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Psicologia
versão impressa ISSN 0874-2049
Psicologia vol.14 no.2 Lisboa jul. 2000
Transição e adaptação à Universidade: Apresentação de um Questionário de Vivências Académicas (QVA)
College Adaptation and Transition: The Academic Life Experiences Questionnaire
Leandro S. Almeida*; Ana Paula C. Soares**; Joaquim Armando G. Ferreira***
*-**Universidade do Minho
***Universidade de Coimbra.
RESUMO
Este artigo analisa o processo de transição e adaptação à universidade e apresenta o Questionário de Vivências Académicas (QVA — Almeida & Ferreira, 1997). Este questionário, enquanto instrumento de despiste, conceptualiza o processo de transição e adaptação à universidade como um processo complexo onde, tanto as variáveis pessoais como as variáveis académicas e contextuais, interagem, afectando o modo como os estudantes se adaptam, realizam e desenvolvem na instituição do Ensino Superior em que estão inseridos. O QVA foi administrado a uma amostra de 1273 alunos a frequentar o primeiro ano de 41 licenciaturas da Universidade do Minho. Os resultados nas 17 subescalas que compõem o QVA, demonstram boas qualidades psicométricas, quer no que se refere aos valores de consistência interna, quer à dimensionalidade, o que corrobora a sua utilização enquanto um instrumento de despiste.
Palavras-chave Ensino Superior; transição; adaptação; rendimento académico; desenvolvimento; vivências académicas.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to analyze the process of transition and adaptation to the university of college students and to present the Academic Life Experiences Questionnaire (ALEQ; Almeida & Ferreira, 1997). This questionnaire has been developed as a screening instrument and is conceptualized to describe the college student transition and adaptation as a dynamic process of interaction between the individual (with certain psychological and cognitive characteristics) and the academic and environmental demands. The ALEQ was administered to a sample of 1273 first-year students from different majors of Minho University. The results on the 17 scales of the instrument showed good psychometric properties. The internal consistency coefficients ranged from 0,69 to 0,88. A factor analysis conducted revealed five factors explaining 72% of the variance. The five factors were designed as: (i) personal dimensions; (ii) adaptation to college major; (iii) context dimensions; (iv) academic learning process; and (v) family and financial management.
Transição e adaptação à universidade
A transição do Ensino Secundário para o Ensino Superior, confronta os jovens com múltiplos desafios.1 A par das mudanças desenvolvimentais operadas numa fase final da adolescência e início da vida adulta, os estudantes vêem-se ainda confrontados com uma série de novos e complexos desafios, que decorrem quer das exigências que o novo contexto educativo lhes coloca, quer das implicações que esta transição poderá acarretar nos vários domínios da sua existência. A investigação sugere que esta transição confronta o jovem com a resolução simultânea de um conjunto de tarefas em quatro domínios principais: (i) académico (o ensino universitário requer novos ritmos e estratégias de aprendizagem, face aos novos sistemas de ensino e de avaliação); (ii) social (a experiência universitária requer o desenvolvimento de padrões de relacionamento interpessoal mais maduros na relação com a família, com os professores e os colegas, com o sexo oposto e com as figuras de autoridade); (iii) pessoal (os anos universitários devem concorrer para o estabelecimento de um forte sentido de identidade, para o desenvolvimento da auto-estima, de um maior conhecimento de si próprio/a e para o desenvolvimento de uma visão pessoal do mundo); e (iv) vocacional/institucional (a universidade constitui uma etapa fundamental para o desenvolvimento de uma identidade vocacional, onde a especificação, a implementação e o comprometimento com determinados objectivos vocacionais e/ou institucionais parecem assumir particular importância) (Baker, McNeil & Siryk, 1985; Creamer, 1990; Evans, Fomey & Dibrito, 1998; Gonçalves & Cruz, 1988; Gordan, 1995; Komives, Delworth & Woodard, 1996; Scwitzer, Ancis & Griffin, 1998; Soares, 1998; Upcraft & Gardner, 1989).
