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Psicologia
versão impressa ISSN 0874-2049
Psicologia vol.11 no.2-3 Lisboa jun. 1996
https://doi.org/10.17575/rpsicol.v11i2/3.604
Tendência formativa e tendência actualizante: Reflexões à luz das teorias do caos e da complexidade
João Marques-Teixeira*
*Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
RESUMO
À luz das modernas teorias da ciência e da complexidade, o autor analisa dois conceitos de Carl Rogers - tendência formativa e tendência actualizante. Esta análise permite concluir a actualidade e valor heurístico dos conceitos para a psicoterapia.
ABSTRACT
In light of modern theories of Science and complexity, the author reflects on two of Carl Rogers’ central concepts -formative tendency and actualizing tnedency. This comparazion allows to stress the centrality and heuristic valne of both concepts for psychotherapy.
1. Carl Rogers, em 1980, no seu livro intitulado A Way of being1 referiu-se assim à tendencia formativa: «We are tapping into a tendency wich perrreates all of organic life - a tendency to become all the compexity of wich the organism is capable. And on an even larger scale, I belive we are tuning into a potent Creative tendency wich hasformed our universe, from the smallest snowflake to the largest galaxy, from the lowely amoeba to the most sensitive and giffted of per sons» (p. 134).
Na mesma obra, Rogers define a tendência actualizante como: «Is characteristic of organic life of wich the human organism is one. Individuais have within themseives vast resources for altering their self-concepts, their basic attitudes and selfdirected behavior» (p. 115).
2. Estes dois princípios básicos do movimento rogeriano estão ligados entre si, não só da ponto de vista conceptual como também do ponto de vista etimológico. Em qualquer um deles há uma nítida referência a um impulso para um determinado fim, veiculado pela palavra tendência. O sentido que esta palavra toma pode ser deduzido por exemplo, através de André Lalande, no Vocabulaire Tecnique et Critique de la Philosophie, onde é referido, relativamente a tendência, que constitui «un caractère et ce qui tend à un fin». Ainda segundo o mesmo autor, o sentido psicológico que tem sido atribuído a esta palavra, é o de designar genericamente todos os fenómenos de actividade espontânea.
Ribot, psicólogo francês (na sua obra Psicologia dos Sentimentos), atribui à designação tendência o seu sentido psicológico do seginte modo: «la tendence n’a rien de mystérieux: elle est un mouvement ou un arrêt de movement à Pétat naissant. J’emploie ce mot, tendence, comme synonyme de besoins, appétifs, instincts, inclinations, désirs; il est le terme générique dont les autres sont des variétés: il a sur eux l’avantage d’embrasser les deux aspects, psychologique et physiologique du phénomène.»
Temos, portanto, como ponto de partida destes dois conceitos o sentido de força propulsora que impele o organismo para um determinado fim. Ou seja, estes dois princípios sintetizam a perspectiva motivacional do comportamento dos seres vivos em geral e do homem em particular, na sua formulação mais básica. Rogers posicionava-se, deste modo numa concepção do homem e do comportamento humano, ao nível da interferência de um conjunto de forças, gerais e universais, que determina, no plano mais essencial, o comportamento humano. E evidente que Rogers não falava em instintos nem em motivações primárias, mas através de uma outra linguagem fala em processo direccional, ou seja em forças que impelem o comportamento para um determinado fim, o que, em termos conceptuais, é coincidente com a noção actual de motivação primária ou de comportamento instintivo.
Esta conotação pode ser deduzida a partir ainda da análise do significado do termo tendência quando Ribot lhe atribui um sentido simultaneamente psicológico e fisiológico. Este sentido aparece-nos na concepção rogeriana no conceito de organismo que é um conceito unificador das múltiplas partes em que é constituído.
Retomando o sentido profundo de tendência verificamos que a sua essência é o movimento e portanto a mudança (de posição, de organização, de estado); por outro lado, dado o carácter universal destas tendências («esta tendência está em acção em todas as ocasiões»2) existe um sentido também de permanência. Isto é, a ideia de tendência não é uma ideia simples, mas antes uma ideia que engloba, simultaneamente, a mudança e a permanência. Ora, este tipo de constructos recobrem princípios que dão conta da complexidade dos sistemas que constituem o universo, incluindo o sistema humano, e que só após o advento das teorias do caos e da complexidade é que tiveram um verdadeiro desenvolvimento e uma adequada formulação que os inscreveu no domínio das ciências rigorosas.
