Introdução
A segurança na prestação de cuidados de saúde é um fator que assume grande importância sendo que vários estudos mostram que grande parte dos incidentes ou Eventos Adversos (EA) associados à prestação de cuidados podem ser evitados (Hung et al., 2016; Siman et al., 2017). Ao longo dos anos foram desenvolvidos vários trabalhos com o intuito de conhecer quais são os incidentes que ocorrem durante a prestação de cuidados e que põem em risco a vida do doente. Levine et al. (2020) afirmam que falar sobre os erros médicos é um comportamento essencial para manter a segurança do doente. Todavia, para identificar estes incidentes é preciso que alguém os relate e registe, isto é, os notifique. Os enfermeiros são elementos fundamentais nos hospitais (Levine et al., 2020), com competências e capacidade de dar resposta a esta necessidade. No entanto, apesar destas competências a notificação de EA apresenta valores muitos baixos em todo o mundo (Yung et al., 2016) apresentando uma incidência entre 5% e 17%, sendo que 60% podem ser evitados (Siman et al., 2017). Estes autores referem que, em Portugal, existe uma ocorrência de 11,1%, e 42% a 66% podem ser evitados.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a União Europeia (UE) recomendam aos Estados Membros, a avaliação da cultura de segurança, de forma a introduzir mudanças nos comportamentos dos profissionais, alcançando melhores níveis de segurança e de qualidade nos cuidados prestados aos doentes. Assim, a Direção Geral da Saúde (DGS), definiu como prioridade e objetivo estratégico para 2021-2026, fortalecer a segurança dos cuidados de Saúde e delineou cinco pilares para suportar os seus objetivos estratégicos (Despacho nº 9390/2021). Um desses pilares remete para a prevenção e gestão de incidentes de segurança do doente, onde se inserem objetivos como o incentivo à notificação e o aumento em 20% das notificações de incidentes de segurança.
Várias são as barreiras apontadas pela literatura (Cole et al., 2019; Hammoudi et al., 2018; Hung et al., 2016; Lima et al., 2018; Lozito et al. ,2018; Resende et al., 2020; Siman et al., 2017; Yang et al., 2020) ao processo de notificação dos eventos adversos sendo que a sua identificação em contexto português é fundamental para lhes dar resposta.
Face a este contexto este estudo teve como objetivos avaliar a opinião dos enfermeiros relativamente ao processo de notificação existente na instituição; conhecer na opinião dos enfermeiros as barreiras à notificação e estratégias a adotar para promover a mesma.
Enquadramento
Os EAs são de acordo com a (OMS) incidentes que ocorrem aquando da prestação de cuidados e que podem causar dano ao doente, estes podem ser intencionais ou não. Quando estas ações não causam dano ao doente, ou são identificadas antes de causar dano ao doente, designam-se de quase erro ou near misses (Resende et al., 2020).
Para os investigadores da Agency for Healthcare Research & Quality (AHRQ), um EA pode ser evitável e consiste numa lesão causada pelo tratamento médico podendo prolongar o internamento. Conjuntamente com este termo surge o termo “erro” que é definido como um ato incorreto ou omissão, com um resultado indesejável e potencialmente perigoso (AHRQ, 2019).
O bloco operatório é um serviço complexo e com algumas particularidades (Despacho nº 1400-A/2015), propício à ocorrência de EA. Por este motivo, vários autores (Lozito et al., 2018) preocuparam-se em perceber quais as razões que condicionam estes profissionais a notificar incidentes ou EA, para posteriormente desenvolver estratégias que aumentem os processos de notificação.
Existem diferentes fatores que influenciam a decisão de notificar, ou não, EA por parte dos enfermeiros. Vários autores (Cole et al.,2019; Hammoudi et al., 2018; Yang et al.,2020; e Yung et al., 2016) referenciaram o medo como uma barreira à notificação aliado ao ambiente de trabalho, capacidade de resposta dos supervisores, suporte dado pelos colegas de trabalho e à existência ou não de uma cultura de segurança.
