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Psicologia
versão impressa ISSN 0874-2049
Psicologia vol.11 no.2-3 Lisboa jun. 1996
https://doi.org/10.17575/rpsicol.v11i2/3.602
Consciência e estados modificados de consciência em psicoterapias
Mário Simões*
*Clínica Psiquiátrica Universitária de Lisboa
RESUMO
Define-se consciência e estabelece-se a relação entre aquela e cérebro e estados modificados de consciência (EMC). Faz-se referência aos principais estados de consciência modificados tanto fisiológicos como provocados. Modos de indução de EMC. Fenomenologia (dimensões básicas) dos EMC e sua relação com a psicopatologia. Referência sucinta a EMC usados em etnopsicoterapias. Psicoterapias de origem ocidental sob EMC: hipnose, sonho acordado dirigido de Desoille, vivência catatímica de imagens de Leuner e imaginário vivencial regressivo personalizado (terapia regressiva de vivências passadas).
ABSTRACT
Consciousness is defined and a relation is established between its altered States of consciousness (ASC) and brain. A reference is made to the main physiological and induced ASC and as well to the ways how they are provoked. Phenomenology of ASC is described and related to psychopathology. A short commentary is made about ASC used in some ethnopychotherapy. Psychotherapy, of western origin, using ASC, specially hypnosis, directed day-dream (rêve éleillé dirigé) of Desoille, katathymic experienced imagery (katathymes Bilderleben) of Leuner and regressive personalized and experienced imaginary (regression and past-lives therapy) are presented and commented.
1.. Consciência.
1.1 Introdução.
(Os subcapítulos 1.1.4 são retirados de Simões (1988, 1991, 1992).
Depois de várias décadas de esquecimento, que quase parece deliberado (Belloch et al, 1987) volta-se de novo a ouvir falar da consciência, na literatura científica. O facto é tanto mais estranho, quanto se sabe, que este tema era a razão de ser da psicologia, o seu objecto, seja o estudo dos estados (fenómenos) de consciência ou a sua «substancia e essência» (Sortais, 1901).
A medida, que o interesse pelo tema da consciência foi aumentando, dá-se conta da dificuldade em o abordar de um modo facilmente inteligível e científico. Talvez seja esse o motivo pelo qual Henry Ey (1968), um dos grandes estudiosos deste tema, inicia o prefácio à primeira edição do seu livro La Conscience com a frase «le problème de la conscience est redoutable» (temível), considerando a sua abordagem uma audácia. Um outro autor, não menos famoso, Conrad (1960), pronunciava-se de modo ainda mais rotundo: «ninguém sabe dizer exactamente o que é a consciência».
Versão ampliada e actualizada da conferência proferida no INTVP (S. Paulo, Brasil), Instituto do Cérebro da UNICAMP (S. Paulo, Brasil) e Sociedade Portuguesa de Psicoterapias Breves respectivamente em 13.06 e 15.06.93 e 19.02.94.
1.2 Uma metáfora da consciência.
O primeiro grande psicólogo que se dedicou ao estudo da consciência foi Wundt (1880) e deu-se conta da impossibilidade de a definir de um modo não tautológico: «Como a consciência, ela mesma, é a condição de toda a experiência interior, não se pode, através desta, apreender a essência da consciência. Todas as tentativas deste tipo conduzem ou a uma descrição tautológica, ou à verificação de actividades na consciência, as quais não são a consciência, mas a sua condição prévia.
Numa primeira aproximação ao conceito, e para facilitar a introdução ao tema, recorro a uma metáfora para melhor ilustrar o problema. Um grupo de pessoas faz uma excursão para visitar uma determinada Universidade. O guia, ao chegar ao Campus, explica o programa da visita, dizendo, que se visitariam as várias Faculdades e Reitoria. A visita começa, e, dentro de cada Faculdade mostra e explica o que se passa em cada dependência (p. ex. Teatro Anatómico, Instituto de Línguas, Biblioteca Instituto de Física e Sala de Actos). Acaba a descrição da Sala de Actos e comenta: «A visita terminou. Há alguma pergunta?». Nesse momento, quase em uníssono, duas ou três pessoas perguntam: «Então e a Universidade ? Não vamos ver a Universidade?».
1.3 História e quadro conceptual.
A palavra consciência é a tradução do latim cum-scientia, que por sua vez é uma tentativa de traduzir o vocábulo grego syneidesis. Nas obras dos autores gregos clássicos, tinha a conotação de consciência moral pessoal, referida a actos passados e que veio a conservar-se na língua alemã através da palavra Gewissen. Tanto a expressão grega como a latina abarcam o significado de um Mitwissen, isto é, de um conhecimento de algo, que pelo facto de o sabermos nos faz co-culpados moralmente. O conceito de consciência desligado da moral surge muito mais tarde.
Existe uma capacidade para um conhecimento potencial de saber, na consciência. Como se imagens de árvores, não visualizadas, reflectidas na superfície da água (observação objectiva, nítida, de um reflexo de algo, cujo conhecimento apenas posso elaborar e imaginar). E um outro modo de conhecer a realidade, para além do método científico.
1.4 Contributos para uma definição.
A definição de consciência mais difundida é, talvez, a de Rosenfeld (1929): «consciência é a totalidade da vida psíquica momentânea» e outros autores como Brentano (1874), Bergson (1920) e James (1890) referem-se ao fluir da vida psíquica, respectivamente em termos de «corrente da consciência», «corrente vivencial» e «corrente do pensamento».
E com os contributos destes autores, que Jaspers (1963) constrói a sua definição de consciência: «é a totalidade da experiência momentânea inserida na corrente contínua da vida psíquica». Por esta definição se verifica, que a consciência não se reduz a uma função psíquica (a tomada de consciência, a awareness dos autores anglo-saxões), denominada por S. Tomás de Aquino «captação da realidade» (Rupell, 1974). O seu conceito é, pois, mais vasto e para Henry Ey (1968) é uma estrutura organizadora do próprio ser, como pessoa consciente.
Uma ilustração visual do que acabo de tratar e que facilita a sua compreensão, retirada de Magritte (1973) representa um objecto e em frente dele um homem, ao qual se encontra colado por trás, só ao nível da sua cabeça, um outro, como nas antigas máquinas dos fotógrafos à la minute. Assim, o objecto representa a realidade, o primeiro homem - a captação da realidade e por fim, o terceiro, o ser consciente, que representa e interpreta o objecto na e através da sua consciência.
Outros autores mais recentes, como Alonso-Fernández (1979), Scharfetter e Benedetti 1978), Jaynes (1976), Payk (1974) e Scharfetter (1985), contribuíram para uma melhor compreensão e definição do tema. Uma revisão ampla sobre este tema encontra-se em Simões (1988; 1992). Propõe-se uma definição de consciência sobre a qual se «tem consciência» de que se trata de uma definição «em progresso»: «E a totalidade experiência e imediata da vida psíquica momentânea, dentro do fluir contínuo desta e que se manifesta pelas capacidades de captar, ordenar, integrar e responder a estímulos do mundo interior e exterior bem como de elaborar a comunicação verbal e comportamentos intencionais».
E curioso verificar que, assim definida, surge como exemplo máximo de unidade e identidade pessoais, e ainda como elemento construtor e reconstrutor da realidade (Jaynes, 1976).
Regressa-se assim à tradição fenomenológica sobre a consciência, segundo a qual «ser consciente é dispor de um modelo pessoal do mundo» (Ey, 1968).
1.5 Consciência e cérebro.
As relações entre a consciência, estrutura emergente, e o cérebro, são um problema clássico já levantado por vários filósofos e também ultimamente por Eccles (1978): o cérebro produz a consciência, ou a consciência seria uma estrutura independente daquele, que actuaria através dele e lhe modularia a energia necessária ao seu funcionamento?
Alguns dados da observação clínica fazem pensar, que não existe uma sobreposição entre consciência e cérebro e que estas estruturas são relativamente independentes pois certas doenças orgânicas cerebrais não são susceptíveis de alterar o pensamento, como tumores cerebrais, em que as pessoas falam e raciocinam correctamente. Por outro lado, a consciência, quando funcional (sem patologia), não é susceptível de vir a ser modificada nos seus conteúdos (pensamentos) por psicofármacos não psicodislepticos (Osswald, 1986), o que faz pensar que estes só terão acesso aos conteúdos patológicos daquela, neste caso, mediados pelos receptores sinápticos do cérebro.
A consciência não se localiza a uma área específica do cérebro, mas está adstrita a várias áreas do cérebro simultaneamente. As suas funções, por exemplo pensar, produzir a linguagem, calcular activam determinadas áreas do cérebro. São áreas preferenciais, mas outras, simultaneamente, as áreas associativas, são susceptíveis de participar, o que é demonstrado experimentalmente com a tomografia por emissão de positrões em que se observam as áreas em funcionamento perante determinadas funções. A grande discussão que surgiu perante a divisão de funções entre o hemisfério direito e o esquerdo, nesse contexto, deixa de ter sentido. Pela tomografia por emissão de positrões pode analisar-se o que se passa quando se ouve uma melodia. Escutar música seria um trabalho do hemisfério direito, mas se se faz a análise dos instrumentos que estão a tocar, seria um trabalho do hemisfério esquerdo. Mas muitas dessas áreas de ambos os hemisférios são sobreponíveis e o que existirão áreas preferenciais cerebrais, não havendo exclusividade de áreas a nível do cérebro. O aspecto holístico do «produto» final da vida psíquica consciente surge, de novo, confirmado.
