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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.11 no.1 Lisboa jan. 1996

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v11i1.598 

O pensamento do professor na fase interactiva do ensino: meta-reflexões, dos professores aos investigadores

 

Alexandra Marques Pinto*

*Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação Universidade de Lisboa

 


RESUMO

Neste artigo pretende-se reflectir sobre uma investigação levada a cabo no quadro do paradigma do pensamento do professor e que teve por objectivos gerais a exploração e descrição de variáveis significativas no domínio do pensamento interactivo do docente e o estudo de algumas relações entre essas variáveis. A investigação realizada baseou-se essencialmente na análise aprofundada de um número restrito de casos - dez professoras do terceiro ciclo do ensino básico e do ensino secundário - e no recurso a metodologias qualitativas. De acordo com as exigências metodológicas da investigação qualitativa, utilizou-se uma diversidade de procedimentos de recolha e de análise de dados dos quais se destacam o processo de estimulação da recordação, a análise de conteúdo e as análises de frequências, de correlações e classificatória hierárquica. No final do artigo procurar-se-á reflectir sobre o significado dos resultados obtidos e sobre algumas das suas implicações para a formação de professores.


ABSTRACT

This article reflects on and analizes a research made in the context of teacher thinking paradigm. The major goals of this studie were the description, understanding and explanation of some significa tive variables in teachers’ interactive thoughts domain - what, how and why teachers think while interacting with students in the classroom. Therefore, ten indepth case-studies were made, using qualitative methodologies, namely stimulated recall techniques. Finaly, the article tries to clarify the meaning of the results and the implications for teacher education.


 

1. Origem, pressupostos e evolução do paradigma do pensamento do professor.

Durante as décadas de setenta e de oitenta, o estudo dos processos de ensino-aprendizagem atravessou um período de profundas transformações, de grande criatividade teórica e metodológica. Na realidade, observou-se uma verdadeira evolução que deu lugar ao aparecimento do paradigma do pensamento do professor.

No que diz respeito à investigação educacional, anteriormente dominada por modelos quantitativos de raiz empirista e positivista, observou-se, com o desenvolvimento deste paradigma, a ascensão de perspectivas qualitativas, mediacionais e ecológicas. Assim, mais do que descobrir o «professor eficaz», mediante o estudo dos seus comportamentos observáveis e da relação destes com o rendimento do aluno (Perez Gomes, 1984), importa compreender e explicar o processo ensino-aprendizagem de acordo com o mundo de significados singulares que o caracteriza (Halkes e Olson, 1984).

Nesse sentido e embora não menosprezando a importância do contexto organizacional da cognição e do comportamento do aluno ou a sua influência no ensino-aprendizagem (Shavelson e Stern, 1981), o paradigma do pensamento do professor encara os processos mediacionais do docente como um elemento determinante, ao longo de todo o processo, da planificação à interacção instrucional e à avaliação do percurso e dos resultados obtidos.

Paralelamente verificou-se a adopção de modelos qualitativos, de estudo da realidade na sua complexidade natural, em que a análise de casos surge como um procedimento central e o relato verbal constitui a principal forma de recolha de dados (Perez Gomes, 1984; Marcelo, 1987b).

Apesar da variedade de abordagens e instrumentos de investigação reconhecidamente existente no paradigma do pensamento do professor, diversos autores caracterizam a sua evolução de acordo com o abandono progressivo de metáforas racionalizadoras do pensamento do professor - do processamento da informação no ensino à resolução de problemas de tomada de decisões pedagógicas - e com a aceitação crescente de uma perspectiva construtivista sobre o processo ensino-aprendizagem (Ben-Peretz, Bromme e Halkes, 1986).

2. O pensamento da tomada de decisão do professor durante a fase interactiva do ensino.

Considerando que é na fase interactiva do ensino que o professor está verdadeiramente em acção da forma mais plena, muitos investigadores têm privilegiado o estudo do pensamento interactivo do docente. Este domínio de estudo tem recorrido à Estimulação da Recordação («Stimulated Recall») como metodologia de investigação central e tem utilzado preferencialmente a metáfora da tomada de decisões interactivas como quadro de referência teórico.