O ambiente para prestar cuidados de saúde seguros é essencial para minimizar os EA e melhorar a qualidade dos cuidados, e engloba aspetos como: um ambiente sem culpa, onde é possível relatar incidentes sem medo de repreensão ou punição; um local onde pode ser estimulada a procura de soluções para problemas de segurança do doente; e ainda deve existir um compromisso organizacional com recursos capazes de solucionar problemas relacionados com a segurança dos cuidados (AHRQ, 2019).
As consequências interpessoais e organizacionais devem ser consideradas quando se fala em erros médicos e englobam punições, para quem notifica os erros criando uma (Levine et al., 2020), cultura de medo (Hammoudi et al., 2018).
Levine et al. (2020) mencionam vários autores que consideram que a capacidade de resposta do supervisor engloba o respeito dos líderes e a justiça face à exposição e relato dos funcionários de um erro ou problema. Esta resposta implica ainda capacitação de funcionários com autoridade, autonomia e responsabilidade (Gao et al., 2011, citado por Levine et al., 2020). Também a falta de feedback positivo sobre o erro cometido interfere na notificação (Hammoudi et al., 2018). Não existindo este tipo de resposta por parte dos supervisores, os enfermeiros tendem a não notificar EA.
A perspetiva dos enfermeiros que relatam incidentes perante a avaliação dos colegas de trabalho, pode influenciar a vontade, ou não, destes notificarem (Hung et al., 2016). Estes autores verificaram que a atitude positiva dos colegas de trabalho face ao relato de erros, aumenta a vontade dos enfermeiros em notificar. Reforçando estudos anteriores que demonstram que os enfermeiros estão preocupados com a impressão negativa de sua competência perante os colegas de trabalho e enfermeiros supervisores (Hung et al., 2016). A falta de tempo e escassez de enfermeiros é outra causa que impede o processo de notificação (Chiang et al., 2019).
A segurança do doente é uma prioridade para os serviços de saúde havendo várias estratégias nas quais se incluem aderir a políticas cujo objetivo é a segurança do doente; usar adequadamente a tecnologia; adotar uma abordagem não punitiva à comunicação de erros; comunicação eficaz, colaboração e apoio administrativo, bem como falar sobre erros médicos, pois permite uma aprendizagem sobre o processo que acompanha a ocorrência do erro (Hung et al., 2016; Levine et al., 2020).
Chiang et al. (2019) consideram a cultura de relato de incidentes, um elemento importante na cultura de segurança do doente, e que pode ser definido como valores partilhados, crenças. Estes autores concluíram que o envolvimento dos enfermeiros nas práticas de segurança dos doentes tem um efeito positivo na vontade de relatar incidentes, comprovando o que outros estudos já mencionavam.
Para além dos fatores associados ao sentimento de medo, Hammoudi et al. (2018) referem ainda a definição de erro (apesar de não apresentar um resultado significativo para o relatório de incidentes) e o esforço necessário para relatar o erro (sendo o tempo despendido um elemento muito importante no processo), como motivos que influenciam o relato de erros pelos enfermeiros. Estes autores consideram que os processos complexos que estão associados à notificação de incidentes, e que aumentam o esforço dos enfermeiros são uma barreira.
Hung et al. (2016) avaliaram ainda fatores como: características do enfermeiro, nomeadamente o altruísmo e tipo de serviço e concluíram que o altruísmo assume um importante papel neste processo, pois os enfermeiros que possuem esta caraterística tendem a ter atitudes positivas, face à notificação de incidentes.
Lozito et al. (2018), com o seu estudo, mostraram a necessidade de melhorar a comunicação, e educação da equipa perioperatória sobre a importância de relatar um EA para proporcionar um ambiente de cuidados seguro ao doente.
A adoção de estratégias como formação sobre o processo de notificação e importância deste na segurança do doente; um sistema de notificação padronizado e acessível; debriefing; feedback do processo de notificação (Levine et. al, 2020; Lozito et al., 2018); sensibilização por parte da liderança de oportunidades de aprendizagem com a notificação do EA (Cole et al., 2019), assim como opinião positiva e valorização dos pares; o anonimato; a implementação de uma cultura livre de culpa, medo e represálias; o reconhecimento por parte da liderança (Chiang et al., 2019 e Hung et al., 2016), favorecem o processo de notificação.