Como reflexão decorrente da experiência clínica, em relação à questão se o pensamento/consciência é ou não um produto do cérebro, qual «secreção» deste, ficam as seguintes perguntas sem resposta (Polaino-Llorente, 1986):
a) como é possível, que uma pessoa seja capaz de encontrar um significado no não significativo - a loucura, o delirar ?
b) se o pensamento fosse produto do cérebro, qualquer alteração deste implicaria alteração do pensamento, o que não se verifica
c) se o pensamento patológico fosse actividade do cérebro patológico não poderia tentar duvidar da sua origem, nem tentar encontrar um significado.
d) como encontrar sentido para o sofrimento humano? Mesmo ao saber a causa, não lhe encontra o sentido.
A consciência não seria um produto exclusivo do cérebro, nem se reduz a este. Aquela coordena as áreas de associação daquele; este é o seu instrumento, o seu substrato físico (a premissa somática), que permite que a consciência se manifeste, o que faz, como já descrito que uma patologia cerebral leve a uma expressão alterada de uma consciência, esta mesmo sem alteração. Neste sentido a consciência não se encontra no cérebro, nem em nenhuma parte em especial, mas apoia-se preferencialmente nele e sobretudo nas dreas de associação (áreas que não só transmitem estímulos, como também programam outras áreas) préfrontais e temporais. Assim, a consciência também se encontra em todo o organismo, mediada por neurotransmissores, ou melhor, por neuromediadores, que são cadeias de polipeptídeos com parte da sua cadeia de aminoácidos comum ao Sistema Nervoso Central e outras estruturas. São, por exemplo, a angiotensina (rim), colecistokinase (vesícula), VIP (intestinos), encefalinas (cérebro) etc., estando actualmente descritos mais de 100. O cérebro permitiria que se manifestasse a consciência, tal como, metaforicamente, um cantor «manifesta» a sua canção esta com existência própria, independente daquele. Existiria então vida psíquica desligada do corpo e do cérebro em particular ? Há a possibilidade de haver vida psíquica ou emocional e não se manifestar devido a processos neurofisiológicos alterados como durante o processo de anestesia geral.
Refira-se o carácter «laxo» existente entre os fenómenos da consciência e os seus correlatos de outra ordem (por exemplo, neurofisiológicos). Há como que uma independência relativa da consciência em relação aos estímulos físicos que chegam aos receptores, e o mesmo ocorre em relação aos processos cerebrais e de comportamento; nas suas relações há mais graus de liberdade, que aqueles previstos pelo mecanicismo (Pinillos, 1985). Como também refere este autor, a correlação entre variáveis mentais, fisiológicas e comportamentais está longe de ser perfeita e passa-se «como se o indivíduo se furtasse à tirania do estímulo juntando a cada resposta uma proposta» (Pinillos, 1985).
Na vida psíquica existem três realidades diferentes mas indissociáveis (Izard, 1977): 1. o neurofisiológico, processos que ocorrem no sistema nervoso e no cérebro; 2 . o comportamento observável e expressivo da vivência; 3. a mente consciente. A dificuldade do seu estudo e integração de dados adquiridos deriva do facto do observador ser simultaneamente testemunha e sujeito de três ordens de fenómenos e não ser possível imaginar uma posição que as englobe, salvo se se admitir uma estrutura pensante reflexiva independente, susceptível de se debruçar sobre as três ordens de fenómenos. Passar-se do determinismo biológico (consciência como resultado) à consciência princípio (mentalismo) é tentador.
De qualquer modo existe uma necessidade filosófica de um princípio organizador; que dê sentido ou significado ao conjunto de fenómenos e seja mais que unificador e controlador da experiência.
Para explicar a ausência de localização cerebral rigorosa dos processos mnémicos, Pribram e Ramírez (1980) propuseram que a sede da memória estava em todas as partes do cérebro e em nenhuma precisa, como sucede com um registo holográfico, que ao ser iluminado por um raio laser proporciona uma imagem tridimensional do objecto, tal como se se tomar apenas um fragmento do holograma, pois cada parte do mesmo contém informação codificada sobre a imagem completa.
2. O.«Eu».
2.1 Considerações gerais.
(Os subcapítulos 2.1-2 A são retirados, quase na totalidade, de Simões (1992).
A ironia com que Max Hamilton (1986) começa, ao tratar deste tema, demonstra bem a posição de parte da comunidade científica sobre este assunto da psiquiatria clássica: «não tem relevância se nos interessarmos pela psicologia do rato, mas o psiquiatra não pode obviar aos problemas, que os pacientes Lhe colocam ao queixarem-se de alterações da consciência do Eu (de si mesmo)». Na realidade, a consciência reflexiva e dirigida é um património quase privativo do homem . Para tornear os problemas conceptuais e estruturais ligados à consciência, Hamilton (1986) propõe, que se utilize, nesta circunstância, um termo mais moderno e derivado da palavra alemã erleben - vivenciar. Assim, a vivência do Eu, englobaria não só os aspectos cognitivos próprios da consciência, mas também aspectos emocionais de qualquer modo associados a essa re-cognição. Esta indissociabilidade real das duas vertentes, cognitiva e emocional, levou Ciompi (1982) a desenvolver a teorização de uma lógica afectiva. Não se trata de uma lógica dos afectos, mas antes de verificações cognitivas, que se repetem, quando se estuda o pensamento emocional, como, por exemplo a ausência de contradição, de sequência temporal ou espacial ou ainda de causalidade imediata.
Esta experiência interna, sob a forma de representação consciente é elaborada mediante uma actividade cognitiva, embora não se reduza a ela, pois interferem também expectativas, motivações e desejos (o imaginário em geral), que têm a ver com cada qual.
E, pois, uma experiência imediata, que se supõe conatural à espécie, comum a todo o homem, e prescindir desta dimensão experiencial humana não parece sensato (Pinillos, 1985).
2.2 Experiência interior como objecto de estudo.
E natural que os métodos introspectivos tenham os seus limites, mas isso não autoriza a declará-los genericamente inválidos. Dado que a experiência interior pode não reflectir correctamente a-realidade exterior - e até pode induzir em erro em relação à própria interioridade - o seu estudo científico apresenta um singular interesse para a psicologia e psiquiatria (Pinillos, 1985).
2.3 Cosciência do Eu.
Evoque-se ainda o problema, dentro da conseiência, da instância que dá sentido ou significado ao conjunto de fenómenos que ocorre no campo daquela -o Eu. De acordo com o Cristianismo seria algo imortal, estável, que não pode adoecer, enquanto que o Ayurveda (livro tradicional de medicina védica) considera o Eu como um conjunto de corpo, alma e espírito. Na tradição búdica o Eu é definido por uma eomposição evaneseente de funções efémeras simultâneas. Para Freud (1968) trata-se de um construto metapsieológieo no sentido de uma organização só parcialmente conseiente, entre o «super-ego» e o «id». O Eu, pode definir-se, tendo em conta os contributos anteriores, e como um construto fenomenológico, produto de uma consciência reflexiva e explicitado através de experiências relacionadas directamente com aquele construto - Eu - a certeza de ser o próprio a experienciar (Seharfetter, 1990). E essencialmente neste ponto, que as deficiências dos modelos animais da vida psíquiea se torna notória - falta a vivência, sobretudo do Eu. A questão torna-se mais aguda pois, não havendo linguagem para comunicar, é impossível ter acesso às vivências dos animais. E, aliás, o busílis da diferença, actualmente, entre o homem e a máquina. Quando esta «disser» - «eu tenho medo» - «sabendo» (tendo consciência) que é ela mesmo que experiencia esse sentimento, então não serão apenas feitas à imagem do homem, mas também à sua semelhança.
O caracter unitário da experiência não depende da síntese que se opera a nível neurofisiológico, mas do caracter integrador do Eu, na consciência. Esta concilia a dispersão de processos corticais implicados na experiência consciente e assim a unidade indissolúvel desta, integrada pelo Eu.
Segundo Eccles (1965) a unidade da consciência provém dela mesma - esta seleccionaria os módulos neuronais do córtex e integraria os diversos circuitos intervenientes, unificando a experiência consciente.
Normalmente não existe consciência reflexiva do Eu porque é conatural. Salvo num processo de doença física ou mental, não há dúvida que se está vivo, que se produz os próprios pensamentos, de ser o mesmo em relação ao passado, que se é diferente dos outros. A identidade ou «mesmidade», que é um dado adquirido, nas pessoas perturbada-não o é. Se estas pensarem o que se passa com elas, nessa altura, algo pensa nelas e poder-se-ia dizer, não como Descartes «penso, logo existo», mas talvez como Nietzsche «penso, logo algo pensa em mim», que seria o Eu.
O construto consciência do Eu é subdividido em cinco dimensões, que se imaginam como hierarquizadas na sua interdependência, embora nem sempre nitidamente separáveis:
1. Vitalidade, sentimento vital, certeza de estar vivo, corporalmente presente
2. Actividade, sentimento de autonomia do pensar, sentir e actuar
3. Consistência, sentimento de coerência e unidade em relação a nós mesmos num determinado momento
4. Demarcação, sentimento de diferenciação e delimitação entre o Eu e o não Eu
5. Identidade, sentimento de «mesmidade», de continuidade, apesar de modificações do próprio ou do ambiente no decurso da sua biografia.
