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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.12 no.2 Lisboa jun. 1998

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v12i2.581 

Da psicologia à biologia evolutiva: Para uma abordagem integrada da personalidade

From Psychology to Evolutionary Biology: An Integrated Approach to the Concept of Personality

 

Augusta Gaspar*

*Unidade de Investigação em Eco-Etologia, Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa.

 


RESUMO

O conceito de personalidade é complexo e não inteiramente consensual. No entanto, ultrapassados os detalhes das várias definições operacionais, permanece constante o facto da personalidade caracterizar um modo individual de interagir com o mundo e de um dos seus aspectos mais marcantes e menos susceptíveis de mudança ser o modo particular como o indivíduo se relaciona com os outros, conferindo às suas acções um determinado grau de previsibilidade.

A personalidade, enquanto atribuição de outra espécie que não a humana, foi praticamente tabu até à década de 80, quando os etólogos ocupados com as espécies filogeneticamente mais próximas da humana começaram a referir-se ao carácter bem demarcado de cada um dos seus objectivos de estudo — chimpanzés (Van troglodytes spp) — (e. g., De Waal, 1982; Goodall, 1986) e Stevenson-Hinde (1983a; 1983b) e colaboradores (Stevenson-Hide et al., 1980) publicaram os resultados de um estudo prolongado de Macacos Rhesus (Macaca mulatta). Com a presente revisão procura-se sobretudo integrar perspectivas normalmente não cruzadas e apresentar uma visão da personalidade como atributo biológico, ou seja, caracterizado por uma modalidade (entre múltiplas alternativas) de adaptação ao ambiente, naturalmente passível de selecção, ainda que grandemente elaborada em interacção com o meio e de modo algum inevitavelmente predeterminada.

Palavras-chave: personalidade; biologia; psicologia.


ABSTRACT

The concept of personality is a complex and not entirely consensual. However, when we overcome the details of many operational definitions, we find the remaining constant — that personality characterises an individual's particular mode of interaction with the surrounding world, conferring to one's actions a given degree of predictability. Conceiving personality as an attribute of non-human species was almost a taboo until de 80's, when ethologists studying the species phylogenetically closer to humans began to refer to the clearly differentiated character of each one of their study subjects — the chimpanzees (Pan troglodytes spp.) — (e. g. De Waal, 1982; Goodall, 1986) and Stevenson-Hinde (1983a; 1983b) and collaborators (Stevenson-Hinde et al., 1980) published the results of a long-term study of rhesus macaques (Macaca Mulata). With the present review, an attempt is made to integrate perspectives that usually never intersect, and present a vision of personality as a biological attribute, i. e., characterising a mode (among multiple alternatives) of adaptation to the environment, naturally subjected to selection, despite being largely elaborated in interaction with the environment and certainly not predetermined.


 

Conceito de personalidade: breve introdução

O conceito de personalidade surgiu por existirem constantes no comportamento dos indivíduos, que perduram no tempo e são generalizáveis muitas vezes de contexto para contexto (Kendler, 1974), exprimindo uma tendência para actuar deste ou daquele modo e para com maior facilidade experimentar determinadas emoções (e. g., Izard, 1971). No entanto, a situação em que o indivíduo se encontra parece pesar fortemente nas mudanças de comportamento (para uma revisão ver Mischel, 1984 e Nisbett, 1991a). Voltaremos a abordar esta questão adiante.

A personalidade engloba, na perspectiva mais globalizante (e. g., Izard, 1971), as diversas aptidões do indivíduo, o seu conjunto de saberes e valores, as suas orientações éticas, políticas e religiosas, o seu temperamento e carácter. Ou seja, um sistema individual de processamento da informação, de conceptualização, de organização dos interesses e acções, de interacção com o mundo físico e com os parceiros sociais.

Existe um outro tipo de definição de personalidade — circunscrita à interacção social, ou ao carácter. Chapple e Coon (1942, citados por Byers, 1976) sustentam que a personalidade depende da seguinte combinação de variáveis: (1) quantidade de interacção de que uma pessoa necessita; (2) frequência das suas interacções habituais; (3) a sua taxa de resposta original; (4) o ritmo da sua taxa de interacção e (5) a sua capacidade de se sincronizar com e de se ajustar aos outros. A posição de um indivíduo em cada uma destas variáveis resulta, assim, de uma combinação entre condicionamento e herança genética.

Enquanto temperamento e carácter combinados, a personalidade é descrita em termos dos chamados traços de personalidade (ou descritores), cada um dos quais definindo um modo de ser individual e estável de adaptação ao ambiente (King, 1994). Assim, traços que permanecem ao longo do tempo, como irascível, distinguem-se de estados de curta duração, como zangado (ver Frijda, 1986). Nesta concepção mais restrita, Robin Dunbar (1988) operacionaliza personalidade como "estilos consistentes de comportamento que caracterizam cada indivíduo e que os realçam dos outros indivíduos do mesmo sexo e idade".

Admitindo existência de traços globais que regem o comportamento dos indivíduos consistentemente ao longo do tempo (e. g., Kagan e Moss, 1962, citado por Kendler, 1974; Allport, 1937, citado por Goldberg, 1990), ao longo deste texto, personalidade será utilizada de acordo com a sua definição mais restritiva, isto é, na sua interface social, como um esquema organizador que inclui tendências comportamentais marcadamente individuais eperceptíveis para os parceiros sociais, e que incluem, obviamente, a nível interno, determinadas predisposições emocionais ou tipos de resposta emocional e modos característicos de avaliar as situações.

De facto, os outros podem identificar um certo tipo de personalidade (neste sentido restrito) através das características constantes do comportamento de um indivíduo, que num mesmo contexto apresenta respostas diferentes das dos seus pares, e ao mesmo tempo o conhecimento de que um dado indivíduo tem um determinado tipo de personalidade condicionada a expectativas que os outros têm do seu comportamento. Assim, por exemplo, de um indivíduo definido como paciente, espera-se que no mesmo contexto que outras pessoas, quando pelo menos muitas destas já se impacientaram, ele ainda não. A categorização da personalidade tem subjacente a predição do comportamento do outro.

Os opositores da perspectiva da existência dos traços globais (e. g., Mischel, 1984) sustentam que o comportamento individual resulta predominantemente de uma avaliação que cada indivíduo faz do contexto e da antecipação dos resultados do seu comportamento e não de uma estrutura interna. A polémica gerada nos anos 60, e ainda acesa, torna-se conhecida como o debate sujeito-situação — herdeiro de uma onda de estudos centrados no impacte de aspectos cognitivos e da aprendizagem social nos comportamentos das pessoas perante situações concretas. Fizeram-se estudos correlacionais, confrontando medidas comportamentais e medidas de personalidade (obtidas através dos clássicos questionários e inventários de personalidade). Em muitos casos, o conhecimento e a avaliação que o sujeito tinha da situação era um melhor preditor do seu comportamento do que as medidas de traços de personalidade.

Mas, em paralelo, nunca se deixou de acumular evidência de que as respostas comportamentais observadas em estudos de avaliação cognitiva da situação apresentavam uma considerável e significativa consistência ao longo do tempo (avaliando ao cabo de muitos anos os mesmo indivíduos). E esta elevada consistência coexiste com um funcionamento altamente diferenciado de situação para situação, isto é, não há uma tendência geral de resposta devida a determinados traços, que abranja várias situações. A acontecer, tal tipo de rigidez caracterizaria indivíduos com respostas muitas vezes pouco ajustadas ao contexto e, portanto, desvantajosas (Mischel, 1984).

O efeito do contexto está demonstrado, por outro lado, ao nível dos sinais comportamentais que se exibem ou escondem conforme a conveniência do emissor. Existem numerosos trabalhos que mostram como as pessoas procuram controlar o seu próprio comportamento. Um indivíduo tenta, por exemplo, disfarçar expressões faciais espontâneas quando aquilo que estas exprimem difere daquilo que procura mostrar (e. g., Ekman e Friesen, 1975) e, involuntariamente, altera o seu timbre de voz quando mente (Ekman et al., 1976). E, é possível identificar modalidades comportamentais muito ou pouco automonitorizadas em diferentes indivíduos e correlacioná-las com a sua eficácia na inibição social de expressões de emoções socialmente reprováveis no contexto em que são observadas (Friedman e Miller-Herringer, 1991). Kline (1986) também enfatiza o efeito que a desejabilidade social de alguns comportamentos versus a indesejabilidade de outros têm na avaliação da personalidade, uma vez que ao autoavaliarem-se, os indivíduos procuram dar, em questionários de personalidade, as respostas mais ajustadas a esses ideais.