Neste contexto, o primeiro ano da universidade tem sido conceptualizado como um período crítico, potencializador de crises e/ou desafios desenvolvimentais e como o principal determinante dos padrões de desenvolvimento estabelecidos pelos jovens ao longo da sua frequência universitária (Bastos, 1998; Bastos & Gonçalves, 1996; Heath, 1968; Pascarella & Terenzini, 1991). Por outro lado, partindo de resultados que sugerem que mais de metade dos estudantes que ingressam no Ensino Superior revelam dificuldades nesta transição educativa (Bauer & Mott, 1990; Healy & Reilly, 1989; Kramer, Berger & Miller, 1974; cit. por Herr & Cramer, 1992; Leitão & Paixão, 1999), e de outros que sugerem mesmo um aumento de níveis de psicopatologia na população universitária (Ratingan, 1989; Stone & Archer, 1990), os estudantes universitários em geral, e os que ingressam pela primeira vez no Ensino Superior em particular, têm-se assumido como uma população-chave no estudo dos processos de adaptação e desenvolvimento humanos em contexto universitário, tanto no plano internacional da investigação (Astin, 1975, 1984,1993; Pace, 1984; Pascarella & Terenzini, 1991; Russell & Petrie, 1992; Tinto, 1987; Upcraft & Gardner, 1989; Weidman, 1989), como, mais recentemente, no plano nacional (Bastos, 1998; Belo, 1999; Bento & Ferreira, 1997; Carneiro, 1999; Costa, 1991; Costa & Campos, 1986; Diniz & Almeida, 1997; Faria & Santos, 1998; Ferreira & Castro, 1994; Ferreira & Hood, 1990; Hood & Ferreira, 1983; Marques & Miranda, 1993; Martins, 1998; Medeiros, Ferreira & Ponciano, 1997; Menezes, Costa & Campos, 1989; Miranda, 1994; Nico, 1995; Soares, 1998; Tavares, Santiago, Lencastre & Soares, 1996).
Estes estudos defendem, de um modo geral, que o processo de transição e adaptação/ajustamento ao contexto universitário deve ser conceptualizado como um processo complexo e multidimensional, envolvendo múltiplos factores tanto de natureza intra e interpessoal como de natureza contextuai. Aliás, e de acordo com as perspectivas mais transacionais no estudo do desenvolvimento humano (Lowenthal & Pierce, 1975; Neugarten, Moore & Lowe, 1965; Pearlin, 1982; Schlossberg, 1981,1998), para compreendermos a forma como os indivíduos lidam com os momentos de transição e os resultados a que eles podem conduzir, devemos considerar quer as características pessoais que o indivíduo "traz" para o novo contexto, e que obrigatoriamente irão modelar a forma como o indivíduo o percepciona e nele actua, quer as características do próprio contexto para onde o indivíduo realiza a transição.2
Desta forma, e tendo em vista a apresentação do Questionário de Vivências Académicas — QVA (Almeida & Ferreira, 1997), descrevemos três grupos de variáveis que nos parecem importantes na análise do processo de transição e adaptação dos estudantes ao Ensino Superior: (i) variáveis mais directamente associadas à aprendizagem e ao rendimento académico; (ii) variáveis mais directamente associadas ao self e ao desenvolvimento psicossocial dos indivíduos; e (iii) variáveis mais directamente associadas ao contexto universitário, as quais podem inclusive extravasar a própria instituição ou o espaço físico do campus.
Aprendizagem e rendimento académico
A questão do rendimento académico, na sua faceta mais visível do sucesso/insucesso, não tem merecido ainda amplo debate no seio da "academia". A meados de 1999, as universidades portuguesas foram convidadas a elaborar contratos-programa para os próximos cinco anos (Despacho n.° 6659 /99), tendo em vista a superação dos casos de insucesso persistente (alunos em situação de não elegibilidade para efeitos de financiamento — Lei 113/97). Por diferentes razões esta iniciativa suscitou surpresa nalguns académicos. De facto, fala-se habitualmente, e muito, do insucesso na Escolaridade Básica, bastante do insucesso no Ensino Secundário, mas tem-se "poupado" o Ensino Superior, nesta questão. No entanto, a massificação ocorrida no acesso e frequência do Ensino Superior nos vários países e em Portugal a partir da década de 70 (Arroteia, 1996; Braga da Cruz et al., 1995; Conceição et al., 1998; Education Trainning Youth, 1995; Gago et al, 1994), tem justificado alguns estudos e uma preocupação crescente face ao não menos volumoso índice de insucesso académico (baixas classificações, absentismo, diminuição nos critérios para a transição de ano, disciplinas em atraso, mudanças de curso, abandonos). A "democratização do Ensino Superior" conduziu efectivamente, como refere Braga da Cruz e colaboradores (1995), ao alargamento da base social de recrutamento estudantil, o que se tem repercutido, indubitavelmente, em algumas dimensões do sucesso académico.
Múltiplas variáveis aparecem associadas à aprendizagem e ao rendimento académico dos estudantes no Ensino Superior. Muito por paralelo com o que ocorre nos demais níveis de ensino, tais variáveis reportam-se ao próprio aluno, ao professor, à organização curricular, ao contexto académico e às múltiplas formas de interacção daí decorrentes. O peso de cada um destes grupos de variáveis não é totalmente autónomo dos demais, pelo menos quando se trata de implementar medidas preventivas ou remediativas de forma a minorar os respectivos impactos. Por outro lado, podemos defender que esse mesmo impacto depende do ano curricular em que o estudante se encontra, sendo lógico ser esse impacto maior junto dos alunos do primeiro ano, por vivenciarem uma fase de transição e de adaptação, com implicações aos vários níveis da sua existência.