Quatro destas dimensões (actividade do Eu, consistência do Eu ou unidade, demarcação do Eu e identidade do Eu), correspondem, respectivamente, às características da consciência do Eu de Jaspers (1963), pelo que se mantêm as designações originais. A dimensão vitalidade coincide em grarde parte com a «consciência de existência» de Schneider (1975) e com a «familiaridade do Eu» de Alonso Fernández (1979). Esta dimensão, de acordo com estes autores e com as reservas já apontadas, pode ser considerada independente das outras e. por isso, considera-se, mantendo a designação de Scharfetter (1990), por ser a mais adequada às vivências verbalizadas em EMC.
2.3.1 Fenomenologia das Dimensões do Eu.
As dimensões do Eu e a sua fenomenologia são estudadas cientificamente com a quinta versão de um questionário para rastreio de perturbações da consciência (vivência) do Eu, em esquizofrénicos e que surgem também em EMC. E baseado no construto da consciência do Eu de Scharfetter (1990), já abordado.
A primeira versão surge em 1976 (Grahmann e Notz, 1976), tendo sofrido modificações no número de itens, que finalmente fica em 53. Este número, inicialmente, nada mais é que um indicador do grau de perturbação global da consciência do Eu. Os itens foram obtidos a partirda recolha de verbalizações de pacientes esquizofrénicos, que se relacionassem com as vivências do Eu e, depois, reformulados de modo mais esplícito (Scharfetter, 1985), tendo em vista a sua aplicação futura standardizada. Existe uma versão castelhana do questionário (Simões, 1992) e uma versão portuguesa encontra se em elaboração.
A versão actualmente usada tem 53 itens, distribuídos pelas cinco dimensões da vivência do Eu, mais quatro domínios temáticos (sobrecompensação, perturbação do pensamento actividades compulsivas-obcessivas e perturbações motóricas). Esta divisão tem como objecto, apenas, uma melhor estruturação do conteúdo da entrevista (Dahri-Ehrensperger e Svaton, 1988). Os itens subdividem-se em 35 específicos das dimensões do Eu e 18 inespecíficos.
Os itens específicos são facilmente agregados numa das cinco dimensões do Eu. Os inespecíficos podem ser adscritos a várias dimensões simultaneamente. Durante a entrevista clínica, deve ser esclarecido, qual destes itens se inscreve em qual ou quais dimensões.
2.3.2 Dimensões do Eu postuladas.
As dimensões e seus itens (questionário IPP) são assim postuladas:
1. Identidade (1, 2, 3, 4, 5, 27, 30)
2. Limites/Demarcação (6, 8, 9, 40,43)
3. Unidade (10, 11, 12, 13, 14, 28, 29, 31, 32, 33)
4. Actividade (15, 17, 18, 24, 26, 41, 45, 46)
5. Vitalidade (19, 20, 21, 22, 23, 34, 35, 37, 39, 47, 51, 52)
6. Inespecíficos (7, 16, 25, 36, 38, 42, 48, 49, 50, 53)
A vitalidade, a dimensão mais «basal», é condição para a experiência de existência e estar-no-mundo e por isso tem as mais estreitas relações com a corporalidade e capacidade de vigília.
A dimensão seguinte, a Actividade, é a experiência fundamental, que permite as outras e, ontogeneticamente, a consciência do Eu (Zimmermann, 1984). A pessoa doente vivência estas dimensões só quando ameaçadas, isto é, podem ser consideradas como «aspectos da autoexperiência (vivência) de indivíduos doentes» (Scharfetter e Weber, 1985). Neste sentido, as vivências e comportamentos de esquizofrénicos são entendidas como expressão de uma perturbação em uma ou mais dimensões da consciência do Eu.
Assim, consoante as dimensões perturbadas estabelecer-se-iam relações com as entidades clínicas como catatonia, hebefrenia, esquizofrenia simples e estados-limites, e os diferentes tipos de delírio teriam um papel central como forma de reacção às ameaças da consciência do Eu (Zimmermann, 1984). Estas ameaças ao Eu são vivenciadas como suspeita, suposição ou pressentimento, até uma certeza absoluta e concreta manifestada num sentimento corporal profundamente perturbado (Hagmann e Mueri, 1981).
2.4 Perspectiva crítica pessoal.
As dimensões expostas e aceites, são constratos, tal como tudo o que se apreende e denomina. Torna-se consciência daquelas apenas quando surgem perturbadas, o que não acontece apenas na esquizofrenia, apesar de nesta terem um papel primordial. As vivências alteradas são, pois, etiologicamente inespecíficas embora preponderantes para o espectro dos quadros esquizofreniformes e de dos EMCs em geral, ambos não específicos na sua etiologia. A perturbação da dimensão Actividade do Eu, que engloba a consciência e certeza que a pessoa tem de ser ela mesma a autora dos seus pensamentos ou acção, é susceptível de vir a determinar a perturbação das outras dimensões. A ausência de dúvida sobre a autoria de pensamentos ou acções, tal como, por exemplo, sucede em hipnose faz com que vivências (cognições e emoções) de outras dimensões do Eu também não surjam como perturbadas do ponto de vista do indivíduo sob EMC. Por outro lado, a sua perturbação (ou percepção de perturbação pelo indivíduo) seria susceptível de determinar a sintomatologia da esquizofrenia paranóide (Simões, 1992) ou de EMCs patológicos. Existe confirmação parcial que a esquizofrenia paranóide seria um EMC patológico (Simões, 1994).
Quanto ao Eu, considera-se, que não é apenas um constrato mas também, ele mesmo, uma estrutura funcionante em toda a pessoa que vivência (experiencia), em acordo com Hilgard (1986). Este autor, utiliza uma metáfora para exprimir um fenómeno observado em estudos experimentais, sobretudo sob condições hipnóticas. Trata-se do «observador escondido». Seria uma «estrutura cognitiva explicitada por material memorizado, que a pessoa teria registado e armazenado na memória, sem ter tido consciência, que aquele tenha sido experienciado e processado» (Hilgard, 1986). Haveria um processamento de informação paralelo e insconsciente, susceptível de ser demonstrado por técnicas adequadas, no entanto, apenas em pessoas altamente hipnotizáveis. Deve entender-se, que não se trata de uma fracção da personalidade persistindo no tempo, mas apenas de uma estrutura cognitiva, demonstrada por aquela técnica.
Esta estrutura cognitiva (um processador ou operador) integrativo e capaz de «programar» outros operadores seria o Eu e nunca estaria perturbado nos EMCs, salvo se estes torem patológicos conforme definido por Crombach (1974). 0 que estaria perturbado nos EMCs seria a «sintaxe» ou o processo de reentrada dos operadores saudáveis (Edelman e Mountcastle, 1978), em que a cognição se transforma em recognição, que continuamente altera ou confirma o «modelo do mundo», programados pelo Eu. A perturbação da «sintaxe» traduzir-se-ia na ausência de avaliação, significação dos actos executados em EMC em termos de uma lógica proposicional (intencionalidade).
Em síntese, e de acordo com Alonso-Fernández (1979), a consciência entendida na sua concepção actual é uma «panconsciência» ou holoconsciência com a vida psíquica, dela indissociável, engloba a relação emocional com a própria referência moral em geral e com todo o género de saberes próprios, psicológico e cognitivos. A vida psíquica actual (vivência e comportamento) é, holisticamente, mais que a determinação do passado, do presente e do futuro imaginado.
3..Estados Modificados de Consciência.
3.1 Aspectos gerais.
A teorização dos estados modificados de consciência (EMC) rompe com os paradigmas da lógica formal, nomeadamente, da continuidade espaço-tempo, da contradição da causalidade linear, etc., mas também com o pressuposto da consciência como produto exclusivo do cérebro, conforme já discutido.
Quase todos os seres humanos reconhecem que o sonho é uma outra forma de consciência diferente da consciência normal em estado de vigília. Outras formas menos conhecidas de consciência, denominadas «Estados Modificados de Consciência» (EMC) - tradução preferível de «altered States of consciousness», da literatura anglo-saxónica - apenas nos últimos vinte anos têm sido objecto de investigação científica, sobretudo nos EUA, apesar de uma longa tradição europeia (Beringer, 1927; Stoll, 1947). Entre aqueles estados merecem especial referência os que ocorrem em estado de vigília.
O despertar pelo interesse pelos EMC deve-se principalmente a três motivos:
1. Os movimentos estudantis, de início nos EUA, no começo dos anos 60, e posteriormente na Europa Central, iniciaram uma procura pessoal de EMC, usando para isso marijuana, LSD ou técnicas de meditação orientais. E conhecido como este desenvolvimento levou a conflitos sociais consideráveis.
2. Estudos etnológicos (Bourguignon, 1973) mostraram que, em 90% das sociedades citadas no Atlas Etnográfico (Murdock, 1967), a provocação de EMC está institucionalizada para certos acontecimentos sociais. Assim, pode, pois, falar-se de uma «constante de base antropológica».
3. Na investigação psiquiátrica, os EMC ganharam significado, em relação com hipóteses sobre a etiologia e terapia de doenças psiquiátricas («psicose modelo» ou «terapia psicolítica»).