Sendo assim, os princípios básicos do modelo da Abordagem Centrada na Pessoa (AGP), tal como foram enunciados por Carl Rogers, assentam nos modelos mais actuais da ciência, nomeadamente nas chamadas teorias da complexidade. E evidente que Rogers, apesar de ter sido influenciado por autores como Prigogini e Capra, não tinha ainda ao seu dispor todos os desenvolvimentos teóricos que nos últimos 10 anos caracterizaram a actual epistema. Apesar disso, demonstrou uma intuição brilhante, ao enunciar estes princípios, ao ponto de poder ser considerado, na minha opinião, como um dos precursores da aplicação do novo paradigma científico à psicologia e à antropologia.
3. Analisemos agora, com mais pormenor a tendência formativa. A principal tese de Rogers é a seguinte: existe no universo uma tendência formativa que pode ser observada em qualquer nível.
Comecemos por analisar o segundo termo deste princípio: formativa. Derivando do latim forma ou do grego morphé, esta designação remete-nos para um princípio morfogenético como um processo criador. Ou seja, a todos os níveis do universo funciona uma força que impulsiona para a organização formal e que nesse processo as novas formas cobrem-se da característica do novo. Dito de outro modo, os múltiplos sistemas do universo tendem a organizaremse em conjuntos delimitados de um fundo geral, através de uma maior complexidade da organização subjacente. A esta maior complexidade da organização correspondem novas singularidades no seio da multiplicidade de opções.
Um outro aspecto a destacar da formulação desta tese é o carácter universal desta tendência. Este carácter é correlativo da possibilidade de uma morfologia geral. Temos então um princípio que nos remete para a progressiva organização mais complexa da matéria operando segundo um princípio morfogenético geral. A qualquer nível da organização da matéria esta tenderá para a criação de novas formas de organização mais complexa e isso ocorrerá através do mesmo princípio de morfogénese.
Isto está bem explicito na afirmação de Rogers «observable in the movement toward greater order, complexity, and interrelatedness that can be observed in stars, crystals and microorganisms, as well as in human beings» (Rogers, 1980).
Este aspecto e, na minha opinião, perfeitamente inovador, pelo menos em termos da consideração de um princípio morfogenético geral. De facto, só muito recentemente, foi proposto um modelo matemático que permite dar cobertura formal a este princípio. Refiro-me à teoria das catástrofes do matemático francês René Thom, a qual permite a constituição de formas por argumentos a priori, e por isso independentes do substracto e da natureza das forças que as ciam. Estamos perante a autêntica formulação do novo e, nesse sentido, recobrindo perfeitamente a consideração que Rogers faz deste princípio: uma tendência criadora.
Existe uma precisão que não foi feita por Rogers, mas a que Ruth Standford e Barrett-Lennard (1993) já se referiram: este princípio só opera ao nível dos sistemas abertos, que são sistemas que procedem a trocas permanentes de energia-informação com o seu meio envolvente3. Contudo, esta precisão não põe em causa a universalidade do princípio já que, mesmo que se trate de sistemas fechados (como é o caso de uma pedra ou de um cristal) o princípio aplica-se à sua génese e não ao estado formal final, génese de um cristal pressupõe que um estado menos organizado da matéria evoluiu, sob determinadas condições externas, para um estado de maior organização.
Uma outra questão se poderá por em relação à pregnância deste princípio universal: onde cabe, nesta formulação, um outro dado advindo da física quântica e que se refere á entropia. Ou seja, como pode o princípio entrópico ser considerado a par deste princípio formativo.
Rogers tomou isto em consideração dando conta da existência destes dois princípios na natureza: «o universo está em constante construção e criação, assim como em deterioração» (Rogers, 1983 p. 45). É como se no universo duas forças de sentidos opostos estivessem a operar em permanência: uma que tenderia para a organização crescente e outra para a desorganização crescente.
Mesmo aqui é necessária uma precisão. Aparentemente o universo pode ser organizado através de duas forças de sentidos opostos, mas os avanços mais recentes das teorias do caos e da complexidade dizem-nos que essas duas forças não são mais do que o mesmo princípio a funcionar. Ou seja, mesmo a níveis pouco estruturados da matéria, mas em condições particulares (como por exemplo, em estados longe do equilíbrio) os sistemas em jogo exibem qualidades auto-organizadoras que, no essencial, permitem a emergência da ordem a partir da desordem. Isto é, evidencia-se aqui a noção que a ordem se alimenta de desordem ou, como Prigogine o formulou, a ordem a partir do caos.
