Introdução
As vítimas de trauma socorridas no pré-hospitalar reportam frequentemente diferentes tipos de desconfortos, que podem ser físicos, emocionais e psicológicos. Diagnosticá-los e definir planos de intervenção específicos e dirigidos a cada um é essencial para fornecer um atendimento eficaz (Mota, Santos et al., 2022). A comunidade científica e clínica, cada vez mais, tende a apontar outros focos de sofrimento além da dor aguda, que se assumia, até há bem pouco tempo, como a principal entidade nosológica causadora de desconforto nas vítimas de trauma (Mota et al., 2024).
A dor é um conceito subjetivo, complexo e com várias dimensões, sendo definida como uma experiência sensorial desagradável, associada a danos reais ou potenciais nos tecidos (Yam et al., 2018). Mais de 70% das vítimas de trauma socorridas no pré-hospitalar relatam dor aguda e aproximadamente metade descrevem a intensidade da dor como igual ou superior a 7 numa escala de 0 a 10 (Mota, Cunha et al., 2022) Além da dor, as vítimas de trauma socorridas no pré-hospitalar também podem enfrentar desconfortos adicionais, como o causado pelo frio, o desconforto associado à imobilização e, sofrimento psicológico, incluindo medo, ansiedade e tristeza (Mota et al., 2023). Estudos recentes, que exploraram a relação entre a dor aguda no trauma e as outras modalidades de desconforto, concluíram que vítimas imobilizadas e vítimas com sensação de desconforto provocado pelo frio, tristeza ou medo, tendem a apresentar níveis de dor mais elevados (Mota et al., 2023).
O atendimento pré-hospitalar a vítimas de trauma é um desafio complexo que vai além da gestão de uma abordagem ABCDE, deve atender ao tratamento da dor, ao desconforto provocado pelo frio e pela imobilização, ao medo, à ansiedade e a outras entidades que frequentemente atentam ao conforto da pessoa vítima de trauma socorrida no pré-hospitalar (Mota et al., 2023). Assim, torna-se determinante a operacionalização de um modelo teórico de enfermagem que dê ferramentas para potenciar a eficácia da gestão do desconforto nas vítimas de trauma.
Os modelos teóricos de enfermagem que foram operacionalizados para a prática clínica dos enfermeiros pré-hospitalares durante o socorro às vítimas de trauma assentaram o seu foco essencialmente na gestão da instabilidade hemodinâmica e controlo hemorrágico (Mota et al., 2019). Teoria do Conforto de Kolcaba, desenvolvida por Katharine Kolcaba, é uma estrutura conceptual que visa melhorar a qualidade dos cuidados de enfermagem, sendo o conforto o conceito teórico central na satisfação (ativa, passiva ou cooperativa) das necessidades humanas básicas, baseada em três tipos de conforto: alívio, tranquilidade e transcendental (Kolcaba, 1994). Este modelo conceptual tem sido adaptado a diversos enquadramentos clínicos (Lin et al., 2023) todavia, acreditamos que a sua utilização para a definição de um modelo de cuidados no atendimento a vítimas de trauma nos cuidados pré-hospitalares pode constituir-se como uma importante ferramenta para melhorar a qualidade no socorro. Assim, definiu-se como objetivo para esta investigação analisar criticamente a Teoria do Conforto de Kolcaba na gestão do desconforto durante o socorro pré-hospitalar a vítimas de trauma.
Desenvolvimento
A análise reflexiva da Teoria do Conforto de Kolcaba, no âmbito da gestão do desconforto no socorro às pessoas vítimas de trauma, teve como suporte o método de análise crítica de Chinn et al. (2022), primeiro, com a descrição da teoria, tendo em consideração o objeto pelo qual será operacionalizado, conceitos, definições, relações, estrutura e pressupostos, e, segundo, com uma reflexão crítica, considerando os componentes Importância e Aplicabilidade do modelo para que a teoria esteja ligada com a importância clínica e aplicação na prática profissional.
Descrição da teoria
O conceito conforto reúne diferentes perspetivas à luz das diferentes teorias de enfermagem, contudo consideramos que é nas teorias de Leininger, de Watson, de Morse e de Kolcaba que encontra maior robustez. Para Watson e Leininger o cuidar tem uma importância central e o conforto é um dos seus componentes, enquanto para Morse o cuidar é um construto do conforto, que carece das ações dos enfermeiros. Todavia, não se vê explorada, à luz desta teoria, a avaliação desses mesmos resultados. Kolcaba, por outro lado, defende que se deve estudar o processo do conforto com a avaliação dos resultados, assente na sua conceptualização e operacionalização (Apóstolo, 2009).