3.2 Características dos Estados Modificados de Consciência.
1. Apresentam características precisas, verbalizáveis, que ocorrem raramente durante o estado de vigília normal.
2. Geralmente têm uma duração de minutos ou horas, o que os diferencia da grande maioria das doenças psiquiátricas
3. São habitualmente induzidos pelo próprio, mas também podem ocorre expontaneamente. Não resultam de doença ou adversidade social
4. Há vários modos de induzir EMCs. Os mais conhecidos são agrupáveis em quatro categorias:
d) alucinogéneos de primeira ordem (Mescalina, LSD, DMT, THC)
b) alucinogéneos de segunda ordem (escopolamina, muscimol, óxido nitroso)
c) privação sensorial em sentido lato (meditação, hipnose, estados hipnagógicos, Treino Autógeno)
d) sobrecarga de estímulos - intensos, monótonos e rítlnicos ou «bombardeamento» com estínlulos variáveis (dança, música)
Os estados de consciência são pessoais e por isso subjectivos. Os conhecimentos de um estado de consciência são específicos desse estado. Questionam paradigmas da lógica (tempo e espaço) e da Psicologia da Consciência do EU (actividade, unidade, vitalidade, identidade, demarcação). Os EMC têm um conjunto de pontos comuns, como as dimensões neles observáveis, independentemente do modo como são provocados, isto é, não são etiologicamente específicos, o que os diferencia dos estados de consciência comuns. A um nível dimensional significa, que os EMC têm em comum determinadas dimensões principais, independentemente da sua origem ou intensidade. Isto não exclui a existência colateral de dimensões específicas, como, por exemplo, uma provável dimensão «Obnibulação da Consciência», se provocados por alucinogénios de segunda ordem.
Os estados modificados de consciência, provocados pelos estímulos acima mencionados se bem que recohhecidos, ainda possuem nas sociedades ocidentais, conotações tais como «diferente», irracional, estranho, anormal e patológico.
Esta última surge tanto mais facilmente quanto aqueles estados surgem expontaneamente, pois também as chamadas doenças psiquiátricas funcionais surgem aparentemente de modo expontâneo.
3.3 Definição e fenomenologia de Estados Modificados de Consciência.
Contrariamente ao suposto habitualmente, o estado ordinário de consciência (em vigília) não é o mais estável, podendo mesmo ser considerado como não usual, impossível de manter por longo tempo, sendo isso conseguido através de um «input» de estímulos perceptivos exteriores e proprioceptivos, a que se junta um discurso contínuo interior.
De acordo com Kokoszka (1987) considera-se que se está perante um EMC «sempre que exista uma modificação na experiência subjectiva ou funcionamento psicológico, reconhecido pelo próprio ou um observador, em relação a certas normas gerais para um determinado indivíduo». Esta definição tem em conta os contributos de autores seminais nesta área como Ludwig (1966) ou Tart (1975).
3.3.1 Fenomenologia - Conteúdos de Estados Modificados de Conciência.
Pode colocar-se a questão se existem EMC não provocados, isto é, que ocorrem expontaneamente. Se considerarmos, que as doenças psiquiátricas têm uma psicopatologia em grande parte coincidellte com as manifestações dos EMC, é de supor que existem dimensões comuns a ambas as experiências.
Estudos de campo internacionais (Dittrich et al, 1986), incluindo Portugal (Simões et al 1986), demonstraram que as características dos EMC definidas se mantêm suficientemellte estáveis sob diferentes meios de indução e confirmaram a existência de três dimensões (subescalas) inter-correlacionadas e que foram designadas, de acordo com o seu conteúdo:
1. «Auto-Ilimitação Oceânica» 2. «Auto-Dissolução Angustiante» 3. «Restruturação Visionária». A primeira escala descreve um estado similar às experiências místicas, a segunda contém aspectos que indicam um estado desagradável semelhante ao que é chamado uma «má viagem» («bad trip») por utilizadores de alucinogéneos e a terceira inclui itens sobre pseudo-alucinações visuais, cenestesias e modificação do ambiente (desrealização). Como refere Dittrich (1985), citando Huxley (1961) poder-se-ia dizer que as três escalas descrevendo a fenomenologia dos EMC correspondem, respectivamente, ao « Céu», «Inferno» e « Visões» .
3.3.1.1 Estudos sobre a fenomenologia.
O conteúdo destas dimensões foi retirado das verbalizações de doentes psiquiátricos, de pessoas submetidas a estímulos susceptíveis de induzir EMC e de relatos de experiências místicas. Por anlise factorial foram definidas aquelas dimensões e reunidas, de acordo com a teoria clássica de testes, no questionário APZ (Dittrich, 1975) .
Trata-se de um questionário para rastreio de perturbações agudas e induzidas, do conteúdo da consciência (estados modificados de consciência). Foi desenvolvido por Dittrich (1975) e seus colaboradores (Dittrich et al, 1986), na sequência de um projecto transnacional, no qual o autor participou, com uma versão portuguesa (Simões et al. 1986). Existe, também, uma versão castelhana (Simões, 1992).
Compreende 158 itens ou afirmações formuladas na primeira pessoa do singular, cuja resposta é «sim» ou «não». Os itens provêm de diversas fontes, tais como questionários com finalidade semelhante, escalas de observação psiquiátrica, descrições clínicas, etc.
Nos estudos experimentais, 72 itens revelaram-se etiologicamente inespecíficos, isto é, não dependentes de uma causa específica; estes itens são susceptíveis de diferenciar entre estados de consciência modificados e estados de consciência normal ou de vigília e englobam os aspectos comuns a todos os estados de consciência modificados.
Os itens colocam em evidência uma alteração (primária) do pensamento, de vivência do tempo, medo de perda de autocontrole, emoções intensas, alterações do esquema corporal e percepção visual tais como alucinações, pseudo-alucinações, ilusões e cenestesias, bem como alterações do significado de objectos no ambiente.
Neste estudo consideram-se apenas os itens etiologicamente independentes (72), apropriados para discriminar estados de consciência modificados e seu rastreio quantitativo (Dittrich et al, 1986) e que se distribuem por três escalas:
«Autoilimitação Oceânica»: itens 1, 7, 13, 16, 31, 34, 68, 84, 92, 95, 127, 129, 147
«Autodissolução Angustiante»: itens 9, 32, 40, 44, 55, 56, 64, 66, 71, 83, 91, 105, 107, 110, 131, 133, 136, 141, 148, 156, 157, 158
«Reestruturação Perceptiva Visionária»: itens 14, 29. 33, 42, 43, 51, 70, 80. 100, 119,120, 128, 134, 138
No seu conjunto constituem uma escala secundária global.
Lendo o conteúdo dos itens verifica-se, que são comuns às experiências psicóticas, místicas, estéticas e alucinogénicas.
Como já foi descrito, os EMC podem ser conseguidos por processos naturais, psicológicos ou por agentes exógenos, o que aponta para para uma base psicofisiológica deste fenómeno. Na sua patogenia interfeririam perturbações no processamento de informação. A variedade dos seus conteúdos resulta dos seguintes fenómenos (Koloszka, 1989):
1. Experiências de perturbação na recepção de estímulos e estado passivo na coordenção e uso de informação armazenada na memória
2. Estas experiências são tratadas como material ambíguo, que resulta da actividade expontânea do cérebro (a pessoa, que experimenta estas ambiguidades projecta as suas expectativas sobre o conteúdo temporariamente presente, condicionado pelo seu conhecimento prévio e esquemas cognitivos)
3. O conteúdo das expectativas depende dos estímulos do meio ambiente (pessoas, situações, leituras, etc).
Como já foi descrito, os EMC podem ser conseguidos por processos naturais, psicológicos ou por agentes exógenos, o que aponta para para uma base psicofisiológica deste fenómeno. Na sua patogenia interfeririam perturbações no processamento de informação, de acordo com uma lógica afectiva, já evocada.
3.4 Um modelo funcional dos estados modificados de consciência.
Por que se trata de uma situação dos domínios da vigilidade refere se a situação de hipervigília. Zutt (1962) considera, que a consciência tem uma estrutura polar, isto é, que oscila entre a hipervigília e o sono, dando como exemplo da primeira, a situação que se produz sob o efeito das anfetaminas. Esta ideia de um estado hipervigil, entendido como hiperlucidez e inclusivamente como hipervigília não é aceite por Alonso-Femández (1979). Este autor considera, que aquelas substancias proporcionam sentimentos agradáveis de ligeireza e fluidez, aumentam o fluxo das associações ideativas, mas jamaiagudizam a consciência, jamais produzem um incremento na ordenação psíquica normal.
Outro tipo de substâncias químicas, psicodislépticas, também não aumentam a vigilidade, mas criariam estados emocionais, em vigília, que dão outra tonalidade ao que está sendo vivido. Estados deste tipo observam-se em situações patológicas não induzidas, como alguns estados maníacos e hipo-maníacos e certas formas de início da esquizofrenia.
A atenção é uma função da consciência que, como um foco, estrutura dinamicamente a intencionalidade, permite organizá-la para que haja um significado. O objecto da atenção é sempre um conteúdo da consciência. A atenção passiva pode ser dirigida pelos próprios conteúdos da consciência para fora dela. Por algum estímulo relevante, a atenção passiva passa a uma atenção activa e selectiva temporariamente. Aquele estímulo é comparado com conteúdos existentes na memória, em termos de relevância na situação em que a pessoa se encontra e em comparação com experiências passadas. Se é relevante dedica lhe uma atenção activa e selectiva, não num sentido de feed-back, mas de feed-forward. Passa a haver um rastreio de estímulos para acrescentar mais informação, de modo selectivo para o que lhe interessa, isto é, uma busca de estímulos (informação) pertinente. Estes, segundo a teoria da Gestalt e de outras escolas seriam os que se diferenciam pela sua intensidade, contraste, tamanho, forma e movimento e humor do sujeito (Atkinson et al, 1983) .