Deste modo, os dois princípios enunciados não funcionam em oposição, mas antes em complementaridade: não há ordem sem desordem, como não há organização sem caos.
Estou, agora, em condições de reformular o enunciado da tendência formativa e de tendência entrópica: ao nível do universo, considerado como um complexo sistema de sistemas, a ordem e a desordem interagem resultando a emergência de novas organizações mais complexas que, sob o ponto de vista formal, obedecem a um princípio generativo geral: a auto-organização.
4. Quanto à tendência actualizante, a tese defendida por Rogers é a seguinte: «os indivíduos possuem dentro de si vastos recursos para a autocompreensão e para a modificação dos seus autoconceitos, das suas atitudes e do seu comportamento autónomo. Esses recursos podem ser activados se houver um clima, passível de definição, de atitudes psicológicas facilitadoras4».
Analisemos o 2.o termo deste princípio: actualizante. Este termo remetemos, como Rogers enunciou, para a actualização de potencialidades. Diz-nos Rogers: «the organism has one basic tendency and striving - to actualize, maintain, and enhance the experiencing organism» (Rogers, 1951, p. 487).
Temos, portanto, em jogo o conceito de actual-potencial. Já vimos, na discussão dos pontos anteriores, que está imanente no conceito de tendência as noções de permanência e de mudança e que no conceito de tendência formativa estão imanentes as noções de ordem e desordem. Usando a mesma lógica, parece-me necessário descodificar o significado deste princípio na determinação do comportamento humano, já que uma das criticas formuladas aos princípios gerais do modelo da AGP é a redução das determinações do comportamento a um único princípio que é, em si, um princípio, «optimista». Implícita a esta crítica está a ideia de que são deixados de lado aspectos importantes do comportamento, como sejam às disfunções, os maus caracteres, ou mais genericamente o crime, a delinquência, ou em termos mais médicos, a psicopatia e a sociopatia.
Um dos autores a aplicar-se nesta descodificação foi Barrett-Lennard (1993), considerando que a tendência actualizante constitui o principal princípio motivacional do comportamento humano, mas este princípio está acompanhado de um outro, que ele designa por tendência para a homeostasia. Diz, nomeadamente, «life and behvior, it seems to me, hinge both growth and perservations forces» (Barrett-Lennard, 1993). Isto é, segundo este autor, não devemos considerar a tendência actualizante isoladamente, mas antes a par da tendência à estabilidade. De algum modo, aproxima-se da análise que atrás efectuei quanto ao significado do termo tendência.
Por sua vez, Seeman (1988), na sua crítica à formulação do conceito de auto-actualização (ou tendência actualizante) refere que o principal problema desta formulação consiste na afirmação de esta tendência constituir o único impulso que rege o desenvolvimento humano. Propõe, como resolução deste problema, que a tendência actualizante não seja um conceito, mas antes uma metáfora de algo mais tangível que considera ser uma série de leis do desenvolvimento ou regularidades. Assim, pretende ultrapassar a dificuldade e propõe que o modelo que melhor capta esse conjunto de leis do desenvolvimento é o modelo sistémico aplicado ao ser humano. Assim, o conceito de auto-actualização seria substituído pelo conceito de auto-regulação, na linha da cibernética wieneriana. Isto é, Seeman acaba por formular, por outras palavras, a mesma noção de Barrett-Lennard de homeostasia.
Apesar destes desenvolvimentos, penso que o problema não fica resolvido, pois a dificuldade reside mesmo no conceito de actualização e não na sua singularidade em termos motivacionais humanos.
Para demonstrar esta afirmação terei de me deter um pouco na análise das implicações deste conceito.
Como disse atrás, o conceito de actualização remete-nos, como difusamente tem sido divulgado nas teorizações sobre o modelo da AGP, para o conceito de potencialidade. Qual é o texto sobre este assunto que não refira, mais do que uma vez a designação actualização de potencialidades Ora, conceber o potencial implica uma séria transformação: a da categoria ào possível em potencial. Esta transformação acarreta um conjunto de consequências.