É importante que se consigam desenvolver estratégias que levem os enfermeiros a notificarem mais, instituir culturas organizacionais que promovam a notificação de incidentes e que sejam capazes de criar mecanismo de feedback positivo nos indivíduos que notificam, minimizando o sentimento de medo que os acompanha.
Questão de investigação
Qual é a opinião dos enfermeiros sobre o processo de notificação de EA? Quais são, na opinião dos enfermeiros, as barreiras à notificação de EA? e quais são, segundo os enfermeiros, as estratégias a adotar para promover a notificação dos EA?
Metodologia
Foi realizado um estudo de coorte observacional, descritivo simples, escrito de acordo com as recomendações STROBE para estudos observacionais. Este estudo teve por base uma necessidade identificada na equipa de um bloco operatório de um Centro Hospitalar da zona centro de Portugal, sendo a população constituída por 85 enfermeiros. Da totalidade da população, 10 estavam ausentes por doença ou parentalidade ficando a mesma constituída por 75. Definiu-se como único critério de inclusão trabalhar no serviço em estudo. Para a amostra ser representativa (nível de confiança de 95%), deveriam ter participado 63 enfermeiros, sendo que participaram 63 enfermeiros, tendo-se verificado uma taxa de adesão de 84%.
Para a recolha de dados foi construído um questionário, tendo por base o referido pela DGS (2019) como eventos sentinela e validado o seu conteúdo por duas peritas na área, sendo constituído por 5 partes: Parte I - Caracterização da amostra, sendo as variáveis: sexo; idade; tempo de serviço em anos; tempo de serviço no bloco operatório em anos; Parte II - Opinião dos profissionais face ao processo de notificação existente na instituição. Nesta parte os inquiridos selecionaram em cada questão a opção “não” ou “sim” sendo as mesmas: “Na sua opinião o sistema existente permite a notificação de eventos adversos de forma anónima”; “Na sua opinião o sistema existente permite a notificação de eventos adversos de forma confidencial”; “Considera que o sistema de notificação de eventos adversos contribui para a cultura de segurança”; “Considera que a notificação de eventos adversos promove a aprendizagem com os erros; “Considera a notificação um fator importante na prevenção da ocorrência de incidentes e eventos adversos”; “O sistema de notificação existente na instituição é um instrumento facilitador do registo de incidentes e eventos adversos”; “O sistema existente, motiva os profissionais de saúde para a notificação de eventos adversos”; “No último ano assistiu a alguma formação sobre prevenção de incidentes e eventos adversos nos cuidados de saúde”; “No último ano assistiu a alguma formação sobre o sistema de notificação de incidentes eventos adversos existente na instituição; Parte III - Registo de eventos adversos, nesta parte os inquiridos assinalaram (perante um conjunto de EA) se ocorreram e se notificaram tendo por base a sua experiencia profissional; IV parte - Barreiras sentidas pelos os profissionais de saúde face ao processo de notificação existente na instituição. Neste campo os inquiridos responderam com as opções discordo e concordo a uma lista barreiras sugeridas tendo por base a pesquisa prévia efetuada, foi ainda dada a oportunidade através de uma questão de resposta aberta enumerar mais barreiras, que poderiam não estar mencionadas; Parte V - Estratégias para melhorar/promover a notificação. Nesta parte foram efetuadas questão de resposta aberta onde os inquiridos devem enumerar três estratégias, para promover a notificação de EA e três opções, para o que fazer, com os registos das notificações dos EA.
O instrumento de recolha foi aplicado via eletrónica através dos e-mails institucionais a todos os enfermeiros do bloco operatório durante os meses de fevereiro a junho de 2022 após o parecer favorável da comissão de ética (Ref. CE-Nº11/22).
A participação no estudo foi voluntária sendo possível cada participante desistir a qualquer momento, tendo igualmente sido garantido a confidencialidade e o anonimato.