Assim, a consistência situacional e a inconsistência comportamental transituacional não teriam necessariamente que implicar a inexistência de um estrutura global organizadora do comportamento, influenciando o surgimento de comportamentos análogos de situação para situação. Teríamos antes que admitir, que em alguns indivíduos a personalidade é mais facilmente percebida porque o comportamento é mais espontâneo do que noutros, mais susceptíveis a pressões sociais e expectativas modelares de comportamento. Mas esta não é a única explicação conciliatória para as duas vertentes — a da consistência dos traços comportamentais e a das respostas consistentes exclusivamente às situações e não transituacionais: — o chamado paradoxo da consistência — resultante do confronto entre o facto de intuitivamente se acreditar que as pessoas se caracterizam por disposições gerais, que produzem uma consistência comportamental de situação para situação, e os resultados dos estudos que não confirmam esta ideia—poderia eventualmente ter a seguinte resolução: parece existir uma relação entre a autopercepção que as pessoas têm da persistência das suas respostas comportamentais ao longo do tempo e a estabilidade temporal de algumas características comportamentais prototípicas de um mesmo contexto (Mischel, 1984). Larsen (1989) também propõe uma teoria conciliatória, baseada não em comportamentos constantes mas em padrões consistentes de mudança e no facto de a personalidade conter aspectos comportamentais mais fixos, e outros mais variáveis de contexto para contexto, admitindo a validade e utilidade das teorias que interpretam o comportamento humano em termos de tendências gerais. Este psicólogo reconhece simultaneamente que a personalidade é também uma adaptação ao meio e sofre mudanças dinâmicas. A proposta de Larsen hibridiza a consistência, enfatizada por uma abordagem, e a mudança, enfatizada pela outra. Assinala, por exemplo, como um fenómeno característico, a regularidade com que ocorrem mudanças de humor ao longo do eixo temporal, e refere-se ao conjunto formado pelo intervalo entre mudanças, à extensão dessas mudanças e à condição de partida do indivíduo, como um padrão temporal de mudança.

Uma crítica que se pode levantar à perspectiva da consistência trans-situacional dos comportamentos (e. g., Mischel, 1984) é que os estudos que a apoiam, realizados com humanos, apresentam correlações muito baixas entre as variáveis de personalidade e o comportamento das pessoas, isto é, apresentam um fraco valor preditivo do comportamento e, obviamente, uma fraca validade. É possível que tal se deva, pelos menos em parte, ao facto destes estudos terem obtido os seus dados de um número de contextos bastante restrito e muito pouco natural (tarefas propostas em laboratório), o que é compreensível, atendendo à impossibilidade ética e logística de estudar a personalidade humana em virtualmente todos os contextos.

Em síntese, extrai-se desta controvérsia que, pelo menos em parte, é aparentemente possível que algumas vezes sejam os traços de personalidade (características internas, claramente identificáveis e dos quais decorrem comportamentos previsíveis) que predominam e que noutros casos sejam as situações concretas e o modo como são avaliadas (ou seja, as variáveis ambientais) que apresentam uma influência preponderante na resposta comportamental dos humanos. Acresce o facto de existirem características da personalidade que são marcadamente mais consistentes que outras, idades em que a constância é maior e idades em que é menor e de que parecem existir padrões individuais de alternância entre estados internos, o peso de variáveis internas e o peso de variáveis ambientais, como propôs Larsen (1989). Para além disso, a aparente incompatibilidade dos resultados destas duas linhas de investigação em psicologia da personalidade, poderá ser parcialmente explicada pelos efeitos de autonomização acima referidos, baseados numa teoria implícita da personalidade, que de algum modo assimilaram, como sugerem Bruner e Tagiuri (1958, citados por Stevenson-Hinde, 1983a).

Para que serve conhecer a personalidade: ou a utilidade da bisbilhotice?

O interesse de identificar traços de personalidade nos outros reside na possibilidade de um indivíduo fazer algumas previsões a respeito do comportamento desses outros e utilizar esse conhecimento em proveito das suas próprias interacções sociais, seja com esses outros, seja ainda em termos da elaboração de estereótipos, guiões... — enfim, produtos de uma actividade cognitiva de generalização, síntese e simplificação. Heider (1958) faz notar que as pessoas têm necessidade de encontrar os aspectos invariáveis do seu ambiente porque isso dá significado à experiência, e que, neste sentido, não se limitam a observar o comportamento dos outros, mas a procurar justamente o que nele há de constante, sobretudo ao nível da atribuição de causas, de motivações — enfim, de disposições internas. Mas, é sabido também que a atribuição de traços de personalidade a um indivíduo pode ser simplesmente importada a partir de estereótipos culturais ou da informação fornecida por um terceiro indivíduo.

Num ancestral da nossa espécie já dotado de linguagem, a troca de informações acerca dos outros membros do grupo social teria sido provavelmente muito importante na regulação social, como o é actualmente para nós. Isto seria tão mais importante quanto maior fosse a dimensão do grupo. Dunbar (1993) faz notar que apesar do tamanho do grupo de primatas estar condicionado por pressões ambientais, existem, no âmbito da espécie, restrições cognitivas que limitam o número máximo de indivíduos que um indivíduo é capaz de reconhecer individualmente e com quem é capaz de regular as suas interacções sociais no interior do grupo alargado (ou comunidade). Na espécie humana, os grupos alargados (não os subgrupos de relações mais próximas) são muito maiores do que os de quaisquer outros primatas. Encontrando fortes correlações entre o tamanho dos cérebros e o tamanho médio dos grupos, para várias espécies de 36 géneros de primatas, e entre a quantidade de tempo gasto em grooming em 22 espécies de primatas (das quais excluiu as que têm sociedades de fissão-fusão, como os chimpanzés) e o tamanho médio dos grupos, Dunbar (1992,1993) propõe que o tamanho relativo do neocortex aumentou nos humanos, com a linguagem a substituir funcionalmente o grooming, isto é, como principal mecanismo de manutenção da coesão social.

Medir e observar a personalidade: algumas notas acerca dos BigFive

Em psicologia tem-se investido sobretudo em dois tipos de estudos de personalidade: (1) o de seu desenvolvimento e (2) o das técnicas de mensuração. Em (1) inclui-se a abordagem psicanalítica, as várias abordagens no âmbito da psicologia da aprendizagem e as abordagens humanistas da personalidade; em (2) os métodos vão da entrevista (talvez o mais usado pelos psicólogos) às técnicas projectivas, passando pelas escalas de avaliação e questionários de personalidade aos testes situacionais.

Sinalizadores sociais da personalidade

Já Darwin (1872/1965) considerava que alguns sinais faciais, sobretudo dos olhos, podiam exprimir e, por conseguinte, permitiam identificar, inveja, timidez, ciúme, vaidade, ambição, orgulho, humildade, etc., que designava por emoções complexas, mas a que poderíamos perfeitamente chamar de traços de personalidade ou predisposições emocionais e comportamentais [virtualmente associadas a estados "pano-de-fundo", como temperamentos e estados de humor — para uma discussão da distinção entre emições e este outro tipo de estados afectivos ver Ekman (1984), Ekman e Friesen (1986) e Frijda (1986).

A partir do trabalho experimental, Borkenau e Liebler (1995) concluem que as características dos indivíduos mais frequentemente associadas pelos observadores à personalidade são o rosto, a voz, o vestuário, e adornos, modo de andar e aparência geral. Com um aparato onde variavam as características morfológicas dos rostos de modelos, Brunswik e Reiter (1938, citados por Izard, 1971) observaram a ocorrência de associações claras entre a anatomia dos elementos faciais e a atribuição por parte dos observadores de certo tipo de características — do estado emocional à inteligência e ao carácter.