Em 1.o lugar, a existência da potencialidades implica a existência de algo que já lá estava, e portanto real de uma certa maneira, mas que não é directamente observável. Sendo assim, a evolução expontânea (se nada se lhe opuser) evolui de tal modo que o potencial se actualiza, e por isso desaparece enquanto tal. Isto será assim porque a noção de potencial pressupõe a obediência a uma lei geral de conservação da energia, lei essa que exclui a possibilidade da criação aquando da transformação de um potencial em real, pois que o real já lá estava, bem escondido, no estado potencial. Sendo assim, aparece-nos uma contradição lógica entre este princípio (tendência actualizante) e o princípio da tendência formativa já que, como vimos, esta caracteriza-se justamente pela criação de novas formas.
Em 2.o lugar, a impredictabilidade que permite o novo e que implica a noção de acaso, ruído, flutuações e indeterminações, conserva ainda a noção de potencial, na medida em que o acaso é atribuível às insuficiências do observador e, por isso, constitui apenas uma questão de tempo até que se descubra que afinal ele já lá estava. Esta ideia, mais sofisticada que a outra, vigora actualmente no domínio da biologia e da psicologia, implicando uma dificuldade lógica para a concepção da criação.
Então, como poderemos ultrapassar esta dificuldade e dar conta de um possível que possa incluir a criação, o novo?
Não é difícil constatar que a noção de potencial tende à equalização. Isto é, o real não é nem mais nem menos do que a sua actualização, em que a única diferença se encontra numa sucessão causal de um estado no qual uma propriedade é observada realmente, na sequência de um estado potencial, no qual essa propriedade não existia; mas este estado potencial é perfeitamente observável e é possível conhecer-se as condições necessárias e suficientes para que ele seja transformado em estado ou pata que esta propriedade seja observável (portanto actualizada).
Ao contrário, a noção de possível, é simultaneamente mais e menos do que o real. E mais que o real quando a transformação de um no outro se traduz por uma restrição do número de possibilidades (à la limite podemos considerar que o possível constitui un número infinito de possibilidades e que a realização de uma entre elas, eliminando todas as outras, reduz drasticamente o número dos possíveis)5. Mas o possível é também menos que o real, porque a sua actualização depende de um conjunto de condições, elas mesmas não totalmente determinadas, e que condicionam, num segundo nível, a forma da transformação de um possível em real.
Vemos, pois, que o real contém em si o efeito das condições adicionais necessárias para que ele próprio seja actualizado. E, enquanto que esta actualização não se efectua, a sua forma depende de um conjunto de outras condições adicionais que existem senão num futuro, ele mesmo da ordem do possível.
Com esta noção não quero significar que a possibilidade das coisas precede a sua existência, pelo contrário, retomo aqui a posição bergsoniana, considerando que à medida que a realidade se cria, imprevisível e nova, a sua imagem, reflecte-se para trás no passado indefinido, mas é nesse momento preciso que ela começa a ter sempre sido. Eis porque a possibilidade, que não precede a sua realidade, a precedeu uma vez que a realidade apareça. «Le possible n’est que le réel avec, en plus, un acte de l’esprit qui en rejette l’image dans le passé une fois qu’il s’est produit», diz-nos Bergson (1963, p. 1339). Não podemos, portanto, separar as noções de possível e de real, como também não podemos, arbitrariamente, alterar o sentido do tempo: é o real que se faz possível e não o possível que se torna real. Neste sentido, «le possible est donc le mirage du présent dans le passé» (Bergson, 1963, p. 1341).
Tomando em consideração esta distinção entre o potencial e o possível, vejamos como é que a questão da actualização de potencialidades se configura.
A actualização de potencialidades implica a consideração do conceito àt pessoa potencial. Como vimos, esta noção deixa entender que toda a pessoa (ou seja, a totalidade dos seus atributos) já está lá em potencialidade, apenas esperando a possibilidade de se exprimir, a partir do momento que sejam eliminados os obstáculos que impedem a sua actualização. Em relação à pessoa humana, cuja origem primeira é um ovo humano, podemos afirmar que nesse ovo já existem certas potencialidades de pessoa, mas existem também muitas outras potencialidades que conduzem a outras coisas que não a pessoa humana (aborto expontâneo, anencefalias, molas hidatiformes, etc.). Isto significa que as potencialidades contidas num ovo humano são inicialmente maiores que as de um indivíduo humano: são potencialidades de vida, é certo, e mesmo de individualização, mas mais abrangentes que as de um indivíduo humano e afortriori de uma pessoa humana.