Habitualmente associaram-se elevadas expectativas aos alunos que chegam à universidade, quer decorrentes de uma lógica de universidade elitista do passado, quer de uma prática selectiva instalada no presente e associada à política de numerus clausus. Nem sempre, no entanto, tais expectativas são realistas e favoráveis à integração destes alunos no Ensino Superior, e à sua aprendizagem. Nesta altura, pode-se criticar o sistema e os professores anteriores que não souberam preparar adequadamente estes estudantes (atitude frequente nos professores dos sucessivos níveis de escolaridade), ou assumir que sem alunos não existe Ensino Superior e, desde logo, importa operacionalizar os problemas, vislumbrar e implementar as soluções possíveis. Como nos demais ciclos de escolaridade prévios à universidade, importa estreitar o diálogo e a cooperação com os subsistemas de escolarização a seu montante, sobretudo se se reconhece que algo pode já não ser tão facilmente conseguido, ou melhor conseguido, uma vez entrado no Ensino Superior.
A política de numerus clausus no acesso ao Ensino Superior merece, ainda, nova referência. Esta política está na origem de altas percentagens de alunos colocados em pares "estabelecimento de ensino/ curso" que não correspondem à sua primeira escolha. A título de exemplo, no início da década de 90, apenas 32,4% dos estudantes do Ensino Universitário foram colocados na sua primeira opção (cf. Braga da Cruz et al, 1995). Mesmo que nos últimos anos a percentagem de jovens colocados no curso/estabelecimento preferido tenha vindo a aumentar (de referir que, na amostra deste artigo, 59% dos alunos estão colocados no par curso/estabelecimento de ensino correspondente à sua primeira opção), é de considerar ainda o facto de muitos deles "manipularem" as suas opções na candidatura ao Ensino Superior, de forma a aumentar as suas probabilidades de ingresso neste nível de ensino (cf. Braga da Cruz et al, 1995). Desta forma, importa não atender apenas ao facto de o jovem ter conseguido ou não entrar na sua primeira opção, mas se esta opção correspondia verdadeiramente aos seus principais objectivos e intenções. Daqui decorrem, obviamente, formas diversas de estar na universidade e também níveis diferentes de investimento no estudo e demais actividades académicas.
Assumindo-se hoje o papel central do estudante no processo de ensino-aprendizagem, afirmação que nos parece com uma particular pertinência e aplicação no Ensino Superior em face da forma como se organizam o ensino e os demais espaços de formação-aprendizagem, importa analisar o grau de autonomia e de auto-regulação dos estudantes nas suas aprendizagens (Biggs, 1988; Entwistle, 1988; Rosário, 1999), por exemplo, os métodos de estudo implementados, a gestão do tempo e os comportamentos face à avaliação (Cone & Owens, 1991; Pereira, 1997). A questão do rendimento académico passa também pelos conhecimentos prévios dos alunos (Hirsch, 1989; Marques & Miranda, 1993; Rocco, 1981), nomeadamente quando o curso permite o acesso através de disciplinas específicas muito díspares ou aceita candidatos com classificações negativas. Logicamente que, sobretudo nestes casos, os professores desempenham um papel importante. A par da sua qualificação científica, interessa atender às suas competências pedagógicas e relacionais. Estas competências são importantes, quer na adaptação ao curso quer, e sobretudo, no sucesso académico dos estudantes, pois que se reflectem nos métodos de ensino e de avaliação dos professores (Grayson, 1993; Ramsden, 1988).
Descritas algumas variáveis associadas à aprendizagem e ao rendimento académico, o QVA inclui as percepções dos alunos em relação às seguintes dimensões: (i) bases de conhecimentos para o curso (inclui a preparação para as exigências do curso, as capacidades de leitura e escrita); (ii) métodos de estudo (inclui o acompanhamento das aulas, a consulta da bibliografia, a organização dos apontamentos);
(iii) realização de exames (inclui comportamentos de tipo ansioso na preparação e realização dos testes, exames ou outras formas de avaliação); (iv) gestão do tempo (inclui itens sobre a planificação do tempo, o ritmo de prossecução das actividades, a realização dos trabalhos nos prazos fixados, a gestão equilibrada do tempo de estudo e de lazer); e, (v) relacionamento com os professores (inclui o diálogo com os professores, a possibilidade de contactos dentro e fora das aulas, a percepção da disponibilidade de tempo dos professores para os alunos, a apreciação dos seus processos de ensino-avaliação).