Eistel (1953, citado por Izard, 1971) contribui para o esclarecimento dos papéis relativos da anatomia e da expressividade facial nestas associações com a personalidade. Utilizando um desenho experimental, que envolvia nove desenhos esquemáticos em que se faziam variar os vários elementos do rosto, quer em termos de características estruturais, quer em termos de posturas mímicas, e em que estes eram apresentados a 100 juizes, verificou que a impressão causada nos observadores relativamente às características de personalidade dependia de ambas as coisas, mas que a mímica produzia impressões mais fortes. Como Eistel trabalhou mímicas imóveis seria interessante verificar se a impressão provocada pela mímica em movimento seria a mesma, quer no plano qualitativo quer no quantitativo, uma vez que alguns dos sinais veiculados pela face (à velocidade normal) são tão rápidos—^ podem durar fracções de segundo (Ekman e Friesen, 1975) — que as pessoas não são capazes de de os identificar individualmente. Os resultados do estudo de Etcoff e Magee (1992) sugerem que as pessoas estão preparadas para reconhecer muito rapidamente gestalts de movimentos faciais, representativas de algumas emoções básicas, mais do que cada sinal por si. Já se verificou que a capacidade de interpretar correctamente expressões faciais melhora quando se aumenta (em situações laboratoriais) o tempo de exposição de que os observadores dispõem, embora um tempo de exposição de um segundo já permita um número de acertos substancialmente elevado (e. g., Coren e Russel, 1992; Gaspar, 1989).

Pfister (1958, citado por Izard, 1971), a partir de fotografias em que os modelos tinham sido instruídos para emitirem uma expressão neutra, obteve de 40 juizes naif e de vários psicólogos que haviam submetido os modelos das fotos e testes de personalidade e inteligência, bem como a entrevistas, concordâncias significativas, quer em atribuições de personalidade livres, quer num questionário com 48 itens seleccionáveis designado traços de personalidade, que tanto os psicólogos como os juizes haviam preenchido em condições experimentais idênticas. Presumivelmente os psicólogos teriam algum conhecimento da personalidade dos indivíduos representados nas fotografias, depois da avaliação que tinham feito. Este estudo foi inovador, na medida em que veio pela primeira vez procurar abordar a relação entre a interpretação dos observadores e a realidade dos emissores. Ou seja, o valor de características da face de um indivíduo como sinalizadores efectivos da personalidade.

Ring (1967, citado por Izard, 1971), trabalhando com uma amostra de 1869 pessoas (observadas) e 214 juizes, descobriu que 50% dos sujeitos eram avaliados em função de terem os cantos dos lábios orientados para cima ou para baixo e que as pessoas com os cantos da boca orientados para cima eram avaliadas como mais alegres, calorosas, serenas e menos inseguras do que as pessoas do que as pessoas que tinham os cantos da boca orientados para baixo. Aquelas que tinham os cantos da boca orientados para cima, em entrevista, apresentavam com maior frequência que as outras as respostas confessar-se alegre, ter um grande número de pessoas com as quais se relacionavam socialmente, considerar-se responsáveis pela sua própria felicidade e viverem a sua vida outra vez se pudessem, confirmando a atribuição dos seus observadores.

Enfim, numa primeira instância, a atribuição de personalidade a um desconhecido relativamente ao qual não se possui qualquer informação, parece ser um resultado imediato da sua observação — até aqui — do seu comportamento facial e dos seus traços fisionómicos e físicos, ainda que por um período breve. Provavelmente, o comportamento mais geral, também é processado nesta atribuição de personalidade. Os estudos de Winter e Uleman (1984, citados por Nisbett, 1991a) e Uleman e Cunniff (1985, citados por Nisbett, 1991a) são referidos justamente como ilustradores desta ideia. Primeiro, Winter e Uleman apresentaram, através de slides, aos sujeitos das suas experiência, frases que descrevem a acção de um determinado indivíduo, por exemplo: "O bibliotecário carrega as compras da mercearia de uma velhota até ao outro lado da rua. " Numa segunda fase da experiência, as pessoas tinham de tentar reproduzir numa folha de papel o maior número de frases possível entre aquelas que tinham visto e, para isso, cada metade da amostra dispunha de um de dois tipos de pistas auxiliares: traços de personalidade — por exemplo, "prestativo"; ou palavras semanticamente associadas á frase — como por exemplo, 'livro". Os dados mostraram que as pessoas que dispunham da lista de traços de personalidade se lembravam de um número substancialmente maior de frases do que as que dispunham das outras chaves semânticas. Estes resultados poderiam conduzir-nos à hipótese de que uma categoria de personalidade poderá estar de tal modo associada a certos tipos de actuação que é menos importante reter o detalhe da acção do que a impressão global de um traço de personalidade, pois com algum esforço a partir deste já é possível evocar o resto, sugerindo, assim, que a informação é hierarquizada e que o comportamento está contido no traço. Nisbett (1991a) também considera que estes dados sugerem que as pessoas perante a informação comportamental produzem automaticamente interpretações em termos de disposições constantes do actor (observador), ou seja, em termos de traços de personalidade.

Há que notar também que vários estudos sumarizados por Nisbett (1991a) indicam que as pessoas tomam em especial consideração os comportamentos do actor, isto é, a acção per se> em detrimento da informação contextual (assumindo-se aqui que dela dispõem); por exemplo, e entre outros:

— Jones e Harris (1967, citados por Nisbett, 1991a) mostraram algo que um grupo de juizes alertado para o facto de estar a ouvir discursos ou ensaios onde o autor fora obrigado a defender uma determinada posição relativamente a um tema político (que poderia eventualmente coincidir ou não com a sua própria) e incumbido da tarefa de decidir se a opinião expressa pelo autor do texto era ou não coincidente com a sua própria opinião, se orientou sistematicamente para a opção em que a opinião expressa e a real coincidiram;

— Humphrey (1985, citado por Nisbett, 1991a) tentou reproduzir num estudo o funcionamento de um escritório, dizendo aos voluntários da experiência que pretendia estudar "como é que as pessoas trabalham juntas num ambiente de escritório", distribuiu papeis (gestores e empregados) e treinou as pessoas para as respectivas funções. Os gestores, com funções mais complexas, estudaram inclusivamente manuais e desempenharam tarefas que exigiam mais capacidades, enquanto os empregados de escritório desempenharam tarefas mais repetitivas, menos exigentes do ponto de vista intelectual e tiveram menos autonomia. No final do período que durou este escritório experimental, "gestores" e "empregados" tiveram de se pontuar a si mesmos e aos outros em escalas de liderança, inteligência, motivação para um trabalho duro, segurança e apoio. Os "gestores" deram classificações mais altas, em todas estas características, aos outros gestores do que aos "empregados" e estes, por seu turno, classificaram melhor em todas as características^ excepto motivação para o trabalho duro, os gestores. Isto foi interpretado como evidência de que as pessoas têm dificuldade em ir para além do valor superficial do comportamento, mesmo quando conhecem os constrangimentos a que este está sujeito; na vida real a informação disponível é menos clara do que na experiência de Humphrey, o que aparentemente deve tornar o comportamento ainda mais proeminente na atribuição de determinantes internos do indivíduo.

Procurando verificar até que ponto é que o conhecimento que o observador tem do indivíduo actuante influencia a dimensão do acerto nestas previsões, McGuire (1989, citado por Nisbett, 1991a) empreende um estudo em que pede aos observadores que façam previsões relativas aos actores, submetidos a duas condições distintas: numa em que lhes era pedido para se voluntariarem para algumas experiência em psicologia, na outra, sucedia-lhe que enquanto subia umas escadas e começava a ultrapassar uma mulher de muletas, um saco de livros começava a escorregar do ombro da mulher. Para parte dos observadores, os actores eram desconhecidos mas eram-lhes fornecidos breves perfis com informação acerca do ano que frequentavam, o tipo de organizações a que pertenciam, como é que tinha sido o seu dia antes da situação observada, etc. Para os restantes observadores, os actores eram pessoas que conheciam bem. Para ambos os grupos, o número de previsões correctas foi pouco superior ao que se poderia esperar ao acaso, não havendo diferenças entre os observadores que conheciam bem os actores e aqueles que apenas tinham recebido as descrições dos perfis na percentagem de acertos. Os observadores tinham também estimado a sua própria probabilidade de acerto e verificou-se que não só os que conheciam o actor se consideravam mais capazes de lhe prever o comportamento, como ambos os grupos de observadores sobrestimam a sua capacidade de acerto em relação à que realmente apresentaram. Nisbett (1991a), considera que o conhecimento que o observador tem do actor aumenta a confiança do primeiro na sua própria mas não a precisão da mesma.