A análise de dados foi efetuada com ao recurso ao programa de software IBM SPSS Statistics, tendo sido utilizado a estatística descritiva nomeadamente frequências absolutas e relativas, medidas de tendência Central e medidas de dispersão e variabilidade. As perguntas de resposta aberta, dado o seu conteúdo (enumerar três estratégias e três opções, para o que fazer), foram contabilizadas através de frequências relativas e absolutas.
Resultados
A amostra é composta por enfermeiros, com idades compreendidas entre os 28 e 60 anos (46,02 ± 10,4) sendo 83,9% (52) do sexo feminino e 16,1% (10) do sexo masculino; 20% (13) apresentam uma média de tempo de serviço de 29,02 ± 52,6 sendo que trabalham em média há 16,3 ± 11,3 anos.
Sobre o processo de notificação existente na instituição, 89,1% identifica o sistema de notificação como capaz de garantir o anonimato e 81,3% a confidencialidade; 65,6% considera o sistema facilitador do registo, no entanto 73,4% não consideram o sistema motivador do registo. 92,2% da amostra considera que a notificação contribui para a cultura de segurança; 90,6% diz que promove a aprendizagem e 95,3% considera o processo de notificação importante na prevenção de incidentes e eventos adversos.
Verificou-se que, no último ano, 20,6% dos inquiridos tiveram formação sobre prevenção de incidentes e EA e 12,7% sobre o sistema de notificação existente (Tabela 1).
Formação | Sim | Não | ||
Nº | % | Nº | % | |
Prevenção de incidentes/eventos adversos | 13 | 20,6 | 50 | 79,4 |
Sistema de incidentes/eventos adversos | 8 | 12,7 | 55 | 87,3 |
Nota. Nº = Número % = Percentagem.
Quando questionada sobre os EA que já lhe ocorreram e quais é que notificaram, verificou-se que existem um grande diferencial entre o número de ocorrências e o número de notificações sendo. Os enfermeiros identificaram a ocorrência de muitos e diversificados incidentes de segurança, sendo os mais identificados as avarias ou defeito em dispositivo médico com 55,6% tendo sido notificado apenas em 25,7%; seguido da falta de exames, análises ou preparação que impeça procedimento ou cirurgia (44,4%), tendo sido notificado apenas 8,5%; quedas de doentes 31,7% tendo notificado 65,0%; reações adversas a medicamentos com 29,7% tendo sido notificado 26,3%; contagem incorreta de compressas (17,5%), notificando apenas 9,1%; troca de dados dos doentes (25,4%),sendo notificado 12,5%; erro de identificação do doente (23,8%) sendo notificado 26,6% e erro na administração de produtos/fármacos (20,6%) sendo apenas notificado 7,7%. Os dados evidenciam que os enfermeiros reconhecem que notificam uma percentagem muito baixa das ocorrências de EA. Constatou-se ainda que os incidentes mais notificados foram as quedas de doentes com 65,5%; erro na administração de sangue (33,3%); troca de bebé ao nascimento (33,3%); reações adversas a medicamentos (26,3%); erro de identificação do doente (26,6%); avaria ou defeito em dispositivo médico (25,7%) reação transfusional grave com morte (25,0%); reação transfusional e dano permanente inesperado, ambos com uma taxa de notificação de 20,0%.
Salientam-se as avarias ou defeitos dos dispositivos médicos, as quedas de doentes e as reações adversas a medicamentos, visto que são ao EA que mais correm e que mais são notificados (Tabela 2).
