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Psicologia
versão impressa ISSN 0874-2049
Psicologia vol.11 no.1 Lisboa jan. 1996
Porque e para quem escrever? Crenças sobre a escrita, sua função e audiência
Maria João Alvarez Martins*
*Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Universidade de Lisboa
RESUMO
O presente artigo enfatiza a importância das crenças no contexto da aprendizagem escolar, em particular no domínio da composição escrita. A investigação realizada com uma amostra de 103 jovens dos 5.o, 8.o e 11.o anos de escolaridade centra-se na exploração das crenças associadas às funções e audiências de três categorias de escrita: expressiva, transaccional e poética. A autora propõe uma reflexão sobre os resultados encontrados e sugere algumas pistas gerais de intervenção educacional.
ABSTRACT
The present study stresses the importance of beliefs as related to academic learning, particularly adressing written composition. Present research envolving 103 júnior anda high school students (5th, 8th, llth grades) focused on the assessment of beliefs regarding functions and audiences belonging to three categories of writing: expressive, transactional and poetic. The autor reflects on the results with the aim of sugesting some general leads regarding educational intervention.
Não se incomode comigo porque eu sou estúpido; Nunca vou ser capaz de aprender esta matéria; Acho que sou esperto e vou conseguir.
Na nossa actividade de psicólogos ou de professores já nos demos conta de que as crenças que os jovens partilham sobre si próprios, sobre o mundo ou sobre uma actividade, podem constituir um entrave importante ou, pelo contrário, ser um auxiliar extraordinário à mudança que se pretende.
Acho que escrevo bem porque não tenho uma letra daquelas grandalhonas; Não dou erros ortográficos, por isso acho que escrevo bem; Para eu escrever melhor precisava de gostar mais de todos os temas que escrevo, porque só escrevo bem quando gosto do que tenho de escrever
Da mesma maneira que o fazem relativamente a muitas outras actividades cognitivas e sociais, os jovens desenvolvem crenças acerca da escrita, construindo teorias a partir das suas experiências culturais e educacionais, que por sua vez vão influenciar a forma como abordam, aprendem e desenvolvem esta actividade.
Contudo, antes de podermos explorar a forma como as crenças influenciam qualquer actividade, nomeadamente a de escrita, importa obter conhecimento sobre o conteúdo dessas mesmas crenças. Creio que todas as tentativas para modificar a compreensão e aumentar a consciência de alguma coisa têm, necessariamente, de tomar como ponto de partida a forma como essa «coisa» é constituída.
Desta forma, os objectivos do presente artigo centram-se na identificação e compreensão de crenças sobre algumas exigências conceptuais da escrita, numa amostra constituída por 103 jovens dos 5.o, 8.o e 11.o anos de escolaridade, apreciando mudanças ocorridas entre os vários anos de escolaridade estudados.
Penso que este conhecimento nos ajudará a clarificar as representações que os escrevedores constroem sobre aspectos considerados importantes e intervenientes no processo de escrita, e que são essenciais para a construção de estratégias e programas de instrução mais eficazes. Estou convicta de que o estudo da escrita nesta perspectiva ajudará a antecipar e, consequentemente, a preparar conteúdos e estratégias didácticas adaptados à realidade dos jovens.
A importância das crenças…
A importância das crenças na organização do pensamento e na aprendizagem tem vindo a ser realçada por diversos autores (Greeno, 1989; Lopes da Silva e Sá, 1993; Paris e Winograd, 1990).
Considera-se não só que algumas propriedades desse mesmo pensamento e aprendizagem podem ser determinadas pelas crenças que se possui, como se advoga também que a sua compreensão pode contribuir para uma maior preparação de professores e psicólogos, no sentido de motivar os jovens e encorajar o seu desenvolvimento em direcções apropriadas.
Vários estudos oriundos de pesquisas em actividades escolares, como a leitura e a matemática (Pramling, 1988; Myers e Paris, 1978; Wagner, Spratt, Gal e Paris, 1989), bem como na aprendizagem em geral (Paris e Winograd, 1990), têm vindo a referir como uma conquista cognitiva importante a «auto»consciência da natureza da tarefa e das estratégias envolvidas, consciência esta a partir da qual é possível distinguir diferentes níveis de desempenho.