Considerados estes exemplos, parece estar-se distante de um profundo contra-senso — então as pessoas, mesmo dispondo de inúmeras informações a respeito da situação em que se encontra o actor, incorrem sistematicamente em tantos erros de atribuição e previsão, por uma fidelidade "cega" ao pressuposto valor organizador e preditivo dos traços de personalidade!

Nisbett (1991a) considera que há de facto um equívoco deste tipo partilhado por observadores em geral e sugere que as crenças que as pessoas têm relativamente aos traços de personalidade se baseiam em parte numa generalização exagerada a partir de algumas bem sucedidas previsões, tornadas possíveis por se circunscreverem aos limites estreitos de uma mesma situação. No fundo, a associação entre o comportamento do indivíduo e as características da sua personalidade seria mais fraca do que a existente entre o comportamento e o contexto, mas as pessoas estariam convencidas do contrário.

Apesar do seu cepticismo relativamente ao valor preditivo de características da personalidade em relação ao comportamento, Nisbett (1991a) faz a seguinte concessão — admite que se possa, com base nos traços de personalidade, prever comportamentos em diferentes situações, desde que se reúna o seguinte conjunto de condições: (1) a previsão baseia-se numa amostragem diversificada de situações observadas no passado e diz respeito não a uma única acção, mas a uma média esperada ao longo do tempo; (2) a predição diz respeito à relativa probalidade de respostas extremas e os actores já se mostraram anteriormente capazes de respostas extremas; (3) as predições tomam em consideração os valores de base na população (que podem ser extremos) e as situações a que estão associados. Teoricamente, o conhecimento de traços de personalidade, permitiria ainda prever respostas comportamentais em situações novas, mas isso implicaria conhecer bem a pessoa, fazer previsões a longo termo (?) ou estar a fazer previsões em relação a uma pessoa que apresenta o traço (a variável preditiva) em grau extremo. Ora, esta combinação de pressupostos não só não é condição mais comum em que as pessoas efectuam atribuições de personalidade e previsões de comportamento (correctas ou não), como equivale a dizer que não há verdadeiramente sinalizadores comportamentais, verbais e não-verbais, da personalidade, que possam ser usados no quotidiano com qualquer parceiro social que não se conheça com grande profundidade. E isto não parece nada plausível.

Como o enorme índice de fracasso das apressadas atribuições de personalidade observadas em alguns dos trabalhos acima mencionados é contra-adaptativo, deve haver algum tipo de fracasso, ou na metodologia, ou na interpretação dos dados destes trabalhos e temos que abordar a questão, começando por averiguar com que facilidade é que as pessoas reformulam as suas atribuições de traços de personalidade:, quando após a primeira atribuição a um desconhecido, são confrontadas com o mesmo noutras situações e variações contextuais (constrangimentos) de uma mesma situação, isto é, quando têm novas oportunidades de observar o seu comportamento?

Um parte dos erros atributivos e preditivos dos observadores podem também ser explicados pela análise atenta de alguns dados importantes da psicologia cognitiva.

— Em primeiro lugar, duas importantes distinções: (1) a informação disponível no ambiente não é necessariamente a informação processada (e. g., Watzlawiek et al., 1967); (2) a consciência e o processamento da informação podem estar claramente dissociados (Glickson, 1993; Navon, 1993; Velman, 1993).

— Em segundo lugar, o processamento da informação também não é um fenómeno democrático — os estímulos têm diferentes valências, que podem dever-se à sua ordem sequencial, à sua duração e intensidade, à duração dos intervalos entre estímulos e à influência das sobreposições de outros estímulos, às representações pré-existentes do estímulo, e por diante (e. g., Humphrey e Bruce, 1991). E são vários os trabalhos em percepção (e. g., Bruce e Green, 1985), em que se sustenta que existe uma hierarquização da informação que é processada, dando-se prioridade ao tratamento de uma parte e tratando ou não a restante, conforme há ou não tempo suficiente antes do tratamento do estímulo seguinte. É neste sentido que se fala de percepção subliminar. Muitas das respostas comportamentais dão-se a estímulos que o indivíduo não chega a identificar conscientemente e este processamento rápido de estímulos relativamente simples poderá mesmo constitui? a maio? parte da actividade cognitiva (Glickson, 1993).

— Ainda concebendo um sistema em que a informação é tratada hierarquicamente, note-se que efeitos descobertos no estudo da percepção visual, como os de integração e mascaramento (e. g., Humphrey e Bruce, 1991), podem levar a que estímulos irrelevantes tenham prioridade de processamento sobre outros qualitativamente mais importantes (Neil, 1993).

A avaliação subjectiva ou a interpretação do comportamento de outra pessoa, implica que a pessoa envolvida nesta tarefa não está a fazer uso consistente de uma lista de critérios precisos (objectivos) para produzir uma atribuição final. A sua atribuição, que tende a ser rápida, espontânea, como alguns dos estudos referidos acima mostraram:, baseia-se antes numa impressão geral (ainda mais na vida real que nos trabalhos de laboratório). Esta impressão constitui o resultado consciente de um conjunto de processos cognitivos, muitos dos quais provavelmente pré-conscientes — a menos que um esforço, uma atenção focalizada, os transportem para o plano das operações conscientes (e lentas!).

A selecção de estímulos e aquilo que se torna objecto da atenção podem desempenhar um papel determinante no processo atributivo. A selecção de estímulos pode ocorrer a nível pré-consciente e a atenção focal pode ser concebida como conversora de um estímulo pré-consciente num estímulo que passa a estar sujeito a um tratamento consciente (Velman, 1993); neste modelo tudo se passa como se a atenção numa fase precoce actuasse a nível não-consciente ("pré-atento") e numa fase avançada a nível consciente. Ora, as diferentes valências dos estímulos podem ter um papel "provocatório" sobre a atenção.

Por exemplo, de acordo com o princípio da "figura-fundo" e a sua interpretação em termos do comportamento social por Fritz Heider (1958), o comportamento teria "propriedades de tal modo salientes que tenderia a submergir o fundo em vez de se manter confinado à sua posição como estímulo local, cuja interpretação requer os dados adicionais do campo circundante — a situação na percepção social". Por outras palavras, o actor é a figura, e a situação o fundo; o observador não dispende nem muito tempo nem esforço a tentar perceber os objectivos do actor, ou os obstáculos com que se confronta, etc.; as atribuições dirigem-se ao objecto da atenção e alguns trabalhos mostram como a incidência da iluminação, o ângulo de observação ou a perspectiva adoptada (actor/observador) permitem manipular a tendência para atribuir o comportamento a traços de personalidade ou à situação (para uma discussão ver Nisbett, 1991a).

Além das características dos próprios estímulos, que se impõem mais ou menos á atenção, existe aparentemente uma não-imparcialidade do sistema perceptivo, com origem filogenética e adaptada a um meio em que a resposta influenciada por esse tipo especial de filtragem (ou essa representação prévia) aumenta afitness do indivíduo (Eibl-Eibesfeldt, 1989).

O interesse das leis enunciadas pela psicologia da Gestalt, que se verificaram aparentemente universais e sujeitas a influências ambientais muito pequenas (apesar de baseadas em experiências conduzidas com humanos nunca completamente desprovidos de experiência) é que elas representam justamente um "conhecimento prévio", inscrito no genoma, constituindo regras básicas de interpretação da informação visual, que dão um significado tridimensional aos sinais luminosos.

Mais interessante ainda é que algumas dessas leis descobertas para a percepção visual, como a pregnância ou a percepção categórica, são transmodais, isto é, aplicam-se também a outras modalidades sensoriais.

Quando Nisbett (1991a) refuta que traços de personalidade como a extroversão, a honestidade, etc., sejam preditores de comportamentos, baseia a sua argumentação em coeficientes de correlação baixos entre comportamentos observados para um indivíduo e atribuições de personalidade. Uma das críticas de Nisbett (1991a) aos esforços dos psicólogos da personalidade na sua utilização de medidas subejctivas, é que estes se apoiariam "nas mesmas teorias intuitivas da personalidade que o cidadão comum. E as teorias estariam erradas orientando, em larga medida, erroneamente as pessoas".