Outros factores intervenientes são a análise estrutural e semantica por comparação com informação prèviamente armazenada (Belloch e Ibánez, 1987). Estes processos seguiriam um modelo do tipo de «processamento da informação» (Ruiz-Vargas e Zaccagnini, 1987), sendo esta considerada semelhante a um holograma (Pribram e Ramírez, 1980). Por outro lado. e conforme se referiu, a «representação» tem um «conteúdo», que lhe é imanente. Isto é, a consciência é sempre consciência de algo, este não sendo aleatório, mas sim intencional.
Esta intencionalidade, característica de todos os fenómenos psíquicos (Brentano. 1874), «não no sentido de perseguir um objectivo», mas de «ocupar-se, relacionar-se com» torna-se clara na consciência vigil reflexiva (Baumgartner, 1985).
O processamento de informação pré-consciente interfere no material que chega à consciência vigil, pelo que se trata com mais pormenor neste ponto. Embora na definição acima proposta se refiram algumas capacidades, que são coincidentes com as fases de processamento de informação, a consciência não se confunde com aquela. Existem, na realidade dois processos: um processo de transmissão de informação e outro encarregado da sua representação consciente (Dixon, 1981). A existência destes dois sistemas permite, que possa haver experiência consciente em condições de diminuição de estimulação sensorial (no sonho) e percepção sem tomada de consciência (awareness/Besinnung). Antes da informação chegar a ser uma representação consciente tem de passar por vários «filtros», de tal modo que aquela representação é um momento tardio na sequência de operações Mentais Implicadas (Froufe e Sierra, 1985). Para que uma afluência sensorial logre uma representação consciente, necessita ser seleccionada por uma atenção (selectiva), segundo critérios, que incluem a intensidade, grandeza, contraste, movimento e humor do sujeito (Atkinson et al, 1983).
Só que no EMC não se trata apenas de uma perturbação cognitiva mas também de uma alteração do humor ou afecto. Trata-se de uma vivência, isto é, com aspectos cognitivos e emocionais, em que totalidade da personalidade é envolvida e por isso susceptível de modificar as cognições. Passaria a funcionar uma «lógi ca dos afectos» (Ciompi, 1982) cujas leis seriam a ausência do princípio da contradição, da sequência espacial e temporal e da causalidade, entre outras.
Veja-se o exemplo em relação com uma configuração (algo que se mantém por pouco tempo na nossa consciência), que pode vir a ser representação, por esforço activo da atenção, devido à sua pertinência ou ambiguidade, sobretudo quando conotada com o emocional.
Esta característica dos estímulos, torna mais complexa a sua abordagem. O quadro de da Vinci Monalisa, ou melhor, o seu sorriso pode parecer a uns como irónico, a outros benevolente ou ainda não despertar qualquer sentimento ou reacção. Perante esta ambiguidade necessita-se mais informação para a processar correctamente e até se obter fica-se com uma dúvida sobre o significado último da representação. Neste caso, o indivíduo em ErlC não tem dúvidas (a certeza pode ser delirante), não espera mais informação ou busca-a selectivamente, no sentido de confirmar as suas certezas precocemente obtidas.
Um autor, Gowan (1978) chega mesmo a propor, no espectro do balanço funcional entre o hemisfério direito e esquerdo, que perante uma incapacidade das funções do hemisfério direito serem mediadas pelo esquerdo ou quando expressas directamente por aquele, então a sua expressão seria prototáxica (somática), muitas vezes uma situação de trance (EMC), cuja forma extrema seria a esquizofrenia.
Assim, seria uma hipótese interessante considerar um estado alterado de consciência em vigília, como início do processo psicótico e mantido por um processamento erróneo de informação, baseado numa atenção selectiva funcionando em feed-forard.
3.5 Estados Modificados de Consciência patológicos.
Uma interrogação pertinente surge quando e como se consideram como patológicos os EMC. A classificação de EMC como patológicos, já não é vista apenas, modernamente, como uma decisão baseada estritamente em critérios biológicos ou fenomenológicos, mas como uma medida de controle social, que serve para fazer vingar as normas sociais (Dittrich, 1985).
Um outro autor, Crombach (1974), num artigo fundamental intitulado «psicopatologia do ponto de vista dos EMC», considera que estes perderiam o seu caracter bizarro e estranho se fossem perespectivados como uma forma de conhecimento, isto é, como um outro modo de «construir a realidade.
Seriam, então, patológicos os EMC, que ocorressem sem ser desejados (expontâneos) e que apresentassem as seguintes características:
- como forma vivencial dominante, na vida quotidiana
- se evitam soluções adequadas à vida quotidiana
- quando na situação da sua vivência não há ou existem poucas subestruturas cognitivas ou sociais para lidar com os EMC
Esta posição alternativa a uma psicopatologia taxonómica clássica encontra-se ainda em estádio rudimentar e o seu desenvolvimento está dependente de factores sociais (moda, aceitação geral, etc) e transculturais, ou seja a difusão de EMC na nossa cultura, de valores e experiências já aceites por outras sociedades.
Para Kokoszka (1987) existiriam quatro estados de consciência: 1. ordinário, de vigília; 2. de ondas lentas; 3. REM; 4. de vigília diferenciada. Apenas o primeiro e últimos estão associados ao estado de vigília e por isso, para este trabalho, convém diferenciá-los:
EMC em vigília ordinária.
Há dominância do estado de activação em relação ao de repouso; ênfase na actividade mental característica do hemisfério esquerdo, dominância na recepção de estímulos exteriores, pouca utilização da imaginação e um domínio da actividade mental ou física, sobre a comtemplativa.
EMC em vigília diferenciada.
Há domínio de um estado de repouso, domínio da recepção de estímulos de fontes internas (corporais ou de conteúdos de memória), imaginação considerável, estado passivo de actividade mental - domínio da contemplação sobre a ação.
Estes últimos não são de experiência comum nas culturas ocidentais (salvo em determinados círeulos religiosos ou culturais) e, por isso, quando ocorrem, criam um sentimento inicial de surpresa e depois de inquietação ou «desassossegou, por existir discórdia com as suas vivências habituais.
Não é pelo conteúdo fantástico ou bizarro, que se diferenciam as vivências patológicas das não patológicas, pois e a da indivíduo tem as suas próprias «realidades» internas não consensuais. E pela dificuldade, que os psicóticos sentem de partilhar uma realidade intersubjectiva aceite por consenso e pela incapacidade de manejar os níveis consensuais de interacção social (Lukoff, 1985), que eles se diferenciam. Como muito bem observa Spitzer (1988) as crenças delirantes são juízos formulados como se referissem á estados mentais (EMC ?), absolutamente subjectivos, mas cujos conteúdos, contudo, não são estados mentais, mas sim factos acessíveis intersubjectivamente (objectivos)». Tanto um como outro têm as suas certezas epistemológicas acerca das suas vivências, o que os diferencia é o espectro de aplicações que cada um faz delas. Sirvam como exemplo as situações de trance (EMC) num contexto cultural, frequentes, por exemplo no Brasil (Richeport, 1987).
A tendência para enfatizar a racionalidade e comunicação intersubjectiva leva a que se considere esta vivência como anormal. Evoca o medo da doença mental, pois não é conforme aos estereótipos vivenciais. Refira-se a este propósito, que técnicas de relaxação tão difundidas como as de meditação ou de treino autógeno, executadas em vigília, podem acompanhar-se de EMC em vigília diferenciada. Por outro lado crises espirituais podem confundir-se com estados modificados de consciência patológicos.
Muitos dos EMC em vigília questionam alguns dos paradigmas actuais da realidade e simplesmente por isso, não devem ser considerados patológicos em si mesmo e podem mesmo contribuir para o conhecimento da realidade.
3.6 Estados Modificados de Consciência e pensamento emocional.
Em EMC ocorre frequentemente o pensamento emocional, mais que o racional e que tem leis a que Ciompi (1982) chamou «lógica afectiva». O pensamento emocional assume, frequentemente, características de irracionalidade. Aquele não é tão irracional quanto isso, pois apenas assim parece, de acordo com os padrões da lógica do pensamento racional. Aquele tem leis, ou melhor, tem uma lógica - lógica afectiva ou dos afectos. Alguns desses princípios como o da causalidade ou de sequência temporal foram já referidos, no entanto outras características ou «leis» dessa lógica afectiva das vivências (sentimentos cognitivo-emotivos) ou pensamento emocional podem ser enunciados (Walsh, 1981): 1. intermutável (p.ex. se alguém não gosta do meu partido é semelhante a não gostar de mim) 2. está em contínuo fluxo, é impermanente e efémero (as configurações) 3. complexo (em oposição à lógica do pensamento racional) 4. acasual, mas não anticausal, isto é, transcendendo causa e efeito e ultrapassando uma compreensibilidade dentro dos modelos tradicionais de causalidade 5. global e autoconsistente, isto é, nenhum dos seus componentes ou processos é mais importante que outro e por isso inexplicável em termos de processos fundamentais 6. estatístico e probabilístico, isto é, não é exacto (mensurável) nem predizível 7.paradoxal, mais, que total e intelectualmente compreensível, codificável e até comunicável (inefabilidade das experiências místicas) 8. é uma função da consciência, inextricavelmente ligada a esta, não se separando dela como seu «conteúdo».