Qualquer intervenção de natureza educacional deverá tomar em consideração a compreensão e as convicções pessoais do aprendiz acerca da actividade, de forma a promover uma utilização e manutenção autocontrolada dos conhecimentos e das estratégias a veicular.
…E a sua relação com a actividade de escrita.
Sabemos que os escrevedores não adquirem apenas competências e estratégias de escrita. Adquirem também crenças e atitudes sobre o modo como se desenrola o processo de escrita, que influenciam a forma como compõem (Faigley, Cherry, Jofliffe e Skinner, 1985; Frederiksen e Dominic, 1981).
Algumas tentativas realizadas com o objectivo de ajudar os estudantes a superar dificuldades na aprendizagem da escrita mostraram-se pouco eficazes, pois apesar das estratégias veiculadas e dos esforços de instrução, os jovens não estavam conscientes nem das suas dificuldades, nem da funcionalidade das várias estratégias (Wong, Wong e Blenkinsop, 1989). Ou seja, as actividades particulares que são desenvolvidas parecem ser afectadas, senão ditadas, por julgamentos acerca da correcção e pertinência das diferentes visões e tácticas a aplicar à tarefa, e opiniões acerca de si próprio enquanto agente dessa mesma actividade.
Se bem que escrever seja consideravelmente mais do que crer e saber, o entendimento da tarefa, a selecção dos objectivos, a escolha das estratégias, a persistência e o vigor dos esforços dos estudantes reflectem um padrão de crenças ou conhecimentos acerca da actividade e da sua competência para lidar com ela que não deve ser menosprezado (Paris e Winograd, 1990).
Fundamentos teóricos das crenças exploradas.
As áreas seleccionadas para explorar as crenças dos jovens dizem respeito a alguns aspectos considerados intervenientes na aquisição de competências de discurso (Frederiksen & Dominic, 1981). De entre os vários aspectos explorados1, saliento os objectivos que conduzem ou subjazem às actividades de escrita e a relação que estabelecemos com o leitor potencial ou efectivo do texto, conhecida sob a designação de audiência do texto.
Objectivos ou Funções da Linguagem Escrita.
Quando se escreve possui-se um motivo para o fazer. O sentido do objectivo ou função da escrita pode ser examinado a partir dos objectivos individuais do escrevedor, dependendo parte do processo de aprendizagem da escrita, da aprendizagem das funções que a escrita serve.
Uma das possibilidades mais interessantes é a de que provavelmente podemos melhorar o desempenho dos estudantes, simplesmente encorajando-os a adoptar definições mais apropriadas das tarefas de escrita. No entanto, não podemos excluir a possibilidade de as definições das tarefas dadas pelos estudantes espelharem basicamente diferenças nas suas competências (Hayes, 1990).
O sistema de categorias adoptado para estudar as funções da escrita propõe uma classificação das funções em expressiva, transacional e poética, servindo a escrita expressiva de matriz a partir da qual o escrevedor se movimenta para uma de duas direcções opostas (transaccional ou poética) e para uma escrita expressiva mais matura (Britton, Burgess, Martin, McLeod e Rosen, 1975).
Estas categorias têm por base a relação entre linguagem e comunicação: (1) onde o discurso oral inicialmente expressivo torna-se progressivamente mais explícito quando se descobre que o receptor não compreende ou não aceita o que está a ser dito (Sapir, 1961, cit. in Britton et al., 1975); (2) a forma como pensamento, linguagem e escrita se interrelacionam (Piaget, 1977, Vygotsky, 1986); (3) a hierarquia de funções da linguagem proposta por Jakobson (1960, cit. in Britton et al., 1975); e (4) a relação entre o escrevedor e o conteúdo da sua escrita, em que se postula uma relação progressivamente mais abstracta, fruto do desenvolvimento de capacidades cognitivas (Moffett, 1968).