Nisbett (1991b) parece estar a incorrer em dois tipos de confusões: primeiro, ele não distingue "intuição" de "não estar plenamente consciente dos processos cognitivos envolvidos na análise do comportamento" — se um indivíduo estivesse consciente de todos os passos do processamento de informação levado a cabo no seu cérebro, seria muito mais lento a processar essa mesma informação e ficaria também impedido de fazer muitas outras coisas em simultâneo — e não é isso que aparentemente se passa (ver Velman, 1991 e comentários dos seus pares, já referido acima). Em segundo lugar, Nisbett (1991b) confunde "intuição" com medidas subjectivas, esquecendo que as últimas são susceptíveis de validação através de medidas externas, como a idade, o sexo, o comportamento.

E na vertente da correlação entre medidas subjectivas da personalidade e o comportamento, os baixos coeficientes observados foram interpretados de uma forma extremamente interessante por Kendrick e Funder (1988), que se referem à metodologia de elaboração das categorias comportamentais. Na verdade, estes dois autores verificaram que as correlações entre agregados de vários comportamentos relacionados (por exemplo, comportamentos afiliativos) e os traços eram muito mais elevadas do que as correlações entre cada comportamento individualmente e o traço.

Os Big Five e a estrutura da personalidade

Na origem remota dos famosos Big Five, está a proposta de Jung (1921, citado por Hassig et al, 1993) segundo a qual existiriam dois tipos básicos de personalidade — a extroversão e a introversão — constituindo os pólos de um eixo ao longo do qual se enquadram os diferentes tipos de pessoas. A extroversão definiu-a como "um interesse pelos objectos externos, uma capacidade de reagir e aceitar os acontecimento externos, um desejo de influenciar a ser influenciado pelo que se passa à sua volta, uma necessidade de participar e de se inserir". A introversão, exactamente por oposição, é descrita em termos do distanciamento da pessoa em relação ao que se passa em tomo e no exterior de si. Mais tarde, Eysenck (1972) testa cerca de 700 indivíduos apresentando algum tipo deperturbação psicológica e descobre uma associação entre a manifestação de neuroses histéricas e a pontuação sistemática no tipo de personalidade extrovertida, bem como entre a sintomatologia de tipo mais ansioso e a avaliação no tipo introvertido. Eysenck sustenta também que o eixo introversão-extroversão não é a única dimensão da personalidade mas que existem também as dimensões de neuroticismo e psicoticismo, e ainda que extroversão e intorversão têm um substracto biológico, correlacionado com níveis de excitabilidade mental.

Complementarmente, uma outra escola no estudo da personalidade, surgida nos anos 30 — a psicologia dos traços de personalidade — liderada por Gordon Allport, aborda a personalidade sobretudo através da informação veiculada pela linguagem, mais do que propriamente através do comportamento dos indivíduos avaliados (Allport, 1937, citado por Goldberg, 1990). Nesta escola, parte-se do pressuposto que as pessoas são hábeis observadores e avaliadores da personalidade dos outros e que os termos usados em cada língua exprimem justamente a natureza e variedade de toda uma gama de traços de personalidade. Em associação com Henry Odbert, Allport (Allport e Odbert, 1936, citados por Goldberg, 1990) empreende um trabalho de inventariação de todos os termos que na língua inglesa se relacionam com a personalidade e descobre 18.000, que divide então em 4 listas, uma das quais incluindo cerca de 4500 termos que foram considerados traços estáveis, ou seja, aqueles que seriam verdadeiramente importantes no estudo da personalidade. A partir destas listas, Cattel (1943,1945, citado por Goldberg, 1990) e atendendo também a outros dados da psicopatologia, produziu 171 escalas, cuja análise de intercorrelações o levou a agrupá-las em 35 clusters; análises posteriores de escalas elaboradas a partir destes levaram-no à conclusão de que existiam 12 factores principais de personalidade. Mas, as réplicas subsequentes feitas por numerosos autores (para uma revisão ver John, 1990) apenas comprovaram 5 dos mesmos, conhecidos pelos Big Five. De acordo com esta abordagem "lexical", todas as diferenças interindividuais evidentes e socialmente relevantes da personalidade humana (ou traços de personalidade) são susceptíveis de síntese numa palavra — um descritor da personalidade — (John, Angleitner e Ostendorf, 1988). Este elevado número de termos para referir a personalidade sugere, eventualmente, que as pessoas apresentam uma enorme capacidade para discriminar subtis nuances da personalidade humana (King, 1994).

Resumidamente, os Big Five caracterizam-se pela apresentação dos seus principais traços (os que apresentam pesos mais elevados na análise factorial) em cada uma de 5 dimensões: o factor I é normalmente conhecido por "extroversão / entusiasmo" e, por exemplo, alguns dos traços que melhor o definem são, no polo positivo, espirituoso, sociável, falador e espontâneo (Goldberg, 1990) e em geral os indivíduos que apresentam pontuação elevada neste factor são pessoas activas, optimistas e amigáveis, que procuram activamente o contacto social (Costa e Widiger, 1993). A colocação no polo oposto do factor I devem-no sobretudo às suas pontuações nos traços letárgico, silencioso, submisso e modesto (Goldberg, 1990). O factor II "agradabilidade", exprime o grau de amabilidade e a medida em que a pessoa é socialmente agradável. O factor III que também se designaria mais claramente em português por "confiabilidade" descreve os indivíduos com elevadas pontuações neste factor, como pessoas organizadas, confiáveis, trabalhadoras, escrupulosas, pontuais, ambiciosas e persistentes (Costa e Widiger, 1993). O factor IV conhecido por "estabilidade emocional (ou neuroticismo) " está associado à facilidade com que o indivíduo experimenta perturbações emocionais, ansiedade e afectos negativos crónicos (Goldberg, 1990). O factor V é habitualmente caracterizado como "abertura intelectual, abertura à experiência ou intelecto". Apesar de a designação intelecto ser comum, o factor V apresenta-se com um significado muito mais global que inteligência, reflectindo antes uma facilidade para procurar, incorporar e explorar fontes de experiência e informação novas; o indivíduo que pontua alto neste factor aprecia as experiências novas por si mesmas e revela-se curioso e disponível para abordagens e valores menos convencionais (Costa e Widiger, 1993; Goldberg, 1990).

A personalidade como conceito biológico

A fundamentação da existência de bases biológicas da personalidade assenta normalmente no facto de existirem interacções dinâmicas entre comportamentos (virtualmente associados a determinadas características da personalidade) e estruturas neurais e substâncias químicas, designadamente na última fase do processo, neurotransmissores. Muitas destas interacções são razoavelmente conhecidas, ainda que esta área do conhecimento esteja a avançar a uma velocidade crescente e se descubram constantemente, por exemplo, muitos tipos de receptores diferentes para determinados neutransmissores (e. g., Ginestet e Kapsambelis, 1995; Fuller, 1995). A informação acerca de uma possível vertente biológica relacionada com a existência de programas genéticos com impacte em aspectos das experiências emocional, cognitiva e comportamental da personalidade, baseia-se sobretudo em estudos psicológicos e neurológicos de gémeos (e. g., Eaves, Eysenk e Martin, 1989; Neale e Cardon, 1992; Philips e Matheny, 1997, para uma revisão ver Saudino, 1996), de populações e famílias. Por outro lado, os aspectos comportamentais de ocorrência precoce e transcultural (despistados os fenómenos de contaminação cultural) também permitem normalmente levantar hipóteses acerca dos fundamentos genéticos de determinados comportamentos ou conjuntos de manifestações comportamentais e emocionais.