Ou seja, o desenvolvimento embrionário (e o desenvolvimento em geral) consiste não apenas em actualização de potencialidades mas também numa redução de potencialidades para as limitar às de um ser um humano ou de um projecto. Isto é, só na medida em que a pessoa se constitui é que as suas possibilidades se apresentam como tendo sempre sido.
Por estas razões não poderemos substituir a noção de pessoa potencial pela noção de pessoa possível, porque é uma pessoa irreal (que não comporta nenhum dos atributos de uma pessoa), mas antes pela noção de pessoa real que, na sua permanente construção, se revela nas suas potencialidades e possibilidades.
Retomando a questão inicial sobre a tendência actualizante, e após estas considerações, deveremos considerar que o conceito em causa, para reflectir os modelos explicativos que tenho vindo a referir, deverá ser compreendido como tendencia à realização que, no caso humano, vai-se revelando como possibilidades antropológicas.
Uma leitura atenta de Rogers vem confirmar estas considerações e vem explicitar o ponto de vista daquele autor, já que é sua a seguinte afirmação: «num organismo… há um fluxo subjacente de movimento em direcção à realização construtiva das possibilidades que lhe são inerentes» (Rogers, 1983, p.40). Rogers designa este movimento como sendo uma «tendência à realização». Na minha leitura de Rogers, existe aqui uma referência a um outro conceito que não o de actualização de potencialidades. E certo que está imanente a noção de que a possibilidade precede a realidade, mas também é certo que Rogers não se cola definitivamente à noção de potencialidade, que é em si uma noção muito mais restritiva do que a que transparece do conceito de possibilidade utilizado por aquele autor.
Podemos, agora, sugerir que, em termos de princípios gerais que fundamentam o modelo da ACP, teremos a tendência formativa, a operar segundo o princípio da auto-organização, e a tendência à realização, que engloba em si a possibilidade de actualização de potencialidades. O que pretendo significar com esta ordenação é que a tendência à realização constitui um princípio geral e que a actualização de potencialidades constitui uma das operacionalizações desse princípio.
Estando clara esta distinção, vejamos agora sob que condições a actualização de potencialidades ocorre. A este respeito, Brian Thorne (1992) após referir que este conceito é um conceito complexo e que integra em si vários impulsos (como a redução de necessidades ou de tensões, a procura de desafios criativos, o desejo de aprender, entre outros), afirma que essa actualização só se pode manifestar no organismo humano quando considerado como uma unidade, e que partes deste organismo podem actuar facilitando ou inibindo a tendência geral do organismo como um todo.
Emerge, assim uma outra noção fundamental do pensamento rogeriano, que está intimamente ligada às noções que estamos tratando, que é o conceito de organismo.
Este conceito não é tratado em termos médicos ou fisiológicos, mas antes em termos que fazem ressaltar as características de unidade na multiplicidade (unitas multiplex). Esta concepção remete-nos para a lógica dos sistemas complexos que nos permitirá compreender e explicar o modo como os princípios em análise se manifestam através desta unidade múltipla. Segundo esta lógica, um organismo está quer num estado de ordem quer num estado de caos e, através da incidência de perturbações ou flutuações, é-lhe dada a possibilidade de bifurcação (ou ponto de ramificação) que é o mesmo que dizer que lhe é dada a possibilidade de se mover da ordem para o caos, do caos para a ordem, ou então permanecer no caos ou na ordem mas de maior ou menor grau. De qualquer modo, sempre que uma perturbação é introduzida num sistema complexo (o organismo), auto-organizador, a mudança ocorre sempre.
Segundo Prigogine e Stengers (1985), todos os sistemas contêm outros subsistemas, os quais estão continuamente a flutuar. Numa determinada altura, uma simples flutuação ou uma combinação de flutuações podem ser tão poderosas, como resultado de uma retroacção positiva, que pode alterar a organização preexistente. Neste momento particular, ao qual o autor designa por momento singular ou ponto de bifurcação, é impossível determinar antecipadamente (predizer) qual a direcção que a alteração vai tomar: a) se o sistema se desintegra no caos ou b) se evolui para um nível mais diferenciado de ordem ou de organização, ao qual chama estrutura dissipativa.
Temos então um situação onde pequenas «decisões» numa situação instável podem conduzir um sistema formado por um grande número de entidades interactivas funcionando para uma estrutura global.