No pensamento emocional incluem-se, naturalmente, o pensamento mágico, o pensamento mítico e o pensamento místico. Estes não só surgem naturalmente, como são necessários à vida.
As memórias (recordações/representações de vivências passadas) são pessoais e intransmissíveis, são algo que não se podem «imprimir» em alguém, e por isso uma marca do ser humano. Um filme que tratava deste problema, Blade Runner, de Ridley Scott, ilustra bem esta especificidade. A última geração de androides, feita à imagem, mas não à semelhança do homem, começou a ser exterminada por este, quando começaram a tirar fotografias das festas organizadas entre eles. Isto é, aqueles seres possuiam memórias que lhes tinham sido «impressas» pelos homens, no sentido, por exemplo, de dizerem «ser responsável e protejer os filhos», quando lhes perguntavam o que era ser pai (que, obviamente nunca poderiam ter sido) ou quando falavam de uma infância, que também não tinham tido. O facto de fazerem fotografias das suas festas, indicava que começavam a elaborar as suas próprias memórias, vivências, com consciência de serem eles próprios a vivenciar. Eram destruídos porque se estavam a assemelhar ao ser humano, começavam a ter as suas próprias memórias (vivências), não fornecidas do exterior.
3.7 Estados Modificados de Consciência em Etnopsicoterapias.
Os EMC há muito se encontram enraizados em diferentes culturas e surgiam em contextos religiosos, curativos ou mágico sociais. Foram descritos há muito sob outras designações tais como trance, estados de possessão enquanto para estados semelhantes, nas culturas ocidentais, lhe eram atribuídas outras designações tais como estados hipnóticos, experiências místicas, dissociações histéricas consoante o contexto em que ocorriam (Jilek, 1989). As diferenças entre aqueles estados seriam culturais mais que psicológicas ou neurofisiológicas. A indução de EMC é uma capacidade universal do ser humano, mas cuja frequência é uma função de variáveis socio-culturais. Entre estas contam-se a possibilidade que o indivíduo tem, na sua cultura, de praticar certos «papéis» permitidos ou mesmo procurados por essa cultura para assim satisfazer necessidades curativas pessoais, sociais e outras.
Os processos curativos de algumas etnias envolvem a utilização de EMC, que têm em comum certas analogias com formas psicoterapêuticas ocidentais. Se as primeiras priviligiam formas de indução por meios farmacológicos (sobretudo à base de plantas alucinogénicas) e estímulos rítmicos (dança e tambores) e as segundas processos psicológicos (diminuição de estímulos sensoriais e visualização) não se considera haver uma dicotomia no processo de indução, pois de acordo com a perspectiva actual sobre o problema corpo-espírito, processos psicológicos induzem alterações bioquímicas e vice-versa.
Um dos problemas que se coloca ao estudar os EMC nas diferentes etnias é saber se existem invariantes (Ward, 1989), isto é, aspectos comuns ou se devem ser entendidos na sua especificidade isto é, se os estados de trance ou possessão não podem ser separados do seu ambiente socio-cultural. De acordo com os dados actuais deve aceitar-se que as duas posições não se excluem mutuamente. Embora o comportamento durante os EMC seja em alguns aspectos diferentes, os modos de indução e finalidades sócio-culturais apresentam algumas semelhanças, nem sempre têm equivalência funcional social se bem que os mecanismos neurofisiológicos subjacentes sejam comuns. Pode considerar-se que a grande diferença entre o que se observa nas sociedades ocidentais e nas diferentes etnias em relação à psicoterapia das doenças consiste na atribuição da causalidade (Lambek, 1989). E interessante referir, que nas sociedades ocidentais existem diferentes escolas de psicoterapia tendo cada uma o seu modelo etiológico de doença.
O Yoga é conhecido na Ásia desde há séculos e usado como uma técnica terapêutica em diferentes situações, que vão de insónias até problemas psicológicos (Hehr, 1987). Trata-se da observação consciente das sensações e percepções corporais sem que o Eu se identifique com a actividade ou sensações do corpo. Para se obter essa consciência há que procedera determinadas práticas de visualização e exercícios físicos frequentemente combinados com a respiração. Os exercícios do Yoga têm correlatos neurofisiológicos e a sensação subjectiva do estado é semelhante à sentida durante a inalação de ópio (Hehr, 1987) o que evoca a hipótese das endorfinas como mediadores daquele tipo de sensações.
As cerimónias curativas nos cultos de Umbanda (Brasil) e e Voodoo (Haiti) contêm técnicas psicofísicas manipulativas da consciência. Segundo a Umbanda, a etiologia das perturbações centra-se em fluidos sobrenaturais que serão prejudiciais, em consequência de erros ético- religiosos ou de forças mágicas, espirituais, kármicas (destino) ou ainda devido a uma medialidade não desenvolvida. A terapêutica é executada por um médium em EMC (sob a influência de um «espírito» de pessoa falecida), que afasta aqueles fluidos. Muitos clientes vêm a tornar-se eles mesmos médiuns o que lhes traz também prestígio social e cura. A técnica Voodoo é parcialmente comparável com a Umbanda e ambas promovem a integração psicosocial (parágrafo retirado de Pressel, 1987).
Os tipos de «espírito» que orientam a terapêutica através do médium, «caboclo», «preto velho», «criança» e «exu» representariam aspectos de uma personalidade bem adaptada socialmente o que se traduziria também na frequência do seu aparecimento nos «terreiros» (Pressel, 1987). No Voodoo as cerimónias não são fundamentalmente curativas como na Umbanda e utilizam animais durante a cerimónia. O conceito dos fluidos sobrenaturais permite ao médium uma abordagem aos correlatos neurológicos e bioquímicos por um lado bem como entre as relações sociais do paciente com outras pessoas e actividade biológica interna por outro. Pode encarar-se como uma parte de uma tentativa organizada da sociedade para satisfazer a necessidade de sentido de vida dos seus membros como a necessidade biológica de cura (Pressel, 1987). Os processos de indução são a dança, sobretudo à volta do eixo do corpo e os ritmos dos tambores e batimento de palmas. Estes fazem parte da categoria d) de indução de EMC - sobrecarga de estímulos, com monotonia rítmica simultânea. O ritmo dos tambores e batimento de mãos encontra-se na frequência das ondas
Teta do EEG (4-7 por segundo) e que seria a frequência principal em cerimónias que levassem ao trance (Jilek, 1989) e confirmado em cerimónias com batuques rítmicos na Sibéria, Haiti, África e Indonésia (Neher, 1962).
Cerimónias crativas através de dança são também observadas entre índios norte-americanos (Salish, Algonqlians, Kiowa). Nestas danças com fins curativos é o própio paciente que é colocado em MC segundo as instruções de um «iniciador» ajudado pela comunidade. A indução destes EMC ocorre sem recurso a drogas alucinogénicas. Assim, aqueles estados são provocados através de variações da vigília e estímulos vários, hipo e hiperventilação. estimulação rítmica acústica e motórica (Jilek, 1989). Ao considerar-se este tipo de terapia de um ponto de vista ocidental, encontram-se vários elementos terapêuticos: terapia de activação e ocupacional, psicoterapia de grupo, abreacção catártica, psicodrama, apoio directo sugestivo e exercícios físicos. A função psicosocial actual destas danças ritualíslicas com funções curativas pode ser interpretada como meio para obter um bem-estar espiritual e emocional, responsabilidade e auto-estima para os autóctones, que têm dificuldades em encontrar a sua identidade numa sociedade dominada pelos brancos norte-americanos (Jilek, I 989) .
O factor comum daspsicoterapias étnicas e ocidentais consiste na reconciliação com o destino próprio, do grupo social e no domínio do transpessoal. Consegue se com uma modificação da perspectiva do indivíduo nos três campos apontados, sob um EMC, em que há uma vivência (cognitiva e emocional) dramática e catártica intensa tendo em conta os conceitos (culturais) de doença partilhados pelo paciente e terapeuta.
3.8 Estados Modificados de Consciência em psicoterapias de origem ocidental.
3.8.1 Hipnose.
É costume dizer-se que a «primeira hipnose foi feita em Adão para lhe extrair-a costela da qual surgiria Eva». Trata-se de uma técnica utilizada há milénios (templos do sono, rituais mágico-religiosos), encontrando-se a mesma fenomenologia em todo o Mundo. Nomes que de um modo ou outro contribuiram para a compreensão do fenómeno hipnótico são os de Paracelso, Mesmer, Abade Faria, Braid, Charcot, Freud, Pavlov, Janet realçando-se em especial o do Abade Faria, que pela primeira vez considerou que a hipnose seria um estado de auto-sugestão.
Define-se a Hipnose como um estado alterado de consciência caracterizado por uma concentração receptiva e atenta com uma suspensão relativa da tomada de consciência (awareness) periférica (Spiegel e Spira, 1993). Nesta definição utiliza-se a palavra alterado, pois, frequentemente, a hipnose não se processa em estado de consciência vigil, isto é modificada. Dado que os correlatos neuro-fisiológicos ou clínicos não são específicos não se tem um sinal patognomónico de presença de estado hipnótico o que leva alguns autores a considerar que aquele não existe (Barber, 1970; Wagstaff, 1981) ou que se trataria de um comportamento controlado pelo próprio em resposta a «papéis sociais» requeridos, isto é, apresentam-se como actores passivos num drama em que «perderiam o controlo da conduta» (Spanos, 1989). Por outro lado, outros autores consideram, que existe um EMC contorme definido, no qual, também, fenómenos de aprendizagem e de «papel social» estariam presentes e, possivelmente, com maior frequência, que em estados de consciência normal (Tart, 1975; Hilgard, 1986).