Ocorrência | Notificação* | |||||||||
Sim | Não | Sem resposta | Sim | Não | ||||||
Nº | % | Nº | % | N | % | Nº | % | Nº | % | |
Morte inesperada | 8 | 12,7 | 48 | 76,2 | 7 | 11,1 | 0 | 0,0 | 10 | 100 |
Dano permanente/ inesperado | 5 | 7,9 | 49 | 77,8 | 9 | 14,2 | 1 | 20,0 | 4 | 80,0 |
Troca de bebé ao nascimento | 3 | 4,8 | 54 | 85,7 | 6 | 9,5 | 1 | 33,3 | 2 | 66,7 |
Reação transfusional grave com morte | 4 | 6,3 | 53 | 84,1 | 6 | 9,5 | 1 | 25,0 | 3 | 75,0 |
Reação transfusional | 5 | 7,9 | 51 | 80,9 | 7 | 11,1 | 1 | 20,0 | 4 | 80,0 |
Erro na administração de sangue | 6 | 9,4 | 52 | 82,5 | 5 | 7,9 | 2 | 33,3 | 4 | 66,7 |
Reação adversas a medicamentos | 19 | 29,7 | 39 | 61,9 | 5 | 7,9 | 5 | 26,3 | 14 | 73,6 |
Reações anafiláticas com dano ou morte | 5 | 7,9 | 54 | 85,7 | 4 | 6,3 | 0 | 0,0 | 5 | 100 |
Erro na administração de produtos/fármacos | 13 | 20,6 | 43 | 68,3 | 7 | 11,1 | 1 | 7,7 | 12 | 92,3 |
Abuso sexual e/ou violência no trabalho | 4 | 6,3 | 49 | 77,8 | 10 | 15,8 | 0 | 0,0 | 4 | 100 |
Procedimento invasivo/cirurgia doente errado | 3 | 4,8 | 54 | 85,7 | 6 | 9,5 | 0 | 0,0 | 3 | 100 |
Procedimento invasivo/cirurgia local errado | 5 | 7,9 | 51 | 80,9 | 7 | 11,1 | 0 | 0,0 | 5 | 100 |
Procedimento invasivo/cirurgia errada | 5 | 7,9 | 52 | 82,5 | 6 | 9,5 | 0 | 0,0 | 5 | 100 |
Lesão de outros órgãos durante cirurgia | 8 | 12,7 | 48 | 76,2 | 6 | 9,5 | 0 | 0,0 | 8 | 100 |
Retenção de objeto/compressa em doente | 6 | 9,4 | 51 | 80,9 | 6 | 9,5 | 0 | 0,0 | 6 | 100 |
Contagem incorreta de compressas | 11 | 17,5 | 46 | 73,0 | 6 | 9,5 | 1 | 9,1 | 10 | 90,9 |
Falta de exames, análises ou preparação que impeça procedimento ou cirurgia | 28 | 44,4 | 29 | 46,0 | 6 | 9,5 | 2 | 8,5 | 19 | 90,5 |
Erro na avaliação do doente | 11 | 17,5 | 43 | 68,3 | 10 | 15,8 | 0 | 0,0 | 11 | 100 |
Troca de dados dos doentes | 16 | 25,4 | 37 | 58,7 | 10 | 15,8 | 2 | 12,5 | 14 | 87,5 |
Erro identificação de doente | 15 | 23,8 | 38 | 60,3 | 10 | 15,8 | 4 | 26,6 | 11 | 9,4 |
Fogo, fumo ou chama inesperada | 6 | 9,4 | 50 | 79,4 | 7 | 11,1 | 0 | 0,0 | 6 | 100 |
Morte materna intraparto/cesariana | 4 | 6,3 | 53 | 84,1 | 6 | 9,5 | 0 | 0,0 | 4 | 100 |
Quedas de doentes | 20 | 31,7 | 37 | 58,7 | 6 | 9,5 | 14 | 65,0 | 7 | 35,0 |
Avaria ou defeito em dispositivo médico | 35 | 55,6 | 20 | 31,7 | 8 | 12,7 | 9 | 25,7 | 26 | 74,3 |
Nota. Nº = Número; % = Percentagem. *os dados foram calculados em função dos respondentes
De entre as 18 barreiras apontadas verificou-se que os inquiridos concordaram que a falta de cultura de reporte (79,7%) e a sobrecarga de trabalho (79,7%) são as que se verificam com maior frequência (64,1%; Tabela 3).