Variáveis pessoais e de desenvolvimento psicossocial
Para além das dimensões mais relacionadas com as questões da aprendizagem e do rendimento académico no Ensino Superior, tomados em sentido restrito, convém ainda salientar o papel e a importância de outro tipo de variáveis, mais directamente associadas ao self e ao desenvolvimento psicossocial dos estudantes. Aliás, e como vimos anteriormente, as tarefas com as quais os jovens são confrontados numa transição educativa não se circunscrevem exclusivamente às tarefas de índole curricular. Se quisermos, a par da adaptação às exigências académicas deste novo nível de ensino, o ingresso no Ensino Superior implica ainda, para um grande número de estudantes, o sair de casa, a separação dos amigos e das pessoas mais significativas, o confronto com um meio totalmente desconhecido, o decidir quem se é e o que se quer fazer da vida (Ferreira & Hood, 1990). Questões como o estabelecimento de um forte sentido de identidade, o desenvolvimento de relações interpessoais mais maduras (com os pares, os professores e a família), a exploração de papéis sociais e sexuais, a resolução das questões da intimidade, assim como o estabelecimento de uma filosofia e plano de vida (incluindo a definição e o comprometimento com determinados objectivos pessoais e vocacionais), parecem assumir particular importância junto desta população.
Desta forma, e reconhecendo que as dimensões do domínio psicossocial desempenham um papel fundamental na compreensão e explicação da adaptação, do rendimento e do desenvolvimento experenciado pelos jovens ao longo da sua frequência do Ensino Superior, vários autores procuraram operacionalizar as tarefas desenvolvimentais com as quais os jovens são confrontados na sua transição para a universidade. Entre os autores que mais contribuíram para esta definição (Heath, 1968; Sanford, 1962; Chickering & Reisser, 1993), Chickering (1969) foi um dos que assumiu maior destaque, apresentando-nos um modelo sobre o desenvolvimento psicossocial do estudante universitário, conceptualizado a partir de sete vectores: (i) tornar-se competente (desenvolver competências intelectuais, físicas e manuais, sociais e interpessoais); (ii) gerir as emoções (desenvolver competências para identificar e aceitar as emoções, assim como para expressá-las e controlá-las adequadamente); (iii) desenvolver a autonomia e a interdependência (reconhecimento e aceitação da importância da interdependência, desenvolvimento da independência emocional e da independência instrumental); (iv) desenvolver relações interpessoais maduras (estabelecimento de relacionamentos interpessoais que contribuam para o desenvolvimento de uma identidade, que inclui a aceitação e o aumento da tolerância às diferenças individuais, assim como a capacidade para estabelecer relações íntimas saudáveis); (v) estabelecera identidade (estabelecimento de uma maior estabilidade e integração do self, aceitação pessoal, tanto no que se refere à imagem corporal como ao género e à orientação sexual, valorização pessoal, auto-estima e satisfação com os papéis de vida desempenhados); (vi) definir objectivos de vida (desenvolvimento de objectivos vocacionais claros e planos de acção para os implementar, realização de compromissos relativamente a interesses e actividades específicas e estabelecimento de compromissos interpessoais mais firmes); e (vii) desenvolver a integridade (aumento da congruência entre crenças e comportamentos e progressão de um sistema de valores rígido e moralista para um sistema mais humanizado e personalizado que reconhece e respeita os sistemas de valores dos outros). Para Chickering (1969) e Chickering & Reisser (1993) cada um destes vectores acompanha o indivíduo ao longo de todo o seu ciclo de vida (podendo ter uma resolução positiva ou negativa) embora considerem que, em determinados períodos do desenvolvimento, alguns deles possam assumir particular destaque. Desta forma, consideram que as questões da competência, da autonomia e da identidade assumem particular importância durante os anos de frequência universitária.
Mas, se a experiência universitária conduz os estudantes a realizarem um movimento progressivo em direcção à tolerância, ao aumento da qualidade das relações interpessoais, ao desenvolvimento de um forte sentido de identidade e ao aumento da auto-confiança, obviamente que a qualidade da resolução destas tarefas depende, em muito, das próprias características pessoais que os alunos "trazem" para a universidade. Com efeito, tais características parecem estar na base, por exemplo, do melhor ou mais fraco aproveitamento das oportunidades que o próprio contexto universitário onde os estudantes estão inseridos lhes proporciona. Assim, alguns autores salientam dimensões psicológicas dos alunos, tais como estilos de coping (Billings & Moos, 1981; Moos & Schaefer, 1993; Polo, Hemández & Pozo, 1996), a auto-estima (Burke, Midkiff & Williams, 1985; Praeger & Freeman, 1979), o locus de controlo (Crump, Hickson & Laman, 1985; Prociuk & Breen, 1977; Traub, 1982), os estilos atribucionais (Clifford, 1986; Platt, 1988; Powers, Douglas, Cool & Gose, 1985), as percepções de auto-eficácia (Bento & Ferreira, 1997; Lent, Brown & Larkin, 1984; Multon, Brown & Lent, 1991), a autonomia (Ferreira & Castro, 1994), a congruência de interesses (Barak & Rabbi, 1982; Henry & Bardo, 1987), e a (in)decisão vocacional (Fuqua, Newman & Seaworth, 1987; Gordan, 1995; Rose & Elton, 1971; Soares, 1998; Taveira, 1997).