A escrita expressiva pode ser çaracterizada como uma expressão «próxima do emissor» e só é totalmente compreensível para aquele que conhece e partilha o seu contexto. E na sua forma mais pura, uma expressão descontraída e íntima (não tendo que implicar necessariamente informação de natureza privada, referindo-se apenas a um convite que o emissor faz ao receptor para entrar no seu mundo), livre de exigências exteriores.
A escrita transaccional caracteriza-se pelo seu carácter instrumental: informar, aconselhar, persuadir ou instruir. Esta linguagem exige referências específicas e exactas acerca do que é conhecido sobre a realidade.
A escrita poética utiliza a linguagem como veículo artístico. Uma peça de escrita poética é um constructo verbal, um «objecto» feito de linguagem, em que as palavras são seleccionadas para fazer um arranjo ou padrão formal. Os aspectos fonéticos, sintácticos, lexicais e semânticos são objecto de uma atenção diferente por parte do escrevedor, daquela a que se assiste numa escrita não poética.
A hipótese postulada por Britton e colaboradores (1975) relativamente ao desenvolvimento destas funções caracteriza-o por uma crescente amplitude nos tipos de escrita, antevendo-se uma grande quantidade de escrita expressiva nos primeiros anos de escolaridade e um aumento nos últimos anos de uma escrita transacional de nível de abstracção considerado superior, bem como um aumento da escrita poética, compensadas por uma redução na escrita expressiva, mantida e desenvolvida nos seus objectivos e formas mais maturos.
Após a análise de mais de duas mil composições realizadas no âmbito de diversas disciplinas escolares, em quatro anos de escolaridade distintos (5.o, 7.o, 9.o e 11.o anos), os autores concluíram não poder corroborar nem falsificar a sua hipótese. Estes resultados ficaram a dever-se ao facto de a escrita expressiva ser praticamente inexistente nos documentos realizados pelos sujeitos de todos os anos de escolaridade, a escrita poética apresentar um declínio abrupto a partir do 9.o ano de escolaridade, auferindo a escrita transaccional perto de 65% do total das composições realizadas. Estes resultados levaram alguns autores a concluir que, à medida que nos distanciamos da análise da sintaxe e nos debruçamos sobre os aspectos funcionais da escrita dos estudantes, temos dificuldade em aceder ao desenvolvimento natural das competências de escrita, já que é possível que o sistema escolar faça solicitações e exigências, se não incompatíveis, pelo menos manipuladoras deste desenvolvimento (Bereiter, 1980).
Audiência.
O conceito de audiência tem sido considerado central no processo de composição escrita (Roen e Willey, 1988; Kirsch, 1991; Moffett, 1968), expressando a relação entre escreve dor e leitor do texto.
De acordo com alguns autores (Britton et al., 1975; Moffett, 1968) não faz sentido falar na relação entre emissor e conteúdo do texto (função da linguagem), sem falar na relação que o emissor estabelece com o receptor, ou seja, na relação retórica.
Inspirado nos trabalhos de Piaget, Moffett associa as primeiras composições de um jovem a um discurso egocêntrico que progressivamente se dirige para o exterior, transformando-se numa escrita mais socializada à semelhança do que ocorre no discurso oral.
Assim, a escrita, sendo um acto solitário em que o escrevedor se vê privado de toda uma estimulação presente na interacção oral, tenderá a ser realizada inicialmente para uma audiência próxima ou familiar: «a criança gosta de saber-se ao lado da mãe, nenhuma das suas palavras lhe parece dirigida a si própria, pois sente-se envolvida de tal sentimento de presença que falar a si própria ou à mãe lhe sugere a mesma coisa» (Piaget, 1977, p. 70).
Progressivamente, a criança afasta-se para uma audiência pública cada vez mais distanciada do próprio, quando da saída do mundo dos adultos que lhe estão próximos e da entrada no mundo dos companheiros e de estranhos, o que lhe permite adquirir um estatuto mais igualitário.
A oportunidade de escrever para uma variedade de audiências não só se mostra uma exigência no ensino de estratégias complexas essenciais ao processo de escrita, como também contribui para o desenvolvimento de atitudes mais positivas face à escrita (Monahan, 1984). Esta diversidade de audiências permite ainda diferenciar tipos de discurso, já que esta diferenciação depende em parte da relação estabelecida entre escrevedor e leitor do texto (Moffett, 1968).