As vivências e comportamentos sob hipnose associam-se a uma convicção subjectiva tocando o delirante e com a sensação de involuntário tocando a compulsão (Kihlstrom, 1985). Aquela vivência envolve,três factores (Spiegel e Spira, 1993): 1. «Absorção» (concentração completa sem reflexão) 2. «Dissociação» (experiências sensoriais e comportamentos) 3. «Sugestibilidade» (falta o «porquê?â; aceitação não crítica).
Entre os mitos ligados à hipnose e descritos num brilhante trabalho de Pincherle (1985) contam-se os seguintes: é sono, é «passiva» (algo que st faz a alguém), toda a pessoa ou ninguém é hipnotizável, há perigos na hipnose, é terapêutica em si mesma e é susceptibilidade ou «fraqueza de espírito».
Através de testes de capacidade hipnótica avalia-se a susceptibilidade do indivíduo à indução hipnótica, que é baseada no rapport ou relação de confiança estabelecida entre o terapeuta e o paciente. Nesta técnica considera-se que a «resistência» ao trabalho terapêutico não advém do paciente (como advoga a psicanálise) mas da falha na relação de confiança.
Os métodos de indução são variados e baseiam-se em estímulos monótonos com certa ritmicidade em ambiente privado de estímulos sonoros e visuais. Os estádios vão desde o hipnoidal até ao sonambúlico onde observam fenómenos alucinatórios, de anestesia profunda visualização cénica, regressão de idade, amnésia profunda e sugestões pós-hipllóticas (Pincherle, 1985). Entre as suas aplicações contam-se o diagnóstico psicopatológico (Richeport, 1987), como adjuvante de psicoterapia - com acesso rápido a memórias - de traumas de infância, fobias, tiques, de sintomas isolados de várias doenças psicosomáticas mudança de comportamentos aditivos, perturbações dissociativas, perturbação do stress pós-traumático e em ajuda de vítimas de abuso sexual
Em resumo, com os conhecimentos actuais, pode considerar-se a hipnose com um estado de consciência alterado, semelhante a outros do quotidiano (relaxar-se, ler com concentração um livro) diferentes da vigília habitual, do sonho e do sono nos quais a distinção é estável tanto para os humanos como para outros mamíferos (Stengers, 1993) Os fenómenos hipnóticos escapam à definição experimental mas nem por isso deve ser abandonado pela ciência, deixando a porta aberta aos charlatães, que ironicamente denunciam «a recusa dogmática da ciência em se interesasar por curas estranhas que eles provocam» (Stengers 1993)
3.8.2 Sonho Acordado Dirigido de Desoille.
Esta técnica assemelha-se à hipnose em termos de indução e ambiente requerido mas utiliza imagens com o apoio de «subida e descida» imaginárias, em estado de relaxamento, sugeridas pelo terapeuta. Foi desenvolvida por Desoille inspirado em Caslant. O relaxamento pode ser feito segundo qualquer técnica, seja de tipo hipnoidal ou segundo o treino autógeno de Schultz (1980).
A descrição do método, segundo Desoille (1945) citado por Azevedo Fernandes (1975) pode resumir-se: «obtido o estado de atenção passiva o terapeuta desencadeará a actividade imaginária do paciente sugerindo-lhe uma imagem qualquer… entre os cenários ou objectos da vida corrente… desde que evoque apenas uma ideia geral… então o terapeuta pede uma descrição exacta da imagem… do lugar onde se encontra… do lugar imaginário onde pensa que se passeia; por transição encaminhar-se-à a transformar (o lugar último em que se passeia) em paisagem de montanhas às quais trepa; perante uma imagem angustiante deve convidar-se o paciente a tomar uma atitude activa». Durante o sono acordado podem surgir três tipos distintos de imagens (Desoille, 1955), citado em Fernandes (1975): d) imagens da vida real, semelhantes aos fantasmas dos sonos nocturnos b) imagens da fábula e contos de fadas c) imagens místicas, que lembram as visões de alguns santos. Após três quartos de hora, aproximadamente, manda-se o paciente percorrer em sentido inverso todas as etapas para facilitar o regresso ao estado normal de consciência.
O papel do terapeuta é o de um companheiro em participação onírica, que se obriga no final a fazer um relato do acontecer onírico simbiótico (Fernandes, 1975). Este autor aceita como imagens iniciais das primeiras sessões, buscadas em Freud e Jung as seguintes: espada, vaso. caverna, bruxa, bruxo, mago (todos de relação consigo mesmo), dragão, a bela adormecida (relação com os outros). Estas imagens arquetípicas são forças e prefigurações que serve os instintos e os precedem, são magma sob compressão que carece de descarga (Fernandes. 1975). Pode, também, fazer-se regressar a idades mais precoces e em seguida regressar à idade actual. Segundo uma discípula de Desoille, Doddoli (1970), citada por Fernandes (1975), no sonho acordado nada é falso - trata-se de uma situação real que encontra a sua expressão numa simbolização primária comum a todos os homens; não obstante se trate com o imaginário tem funções de reestruturação que se reflecte na conduta. As interpretações são feitas pelo paciente, ajudado pelo terapeuta, num trabalho frente a frente, em sessões separadas, ditas de comentários. Nesta terapêutica a transferência é negligenciável. Entre as indicações com êxito têm-se apontado o trabalho com toxicómanos, gaguez e toda a gama de neuróticos, de desadaptados sociais e conjugais. Sempre que não se obtêm resultados em 30 sessões deve interromper-se a terapêutica pelo sonho acordado.
3.8.3 Vivência Catatímica de Imagens de Leuner (KB)
A vivência catatílnica de imagens é uma técnica de psicoterapia desenvolvida por Leuner a partir de 1948. Pode definir-se como como uma técnica de sonho diurno (ou acordado) em que o paciente aprende a sonllar e descreve ao terapeuta os seus sonhos (Leuner, 1985). Esle autor refere que o conceito catatímico teria sido usado pela primeira vez por Meyer e aceite por Bleuler e retirado do grego kata - que vem de - e thymos - alma, isto é, de imagens segundo imaginação, que seriam dependelltes de um fundo e momentos emotivos e vivenciados dramaticamente sob a forma de símbolos. A designação «drama simbólico» é também aceite por aquele autor.
A inspiração terapêutica busca as suas origens na psicanálise freudiana e jungiana, utilizando ainda técnicas de relaxamento baseadas na hipnose e treino autógeno de Schultz (1980). A progressão terapêutica faz-se em três estádios, sendo necessária uma formação analítica para o terceiro estádio. O primeiro estádio utiliza certas imagens para desencadear o processo terapêutico e não faz recurso a interpretações o que permite a utilização por médicos sem treino psicanalítico. No entanto este estádio exige que o terapeuta faça uma «co-leitura» do conteúdo das imagens e vivência do paciente, isto é, deve sonhar com ele e acompanhá-lo no seu sonho, tal como um shaman faria em relação ao seu paciente. Leuner (1985) considera que as imagens catatílnicas se podem comparar ao que na linguagem psicopatológica se designa por «fenómenos hipnagógicos», o que seria, segundo ele, um estado alterado de consciência. Entre as imagens catatímicas e o sonho apenas existe um pequeno passo - um afecto vivenciado na vida real é transformado em imagens - fala-se então de figuras simbólicas.
Estas figuras são induzidas numa situação de relaxação, às vezes acompanhadas de música, e iniciam-se pela sugestão ao paciente para imaginar um prado ou uma paisagem com campo. Por sugestão o paciente vai visualizar o que se encontra naquela paisagem e surgirão um ribeiro, uma montanha, uma casa e por fim, neste estádio, a margem da floresta. No segundo estádio irão surgir temas relacionados com pessoas de relação (simbolizadas em animais), sexualidade (símbolos: autostop, canteiro de rosas), agressividade (símbolo: leão) e o Eu ideal (pessoa do mesmo sexo). No terceiro estádio imagina-se a caverna (animais e pessoas como símbolos de problemas recalcados, rivalidades, homoerotismo) e pântano (símbolo de material recalcado, arcaico, edipiano - sapos, serpentes ou homens nus). O autor apenas aconselha esta técnica a quem consiga imaginar, sob solicitação, a imagem de um animal exótico e o consiga descrever, por exemplo um camelo.
As situações difíceis que a pessoa tem de enfrentar, por exemplo subir uma montanha ou lutar com um animal, têm algo de semelhante com a dessenbilização em relaxação utilizada pela terapia do comportamellto, o que Leuner (1985) não nega. Reconhece-se que se está perante uma imagem catatímica pela riqueza visual descritiva. A transferência raramente surge sobre o terapeuta, fazendo-se sobre o campo do imaginário (Fernandes, 1975). As sessões propriamente ditas duram cerca de 30 minutos e mais vinte minutos para discutir o vivenciado e pôr em marcha o processo. Em regra bastariam, para a resolução de um problema, entre três a doze semanas com a frequência de duas vezes por semana.