Procurando abarcar algumas destas variáveis, ditas mais associadas à pessoa e ao desenvolvimento psicossocial do estudante, o QVA contemplou na sua construção as seguintes dimensões: (i) autonomia (inclui a independência emocional de pais, colegas e outros, a gestão de projectos de vida, a tomada de iniciativa); (ii) autoconfiança (inclui as imagens e as expectativas pessoais em relação ao rendimento académico ou em relação à conclusão do curso, inferência das expectativas de colegas e professores a seu respeito); (iii) percepção pessoal de competência (inclui percepção de capacidades, as competências de resolução de problemas, a flexibilidade e profundidade de pensamento); (iv) desenvolvimento da carreira (inclui o investimento no curso, a elaboração de projectos, as perspectivas de realização profissional, a indecisão vocacional); (v) bem-estar psicológico (inclui a satisfação com a vida, o equilíbrio emocional, a estabilidade afectiva, a felicidade, o optimismo); e (vi) bem-estar físico (inclui aspectos relacionados com o sono e a alimentação, a saúde e o consumo de substâncias).
Variáveis associadas ao contexto académico
Finalmente, enunciaremos algumas variáveis mais associadas ao contexto académico enquanto novos vectores de análise da transição e adaptação académica dos estudantes. Tais variáveis, ditas contextuais do desenvolvimento e comportamento humanos, ajudam-nos a entender o papel do próprio campus na aprendizagem, adaptação e desenvolvimento psicossocial dos jovens universitários (Banning, 1989). Segundo alguns autores, os espaços físicos do campus (salas de aula, serviços, espaços de lazer, arquitectura e cores dos edifícios, arranjos e limpeza, etc.) afectam o comportamento dos alunos e o seu rendimento académico (McKee & Witt, 1990; Gifford, 1997). Sugere-se, inclusive, que tais condições físicas, e mais concretamente o ratio de alunos por recursos disponíveis, condicionam a qualidade das relações e a socialização dos jovens (Hutt & Varzey, 1966), as suas atitudes iniciais de envolvimento académico (Stem, 1986; Strange, 1996) ou os seus níveis de satisfação académica em geral (Weinstein, 1979).
As explicações para este impacto das variáveis do contexto são diversas. Segundo alguns autores as prestações e os comportamentos dos indivíduos exigem características físicas do setting adequadas (Barker, 1968). Por exemplo, a alta densidade de alunos na sala de aula pode fazer baixar o nível de interacção entre os alunos (Gifford, 1997), os seus níveis de atenção e de processamento da informação (Krantz & Risley, 1972) e, ainda, aumentar as taxas de comportamentos agressivos e de tipo ansioso (Weinstein, 1979). Por sua vez, saindo dos espaços físicos de sala de aula, alguma investigação tem analisado as condições físicas das residências universitárias (Strange, 1996). Aqui, os sentimentos de espaços pessoais e de comunidade vivenciados pelos estudantes, associados a percepções de segurança, conforto e pertença, aparecem como variáveis igualmente importantes para descrever a adaptação e a realização académica dos estudantes (Anchors, Schroeder & Jackson, 1978; Ender, Kane, Mable & Strohm, 1980).
Todas estas variáveis do contexto acabam por facilitar ou comprometer os processos adaptativos dos alunos, ou outros recursos disponibilizados para esse efeito, desempenhando.um papel decisivo na persistência dos alunos no curso e no seu envolvimento académico em geral (Baker & Siryk, 1989; Hossler, 1984), ao mesmo tempo que são decisivos para o estabelecimento de novas relações e novos investimentos interpessoais por parte dos alunos (Grayson, 1993; Pereira, 1997;
Winston et al, 1987). Se quisermos sair do campus, e da rede de espaços e serviços que lhe estão afectos, poderíamos mencionar ainda outras variáveis do contexto, como a rede de transportes, a dimensão da cidade e a própria estrutura familiar do estudante. Por exemplo, vários estudos mencionam a importância destas relações para o ajustamento académico dos estudantes, mesmo quando falamos de jovens adultos (Armsden & Geenberg, 1989; Albert, 1988; Lopez et al, 1988; Wick & Shilkret, 1986).