A Teoria do Conforto de Kolcaba propõe uma abordagem holística e multidimensional para compreender e promover o bem-estar das pessoas cuidadas (Castro et al., 2021). Define conforto como um estado em que estão satisfeitas as necessidades de alívio, tranquilidade e transcendência nos contextos físico, psicoespiritual, social e ambiental (Kolcaba, 2003). Kolcaba criou um quadro conceptual para mostrar como a sua teoria se enquadra no fluxo de cuidados no contexto da prática e descreve-o como o produto de uma prática de enfermagem holística (Kolcaba, 2003). A teoria conceptualiza o conforto como sendo um estado complexo que abrange as dimensões física, psicológica, social e espiritual (Kolcaba, 1994). Elenca três tipos de conforto: conforto alívio, relacionado com a redução ou eliminação do desconforto físico; conforto tranquilidade, direcionado para a promoção de um ambiente que proporcione tranquilidade e bem-estar psicológico; e conforto transcendental que promove o propósito e a paz espiritual (Kolcaba, 2003). Alicerça-se, ainda, em quatro dimensões fundamentais, (1) a Física, no alívio básico do corpo; (2) a Psicológica e Espiritual, pelo equilíbrio mental e emocional, na procura de propósito e significado da vida; (3) a Social, patente nas relações interpessoais e no apoio social e, por fim, (4) a Ambiental (Gaibor et al., 2021).
O conforto físico está relacionado com factores fisiológicos como o repouso e o relaxamento, as respostas à doença, a nutrição e a homeostasia ou até à própria dor, sendo aliás, esta, um dos principais fatores que comprometem o conforto físico (Kolcaba, 1994). O conforto psicoespiritual incopora a vertente mental e espiritual, as emoções que definem o sentido de vida do indivíduo, como a autoestima, o auto-conceito e a auto-consciência (Kolcaba, 2003). O conforto social está associado ao ambiente social e cultural da pessoa, com respeito pelas tradições, hábitos e crenças religiosas da pessoa e família e estende-se desde a oferta de serviços de apoio financeiro, ao planeamento da alta e/ou sua preparação até aos cuidados no domicílio (Kolcaba, 1994, 2003). Por último, o conforto ambiental está relacionado com o ambiente externo do indivíduo, como a luz, o ruído, a temperatura ou a segurança do ambiente (Kolcaba, 2001).
O impacto da Teoria de Conforto de Kolcaba foi significativo na prática de enfermagem, influenciando a forma como os enfermeiros abordam o cuidado centrado na pessoa. Contribuiu, por isso, de forma decisiva para a promoção de uma abordagem holística e compassiva no campo do cuidar, destacando a importância de considerar não apenas a dimensão física, mas também as necessidades emocionais, sociais e espirituais das pessoas durante o processo de cuidado (Bice & Bramlett, 2019). Este modelo de cuidados tem vindo a ser aplicado em diferentes contextos clínicos, em diferentes tipologias de doentes, desde a pediatria oncológica (Ebrahimpour & Hoseini, 2018), até à ginecologia e tecnologias de reprodução assistida (Schoener & Krysa, 1996) e à geriatria (Oliveira et al., 2020).
A definição de conforto é complexa e difícil de conceptualizar, no entanto, é, desde há muito, o mais elementar dos objetivos dos cuidados de saúde, sendo entendido como o oposto de entidades nosológicas como a dor ou quaisquer outras fontes de desconforto (Gonzalez-Baz et al., 2023). O conforto, enquanto antítese do desconforto, alencado nas quatro independentes mas complementares estruturas, é objetivo dos cuidados de enfermagem em todos os contextos clínicos e, como tal, e também, no socorro de vítimas de trauma na emergência pré-hospitalar.
Reflexão crítica
A prestação de cuidados pré-hospitalares às pessoas vítimas de trauma deve atender não apenas a uma abordagem ABCDE, normalmente com foco na estabilidade hemodinâmica e controlo de hemorragias, determinantes para a sobrevida da pessoa, mas também, e porque a saúde é mais que a ausência de doença, ao alívio do sofrimento, independentemente da sua origem, seja ele dor aguda, desconforto provocado pelo frio ou pela imobilização, ansiedade ou tristeza (Mota et al., 2023).
A aplicação da Teoria do Conforto de Kolcaba, no contexto pré-hospitalar, a pessoas vítimas de trauma, deve envolver a integração de estratégias e abordagens que abranjam os três tipos de conforto: alívio, tranquilidade e transcendental (Kolcaba, 2003).
O conforto de alívio, nas pessoas vítimas de trauma, que é experimentado quando um estado específico de desconforto é aliviado, pode ser conseguido através da administração de diversas medidas, tais como: medidas analgésicas farmacológicas e não farmacológicas, que diminuam a dor física aguda; redução, estabilização e imobilização dos membros com fraturas, que minimizem o desconforto físico (Mota et al., 2024); ou aquecimento com medidas ativas e passivas a pessoas em hipotermia, que diminuíam o desconforto provocado pelo frio (Mota et al., 2021).
A dimensão Psicológica e espiritual exige, também, uma abordagem multidisciplinar. Dado que o contexto clínico em que a pessoa vítima de trauma se encontra pode ser revestido por grande hostilidade (Mota et al., 2019), requerem-se intervenções de cariz mais especifico, dirigidas para a gestão da ansiedade e do medo (Mota et al., 2023), que podem ser conseguidas com técnicas comunicacionais ajustadas, baseadas, por exemplo, em informações claras e compreensíveis sobre a situação de saúde da pessoa, com o objetivo de proporcionar alívio psicológico e espiritual (Eadie et al., 2013).