A falta de computadores disponíveis (1), plataforma não intuitiva (1), resistência pela equipa ao processo de notificação (1) e não se consegue notificar (ex: maus tratos e mobbing; 1) foram quatro barreiras que os inquiridos acrescentaram para alem das referenciadas no inquérito.
Barreiras à notificação | Concordo | Discordo | Não respondeu | |||
Nº | % | Nº | % | Nº | % | |
Medo de punição pela instituição | 28 | 44,4 | 35 | 55,6 | 0 | 0 |
Medo de discriminação pela equipa | 28 | 44,4 | 35 | 55,6 | 0 | 0 |
Medo de sanções judiciais | 25 | 39,7 | 38 | 60,3 | 0 | 0 |
Receio da reação de superiores hierárquicos | 37 | 58,7 | 26 | 41,3 | 0 | 0 |
Falta de cultura de reporte | 51 | 81,0 | 11 | 17,4 | 1 | 1,6 |
Desconhecimento do que reportar | 46 | 73,0 | 17 | 27,0 | 0 | 0 |
Dificuldade na utilização do sistema de notificação | 37 | 58,7 | 26 | 41,3 | 0 | 0 |
Sistema de notificação pouco acessível | 28 | 44,4 | 34 | 54,0 | 1 | 1,6 |
Sobrecarga de trabalho | 51 | 81,0 | 12 | 17,4 | 0 | 0 |
Esquecimento | 43 | 68,3 | 20 | 31,7 | 0 | 0 |
Ausência de feedback | 48 | 76,2 | 14 | 22,2 | 1 | 1,6 |
Registo não contribui para qualidade de cuidados | 17 | 27,0 | 44 | 70,0 | 2 | 3,2 |
Não notificação porque evento não causou dano | 9 | 14,3 | 54 | 85,7 | 0 | 0 |
Conhecimento insuficiente sobre sistema | 41 | 65,1 | 20 | 31,7 | 2 | 3,2 |
Aprendo com incidente por isso não é necessário notificar | 12 | 19,0 | 51 | 81,0 | 0 | 0 |
Receio de discussão de incidente no serviço | 9 | 14,3 | 54 | 85,7 | 0 | 0 |
Dificuldade de utilização/ falta de funcionalidade do sistema | 41 | 65,0 | 22 | 35,0 | 0 | 0 |
Desmotivação | 49 | 77,8 | 12 | 19,2 | 2 | 3,2 |
Nota. Nº = Número; % = Percentagem.
Para perceber quais as estratégias, que serão necessárias, para promover a notificação foi efetuada uma pergunta de resposta aberta, na qual se constatou que 21,3% das respostas considera a formação como a principal estratégia a implementar seguindo-se o feedback (19,4%) e a existência de uma plataforma ou sistema informático mais intuitivo (18,5%). O incentivo por parte da liderança (8,3%), o aumento do tempo disponível (6,5%) e a eliminação da cultura de culpa (6,5%), são também estratégias que poderão, segundo os enfermeiros, melhorar a notificação (Tabela 4).
Estratégias promotoras da notificação de eventos adversos | N | % |
Aumentar cultura de reporte | 1 | 0,9 |
Incentivo por parte do líder | 9 | 8,3 |
Valorização do profissional que reportou | 2 | 1,9 |
Formação | 23 | 21,3 |
Eliminar cultura de culpa | 7 | 6,5 |
Proteção do profissional que notifica | 2 | 1,9 |
Feedback | 21 | 19,4 |
Debriefing | 9 | 8,3 |
Sistema informático/ plataforma intuitiva | 20 | 18,5 |
Tempo para debriefing e notificar | 7 | 6,5 |
Obrigatório | 1 | 0,9 |
Motivação da equipa | 4 | 3,7 |
Ser feito em equipa | 2 | 1,9 |
Nota. Nº = Número; % = Percentagem.
Foi ainda questionado o que deveria ser efetuado com os registos dos eventos adversos sendo que 36,8%, das respostas foram que a informação deve ser divulgada e deve haver feedback da notificação; 15,8% entende que a notificação deve ser alvo de análise e discussão em equipa e 13,2% refere que a informação da notificação deve ser utilizada para implementar medidas corretivas (Tabela 5).