Várias subescalas do QVA procuram atender a algumas destas variáveis de contexto enunciadas: (i) adaptação à instituição (inclui o sentir-se bem ou mal na instituição, adaptação aos horários e ao funcionamento dos serviços, gosto pela instituição que frequenta e pelo ambiente circundante); (ii) adaptação ao curso (inclui o gosto e a satisfação pelo curso, a percepção da sua organização e da qualidade das suas disciplinas, a ligação possível entre os conteúdos curriculares e as saídas profissionais); (iii) envolvimento em actividades extracurriculares (inclui a participação em iniciativas associativas, em actividades culturais e recreativas, a pertença em órgãos associativos); (iv) relacionamento com os colegas (inclui as amizades, a expressão de sentimentos, a tolerância intercultural, a cooperação com os pares); (v) relacionamento com a família (inclui o relacionamento com os pais, o apoio recebido, a necessidade de idas a casa, o diálogo familiar em tomo dos projectos pessoais e das escolhas vocacionais); e (vi) gestão dos recursos económicos (inclui referências à situação económica do aluno, problemas na gestão das verbas auferidas, situações de compromisso entre verbas disponíveis e envolvimento em actividades extracurriculares, necessidade de trabalho em part-time).
Metodologia
Amostra
A amostra deste estudo foi constituída por 1273 estudantes a frequentar o primeiro ano de 41 licenciaturas da Universidade do Minho (UM). A maioria dos elementos da amostra é do sexo feminino (61,5% raparigas e 38,5% rapazes) e as suas idades oscilam entre os 17 (5 alunos) e os 52 anos de idade (1 aluno), aproximando-se a média, em ambos os sexos, dos 20 anos. A grande maioria dos sujeitos da amostra são solteiros (95,2%) e residem em Braga ou nas suas redondezas no período de aulas (93,8%), embora cerca 50% não vivam com a sua família. A quase totalidade dos alunos da amostra encontra-se apenas a estudar (87,1%), havendo 7,7% e 4% com um part-time ou um emprego a tempo inteiro, respectivamente. O curso/estabelecimento de ensino que frequentam corresponde, para a maioria dos elementos da amostra (59%), à sua 1.a opção no processo de candidatura ao Ensino Superior. Mesmo assim, cerca de um quarto dos alunos da amostra não se encontra a frequentar um curso que correspondesse à sua 1.a ou 2.a opção. Aliás, no início do 2.° semestre e aquando da administração do questionário, 74,7% dos alunos mostram-se satisfeitos com o curso que frequentam e 84,8% têm também essa opinião favorável em relação à universidade.
Instrumento
O Questionário de Vivências Académicas (QVA) é constituído por 170 itens, distribuídos por 17 subescalas, como se pode constatar no quadro 1, que cobrem dimensões pessoais, relacionais e institucionais da adaptação dos estudantes ao contexto universitário (Almeida & Ferreira, 1997). Para cada um dos itens que compõem o instrumento os sujeitos deverão decidir o seu grau de acordo/desacordo para cada uma das situações apresentadas, numa escala de tipo likert de cinco pontos. Acrescente-se que se trata de um questionário orientado para o despiste (screening) de eventuais dificuldades vivenciadas pelos estudantes na sua inserção e adaptação académica, ou seja, não estamos face a um instrumento de diagnóstico, muito menos de diagnóstico psicológico.
Procedimento
O Questionário de Vivências Académicas (QVA) foi administrado colectivamente, em ambiente de sala de aula, na parte final de um tempo lectivo cedido pelos professores dos cursos envolvidos na amostra. Para cada curso, procurou-se ir às disciplinas com maior frequência e às respectivas aulas teóricas. Após a explicação dos objectivos do questionário, e feito o pedido de colaboração aos estudantes, deixava-se-lhes total liberdade de aceitar ou não participar. Explicava-se também que o questionário seria anónimo e os seus dados confidenciais, sendo apenas necessário preencher alguns elementos de identificação para caracterização da amostra (cerca de 20% dos estudantes não aceitaram colaborar, apontando razões diversas como, por exemplo, a necessidade de apanharem um transporte ou o facto de não serem alunos do primeiro ano). De um modo geral, os alunos que responderam ao QVA fizeram-no de forma bastante consciente e interessada. A aplicação não teve limite de tempo e os alunos demoraram, em média, 20 minutos a responder ao questionário.