A dimensão Ambiental pode ser assegurada pela promoção de um ambiente calmo e confortável, onde se consiga gerir a temperatura ambiente (ambulância, por hipótese), reduzir ruídos desnecessários, proporcionando o alívio que o ambiente ameaça (Péculo-Carrasco et al., 2020). Respeitar os valores, as questões culturais e a condição social da vítima é basilar para que se consiga criar um ambiente de confiança e segurança entre enfermeiro e a pessoa vítima de trauma, permitindo, entre outros, que a dimensão social seja respeitada (Bergstrom et al., 2018).
O conforto de tranquilidade assenta na sensação de tranquilidade e de satisfação, e na sua dimensão física podem ser implementadas técnicas de posicionamento para evitar desconforto adicional, oferecendo apoio postural e conforto físico durante o transporte e/ou imobilização (Mota et al., 2019; Mota, Cunha et al., 2022) Já na dimensão Psicológica e Espiritual do conforto tranquilidade, a empatia e a escuta ativa são ferramentas que permitem que a pessoa expresse as suas preocupações e desconfortos, enquanto facilitar a comunicação entre a pessoa e a sua família é elementar para garantir o apoio social necessário, promovendo a sua dimensão social (Müller et al., 2023). A criação de um ambiente tranquilo e acolhedor, com iluminação suave e controle de estímulos externos, permitindo que a pessoa se sinta mais relaxada e confortável durante a prestação de cuidados pré-hospitalares permite controlar a dimensão ambiental (Péculo-Carrasco et al., 2020).
O conforto de transcendência, que é a capacidade de superar problemas ou dor, requer, também, uma abordagem multidisciplinar, capaz de ser representativa, que dê resposta à dimensão física, através de técnicas especificas de controlo respiratório e técnicas de relaxamento muscular (Miri et al., 2023), na dimensão Psicológica e Espiritual, com a criação de um espaço seguro e próprio para momentos de reflexão e de busca de significado (Goldin et al., 2023). Na dimensão Ambiental deve promover-se o apoio social e a interação com a família e amigos, criar-se um ambiente de paz e serenidade, com elementos naturais e acolhedores, ajudar a pessoa a fazer a transição para a sua situação atual e encontrar conforto e esperança (Nascimento et al., 2023).
Ao abordar as necessidades de conforto das pessoas vítimas de trauma nos cuidados pré-hospitalares com base na Teoria do Conforto de Kolcaba, será possível melhorar a experiência da pessoa, promovendo não apenas a sua recuperação física, mas também o seu bem-estar emocional e espiritual. Isso contribuirá para uma abordagem mais abrangente e humanizada no atendimento das pessoas vítimas de trauma em situações de emergência pré-hospitalar (Goldin et al., 2023). Ao integrar estas estratégias, os enfermeiros do pré-hospitalar podem oferecer um atendimento mais abrangente e centrado na pessoa, alinhado com os princípios da Teoria do Conforto de Kolcaba. A adoção dos princípios orientadores da teoria visa não apenas tratar as lesões físicas, mas também abordar as necessidades emocionais, psicológicas e espirituais das pessoas vítimas de trauma, contribuindo para uma abordagem holística e uma recuperação mais completa e humanizada.
Conclusão
Tendo em conta os desafios complexos enfrentados na prestação de cuidados a pessoas vítimas de trauma no pré-hospitalar, a abordagem carece de reforçar variáveis emocionais e psicológicas responsáveis, também, por desconforto, além das variáveis de cariz físico e mais facilmente mensuráveis. Neste contexto, a Teoria do Conforto de Kolcaba emerge como uma valiosa estrutura conceptual, identificando o conforto como o resultado fundamental e desejável, fruto da resposta a diferentes entidades nosológicas.
A teoria baseada nos princípios de alívio, tranquilidade e transcendentalidade, pode assumir-se como uma estrutura valiosa para orientar a prática clínica dos enfermeiros no socorro a pessoas vítimas de trauma. A sua aplicação na prestação de cuidados no pré-hospitalar pode constituir-se como uma mais-valia para a recuperação física e para o bem-estar emocional e espiritual das pessoas.
A integração prática da teoria envolve a adoção de estratégias específicas, desde a avaliação holística, passando pelo desenvolvimento de novas ferramentas de diagnóstico, à criação de ambientes confortáveis e à promoção da continuidade do cuidado. Essas práticas, alinhadas com os princípios da Teoria do Conforto de Kolcaba, podem capacitar os enfermeiros do pré-hospitalar a oferecer um atendimento centrado na pessoa, reconhecendo e respondendo às necessidades físicas, emocionais e espirituais das pessoas vítimas de trauma. Ao fazê-lo, a recuperação mais completa e humanizada pode ser potenciada, moldando um novo paradigma no cuidado de emergência extra-hospitalar.














