 2017). A escolha do método de Delphi visou obter um máximo de consenso de um grupo de especialistas sobre o tema da canulação em hemodiálise, em particular na seleção da técnica de canulação ideal, em virtude da falta de evidência científica identificada por Pinto et al. (2021).
A dimensão de um painel Delphi pode variar de estudo para estudo, não existindo consenso sobre o número mínimo necessário de peritos para constituir um painel de juízes. No entanto, foi definido um mínimo de 3 juízes por cada grupo profissional e um total final de número ímpar, para evitar eventual empate de opiniões. A amostra foi definida de forma intencional, tendo sido convidados a participar um grupo de 27 juízes experientes em hemodiálise ou na abordagem ao acesso vascular da pessoa em situação crónica. Os critérios de inclusão foram: i) ser enfermeiro com 10 ou mais anos de experiência em hemodiálise; ii) ser docente universitário e ministrar conteúdos referentes ao processo de enfermagem e abordagem à pessoa com um acesso vascular em situação crónica; iii) ser médico nefrologista de intervenção ao acesso vascular para hemodiálise.
O estudo decorreu em duas rondas. Na primeira ronda foi construída a primeira versão do instrumento tendo sido fornecido em suporte de papel a todos os juízes integrantes no estudo. As sugestões de melhoria foram escritas no próprio instrumento e levadas em consideração para a restruturação da segunda versão.
Na segunda ronda foi elaborado um questionário eletrónico onde se pretendeu a análise das respostas através de uma percentagem de concordância sobre os módulos e respetivos subtemas do instrumento, e ainda o índice de validade de conteúdo (IVC) conforme a metodologia Delphi (Hohmann et al., 2018). Para avaliar a concordância global foi questionado aos juízes a pertinência de todos os blocos representados no instrumento e calculada a respetiva taxa segundo a fórmula: x100, sendo esperada uma taxa superior a 90%. Para a análise da relevância/representatividade as respostas incluem: 1 = não relevante ou não representativo; 2 = item necessita de grande revisão para ser representativo; 3 = item necessita de pequena revisão para ser representativo; 4 = item relevante ou representativo. Os itens que receberam pontuação 1 ou 2 foram revistos ou eliminados. O questionário para validação conteve ainda um espaço para sugestões em que os juízes puderam opinar sobre cada contexto específico.
O valor de IVC foi calculado através da fórmula: , sendo considerado um valor global de 0,8 representativo de uma concordância mínima e valores superiores a 0,9 com nível bom (Alexandre & Coluci, 2011; Pasquali, 2010).
O presente estudo obteve parecer favorável da comissão de ética hospitalar com o código CHUC-106-20. Todos os juízes foram informados dos objetivos do estudo e da confidencialidade dos dados informados, tendo feito a leitura e confirmação do seu consentimento livre e esclarecido.
Resultados
O instrumento de suporte ao modelo de decisão para a canulação da FAV da pessoa em hemodiálise foi validado após duas rondas. Todos os juízes convidados aceitaram participar no estudo: 21 enfermeiros (77,8%), 3 médicos nefrologistas (11,1%) e 3 docentes universitários (11,1%), num total de 27 profissionais. A maioria do sexo feminino (73,1%), a experiência profissional global foi alta, 92,5% dos juízes com pelo menos 11 anos de experiência e 81,4% com mais de 11 anos de experiência em hemodiálise.
O instrumento de apoio ao modelo de decisão para a canulação foi segmentado em quatro blocos: i) avaliação física; ii) avaliação ecográfica; iii) esquema fotográfico com dermopigmentação; iv) e observações. Em todos os blocos obteve-se uma concordância de aparência global de 100% dos juízes revelando-se como pertinente a sua estruturação (Tabela 1).
CONCORDÂNCIA (%) | |
Avaliação física | 100 |
Avaliação ecográfica | 100 |
Esquema gráfico do acesso vascular | 100 |
Observações | 100 |
TOTAL | 100 |
Na Tabela 2 encontram-se representados todos itens constituintes dos módulos do instrumento. Relativamente ao IVC, foi calculado para cada item dos quatro blocos e o nível de concordância global (0,94) revela um nível bom de aceitação entre os juízes sendo de realçar que o valor mais baixo de IVC (0,81%) foi no item veia secundária.
Índice de validade de conteúdo | ||
Avaliação física | ||
Teste de elevação do membro | 0,96 | |
Inspeção | 1 | |
Veia de drenagem dominante | 1 | |
Veia secundária | 0,81 | |
Pulso | 0,93 | |
Frémito | 1 | |
Teste de aumento de pulso | 0,88 | |
Sopro | 0.96 | |
Trajeto venoso canulável | 1 | |
Risco infecioso | 0,88 | |
Fobia a agulhas | 0,85 | |
Avaliação ecográfica | ||
Profundidade venosa | 0,96 | |
Diâmetro venoso | 0,96 | |
Fluxo interno calculado por doppler | 0,93 | |
Segmento com diminuição de diâmetro | 0,96 | |
Esquema gráfico do acesso vascular | ||
Foto com marcações dermográficas | 0,93 | |
Observações | ||
Indicações escritas sobre a estratégia de canulação | 1 | |
Índice de validade de conteúdo global | 0,94 |
Discussão
Durante o processo de validação da estrutura bem como do conteúdo, a diversidade da experiência profissional dos juízes envolvidos mostrou-se determinante, pois agregou diferentes sensibilidades teórico-práticas sobre a temática abordada. Em estudos semelhantes realça-se igualmente a importância deste tipo de validação nos instrumentos de utilização prática (Alexandre & Coluci, 2011).
O consenso dos juízes foi alcançado com um IVC global de ≥ 0,9, demonstrando assim a sua validade em relação à sua capacidade de atingir o seu propósito. Destaca-se os valores de concordância onde se conquistou a unanimidade dos juízes e ainda valores máximos de IVC nos itens “inspeção”, “veia de drenagem dominante”, “frémito”, “trajeto venoso canulável” e as “indicações escritas sobre a estratégia de canulação” determinada para a pessoa com FAV.
Conclusão
A utilização de instrumentos de medida no apoio à decisão clínica tem tido um papel preponderante na prática atual. A validação de instrumentos que norteiem a prática associados ao desenvolvimento de tecnologias na saúde, traduzem-se num incremento para a profissão, uma vez que tornam possível direcionar os cuidados de enfermagem, melhorando a qualidade assistencial. Com a realização da consulta de enfermagem baseada num modelo de referenciais teóricos, assegura-se uma prática fundamentada e, acima de tudo, mais segura.
Uma das mais valias identificadas neste modelo é a evidência de que o enfermeiro dispõe das ferramentas necessárias para decidir, em conjunto com a pessoa, acerca do estado de maturação da FAV, assim como qual a técnica de canulação ideal futura. Esta decisão é planeada em espaço próprio e não na unidade de hemodiálise, sem a natural pressão temporal para o início do tratamento. O modelo de decisão para a canulação e o respetivo instrumento de suporte proposto assumem-se, assim, como um recurso objetivo de melhoria da qualidade, garantindo a aplicação das melhores práticas clínicas na canulação da FAV para hemodiálise em contexto de consulta de enfermagem.