Dependentemente do tamanho da região da flutuação inicial for acima ou abaixo de um determinado valor crítico, assim a flutuação pode regredir ou disseminar-se por todo o sistema. Por outro lado, quanto mais rápida for a comunicação dentro do sistema, maior a percentagem de flutuações não sucedidas e maior é a estabilidade do sistema. Este aspecto do tamanho-crítico significa que, em tais situações, o ambiente tende sempre a enfraquecer as flutuações. Estas serão destruídas ou amplificadas de acordo com a eficiência da comunicação entre as regiões das flutuações e o ambiente exterior. O tamanho crítico depende então da competição entre o poder integrativo do sistema e os mecanismos de amplificação das flutuações.
A questão dos limites da complexidade tem sido muitas vezes levantada. De facto, quanto mais complexo for o sistema mais numerosas são os tipos de flutuações que ameaçam a sua estabilidade. Sendo assim, a questão que se levanta é a de saber como é que sistemas tão complexos como o sistema humano podem sobreviver. Como é que conseguem lidar com o caos permanente? Uma resposta parcial advém justamente do efeito estabilizador da comunicação da difusão dos processos. Nos sistemas complexos, nos quais os indivíduos interagem de muitas maneiras diferentes, a difusão e a comunicação entre as várias partes do sistema é muito eficiente. Existe uma competição entre estabilização através da comunicação e a instabilidade através das flutuações. O resultado dessa competição determina o limiar da estabilidade.
Em síntese podemos dizer que as teorias da complexidade evocam um princípio, o princípio da totalidade, que está imanente na concepção rogeriana de organismo. Esta ideia está implícita na noção de que «cada propriedade do organismo é influencia pelo totalidade dos seus constituintes e da constituinte influencia todas as propriedades».
Esta concepção onde conceitos-chave como organização, interacção e integração estão incluídos é claramente aprofundada pelo conceito de sistema epigenético de Waddington. Na base deste conceito concreto estão ideias como transmissão de informação e sua transformação.
A noção de sistema epigenético que é uma noção advinda da biologia moderna, faz apelo à dependência mútua entre o organismo e as condições do seu meio ambiente. Colocando esta noção em termos da tendência à realização e da actualização de potencialidades, teremos de nos referir agora a um dado fundamental enunciado por Rogers: aquelas propriedades só se manifestam quando existem condições para tal. Isto faz depender a transformação em acto (realização ou actualização) das qualidades potenciais de factores que Rogers colocou nas condições exteriores ao sujeito: a qualidade das suas relações significativas. Podemos aqui concluir que aquilo a que Rogers chamou tendência à realização corresponde, nas teorias do caos e da complexidade, à qualidade auto-organizadora agora aplicada aos aspectos próprios do desenvolvimento humano.
Assim, segundo Carl Rogers, o desenvolvimento harmonioso da pessoa humana resulta de um jogo entre as suas forças impulsionadoras para a organização complexa e as condições dos seus mundos envolventes.
Nesta concepção e em relação à concepção freudiana do homem o centro do desenvolvimento é deslocado do intrapsíquico para o intersubjectivo e em relação à concepção behaviorista, o centro do desenvolvimento humano é deslocado do jogo entre o estimulo e a resposta para um jogo que passa pela intencionalidade orientada para um mundo envolvente.
Esta via rogeriana de concepção da natureza do homem foi caracterizada por Shlien 1963) como sendo de natureza fenomenológica e por Braaten 1961) como sendo existencial.
4. Temos, finalmente, que os princípios fundadores do movimento da ACP - tendência formativa e tendência à realização - estão infimamente ligados aos conceitos de organismo e de totalidade. Este último está consignado na noção de full fuctioning person e remete- nos para a questão da autonomia, como iremos ver.
Autonomia significa lei própria, contrapondo-se ao aposto, como uma imagem em espelho, que é a heteronomia ou comando. Estas duas vertentes da mesma realidade interagem incessantemente, representando a autonomia a criação, a afirmação da própria identidade, a regulação interna, a definição a partir do interior; a heteronomia representa a consumação, os sistemas de entradas/saídas, a afirmação da identidade do outro, a definição pelo exterior.
Uma das grandes conquistas do pensamento moderno, sobretudo depois do advento das teorias da complexidade, é a reconhecimento de um funcionamento do tipo autónomo pelos sistemas naturais. O principal passo da passagem do conceito de heteronomia ao de autonomia é a concepção da informação, não em termos de instruções mas em termos dos modos da sua construção pelo próprio sistema, não em termos de representação mas em termos da viabilidade do próprio sistema. Ou seja, esta mudança de paradigma obriga-nos a pensar a informação circulante num sistema autónomo como o produto interno que visa, permanentemente, à melhor adaptabilidade do sistema às suas circunstâncias internas e externas.