Resultados
Apresentam-se no quadro 2 os resultados nas 17 subescalas do questionário. Esta apresentação considera, a par da média e do desvio-padrão, alguns índices da distribuição dos resultados (variação, assimetria e curtose). Importa referir que, face à organização das respostas, as pontuações mais elevadas nas subescalas correspondem a melhores percepções dos alunos. Esta lógica, no entanto, merece ser discutida em relação a duas subescalas: relacionamento com a família e gestão dos recursos económicos. Na subescala relacionamento com a família, as notas mais elevadas traduzem maior interdependência entre o jovem e a sua família (diríamos uma situação de compromisso entre a dependência e a independência familiar absolutas). Neste caso, o jovem toma-se autónomo, mas mantém relações de proximidade afectiva e social com os familiares. Na subesca la gestão dos recursos económicos já não é tão claro o sentido a dar às pontuações. As pontuações nalguns itens reportam-se essencialmente a dificuldades na gestão das verbas auferidas, enquanto noutros se avaliam situações econômicas difíceis vividas pelo estudante.
A leitura das médias e dos desvios-padrão obtidos não é fácil no presente, uma vez que nos faltam parâmetros de referência em termos nacionais. Mesmo assim, atendendo à escala de resposta aos itens (likert de cinco pontos), verificamos que, na generalidade das subescalas, a média de resposta dos alunos se situou acima, ou ligeiramente acima, de uma pontuação intermédia, considerando o número de itens por cada subescala. Os valores mínimos e máximos da distribuição nas 17 subescalas distanciam-se entre si em mais de quatro unidades de desvio-padrão, o que nos elucida sobre as boas capacidades discriminativas dos itens incluídos. Finalmente, os coeficientes de consistência interna dos itens (alfa de Cronbach) apresentam valores aceitáveis, e apenas a subescala envolvimento em actividades extracurriculares apresenta um coeficiente inferior a 0,70 (situou-se em 0,69).
A dimensionalidade do QVA foi analisada através de uma análise factorial exploratória. Optou-se por uma análise em componentes principais com rotação varimax, tomando todos os factores com valor-próprio (tigen-value) igual ou superior à unidade. No quadro 3 apresentam-se as saturações factoriais das 17 subescalas do QVA (apenas as saturações de valor igual ou superior a 0,40).
Os resultados do estudo da dimensionalidade do QVA evidenciam uma estrutura assente em cinco factores que explicam 72% da variância dos resultados nas 17 subescalas.
Como se pode constatar no quadro 3, o factor I assume bastante importância (41% da variância), encontrando-se sobretudo associado às dimensões de natureza mais pessoal. Algumas destas dimensões cobrem áreas do desenvolvimento psicológico (por exemplo, autonomia, autoconfiança e bem-estar físico e psicológico), enquanto outras se reportam à realização académica (percepção de capacidades, bases de conhecimentos e ansiedade na realização de testes). O factor II (responsável por 9,1% dos resultados) está mais directamente relacionado com as dimensões do projecto vocacional do estudante (carreira), onde a adaptação ao curso entra obviamente. O factor III reúne as dimensões mais directamente associadas à adaptação do aluno ao contexto académico, entendido aqui em sentido lato (adaptação à universidade, relacionamento com os colegas e envolvimento em actividades extracurriculares). O factor IV, ainda associado à realização académica, reúne as dimensões do QVA mais directamente relacionadas com o processo de ensino-aprendizagem, ou seja, as capacidades do estudante em organizar o estudo e em gerir o tempo, assim como o relacionamento com os professores. A importância destes aspectos, e a sua saturação num novo factor de índole académica, poderá induzir-nos para a singularidade destas variáveis, bastante confinadas às práticas de estudo e à aprendizagem dos estudantes, ao que não será alheio o facto de estarmos a lidar com alunos do primeiro ano vivenciando mudanças nos processos de ensino-aprendizagem. Finalmente, o factor V parece reflectir uma vertente económico-familiar de suporte ao aluno, tratando-se já de um factor bastante específico.
Discussão e conclusões
Um conjunto bastante diverso de variáveis interfer na qualidade da transição e adaptação dos estudantes ao Ensino Superior. A literatura agrupa as variáveis seguindo diferentes taxonomias. Neste artigo descrevemos esse processo de transição e adaptação recorrendo a: (i) variáveis mais directamente relacionadas com as tarefas de aprendizagem e de realização académica; (ii) variáveis de índole pessoal mais relacionadas com o desenvolvimento psicossocial do estudante; e (iii) variáveis mais amplas, associadas ao contexto académico. Todas estas variáveis interactuam, para explicar a qualidade da transição/adaptação, reconhecendo-se na literatura que toda a transição é vivenciada e faz apelo quer aos recursos psicológicos do próprio sujeito, quer às condições/exigências colocadas pelo novo contexto onde o indivíduo se vai inserir.