No entanto, já em 1968, Moffett chamava a atenção para o facto de os estudantes escreverem sistematicamente para a mesma «velha» pessoa, ou seja, o professor, sendo raras as oportunidades de escrever para audiências reais. O estudo longitudinal de Britton e colaboradores conclui que 95% dos textos se destinam ao professor enquanto audiência, revelando que a relação aluno/professor prevalece sobre a relação de diálogo entre professor e aprendiz.
De facto, um dos grandes problemas com que o escrevedor tem de lidar diz respeito à transformação de uma prosa compreensível para si próprio, numa outra também compreensível para o outro. Muitos estudantes pensam que o que é compreensível para eles também o é para os outros. Nesta medida, mostra-se essencial que a escola ajude primeiramente os estudantes a tomar consciência da audiência e promova a sua diversidade, e só posteriormente se foque no ensino/aprendizagem de algumas regras que facilitem este processo. Caso contrário, este «egocentrismo» tenderá a manter-se, se pensarmos que o receptor da nossa escrita é frequentemente alguém que sabe sempre mais do assunto que nós próprios (habitualmente o professor), fortalecendo a ideia de que não é necessário, realmente, atender às necessidades do leitor.
Propósitos do estudo.
Como anteriormente foi referido, neste estudo procurou-se identificar e compreender algumas crenças relativas à escrita, apreciando mudanças que pudessem vir a revelar-se entre os vários anos de escolaridade. Através de uma entrevista concebida para o efeito, jovens de diferentes anos de escolaridade, guiados de acordo com o método clínico piagetiano, foram solicitados a expressar as suas concepções acerca dos objectivos e características de três tarefas de escrita2 (expressando a frequência com que se envolvem nestas tarefas) e a identificar a audiência para quem escrevem cada uma delas.
A exploração das crenças serviu assim dois objectivos: (a) Aceder a conhecimento relativo às representações da actividade de escrita, conhecimento este que se considera essencial no planeamento de programas tendentes ao desenvolvimento das competências de escrita e; (b) Colmatar alguns obstáculos presentes no estudo da escrita quando este faz uso dos documentos efectivamente realizados pelos estudantes. Se os documentos de escrita realizados na escola podem estar enviesados pelas exigências que esta coloca aos estudantes, negando de alguma forma o acesso ao desenvolvimento natural das competências de escrita, prevê-se que a prescrutação das crenças, menos impregnada de constrangimentos de natureza funcional, permita obter informação diferente sobre o desenvolvimento de noções intervenientes na composição escrita (Britton et al., 1975).
Mudanças entre os anos de escolaridade.
Escrita Expressiva x Função e Audiência.
Os objectivos e a audiência subjacentes à tarefa de escrita expressiva são diferentes entre os três anos de escolaridade.
No que concerne aos objectivos os grupos mostram-se diferentes devido basicamente às diferenças encontradas entre os jovens do 5.o e 11.o anos de escolaridade.
Assistimos a uma progressão nas crenças que vai desde o objectivo de comunicar informação aos outros sem preocupações de carácter avaliativo (5.oano): para as pessoas verem como nós pensamos, para dar a conhecer às outras pessoas o que nós pensamos, passando pela possibilidade de este tipo de escrita oferecer condições para se melhorarem aspectos de natureza gramatical (8.o ano): para sabeimos escrever melhor, para melhoraimos a letra, melhorar a escrita, até à utilização da escrita expressiva ao serviço da reflexão sobre os próprios pensamentos e emoções (11.o ano): para desenvolver em nós o espírito crítico, desenvolvemos a nossa maneira de vermos as coisas, desenvolver em nós a capacidade de criar novas ideias, desenvolver os nossos sentimentos, as nossas emoções.