No entanto, a adequação desta metáfora ao contexto da interaccão instrucional tem vindo a ser contestada por diversos autores (Yinger, 1985). De facto, a investigação nesta área tem demonstrado que o pensamento interactivo do docente é muitas vezes dominado por processos menos conscientes, mais espontâneos e mais automatizados (Yinger, 1985): os professores desenvolvem rotinas em situações de interacção instrucional e raramente tomam decisões e modificam o curso de acção (Clark e Yinger, 1978). Ao mesmo tempo, outras investigações têm chamado a atenção para o valor da experiência no desempenho profissional do docente, (Marcelo, 1991) e caracterizam o conhecimento do professor como contextual interactivo e especulativo (Clark e Lampert, 1985).

Em geral, os resultados da investigação no domínio do pensamento interactivo do docente de facto consonantes com uma perspectiva construtivista do ensino-aprendizagem, mais holística e integradora, que apela para uma diversidade de processos activos de conhecimento e para a introdução de novos conceitos com os de afecto, contexto, cultura e história (Mahoney, 1981).

3. Um, estudo do pensamento do professor na fase interactiva do ensino.

De um ponto de vista pessoal, as razões que presidiram à escolha deste tema de investigação prendem-se essencialmente com a convicção desenvolvida, decorrente da experiência tida no âmbito da formação de professores, de que o pensamento interactivo do docente deve ser um objecto de reflexão fundamental, designadamente mediante a estimulação de experiências metacognitivas. A tomada de consciência pelo professor dos seus processos e produtos cognitivos e respectivos mecanismos de mudança na relação com a prática, bem como o confronto com outros percursos e modelos de funcionamento durante a interacção instrucional, podem contribuir para o desenvolvimento, no docente, de uma atitude reflexiva e construtiva. Neste sentido esperava-se que a investigação realizada pudesse contribuir para uma reflexão sobre a formação de professores na linha do pensamento do professor.

Enquadrando-se no paradigma do pensamento do professor, a investigação realizada considerou a fase interactiva do ensino como o cenário ideal para o estudo da conduta inteligente do professor, do ponto de vista dos seus processos e produtos cognitivos.

Definiram-se como objectivos gerais da investigação a exploração e descrição de variáveis significativas no domínio do pensamento interactivo do docente e o estudo de algumas relações entre essas variáveis, mediante a análise aprofundada de um número restrito de casos perfilhando uma perspectiva construtivista do processo ensino-aprendizagem partiu-se do pressuposto fundamental de que a compreensão do comportamento de ensino do docente durante a interacção instrucional depende da compreensão das estruturas, processos e conteúdos cognitivos subjacentes, a qual tem de considerar os complexos quadros de referência que o professor usa para interpretar as suas ideias, sentimentos e acções ou a situação de ensino em geral.

Tendo em conta o objectivo central do estudo e as asserções da perspectiva construtivista adoptada, foi possível delinear dois problemas específicos de investigação: Quais os principais conteúdos patentes na reflexão do professor sobre os seus pensamentos interactivos? Serão essencialmente relativos aos alunos e as estratégias instrucionais e de gestão como as preocupações da investigação nesta área parecem indicar, ou serão igualmente conteúdos relativos a outros temas, designadamente as vivências do próprio professor? Quais os processos cognitivos envolvidos na reflexão do professor sob os seus pensamentos interactivos? Estes processos serão essencialmente de tomada de decisão e de resolução de problemas, como se assumiu na investigação no domínio do pensamento do professor, ou poderão identificar-se outros tipos de percurso de processamento da informação?

3.1. Metodologia.

Procurando entender o pensamento interactivo do professor a partir das reflexões que faz sobre os pensamentos tidos ao longo de uma aula, a investigação realizada baseou-se em metodologias de Relato Verbal («Verbal Report») (Ericsson e Simon, 1980) e em procedimentos de análise dos dados em que as abordagens qualitativa e quantitativa se interligam (Goetz e LeCompte, 1988; Marcelo, 1992; Miles e Huberman, 1984; Tesch, 1987 e 1990).

A investigação qualitativa exige um esforço metodológico suplementar, que passa pelo recurso a planos de investigação que incluam métodos múltiplos e frequentemente múltiplos casos e pela adopção e formalização de procedimentos de recolha e análise de dados sistemáticos e passíveis de verificação (Ericsson e Simon, 1984; Miles e Huberman, 1984).

Desta forma utilizou-se uma diversidade de procedimentos de recolha e de análise de dados, designadamente o processo de estimulação da recordação («stimulated recall») a análise de conteúdo com o apoio do programa de análise de dados qualitativos AQUAD 3.0 - Huber, 1991), as análises de frequências de correlações e classificatória hierárquica e o processo de minimalização (metanálise qualitativa). Um outro aspecto a salientar é o carácter cíclico e interactivo (Miles e Herman, 1984) dos processos de recolha e análise dos dados.