Aplicando estas ideias à relação do sujeito com o seu mundo, esta relação efectua se como num espelho, não nos dizendo nem o que o mundo é nem o que o mundo não é. Apenas nos diz que é possível ter um modo próprio de estar e de agir, e que deste modo, a nossa experiência é viável.
Esta plasticidade do mundo, nem subjectivo nem objectivo, nem uno nem separável, nem duplo e inseparável, revela que a realidade não é verdadeiramente construída a partir do nosso imaginário, mas também que não pode ser compreendida como um dado pré-determinado. Finalmente implica que a experiência não estando assente em qualquer fundamento constitui o catalisador do sentido advindo das interpretações da nossa história comum como seres vivos e como indivíduos sociais, numa gradual construção de normas próprias que guiam o percurso do nosso projecto de existência.
Implica, em síntese, escolhermos, para ponto de partida, o nosso «mundo interno» e não o mundo exterior.
Tudo isto me leva a considerar que o ideal de objectividade, como meio de eliminar procressivamente o erro, segundo critérios científicos, não passa de uma megalomania. Os princípios deste paradigma implicam aceitarmos a existência de um mundo onde ninguém pode reivindicar uma compreensão de natureza universal.
Quero com isto significar que o modelo da AGP não pode ser unidimensional (uma só verdade), nem eclético do amorfamente flexivel, mas pelo contrário deve permitir dar conta da complexidade do existir humano, no seu sentido mais profundo: a aceitação e integração do paradoxo.
E esta a leitura que faço de Rogers, através desta grelha paradigmática: o mundo de cada um, muito embora possa ser regido por princípios universais, é construído de uma forma singular, o que implica a impossibilidade de o generalizar a qualquer outro ser humano. Daí que a questão da autonomia, como consequência do impulso à realização e à actualização de potencialidades, nos remeta para a questão do sujeito como construtor único da sua realidade.
Referências
Barrett-Lennard, G. (1993). Understanding the person-centred approach to theory: a ’reply’ to questions and misconceptions. Em Mcllduff, E. e Cohlan, D. (Eds.), Cross-cultural Communicatlon and the Person-Centred Approach: an International Review, Vol. 2 (pp. 99-113), Linz: Sandkorn.
Bergson, (1963): Euvres, Paris: PUF. [ Links ]
Braaten, L. (1961). The main themes of «existencialism» from the viewpoint of a psychotherapist, Mental Higiene, 45: 10-17. [ Links ]
Lalande, A. (1991). Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, Paris: PUF. [ Links ]
Prigogine, I. e Stengers. I. (1985). Order out of chãos. Man’s new dialogue with nature, Londres: Flamingo.
Rogers, C. (1951). Client-Centred Therapy, Nova Iorque: Houghton Mifflon. [ Links ]
Rogers, C. (1980). A Way of Being, Boston: Houghton Mifflon. [ Links ]
Seeman J. (1988). Self-Actualization: A Reformulation. Person-CentredReview, 3: 304-315. [ Links ]
Shlien, J. (1963). The phenomenological perspective. Em Wepman, J. e Herne, R. (Eds.), Perspectives in Personality, Chicago: Aldine Press. [ Links ]
Thorne, B. (1992). Carl Rogers, Londres: Sage. [ Links ]
Notas
1Trad. portuguesa de Ma. Kupfer, Heloísa Lebrão e Yone Souza Patto, Um Jeito de Ser (1983), S. Paulo: Ed. E.P.U.
2Rogers, C. (1983): Um Jeito de Ser, S. Paulo: E.P.U. (p. 40).
3Qualquer ser vivo constitui um sistema aberto mas sistemas complexos não vivos também o constituem, nomeadamente estados especiais da matérias aos quais Prigogini designou por estruturas dissipativas. Mas uma pedra ou mesmo um cristal, após a sua formação, constituem sistemas fechados.
4Rogers, C. (1983): Um Jeito de Ser, S. Paulo: E.P.U.
5O conceito é possível é aqui empregue no sentido da não existência de obstáculos inultrapassáveis para a sua realização. Neste sentido, o possível é aquilo que não é impossível, sendo esta não impossibilidade a condição da sua realização.