Para os sujeitos mais novos, esta tarefa não tem por objectivo aprender-se mais sobre o assunto sobre o qual se está a escrever. Este facto permite-nos colocar a hipótese de estes jovens possuírem uma crença mais «pura» dos objectivos da escrita expressiva, ao contrário dos colegas dos outros anos de escolaridade, ao não entenderem a escrita expressiva no sentido transaccional, como acontece com a maioria dos estudantes do «liceu» (Ruth e Murphy, 1988). No entanto, na base desta ausência de consciência de objectivos de aprendizagem na escrita pode encontrar-se a crença de que a escrita é o resultado do que já pensámos e não daquilo que podemos pensar pelo facto de a utilizar (Scardamalia e Bereiter, 1987).
A este propósito referimos um outro objectivo bastante diferenciador das crenças partilhadas pelos grupos, e que diz respeito à procura de autoconhecimento cognitivo e emocional com este tipo de escrita, por parte dos jovens do 11.o ano.
A escrita expressiva utilizada de acordo com estes objectivos, ao servir propósitos de descoberta e exploração de pensamentos e emoções, parece apelar para uma estratégia de escrita enquanto oportunidade de transformação desses mesmos pensamentos e emoções e poderá ser considerada assim, uma concepção mais matura da sua utilização (Bereiter, 1980; Scardamalia e Bereiter, 1987).
A frequência com que os jovens dizem envolver-se nesta actividade de escrita leva-nos a constatar que ela é pouco realizada, não se encontrando maior envolvimento neste tipo de escrita nos anos mais baixos da escolaridade, à semelhança do que se constata na investigação de Britton e colaboradores (1975).
As consequências desta frequência reduzida podem ser pouco positivas por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, a escrita expressiva tem sido advogada por permitir explorar preocupações e interesses pessoais, funcionando assim como uma forma de promover o gosto pela escrita e facilitar o processo de escrita (Britton et al., 1975; Graves, 1985; Walmsley, 1983). Habitualmente o sujeito conhece melhor o tema, sente-se mais livre de constrangimentos e desenvolve a actividade com maior fluência. Se não for dada oportunidade ao estudante de escolher e poder escrever mais livremente sobre temas do seu interesse, poderemos estar a fomentar, desde muito cedo, um certo desinteresse pela actividade de escrita. Em segundo lugar, o desenvolvimento de outros tipos de escrita, considerados mais maduros, pode ficar algo ameaçado por este facto, já que nestes os constrangimentos são maiores e a sensação de lidar adequadamente com os desafios pode ser completamente estranha ao escrevedor, fazendo-o desistir da tentativa de lidar com o complexo processo envolvido numa escrita mais madura.
Relativamente à audiência, o professor é a audiência mais referida para todos os níveis de escolaridade, se bem que os estudantes se mostrem diferentes pelo facto de os mais novos conceberem mais este tipo de escrita para a família e menos para o próprio, ao contrário dos colegas mais velhos e, os jovens do 8.o ano referirem mais o professor como audiência concebível do que todos os outros.
A referência à família por parte dos sujeitos mais novos mostra-se bastante consonante com a perspectiva de Moffett (1968). O jovem não diferencia a vida individual da vida social e, neste sentido, escrever para si mesmo é igual a escrever para os que lhe estão mais próximos.
Ao contrário, para os escrevedores mais velhos existe como que a demarcação de uma exploração pessoal de significado de uma partilha com a família, como se as duas coisas fossem incompatíveis. De facto, uma das tarefas mais importantes da adolescência diz respeito à independência e autonomia face à família, apoiada pela integração no grupo de pares. Neste sentido, a construção de uma identidade pessoal passa pela diferenciação do próprio daqueles de quem até então se considerava indivisível e desigual em poder e saber. A referência ao próprio, como uma audiência que distingue os estudantes mais velhos dos mais novos, pode ser interpretada como expressão da necessidade de o jovem se envolver numa exploração pessoal. A ausência de uma relação com a família poderá ser um indício da necessidade de socializar a sua escrita, não no sentido de a partilhar como anteriormente, mas no sentido de se fazer compreender no contexto de uma relação de poder e saber iguais, mas necessariamente menos próxima. No entanto, a escrita destes jovens não se separa bruscamente de uma audiência familiar. Quem, depois da família, se encontra mais próximo do estudante, de forma a acompanhá-lo nessa travessia solitária de «comunicar» sem interlocutor? O professor. E justamente esta a audiência mais referida pelos jovens do 8o ano para os seus textos expressivos, parecendo entendê-lo como uma alternativa à família, rumo a si próprio.