Tendo em vista uma avaliação inicial (despiste) de um conjunto de variáveis associadas às vivências que os alunos podem experienciar enquanto recém-chegados ao Ensino Superior ("caloiros")/ procedeu-se à construção do Questionário de Vivências Académicas (QVA). As 17 subescalas que compõem o instrumento mostram uma boa dispersão dos resultados, conseguindo-se também índices satisfatórios de consistência interna dos respectivos itens. Os coeficientes alfa oscilaram entre 0,69 (envolvimento em actividades extracurriculares) e 0,88 (bem-estar psicológico). Se neste último caso podemos associar o índice obtido ao maior número de itens da subescala (n=14), em relação ao envolvimento em actividades extracurriculares, a diversidade de situações que compõem esta subescala e o facto de os alunos do primeiro ano poderem desconhecer, ainda, algumas das alternativas de ocupação dos tempos livres proporcionadas pelo campus, poderão explicar a menor homogeneidade verificada nas respostas aos itens desta subescala.
A análise factorial aponta para a existência de cinco factores que explicam, no seu conjunto, 72% da variância dos resultados nas 17 subescalas. O primeiro factor reúne as dimensões pessoais e mais directamente ligadas ao desenvolvimento psicossocial do estudante, assim como a ansiedade na avaliação (realização de exames) tida, na versão inicial do QVA, como uma subescala da área da aprendizagem e do rendimento académico. E possível que os níveis de ansiedade experenciados pelos sujeitos nas situações de avaliação estejam mais associados às suas características pessoais ou de personalidade do que aos próprios contextos de aprendizagem e realização. O factor II prende-se com as subescalas académicas relacionadas mais com a adaptação ao curso e desenvolvimento da carreira socioprofissional, do que com as questões mais directamente relacionadas com o ensino, o estudo e a aprendizagem (factor IV). A delimitação na análise factorial destes dois factores na área académica não estava prevista inicialmente na fundamentação do QVA, mas acaba por se entender se considerarmos as dificuldades particulares que os alunos do primeiro ano podem vivenciar na sua adaptação a novas formas de ensinar e avaliar, a novos padrões de relacionamento com os professores, a mais tempo para gerir ou a novos métodos de estudo a construir.
O factor III congrega as subescalas mais directamente relacionadas com o contexto académico, pontuando aqui a adaptação à instituição, o envolvimento em actividades extracurriculares e o relacionamento com colegas. Finalmente, o factor V integra apenas duas subescalas: gestão de recursos económicos e relacionamento com a familia. Trata-se de um factor não previsto inicialmente e reunindo duas subescalas que, à partida, não eram supostas andarem juntas. Lendo os dados à posteriori parece-nos que este factor poderá traduzir as necessidades de subsistência e/ou de apoio dos estudantes, sobretudo nos primeiros meses em que vivem afastados da família, gerindo verbas mensais e equilibrando despesas de subsistência com despesas de lazer.
A finalizar, os coeficientes estatísticos obtidos legitimam a utilização do questionário servindo um primeiro nível de avaliação de variáveis que, de acordo com a literatura, parecem explicar os níveis e a qualidade da transição e adaptação ao Ensino Superior. Evidentemente que tais índices, mesmo sendo adequados, não legitimam a suficiência do QVA para uma avaliação, dita diagnóstica, das várias dimensões psicossociais versadas. E pois importante respeitar o QVA enquanto um instrumento de despiste, provavelmente com maior interesse de utilização para a investigação do que para a intervenção.
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Notas
1O Ensino Superior em Portugal subdivide-se em: Ensino Universitário e Ensino Politécnico. Neste trabalho não os diferenciamos, muito embora a maioria dos estudos nesta área se reportem genericamente à universidade.
2As transições caracterizam-se por serem períodos de conflitos de papéis entre dois estádios da vida claramente definidos e por implicarem o estabelecimento de novos padrões de vida. Desta forma, os acontecimentos de vida (life events) só são considerados transições se, face a eles, os indivíduos experenciarem um sentido de descontinuidade pessoal e uma necessidade de desenvolverem novos padrões de resposta comportamental, cognitiva e afectiva. Transição é, neste sentido, não o acontecimento em si, mas a percepção individual de mudança. No presente trabalho, assumimos o ingresso no Ensino Superior como transição, dado considerarmos que este acontecimento de vida encerra, em si mesmo, fortes possibilidades de ser experienciado enquanto transição, dado comportar, a par de um conjunto de mudanças desenvolvimentais, toda uma série de novos e complexos desafios que "forçam" o estudante universitário a um questionamento pessoal nos vários domínios da sua existência (académico, vocacional, social, emocional, intelectual e ético), promovendo assim o estabelecimento de novos padrões de funcionamento.