Nº | % | |
Identificação da causa | 3 | 3,9 |
Divulgação/ feedback | 28 | 36,8 |
Análise e discussão em equipa | 12 | 15,8 |
Incentivo à notificação | 5 | 6,6 |
Apoio por parte da liderança | 2 | 2,6 |
Correção do evento adverso | 4 | 5,3 |
Medidas corretivas | 10 | 13,2 |
Promover e identificar necessidades de formação | 7 | 9,2 |
Promover a cultura de segurança | 2 | 2,6 |
Tratamento estatístico | 3 | 3,9 |
Nota. Nº = Número; % = Percentagem.
Discussão
Os resultados obtidos mostram que, assim como Cole et al. (2019), os enfermeiros do bloco operatório do Centro Hospitalar onde o estudo foi desenvolvido, consideram o processo de notificação importante para manter a cultura de segurança (92,2%). Constatou-se que o anonimato e a confidencialidade são fatores determinantes para que os enfermeiros se sintam seguros quando desencadeiam uma notificação. Apesar disso, a amostra caracteriza o sistema de notificação instituído como desmotivador (73,4%), sendo que esta opinião sobre o sistema informático, interfere no processo de notificação que se torna reduzido em termos de número, suportando o que Siman et al. (2017) referem sobre o baixo registo de eventos adversos em Portugal.
Noventa e cinco vírgula três por cento (95,3%) dos inquiridos referem ser importante notificar os eventos adversos, pois é possível desta forma mudar práticas, identificar e prevenir erros futuros.
Relativamente à instrução da amostra sobre a prevenção de incidentes/eventos adversos e o sistema de notificação implementado na instituição, foi possível constatar que no último ano apenas 20,3% (prevenção de incidentes/eventos adversos) e 12,5% (sistema de notificação) tiveram formação. Este é também um fator que condiciona o processo de notificação, dado que os enfermeiros desconhecem ou esquecem a importância deste processo. Lozito et al. (2018) consideram a educação da equipa perioperatória, sobre a importância de relatar um evento adverso, relevante para promover a notificação. Também Hammoudi et al. (2018) mostram que os processos complexos que estão associados à notificação de incidentes, e que aumentam o esforço dos enfermeiros são uma barreira.
Os dados recolhidos sobre o tipo de EA notificado vão de encontro ao relatório do 4º Trimestre de 2019, do Sistema Nacional de Notificação de Incidentes (Direção Geral da Saúde (DGS), 2019), à exceção das avarias/defeitos nos dispositivos médicos que foi um dos eventos mais notificados pelos enfermeiros do Bloco. Este dado poderá dever-se ao fato de este tipo de notificação não estar diretamente relacionado com a qualidade de cuidados prestados pelo enfermeiro que notifica, concordando com o trabalho de Hung et al. (2016), segundo os quais a perspetiva dos enfermeiros que relatam incidentes, pode influenciar a vontade, ou não, de notificarem.
Os dados relacionados com os dispositivos médicos poderão ainda ser justificados pelas particularidades e especificidades inerentes ao serviço inquirido, uma vez que o bloco operatório é um ambiente de prestação de cuidados mais complexo com grande quantidade de equipamentos de elevada tecnologia (Despacho nº 1400-A/2015).
O elevado número de EA identificados como ocorridos pela amostra, sendo alguns destes notificados como: avaria ou defeito em dispositivo médico e a falta de exames, análises ou preparação que impeça procedimento ou cirurgia, sugere que os inquiridos notificam mais facilmente os eventos que estão relacionados com a prestação de cuidados de outros profissionais, do que com a sua, confirmando uma das principais barreiras sentidas pela amostra, que é a falta de cultura de reporte (79,7%). Chiang et al. (2019) referem que uma cultura de notificação positiva, em que é enfatizado a aprendizagem como um fator que promove a notificação, e não a cultura de punição, melhora o processo de notificação. Esta falta de cultura de reporte evidenciada pelos enfermeiros do bloco, está também associada ao sentimento de medo, visto 57,8% dos inquiridos concordarem que uma das barreiras sentidas face ao processo de notificação existente na instituição é, o receio da reação de superiores hierárquicos, comprovando o que a pesquisa bibliográfica evidenciou nos estudos de Araújo et al (2016), Cole et al. (2019), Hammoudi et al. (2018), Yang et al. (2020) e Yung et al. (2016).