Em síntese, assiste-se a uma mudança na audiência que progride da família para o professor e deste para o próprio. Contudo, se bem que pareça existir uma mudança no sentido de uma audiência mais próxima que progressivamente se vai afastando para receptores mais distantes, a concepção de uma audiência universal não parece «ocupar» as crenças dos jovens. A mudança nos últimos anos de escolaridade parece fazer-se mais pela não aceitação das audiências concebidas até aí (família e professor), que pela consciência de novas audiências para quem se pode dirigir a mensagem (audiência universal), aparecendo assim o próprio como audiência privilegiada para este tipo de escrita.
Escrita Transaccional x Função e Audiência.
Contrariamente à escrita expressiva, os jovens revelam possuir uma consciência semelhante acerca dos objectivos inerentes à realização da tarefa de escrita transacional. O mesmo não acontece relativamente à audiência, aspecto que permite diferenciar os grupos. Os jovens relatam ser esta a tarefa de escrita que mais frequentemente realizam na escola.
A totalidade dos jovens entende esta tarefa como uma oportunidade para aprender conteúdos específicos, habitualmente de natureza curricular: aprendemos coisas, ficamos a saber a matéria, ficamos com mais cultura geral (sem no entanto explicitarem de que maneira esta escrita os ajuda) e, como uma forma de serem avaliados: para o professor ver o que a gente sabe, para os professores verem até que ponto a gente está desenvolvido, os professores querem saber o que nós pensamos desse assunto e muitas vezes não é a maneira como nós pensamos, mas a maneira como nós escrevemos.
O entendimento da escrita transaccional como oportunidade para aprender sugere-me duas interpretações alternativas.
A primeira prende-se com o facto de o estudante poder entender a tarefa como uma oportunidade para aprender dada a necessidade que sente de se preparar para informar ou persuadir o professor daquilo que sabe. No entanto, é possível que esta oportunidade seja concebida meramente pelo facto de o jovem associar esta escrita ao trabalho típico realizado na escola. E neste sentido, considera-a como mais uma tarefa de aprendizagem mesmo que não saiba de que maneira é que esta escrita lhe permite aprender.
No seguimento desta última interpretação é importante notar como esta escrita se mostra a única para a qual a avaliação que permite ao professor parece constituir um objectivo da sua realização, levando-nos a suspeitar que ela se realiza com o objectivo de mostrar a aprendizagem, mais do que explorar essa mesma aprendizagem (Applebee, 1984; Britton et al., 1975).
A utilização de uma mesma tarefa escolar ao longo da vida académica do estudante tem habitualmente como objectivo orientá-lo no sentido de a entender, abordar e lidar com ela de uma maneira diferente, e recordamos a este propósito a noção de currículo em espiral de J. Bruner. Parece-me legítimo perguntar porque é que os estudantes continuam a entender esta tarefa de escrita da mesma forma? Porque é que as crenças associadas à escrita expressiva e poética se modificam apesar da pouca frequência com que são realizadas, e a escrita transaccional, à qual corresponde maior prática, se mantém ao serviço dos mesmos objectivos ao longo da escolaridade dos estudantes da amostra?
Relembremos como o estudo de Britton e colaboradores (1975) se mostrou algo decepcionante ao ter de reconhecer que estudar a escrita dos estudantes parecia não se diferenciar muito do estudo do que a escola faz da escrita desses mesmos estudantes. Assim, a ideia de que as crenças relativas à escrita transaccional possam estar particularmente impregnadas dos valores, ideias e concepções partilhados ou veiculados pela escola ou entendidos pelos estudantes como partilhados e veiculados pela escola, parece-me uma interpretação possível, justificando, em parte, a ausência de mudança ou lugar para idiossincrasias acerca desta tarefa de escrita.
No que concerne à audiência, o professor continua a ser a audiência mais referida para este tipo de textos, aumentando substancialmente a frequência com que foi referido para a tarefa de escrita expressiva e auferindo sempre mais de cinquenta por cento das verbalizações, em qualquer ano de escolaridade.