Aideia intuitiva de que a personalidade e o comportamento resultam de uma interacção complexa entre factores sociais e predisposições genéticas não é nova (por exemplo, 1967 citado por Jiysenck, 1990). Numa revisão de Vieira (1983) constata-se como nas fases mais precoces da vida humana existem comportamentos biologicamente programados e cujo peso se vai desvanecendo ao longo da ontogénese, até que algumas perturbações mentais vêm devolver a esses comportamentos, dependentes de estruturas mais simples e frágeis do que as redes sinápticas estabelecidas ao longo da vida, um maior protagonismo no painel de comportamentos. Osterrieth (1968) evoca estudos onde se mediu a extroversão / introversão e se verificou que os gémeos univitelinos apresentavam pontuações substancialmente mais próximas do que os gémeos bivitelinos e que os primeiros também se assemelhavam mais do que os últimos em termos de tendências neuróticas, na emotividade em geral, na orientação de interesses e associações de ideias, o que também é apoiado pelos dados de Bouchard (1994). Uma das fontes principais dos dados que sustentam a existência de uma base hereditária para a personalidade é o estudo de gémeos realizado intensivamente pela equipa de

Thomas Bouchard, da Universidade do Minesota (citado por Horgan, 1993), Os gémeos univitelinos que, criados em ambientes distintos desenvolvem aspectos semelhantes e diferentes na sua personalidade, o que ajuda a discriminar quais os aspectos da personalidade em que os genes desempenham um papel preponderante e quais são aqueles em que o ambiente exerce uma influência maior. Para muitos traços particulares e aspectos do comportamento como predisposição para o crime, predisposição para desenvolver psicose maniaco-depressiva, alcoolismo e por diante encontraram coeficientes de heritabilidade entre 0,5 e 0,7, e Bouchard (1994) conclui que cada um dos Big Five apresenta em humanos um coeficiente de heritabilidade da ordem dos 0,45. Existem também outras indicações da influência de factores genéticos no surgimento das personalidades psicopáticas e sociopáticas (Rosenthal, 1972, citado por Kendler, 1974). Os dados referidos provêm do estudo de crianças consanguíneas de indivíduos que apresentavam estes distúrbios, apesar de adoptadas por famílias em que estas alterações da personalidade não se verificavam, ao atingirem a idade adulta, os sujeitos da investigação apresentavam um número maior de actos anti-sociais do que os indivíduos do grupo de controlo (crianças adoptadas em circunstâncias idênticas mas sem os antecedentes familiares de caractereopatia).

As características da personalidade que se situam no eixo extroversão-introversão são aquelas cujo substracto neurofisiológico é melhor conhecido, provavelmente porque são as estudadas há mais tempo: Eysenck (1972; 1990, citado por Hassig et al, 1993) postula que a diferença essencial entre aqueles dois traços tem origem no sistema límbico, assinalando a existência, ao nível da formação reticular, de um limiar óptimo de excitabilidade, funcionando separadamente da estimulação externa, no sentido em que para indivíduos introvertidos esse limiar seria sistematicamente excedido, enquanto que para extrovertidos, nunca chegaria a ser atingido. De acordo com Eysenk, pessoas com ambos os tipos de personalidade comportam-se (inconscientemente) no sentido de atingir esse nível óptimo de excitabilidade: os extrovertidos buscam estimulação extra para atingirem o referido limiar e os introvertidos evitam-nos ou põem em marcha comportamentos repetitivos que, devido à habituação, fazem subir o limiar de excitabilidade para estímulos a que se deu habituação. Os dados de algumas experiências de condicionamento clássico realizadas por Cyril Franks (citado por Hassig et al., 1993) foram usados para dar suporte à teoria de Eysenk, mostrando que indivíduos classificados como introvertidos, eram mais facilmente condicionáveis do que os extrovertidos. Também um estudo daquele investigador, em que se realizaram electroencefalogramas, mostrou que diferentes pessoas apresentam também diferentes padrões de actividade eléctrica cerebral e limiares distintos de resposta emocional, o que explicaria em parte a sua classificação individual ao longo do eixo de introversão-extroversão. Um reforço desta ideia surge mais recentemente, com a utilização das técnicas de imagiologia; por exemplo imagens do córtex obtidas por Tomografia de Emissão de Positrões, durante a actividade de leitura de textos em vários indivíduos mostraram que ao efectuarem exactamente a mesma tarefa, introvertidos e extrovertidos apresentam diferentes níveis de afluxo de sangue no cérebro às áreas envolvidas nesta tarefa, sendo os primeiros quem apresenta maiores níveis de fluxo sanguíneo. Na medida em que os níveis de fluxo de sangue são interpretados como reveladores do nível de excitabilidade do córtex, os investigadores consideram que estes dados indicam uma relação inversa entre a excitabilidade cortical e a extroversão (Hassig et al., 1993). A busca de sensações, de experiências variadas, tem sido associada também com a abundância relativa de certos neurotransmissores, nomeadamente da dopamina (envolvida na agressão e no comportamento sexual) e a norepinefrina, que aumenta a actividade do cérebro e ajuda a manter o corpo pronto para a acção. Por vezes, o cérebro converte dopamina em norepinefrina. Os níveis dos neurotransmissores são controlados por enzimas responsáveis pela sua destruição ou produção. Na destruição da dopamina actua a monoamina oxidase (MAO). Baixos níveis de MAO conduzem a elevados níveis de dopamina e presume-se que, em consequência, também de norepinefrina. Em humanos, as pessoas que procuram sensações fortes e estímulos diversificados tendem a ter baixos níveis de MAO. Os níveis de MAO sobem com a idade, o que vem reforçar a ideia de que estão inversamente associados à intensidade de busca de sensações, uma vez que os idosos costumam apresentar menos este comportamento do que os mais novos (para uma revisão extensa ver Eysenk, 1990).

No que concerne às características da personalidade que se associam a comportamentos do sistema agonístico (intimidação, agressão, respostas emocionais de medo e comportamentos agressivos) também existe alguma informação a nível neurofisiológico, por exemplo: Kalin (1993) verificou que os níveis altos de cortisol se associam a comportamentos de inibição e evitamento em contextos sociais, quer em macacos rhesus quer em crianças humanas. A administração de três tipos de substâncias — um opiáceo (morfina), um bloqueador de opiáceos (naxolona) e uma benzodiazepina (diazepam) mostrou, em condições potencialmente desencadeadoras de medo nas crias dos macacos rhesus, que os neurónios sensíveis aos opiáceos controlam os comportamentos afiliativos de solicitação de contacto e aproximação da mãe, etc., e que os neurónios sensíveis às benodiazepinas controlam as respostas à ameça imediata — algumas de medo, outras de intimidação. Identificou-se a área do cérebro onde ocorre esta resposta à benzodiazepina. Keverne (1992) verificou em experiências com Miopithecus talapoin (um macaco do Velho Mundo), onde se administraram diferentes doses de testosterona a machos castrados, que os machos subordinados se tornavam mais agressivos. Em humanos já se mostrou também que a testosterona tem um efeito inibidor da MAO, o que explicaria observações segundo as quais os homens apresentariam mais comportamentos de busca de estímulos do que as mulheres. Com efeito, os estrogénios, apesar de também apresentarem esse efeito de redução da MAO, não são produzidos a uma taxa constante, pelo que os níveis daquela enzima flutuam durante o ciclo menstrual, o que leva alguns autores a especularem acerca de esta ser uma possível explicação para as flutuações de humor que muitas mulheres referem ter ao longo do ciclo. Um dos efeitos da serotonina nos primatas é a inibição do comportamento agressivo. Raleigh (citado por Damásio, 1995) verificou que em Macaca os indivíduos com comportamento social adequado (com interacções sobretudo afiliativas e estratégias sociais que passam pelo fraco recurso à agressão) apresentam um número elevado de receptores de serotonina-2 (existem 14 tipos diferentes) na região frontal ventromediana, na amygdala e nos córtices temporais medianos, mas em mais nenhuma área; os macacos que exibem sistematicamente comportamentos "não-cooperativos e antagonísticos" apresentam estes receptores na disposição inversa.

Do ponto de vista da relação entre estruturas anatómicas e personalidade pouco se sabe, mas é verdadeiramente interessante alguma informação avançada por:

— Davidson (citado por Kalin, 1993), que mostrou que o córtex pré-frontal dohemifério direito é extremamente activo em crianças humanas muito inibidas.

— Kalin (1993), que mostrou que esta área está activa (através do estudo da actividade eléctrica) em macacos rhesus durante a exibição de comportamentos antagonísticos.