Finalmente, a amostra do estudo foi constituída por dez professoras do terceiro ciclo do ensino básico e do ensino secundário.

3.2. Principais resultados e conclusões.

Numa análise global dos comentários feitos durante as entrevistas de estimulação da recordação, constatou-se que a reflexão solicitada às professoras sobre os seus pensamentos interactivos representa apenas um terço da totalidade dos comentários realizados. De facto, as professoras fazem uma diversidade de reflexões adicionais, de tipo explicativo, relativas a outras vivências interactivas (como os seus comportamentos, emoções ou estados físicos) e a outros aspectos concretos da interacção instrucional, a questões gerais do ensino-aprendizagem relacionadas com a aula visionada e a situações extrínsecas a esta.

Estes resultados são consonantes com os encontrados por Calderhead (1981, 1986 e 1987). Embora na estimulação da recordação se peça ao professor para relatar o que estava a pensar ao longo da aula, este autor verificou que uma elevada proporção de comentários feitos se refere a outras questões. São, por exemplo, elaborações à roda de um pensamento visando torná-lo compreensível. Estes comentários adicionais constituem, no entanto, segundo Calderhead, importantes auxiliares para a compreensão do processo ensino-aprendizagem.

A análise dos comentários feitos pelas professoras sobre os seus pensamentos interactivos permitiu identificar os conteúdos e processos cognitivos predominantes e, desta forma, responder aos dois problemas de investigação formulados.

Conteúdos: Na reflexão das professoras sobre os pensamentos interactivos destacam-se, pela sua maior frequência, os conteúdos relativos ao processo de ensino-aprendizagem - e, mais concretamente, as estratégias instrucionais e de gestão utilizadas - e os conteúdos referentes aos alunos, nomeadamente ao seu comportamento e aprendizagem.

Clark e Peterson (1986) constataram que a maior percentagem de relatos dos professores sobre os seus pensamentos interactivos se refere ao aluno, embora uma proporção relativamente elevada diga respeito ao processo instrucional e mais especificamente, aos seus procedimentos e estratégias. No entanto, Marcelo (1987b) considera que, embora o aluno seja uma constante nos pensamentos interactivos do docente, pode não constituir o seu conteúdo central, uma vez que a reflexão do professor se refere frequentemente às estratégias a utilizar.

O conjunto de análises efectuadas na presente investigação permitiu interpretar os resultados nela encontrados e esclarecer o seu significado face as perspectivas destes autores. Assim, do estudo das correlações e relações envolvendo a subcategoria de estratégias instrucionais e de gestão e da análise qualitativa dos fragmentos de discurso em que essas relações foram localizadas, concluiu-se que a reflexão das professoras sobre as estratégias instrucionais e de gestão se relaciona de forma significativa com a detecção e antecipação de dificuldades de aprendizagem dos alunos e parte, em muitas circunstâncias da percepção ou da interpretação de dados situacionais relativos ao comportamento destes. Paralelamente, a análise dos comentários adicionais sobre outros aspectos concretos da aula visionada ou sobre questões gerais do ensino-aprendizagem com ela relacionados constituiu um importante auxiliar para a compreensão do pensamento interactivo das professoras, revelando que se referem predominantemente aos alunos.

Desta forma o aluno parece, de facto, constituir uma preocupação central da reflexão das professoras sobre os pensamentos tidos durante a interação instrucional, embora as referências ao processo de ensino-aprendizagem sejam proporcionalmente mais frequentes.

Processos. Na reflexão sobre os pensamentos interactivos, verifica-se um predomínio nítido de processos gerais de tratamento da informação relativamente aos demais processos detectados, designadamente, de activação de respostas pré-seleccionadas (rotinas e decisões planeadas), de produção de alternativas de acção e de tomada de decisão de tipo automático e metacognitivo. De salientar que não se identificaram processos de resolução de problemas interactivos, definidos estes de acordo com as etapas geralmente preconizadas pelos modelos normativos ou com outro tipo de percurso.

Assim, a resolução de problemas, tida como um percurso racional desde a formulação do problema até a implementação da solução e verificação dos resultados, parece relativamente ausente do pensamento interactivo das professoras, de acordo com a reflexão que estas fazem sobre ele.