Os grupos mostram-se diferentes pelo facto de os sujeitos mais jovens conceberem a família como audiência possível, ao contrário dos mais velhos, e estes referirem-se significativamente mais a si próprios como receptores desta mensagem.
Mais uma vez, a mudança operada nas audiências concebíveis parece relacionar-se com aspectos do desenvolvimento da socialização e, tal como atrás fiz notar, a referência ao próprio não me parece necessariamente um entrave ao desenvolvimento da consciência das necessidades do leitor, mas fruto de uma necessidade de auto-afirmação do estudante e mesmo da consciência da aprendizagem que este tipo de escrita pode promover.
Contudo, se a referência ao próprio se basear na crença de que uma escrita transaccional se destina de facto a si mesmo, isso parece-me poder criar alguns problemas. Por definição, a escrita transacional exige referências específicas e exactas acerca do que é conhecido sobre a realidade, obrigando assim o escrevedor a tornar explícita a linguagem e o contexto utilizado, de forma a que ela possa ser entendida como uma transacção de facto. Ao conceber-se a si próprio como audiência desta escrita, muitas destas exigências tornam-se dispensáveis, sendo mais difícil exibir uma escrita considerada efectivamente informativa ou persuasiva.
Escrita Poética x Função e Audiência.
Os objectivos inerentes à realização da escrita poética são diferentes para os três anos de escolaridade. No entanto, a amostra mostrou-se homogénea quanto às audiências concebíveis.
Os objectivos da escrita poética mais referidos prendem-se com a expressão de sentimentos: é a gente estar a escrever aquilo que sente, expor os nossos sentimentos, e como um exercício de articulação de aspectos fonéticos, sintácticos, lexicais e semânticos da expressão escrita: é uma maneira bonita de transmitir uma ideia, serve para criarmos um texto belo. Foi o único tipo de escrita que fez surgir quer a noção de prazer associada à escrita, quer expressões de desagrado quanto ao gosto pela sua realização: é divertido, não gosto nada de fazer poemas, não sei fazer poemas.
No entanto, as crenças relativas aos objectivos mostram-se diferentes, fundamentalmente pelo facto dos jovens do 5o ano não saberem qual possa ser o objectivo de realizar uma escrita desta natureza: não sei para que é que serve, não lhe atribuindo qualquer objectivo de auto-conhecimento emocional, ao contrário dos seus colegas: para perceber o que sinto. O desconhecimento dos objectivos da escrita poética, em crianças jovens, foi encontrado noutros estudos exploratórios das crenças acerca da escrita (Tamburrini, Willig e Butler, 1984).
Para a maioria das crianças mais novas, o poema caracteriza-se pela sua rima: é para rimar, mas ao contrário das crenças encontradas no estudo de Tamburrini (1984), o conteúdo deste género de escrita não se associa a aspectos relacionados com a natureza (pássaros, flores, verão, etc…), mas antes com a expressão de sentimentos: para exprimir sentimentos, podemos ficar felizes.
Mais uma vez, os sujeitos mais velhos revelam uma maior consciência da possibilidade deste tipo de escrita poder encerrar uma descoberta e exploração de sentimentos/emoções pessoais, parecendo poder ser utilizada no sentido da transformação de emoções e não meramente como forma de registar essas mesmas emoções: desenvolve o nosso lado espiritual, romântico.
Dado ser esta a tarefa de escrita que segundo as crenças dos sujeitos menos frequentemente é realizada, nunca tendo sido desempenhada por 48 por cento dos jovens, a exploração das crenças mostra-se bastante significativa, pois revela que os objectivos parecem poder desenvolver-se na ausência de uma prática efectiva.
Relativamente à audiência, pela primeira vez o professor deixa de ser a audiência mais referida. Os amigos e namorados são os alvos preferenciais de escolha dos sujeitos do 8o e 11o anos, mantendo-se a família a audiência mais referida para os jovens mais novos. No entanto, dada a homogeneidade da amostra quanto a este aspecto, é importante realçar que nem os mais novos deixaram de referir os amigos como audiências possíveis, nem os mais velhos afastaram a família como receptores da mensagem. Surge pela primeira vez uma referência importante à audiência universal como audiência concebida.