— Davidson et al. (1990) mediram o comportamento facial expontâneo durante as experiências emocionais de satisfação e de repugnância, ao mesmo tempo que os padrões de actividade eléctrica do cérebro. Os seus dados permitem apoiar a teoria segundo a qual cada emoção inclui uma tendência de acção fortemente implantada, que é basicamente de aproximação ou de afastamento do estímulo que a provocou, verificando que as diferentes emoções se exprimiam em padrões assimétricos do EEG e que durante a experiência de satisfação na região antero-temporal do cérebro ocorreram assimetrias significativamente diferentes das que se deram durante a de repugnância, não tendo havido diferenças significativas em termos de lateralidade das regiões do cérebro entre a satisfação e a condição baseline. Mas regiões frontal e entero-temporal do cérebro, a repugnância produz um aumento significativo da actividade cerebral do lado direito, por comparação com a actividade dessas regiões durante a experiência de satisfação e que na região frontal a repugnância produz significativamente maior activação do que a condição baseline. Os autores interrogam-se se estes padrões de activação exprimem as tendências comp ortamentais de aproximação / afastamento ou a própria localização das respectivas experiências emocionais.

— Merzenich (citado por Kandel e Hawkins, 1992) que demonstrou que os mapas mentais do córtex são objecto de modificações constantes, que dependem do maior ou menor número de determinados percursos (paths) sensoriais, o que equivale a dizer que as representações mentais estão sujeitas a mudanças ao longo da vida e que os indivíduos expostos a diferentes ambientes (ou combinações de estímulos) exercitam diferencialmente as suas capacidades motoras e sensoriais, o que conduz a diferenças nas arquitecturas cerebrais.

— Aggleton (1993), que refere como a remoção da amygdala produz em macacos uma disrupção permanente do seu comportamento emocional e social, o que se explicaria por quebrar a ligação que esta estabelece entre o input sensorial e os centros autónomos subcorticais; a amygdala parece estar também envolvida no sistema de associação entre os estímulos e suas respectivas recompensas, isto é, na sua representação como agradáveis ou desagradáveis e na decisão das respostas comportamentais. Em humanos, lesões na amygdala podem impedir o indivíduo de reconhecer rostos, o conteúdo de expressões faciais e de perceber a direcção do olhar dos outros; ficam comprometidos também aspectos da expressão linguística das emoções: enfim, a interacção social fica profundamente transtornada.

— Damásio (1995) relata como um indivíduo — Phineas Gage, um paciente já célebre na medicina do século passado — recuperou após uma barra de ferro disparada por uma explosão acidental lhe perfurar o crânio, penetrando pela face esquerda e saindo a alta velocidade pelo topo da cabeça, produzindo um orifício de cerca de 5cm de diâmetro e lesões que danificaram bilateralmente os lobos pré-frontais. Gage recuperou a fala, toda a motricidade e todas as suas capacidades, à excepção da de tomar decisões; além disso, o seu carácter sofreu alterações drásticas, que o tornaram irreconhecível para quem o conhecera anteriormente, passando de amigável e confiável a anti-social e irresponsável, de acordo com a descrição das testemunhas do seu tempo. Sabe-se que a região danificada em Gage é crítica na tomada de decisões, e outros pacientes de Damásio com lesões na mesma área também apresentavam este problema; um de tais casos apresentava-se acompanhado de total inexpressividade facial e fraca gestual e postural, bem como uma grande não-reactividade. Damásio (1995) propõe que no córtex cingulado anterior dos lobos frontais e áreas próximas "os sistemas responsáveis por emoções, sentimentos, atenção e memória de trabalho interagem de uma forma tão íntima que constituem a fonte para a energia, tanto da acção externa como da interna (animação do pensamento, raciocínio). "

Personalidade: quem não a tem?

A existência de especificidades no comportamento dos primatas que os levam a ser facilmente rotulados pelos observadores humanos com termos que se usam para referir características de personalidade na sua própria espécie, é um dado adquirido para todos aqueles que trabalham com este grupo taxonómico (e. g., Chalmers, 1979, Goodall, 1986, De Waal, 1982). Desde que Jane Goodall, há 36 anos, começou a dar nomes a cada um dos chimpanzés do Gombe, em vez de lhes atribuir números de código, como era até então usual, que o tabu se quebrou e os primatólogos muito prontamente começaram a encontrar o nome que exprime a individualidade de cada um dos seus objectos de estudo. Esta familiaridade e atribuição de qualidades pode ligar-se à capacidade com que o observador familiarizado é capaz de prever comportamentos. Deste meio de conhecimento e a previsibilidade do comportamento que os traços de personalidade conferem, servem-se provavelmente também os conspecíficos do grupo a que cada indivíduo pertence para com este organizarem as suas próprias interacções. Aliás, De Waal (1987) sustenta que a proximidade filogenética entre humanos e outros primatas deve ser encarada como uma vantagem que qualifica especialmente bem os primeiros para compreender o comportamento dos últimos.

Dunbar (1988) realça o impacte que a personalidade dos diferentes indivíduos tem na dinâmica das relações sociais dentro do grupo de primatas, reportando-se a um conjunto de trabalhos de diversos autores, em que se mostrava como diferentes e características abordagens individuais num mesmo contexto tiveram um papel crucial na aquisição e manutenção de estatutos sociais. Por exemplo, Riss e Goodall (1977, citado por Dunbar, 1988) observaram que diferenças qualitativas na personalidade desempenhavam um papel importante no modo e na facilidade com que chimpanzés machos atingiam um posto hierárquico elevado dentro da comunidade. Outro exemplo, fornecido por Barbara Smuts (1977, citada por Dunbar, 1988) mostra como babuínos machos integrados ao mesmo tempo num grupo, apresentavam reacções consistentemente distintas ao nervosismo inicial das fêmeas perante as suas primeiras tentativas de interagir com elas, de tal modo que o mais delicado e calmo estabeleceu uma relação sólida com várias fêmeas e reproduziu-se abundantemente, enquanto que o macho que perseguia as fêmeas (assustando-as) não se chegou a reproduzir.

Têm sido descritos estilos típicos e em diferentes indivíduos, de cuidados maternos em diversas espécies de Macaca e de Cercopithecus, classificando os tipos alternativos de mães como mães restritivas e mães não-restritivas, protectoras ou rejeitantes, apresentando os diferentes estilos maternais consequências positivas e negativas para a cria (e. g., Altman, citado por Dunbar, 1988, Masterpieri, 1993; para uma revisão ver Fairbanks, 1996).

Do trabalho de Frans De Waal (e. g., 1982; 1987; 1993) tem emergido um conhecimento substancial acerca das relações sociais entre chimpanzés — por exemplo, a ideia de que as relações de dominância não são estáticas, de que existem diferentes dimensões de dominância, de que o comportamento agressivo sistemático e aparentemente inexplicável ocorre no decurso de uma "luta pelo poder" e de que uma vez atingido o estatuto pretendido dentro do grupo a agressividade sistemática tende a desaparecer. Para esta luta pelo poder, alguns indivíduos parecem encontrar-se especialmente mais motivados que outros (De Waal, 1982; 1987).

Margaret Power (1991) ao propor um modelo absolutamente disruptivo da organização social dos chimpanzés, descreve a existência de indivíduos carismáticos, que seriam o principal motor e eixo organizador da formação de subgrupos dentro da comunidade, apesar de a sua definição operacional de "carismático" não ser clara ainda que visivelmente associada à liderança natural baseada em atributos pessoais. Também Okano et al. (1973), num estudo clássico da estrutura social de um grupo de chimpanzés em cativeiro concluíram que a personalidade de cada indivíduo do grupo, desempenhava um papel preponderante no comportamento e nos padrões de associação no interior do grupo alargado.

Preuschoft (1997) descreve diferentes estilos de dominância em macacos da Barbária (Macaca sylvanus), dependendo do sexo e uma expressão facial característica dos indivíduos dominantes. Na mesma espécie, Hammerschmidt e Todt (1995) reportam a existência de um reconhecimento individual baseado nas vocalizações, que apresentam parâmetros significativamente diferentes entre indivíduos (da mesma classe etária). Sistemas complexos de sinais individuais são tipicamente observados em espécies com relações sociais altamente elaboradas.

A individualidade comportamental, que poderíamos simplesmente referir como a existência de diferenças significativas (com consistência temporal) entre os perfis comp ortamentais de indivíduos do mesmo grupo e dentro da mesma classe sexo / idade é algo conhecido em quase todas as espécies que têm merecido a investigação comportamental. Este conceito toma-se sinónimo de personalidade quando lhe aliamos o pressuposto de que existe uma tendência subjacente para actuar de determinado modo.