A tomada de decisão, definida como uma escolha deliberada entre alternativas viáveis e sua implementação, também não parece constituir uma descrição completa e precisa do pensamento interactivo do docente. Tão-pouco parece apropriado caracterizá-lo essencialmente em função da implementação de rotinas ou decisões planeadas.

De facto, os comentários das professoras revelaram essencialmente processos gerais de tratamento da informação, designadamente de antecipação e de interpretação.

Desta forma, as metáforas da resolução de problemas, da tomada de decisão e da implementação de rotinas, muitas vezes associadas ao pensamento interactivo do docente, não parecem muito adequadas a uma descrição feita a partir dos resultados desta investigação, já que, de um ponto de vista processual, os comentários das professoras revelaram essencialmente elementos intuitivos e subjectivos envolvidos na antecipação e interpretação das situações da interacção instrucional. De salientar que os outros processos identificados (de produção de alternativas de acção metacognitivos e de tipo automático), embora não tenham uma grande expressão em termos de frequência, se afastam igualmente da imagem do docente como decisor.

Em suma, estes resultados parecem ir ao encontro de uma perspectiva do processo ensino-aprendizagem, holística e integradora, que apela para diferentes processos e formas de conhecimento e para conceitos como os de intuição, subjectividade, afecto, contexto (Mahoney, 1991). Nesta perspectiva, as professoras podem ser encaradas como profissionais reflexivas, construtivistas, permanentemente envolvidas na (re)construção de um mundo de significados pessoais, mediante o recurso a formas de conhecimento diversificadas.

3.3. Limites da investigação e implicações para a formação de professores.

A investigação levada a cabo é de natureza essencialmente exploratória e descritiva, na medida em que se procurou descobrir e descrever variáveis significativas no domínio do pensamento do professor, bem como estudar algumas dessas variáveis mediante a análise aprofundada de um número restrito de casos.

Ao privilegiar a análise de casos, de situações e problemas específicos, considera-se que os resultados encontrados constituem essencialmente guias para a compreensão desses sujeitos, contextos e questões particulares, não podendo assumir o estatuto de leis generalizáveis sobre os fenómenos em estudo (Marcelo, 1987).

Finalmente, parece oportuno destacar as potencialidades que as entrevistas de estimulação da recordação podem ter como estratégia formativa. Efectivamente, enquanto exercício metacognitivo, possibilitam ao professor tomar consciência dos seus processos cognitivos e estimulam uma atitude activa, de regulação desses processos, na relação com a prática. A própria participação do professor em investigações descritivas sobre o seu ensino e em que se utilizam, designadamente, metodologias de estimulação da recordação, pode ser encarada como uma forma de intervenção clínica (Clark, 1991), posto que promove a autoconsciência do docente de diversas formas: «Quando sou observado por um perito em bom ensino, quero mostrar o melhor de mim mesmo. Tento mais do que nunca estar no auge da forma. Se me interroga sobre os planos que fiz antes da aula, sou mais explícito (e talvez mais planificador) do que habitualmente. Tento ser mais analítico e autoconsciente do que seria, tendo-me apenas a mim próprio como audiência. Ver gravações-vídeo do meu ensino dá-me uma perspectiva especial sobre mim, raramente tida e por vezes desconcertante. Ler um relatório descrevendo o meu ensino, o meu pensamento, a minha classe, muda a maneira como me encaro e penso sobre mim mesmo» (Clark, 1991, pp. 432-33).

Estimular no professor uma atitude reflexiva e construtiva mediante a tomada de consciência dos seus processos e produtos cognitivos e respectivos mecanismos de mudança, na relação com a prática, parecem ser os objectivos mais adequados para a formação de docentes na linha do pensamento do professor.

Como salienta Marcelo (1987b)) a formação de professores deve passar preferencialmente por oportunidades de consciencialização e de reflexão sobre a prática, e não tanto pelo treino de rotinas de acção específicas. Nas suas palavras: «Os professores geram esquemas ou rotinas que funcionam como elementos que reduzem tensões e incertezas e liberam processos cognitivos. Estes esquemas ou rotinas vão-se elaborando e transformando (..) como consequência do desenvolvimento profissional do professor. São esquemas pessoais que respondem ao estilo peculiar de cada professor e, por isso, não pensamos que se devam procurar esquemas ou rotinas generalizáveis a todos os professores» (Marcelo, 1987b, p. 87).

 

Referências

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