O campo de aplicações do nível inferior inclui: perturbações psicosomáticas leves com maior ou menor repercussão sobre órgãos internos, estados de angústia e fóbicos (situações de crise de pânico foram tratados por Leuner), perturbações neuróticas infantis e crises evolutivas sobretudo as ligadas à puberdade. Como contra-indicações Leuner (1985) aponta: inteligência com QI abaixo de 90, situações psicóticas agudas ou crónicas, síndromas psico-organicos, distímias depressivas, baixa motivação para auto-conhecimento, neuroses histéricas organizadas e sintomas que se mantenham inalterados há mais de dois anos.
3.8.4 Terapia Regressiva pelo Imaginário Vivencial Personalisado (Regressiva de Vivências Passadas).
A designação deste subcapítulo traduz já algumas dificuldades em enquadrar esta técnica terapêutica nas categorias clássicas das psicoterapias. Se as anteriores eram compreensíveis historicamente e deduzíveis dos conhecimentos da psicologia e em especial a relacionada com o imaginário, já esta técnica faz apelo, pelo menos nos seus inícios a concepções, que envolvem um paradigma algo estranho à cultura ocidental - a noção de reencarnação. Numa frase - a possibilidade de cada indivíduo, através de uma instancia não perecível, vivenciar várias vidas em corpos diferentes, em tempos e culturas diferentes. Diga-se, que esta noção não é de modo algum estranha às culturas orientais e encontra-se difundida em muitos círculos ocidentais e que cerca de metade da humanidade crê nos seus princípios. Porque se afasta das finalidades deste trabalho não se discutirá a reencarnação de um ponto de vista probatório, mas pode referir-se, que a este respeito existem evidencias directas (Stevensoll, 1970, 1983; Andrade, 1988) ou indirectas (Keil, 1994).
Após esta breve introdução e tendo em conta o que se expôs sobre as técnicas precedentes e a teorização sobre os estados modificados de consciência será preferível, de um ponto de vista neutral e científico sobre o acontecer terapêutico, que seja designada por imaginário vivencial regressivo personalizado. O imaginário do homem permite representações, que na realidade não existem ou são aproximações. Trata-se da capacidade que, através da consciência, permite elaborar conceitos ou previsões que doutro modo seriam impossíveis. Na representação gráfica do mundo interior dos doentes mentais utiliza-se frequentemente os quadros de Bosch. Na realidade o seu mundo é mais próximo da realidade quotidiana, mesmo quando deliram, que daquelas representações dantescas. Existem, isso sim, distorções ligeiras da cognição, que o levam a elaborar fantasias, irresolúveis logicamente, mas, no entanto, susceptíveis de serem representadas. Na consciência, pelo pensamento, é possível construir objectos (ou cenas) que se podem representar, mas que também não existem. Assim, trata-se de uma designação descritiva tal como as outras técnicas utilizam, sem recorrer obrigatoriamente a uma eventual explicação não comprovada. Quantas terapêuticas a medicina não utiliza com sucesso embora não conheça ainda a explicação do seu sucesso? Os seus primórdios encontram-se também na hipnose. Foi com a regressão hipnótica que Wambach (1981), que esta autora iniciou as suas pesquisas, tentando dar resposta a questões como se haveria uma prova que confirmasse a memória de vida passada ou se haveria áreas da mente susceptíveis de serem actuadas sob hipnose e não em vigília. Um resumo excelente dos seus resultados pode ler-se em Dirce Silva (1985). Um outro autor que contribuiu para a difusão da técnica regressiva, chamando-lhe Terapia das Vidas Passadas foi Morris Netherton, que que publicou um livro sobre o assunto em co-autoria (Netherton e Shiffrill 1978). Todos estes autores pressupõem a ideia de reencarnação e o objectivo da terapia seria revivenciar cenas traumáticas do passado esgotando a emoção ligada a esses factos (Silva. 1985). Se é discutível que aqueles autores utilizem ou não a hipnose, pois como já discutido não há um parametro específico daquele estado, pelo menos os pacientes permanece despertos e em contacto com o terapeuta, tal como no sonho acordado.
Tratando-se ou não de vivências de vidas passadas o que permanece constante e de um ponto de vista descritivo é a regressão imaginária a estádios do desenvolvimento individual e vivenciados de modo personalizado. Como descreve Dirce Silva (1985): «quer essas cenas sejam dramatizações de material do inconsciente ou revivências de factos realmenle acontecidos no passado, sempre trabalhamos com os conteúdos tais como se apresentm, isto é, lidamos com os factos como se realmente tivessem acontecido». Na realidade acreditar ou não em reencarnação é indiferente para o êxito do tratamento. A importância que esta técnica tem adquirido traduziu-se já na existência de um jornal regular sobre o tema (The Journal of Regression Therapy - APRT, Riverside, CA, USA) e de um tratado em dois volumes editado por Winafred Lucas (1993). Como em qualquer psicoterapia, deve proceder-se previamente a uma anamnese completa, sobretudo ligada aos problemas actuais e, naturalmente, estabelecimento de uma boa relação de confiança entre paciente e terapeuta. O ambiente e demais preparativos prévios é semelhante ao já indicado para outras técnicas. A indução do estado de consciência alterado é algo diferente de acordo com os autores, podendo recorrer a uma hipervélltilação, música suave de tipo minimal, sugestões de relaxação de tipo hipnoidal, segundo treino autógeno, técnica sofrológica, etc. A viagem no imaginário é sugerida também de diferentes modos: um écran onde se observa a viagem, um túnel do tempo, a regressão faseada 110 tempo (actual, perinatal, uterina, vivências supostamente anteconcepcionais e de outras vidas) ou apêlo a um Eu superior, que guia a viagem no tempo.
A sessão terapêutica dura em média duas horas e tem uma frequência habitual semanal. O desencadear do trabalho terapêutico é feito através de uma «frase ou palavra chave» frequentemente repetida pelo paciente durante a entrevista, percebida pelo terapeuta como deslocada do contexto ou expressa pelo paciente com a frase inicial «como se…». Outros pontos «chave» podem ser sonhos recorrentes, sintomas clínicos, marcas de nascimento. A repetição pelo paciente, em estado de relaxação, destas frases com emocionalidade, leva-o a despertar cenas visualizadas (dos períodos de vida já enunciados), que passará a vivenciar em estado de consciência alterado, verbalizando-as e sendo acompanhado pelo terapeuta. Este pode diminuir a intensidade do vivenciado ou focar certos aspectos por sugestões. A emoção despertada deve ser esgotada, até acabar o sofrimento. Também neste processo terapêutico, tal como na hipnose, funciona um «Eu escondido», que controla o acesso de memórias penosas e por isso o paciente apenas revive o que é capaz de suportar. Como a vivência traumática não é suficiente para uma mudança de padrão de vida, termina se com sugestões para, em face do vivellciado com grande carga emotiva, tomar uma «redecisão» acerca do seu futuro comportamento». Esta é reforçada com uma «reprogramação positiva» e em vigília completa trocam-se comentários com o paciente sobre as analogias do vivenciado com o problema actual (Peres, 1992). A reprogramação positiva é orientada segundo os pricípios da neurolinguística (Bandler e Grinder, 1982), isto é, em regras gerais, através de formulações verbais pessoais e positivas e no presente do indicativo.
As indicações para este tipo de terapêutica, depois de excluídas causas orgânicas para perturbações várias, são síndromas ansiosos e fóbicos, perturbações do desenvolvimento infantil, alguns traços marcados das perturbações da personalidade, problemas nas relações interpessoais, familiares e laborais atribuíveis aos pacientes, alguns sintomas de doenças psicosomáticas e perturbações de caracter sexual. Outro tipo de intervenções podem ser feitas com caracter experimental, como é o caso de doenças mentais graves (Guimarães, 1990) fazendo para isso protocolos adequados e avisando disso o paciente. Entre as contra-indicações referem-se a utilização em gestantes, doenças orgânicas susceptíveis de descompensar, esquizofrenias e doenças afectivas mono ou bipolares.
4..Conclusão.
A teorização dos estados modificados de consciência rompe com os paradigmas da lógica formal, nomeadamente, da continuidade espaço-tempo, da contradição, da causalidade linear etc, mas também com o pressuposto da consciência como produto exclusivo do cérebro. Só assim se entende que possam existir memórias extra-cerebrais (Banerjee, 1979), isto é, prévias à formação do córtex, tal como as memórias de tipo afectivo (LeDoux, 1994).
A utilização dos estados modificados de consciência em psicoterapia tem nos seus pressupostos uma mudança do paradigma científico habitual (Ruim, 1962). Não se nega a necessidade do método científico para o avanço da ciência e confirmação de hipóteses, mas como conforme propõe Popper (1963) para esse mesmo avanço da ciência não é necessário provar que algo se processe de determinado modo, mas sim provar que a hipótese actual possa ser falsificada. Enquanto não se refutar experimentalmente ou objectivamente a hipótese anterior. existe o direito de a usar em ciência se disso houver benefícios para a humanidade. Tal.se passa assim com muitas terapias médicas actualmente. Assim se pode entender o que se passa com os estados modificados de consciência e sua aplicação em psicoterapia. Deve ser considerado como um meio psicoterapêutico tão ou mais eficaz que os similares. E ainda um meio de investigação para a compreensão do indivíduo e do estar no mundo.
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Financiado por:
Artigo escrito com o apoio de uma Bolsa de Estudos da Fundação Calouste Gulbenkian e Bolsa de Investigação Científica da Fundação Bial.