Para além da falta de cultura de reporte, os enfermeiros referem como limitações a sobrecarga de trabalho (79,7%), a ausência de feedback (75%); desconhecimento do que reportar (71,9%); esquecimento (67,2%) e conhecimento insuficiente sobre o sistema informático (64,1%). Estes dados são comprovados por Lima et al. (2018) no seu estudo sobre a “Perceção dos profissionais de saúde das limitações à notificação”.
A sobrecarga de trabalho é uma limitação comprovada por Hung et al. (2016), pois estes autores consideram que a sobrecarga de trabalho limita o tempo disponível para efetuar a notificação. O desconhecimento do que reportar é também uma grande barreira à notificação, presumindo-se que muitos enfermeiros não notifiquem por não saber o que é necessário notificar. Resende et al. (2020) referem que os enfermeiros, não consideram relevantes incidentes que não resultam em dano para o doente e este poderá ser um dos fatores de desconhecimento que interfere no processo de notificação.
O estudo permitiu ainda apurar quais as estratégias necessárias para promover o processo de notificação, sendo a formação (21,3%) e o feedback (19,4%) as ações mais importantes que, segundo a amostra, poderão mudar a sua postura quando for necessário notificar algum incidente ou evento adverso, comprovando o que Araújo et al. (2016) e Lozito et al. (2018) constataram nos seus estudos.
Perante esta análise propõem-se como estratégias a implementar: Formação anual sobre a temática em questão; Criação de um espaço facilitador de feedback e de um momento e espaço que permita a realização de debriefings.
Foram identificadas como limitações ao estudo o fato da investigadora ser enfermeira neste serviço e o tema do trabalho suscitar algumas questões relativas à boa prática de cuidados, condicionado de alguma forma as respostas ao questionário. A não implementação das estratégias identificadas para promover a notificação e a sua respetiva avaliação de eficácia é também uma limitação deste estudo, assim como, o fato da amostra incluir apenas enfermeiros e ser limitada a um serviço de prestação de cuidados muito específico, não retratando a realidade da restante instituição, isto é, a prestação de cuidados no bloco operatório está quase sempre acompanhada de dispositivos médicos, sendo neste caso a maioria das notificações realizadas associada a utilização dos equipamentos, mascarando e minimizando de algum modo o número de notificações efetuadas associadas exclusivamente à prestação de cuidados ao doente.
Conclusão
De um modo geral, este estudo permitiu perceber que os enfermeiros consideram a notificação de eventos adversos um processo importante que permite melhorar a prestação de cuidados aumentando a segurança do doente.
No entanto, como é evidenciado no presente estudo, este processo apresenta ainda várias barreiras à sua execução como a falta de cultura de reporte, sobrecarga de trabalho, ausência de feedback, esquecimento, conhecimento insuficiente sobre sistema e o sobre o que reportar. Sendo por isso fundamental adotar e implementar estratégias como formação, feedback e debriefings. Apesar das barreiras serem as mesmas apontadas na literatura este estudo permite conhecer as estratégias para a resolução da maior parte das barreiras, sendo de salientar que estudos em que a população participa na identificação das estratégias permitem uma taxa de adesão maior as mesmas.
É fundamental que a instituição adote uma política de incentivo à notificação.
Sugere-se a continuação deste estudo com uma nova análise da amostra após implementação das medidas propostas, apurando os efeitos destas intervenções na amostra.
Sendo a segurança dos doentes cada vez mais importante na nossa sociedade, é fundamental a realização de trabalhos como este, para perceber quais os fatores que condicionam estas práticas, implementando as medidas necessárias e promovendo a notificação, para cada vez mais prestar cuidados de excelência.