Esta mudança da audiência concebível neste tipo de texto faz-me pensar que esta tarefa pode ser entendida como algo totalmente à parte e discriminável das outras duas. Julgo lícito afirmar que quanto mais a tarefa se afasta de uma realização escolar, mais as audiências se diversificam e mais se concebe uma audiência distante como receptora da mensagem. A natureza emocional da mensagem não é incompatível com a sua leitura por parte de estranhos, e poderá ser fruto do desenvolvimento do entendimento desta tarefa num contexto mais «natural», seja fora da escola, seja dentro da escola com propósitos outros que não os avaliativos.
Conclusões.
Segundo Kroll e Wells (1983), as tentativas de explicação teórica e as análises conceptuais que permitiriam elaborar um modelo geral sobre o desenvolvimento da escrita são relativamente escassas. Não existem ainda critérios estabelecidos no domínio da escrita para apreciar o seu desenvolvimento em termos de graus ou níveis de abstracção.
Desta forma, a apreciação das mudanças ao longo dos anos de escolaridade deve ser realizada com muita cautela, valendo-se de linhas orientadoras que têm vindo a ser formuladas como, por exemplo, a progressão de uma audiência próxima para uma audiência longínqua e as intenções subjacentes aos vários tipos de escrita, com avaliação do grau de abstracção (abstracção reflexiva) presente nos objectivos que lhe são atribuídos.
Neste sentido, as mudanças operadas ao longo dos anos de escolaridade da amostra parecem positivas. No entanto, parece ser necessário esperar em média seis anos (tempo que decorre entre o 5.o e 11.o ano) para que os grupos revelem crenças significativamente diferentes.
As crenças explicitadas para os três tipos de escrita revelam que estes são entendidos, em termos gerais, com objectivos diferentes. Contudo, os resultados encontrados alertam-nos para a possibilidade de as escritas expressiva e poética serem pouco exploradas em contexto educacional, podendo desenvolver nos jovens um menor gosto pela escrita. Concomitantemente, mostra-se relativamente surpreendente que o tipo de escrita mais realizado na escola seja justamente aquele que dá origem a crenças mais homogéneas ao longo da escolaridade, evidenciando pouca idiossincrasia.
Relativamente à consciência da audiência, o professor continua a ser a audiência mais concebível, com todos os riscos que tal crença pode envolver, como atrás referi. A ausência quase total de concepções sobre audiências mais distanciadas, como os pares, leigos e audiências desconhecidas (universais), faz-me temer pelo desenvolvimento mais maturo e descentrado da linguagem escrita. Não se julgue, no entanto, que este desenvolvimento se encontra fora do alcance dos jovens: eles materializam-no na escrita poética, a realizada com menor frequência em contexto escolar.
Parece-me urgente uma reflexão sobre as intenções subjacentes às diferentes tarefas de escrita, e uma mudança no que concerne aos receptores da mensagem escrita dos jovens e à frequência com que estes se envolvem em tarefas que desenvolvem o gosto e a perícia em lidar com a escrita.
Referências
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Notas
1Para este artigo seleccionaram-se apenas algumas das crenças exploradas na dissertação de mestrado da autora em que este trabalho se baseia (Martins, 1992).
2Composição onde dá a sua opinião (expressa as suas ideias) sobre um tema proposto por si próprio (Escrita Expressiva); Composição (ou trabalho) sobre uma matéria apresentada na aula (Escrita Transacional); Poemas (Escrita Poética). Estas tarefas foram seleccionadas com base no parecer de vinte e nove professores de Português, Biologia, História, Geografia e Filosofia. Este parecer destinou-se a avaliar o consenso dos professores quanto à função ou funções em que poderia ser inserida determinada tarefa de escrita. Pretendeu-se igualmente tomar conhecimento da frequência com que determinadas tarefas eram solicitadas aos estudantes, de forma a assegurar que as tarefas seleccionadas fossem conhecidas dos sujeitos da amostra.