Antes de concluir a individualidade de um comportamento, há que conservar presente que o comportamento individual de um primata se enquadra no cenário social gerado pelo grupo e que este desempenha uma tão forte influência na sua vida (Quiatt e Reynolds, 1993) que só é possível realçar e compreender as idiossincrasias de cada membro de um grupo por referência à estrutura social do grupo (Keverne, 1992), ao que cada um dos outros faz no mesmo contexto e atendendo às diferenças comportamentais entre as classes sexo / idade dos indivíduos. Existem padrões notórios deste tipo em chimpanzés (e. g., Goodall, 1986; De Waal, 1993). Por exemplo, as fêmeas de estatuto mais elevado têm interacções mais frequentes e reproduzem-se mais, e as suas filhas têm maiores probabilidades de se tomarem dominantes.

Ao estabelecer o que é característico de um indivíduo, há ainda que atender à variação temporal no comportamento individual. Quiatt e Reynolds (1993) chamam a atenção para a necessidade de distinguir, sempre que possível, a variação resultante de etapas "normais" do desenvolvimento da variabilidade proveniente da situação, e nomeadamente de alterações ambientais, referindo-se em concreto a situações causadoras de stress. Existem, no entanto, outras alterações ambientais, mais lentas e subtis para o indivíduo que vive em grupo. A aprendizagem é uma das variáveis que resulta de e produz tais mudanças frequentemente pouco conspícuas no ambiente dum grupo social — um indivíduo aprende a desempenhar determinados comportamentos e a evitar outros, ou pelo menos a reduzir a sua conspicuidade. Estas aprendizagens parecem fazer-se sobretudo a partir das reacções dos restantes membros do grupo (Adang, 1985).

Tem-se constatado com frequência que se a expressão "individualidade" aplicada a outras espécies que não a humana é, para muitas pessoas, inestética, a utilização do termo personalidade é quase chocante. Mas, para lá de uma reacção emocional desencadeada pela novidade e pelo peso centenar de uma tradição antropocêntrica, o que obsta (após a tal análise cuidada que atende à estrutura do grupo e aos efeitos da aprendizagem) à atribuição de personalidade a primatas não humanos e, para além destes, a outras espécies?

Aurélio Figueredo (1996) da Universidade do Arizona, questiona-se acerca do princípio evolutivo que justifica a individualidade e propõe que as diferenças individuais na personalidade são uma característica distintiva das espécies sociais e que na história evolutiva da linhagem humana, as diferenças interindividuais (com expressão comportamental) se teriam acentuado tanto mais quanto mais intensas e sofisticadas se tornarem as relações interpessoais nos grupos sociais. A teoria de Figueredo (1996) contempla um cenário evolutivo em que há grande aglomeração de indivíduos (no que coincide com os pressupostos de Dunbar, 1992; 1993), gerando elevada competitividade social; neste contexto, a variabilidade seria favorecida através de uma selecção disruptiva, que criaria uma distribuição de fenótipos comportamentais alternativos, através de uma expansão progressiva dos extremos da distribuição das populações.

Uma expectativa resultante desta teoria seria a de que seria nos primatas actuais, as espécies cujos sistemas sociais apresentam interacções sociais mais numerosas, diversificadas (e menos rígidas e hierarquizadas) seriam aquelas em que encontraríamos maiores diferenças interindividuais. Com efeito, as hierarquias rígidas, sobretudo em grupos pequenos, tendem a normalizar os indivíduos. Assim, de acordo com as predições da teoria de Aurélio Figueredo, no caso dos primatas não-humanos, observar-se-iam menos diferenças interindividuais nas espécies solitárias (como o orangotango) ou nas que formam famílias monogâmicas (como o gibão) ou haréns com um macho (como em gorilas) e as maiores diferenças encontrá-las-íamos em sociedades com vários machos e fêmeas (Figueredo, 1996) com uma hierarquia dinâmica ou mesmo muito fluída, como em chimpanzés e bonobos, respectivamente.

A hipótese preditiva de Figueredo constitui excelente desafio para os primatólogos e para a investigação que ainda tem que ser feita da variação interindividual no comportamento, mas podemos tentar confrontá-la com uns quantos dados esparsos actualmente existentes:

— efectuaram-se alguns estudos da estrutura factorial da personalidade em primatas não-humanos, usando-se versões dos questionários com escalas de personalidade para humanos, isto é, partindo igualmente da avaliação de descritores em escalas de 5 ou 7 pontos e da análise factorial das respectivas pontuações (e. g., Bolig et al, 1992, McGuire, Raleigh e Pollack, 1994; Nasch e Chamove, 1981; Stevenson-Hinde, 1983b; Stevenson-Hinde e Zunz, 1978; Stevenson-Hinde et al, 1980; Gold e Maple, 1994). Em todos estes estudos, dos quais o último com gorilas de zoos norte-americanos, a análise factorial permitiu identificar três grandes factores: confiabilidade, sociabilidade e excitabilidade (para uma revisão detalhada de trabalhos sobre a personalidade em várias espécies, ver Figueredo et al, 1995). Nestes estudos pretendeu-se, em geral, mostrar que os primatas em questão apresentavam traços comportamentais que variavam no âmbito de algumas dimensões (ou eixos) fundamentais, e também que se verificava uma elevada concordância entre observadores humanos quanto às pontuações dos indivíduos observados, em cada traço. Além disso, quando nalguns casos destes trabalhos se reavaliaram os indivíduos ao longo do tempo, verificou-se que estas pontuações apresentavam uma considerável estabilidade temporal. Por exemplo, quando Stevenson-Hinde et al. (1980) o fizeram com macacos rhesus, encontraram correlações de cerca de 70% entre as pontuações obtidas pelos indivíduos em 4 anos consecutivos, nas duas primeiras dimensões da personalidade acima mensionadas e entre 20 e 40 por cento na excitabilidade.

Num outro estudo, King e Figueredo (1997) utilizando um inventário de personalidade idêntico aos tradicionalmente utilizados com humanos (isto é, incluindo os mesmos descritores), mostraram que 100 chimpanzés em cativeiro (e distribuídos por vários zoos norte-americanos) exibiam, tal como os humanos, os 5 grandes factores de personalidade conhecidos como os BigFive e ainda um factor adicional relacionado com a dominância.

Esta última observação, além de ser consistente com a previsão de Figueredo (1996)> dado que os chimpanzés apresentaram uma estrutura mais complexa do que as restantes espécies de primatas testadas com idêntica metodologia pelos outros autores (acima), pode ser interpretada como evidência de que, recorrendo a mm instrumento utilizado para medir a personalidade humana, consegue encontrar-se para a espécie "prima" mm nível de complexidade igualmente elevado na forma como as suas tendências comportamentais se organizam em padrões capazes de explicar as diferenças interindividuais nos estilos de interacção e modo de se adaptar ao meio, partindo de uma colecção vasta degradações e possibilidades (traços ou descritores). Esta estrutura de 5 factores, a partir de um questionário elaborado em português para indivíduos familiarizados com os chimpanzés em questão, e com uma metodologia de análise apoiada na "teoria da generabilização" (Figueredo et al., 1995), foi confirmada em mais um grupo de chimpanzés em cativeiro (Gaspar, 1996; Gaspar e King, 1996). As pontuações subjectivas da personalidade permitem, possivelmente devido à observação em todos os contextos (ao contrário do que é possível em humanos) prever alguns comportamentos — com correlações muito mais altas que as verificadas entre os dois tipos de medida em humanos, como foi acima referido (King, 1994; Gaspar, 1996; Gaspar a King, 1996).

Com esta revisão espera-se ter evidenciado o quão a compreensão da personalidade requer interdisciplinaridade e o recurso a abordagens mistas, com ingredientes tradicionalmente da psicologia, da psiquiatria, da etologia e da fisiologia, bem como o estudo da individualidade comportamental em outras espécies. Uma disciplina nascente - a psicologia evolutiva - parece ter o potencial para, finalmente, integrar aspectos biológicos da motivação e constatações empíricas da psicanálise, comportamento e neurofisiologia, a informação sobre processamento não consciente da informação, sobejamente demonstrado pela psicologia cognitiva e a clássica e obscura noção de inconsciente, sem recair em erros antigos e simplistas como o de confundir aspectos biológicos do comportamento, mais ou menos independentes da variação ambiental, com o ainda mais obscuro "instinto biológico". Esses tempos, julgo, vão longe.

 

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