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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.16 no.1 Lisboa jan. 2002

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v16i1.468 

Diagnóstico de demência

Uma questão de critérios DSM-IV ou ICD-10?

Diagnosis of dementia: comparison between ICD-10 and DSM-IV

 

Manuela Guerreiro1

1Laboratório de Estudos de Linguagem, Centro de Estudos Egas Moniz, Hospital de Santa Maria.

 


RESUMO

Existem vários critérios para o diagnóstico de demência, sendo o DSM-IV e a ICD-10, os mais usados. Estes dois critérios, porque apresentam algumas diferenças entre si, classificam como tendo demência um número diferente de sujeitos. Estudámos 897 sujeitos com suspeita de demência os quais foram submetidos a avaliação neuropsicológica e foram classificados como tendo ou não demência, em função das exigências do DSM-IV e da ICD-10. Encontrámos que 82,6% dos casos eram classificados como dementes pelo DSM-IV, enquanto só 63,8% tinham este diagnóstico se utilizássemos a ICD-10. A concordância de diagnóstico verificava-se em 61,4% dos sujeitos. A diferença de percentagem de sujeitos classificados com tendo demência, dependendo do critério utilizado, tem implicações significativas, não só na investigação como também na terapêutica.

Palavras-chave : Demência, diagnóstico, DSM-IV, ICD-10.

 

ABSTRACT

There are several widely used sets of criteria for the diagnosis of dementia. ICD-10 and DSM-IV are the usual criteria for the diagnosis of dementia, but they can differ in the number of subjects classified as having dementia. In this study we analyzed the agreement of the two sets of clinical diagnostic criteria. We examined 897 subjects with suspected dementia syndrome. The subjects were submitted to a neuropsychological assessment and were classified as demented based on DSM-IV and on ICD-10 or as non-demented. We found that 82,6% of the cases were classified as demented by the DSM-IV criteria while only 63,8% of subjects were given a diagnosis of dementia according ICD-10 criteria. The agreement on the two criteria was 61,4%. The different percentage of demented subjects, depending the criteria used, has significant implications for research and treatment.

 


Introdução

Têm sido feitas várias tentativas de especificação dos critérios de diagnóstico, de modo a obterem-se não só diagnósticos mais rigorosos de demência, como também dos diferentes tipos de demência. A utilização de critérios de diagnóstico de demência padronizados conduz à possibilidade de comparar resultados de estudos realizados em países diferentes, quer sejam estudos epidemiológicos, biológicos ou de investigação clínica. A variabilidade de resultados, ainda encontrada, pode ser devida, por um lado, à precisão com que o observador aplica os critérios de diagnóstico, mas esta é uma variação inevitável, e por outro lado, ao facto de existir mais de um critério de diagnóstico, com características diferentes.

A Organização Mundial de Saúde (OMS, 1992), na sua classificação internacional das doenças, 10.a edição (ICD-10), dá a seguinte definição de demência: "evidência de declínio, em simultâneo, da memória e do pensamento (capacidade de raciocínio), suficientemente marcada para interferir nas actividades da vida diária, tendo, pelo menos, seis meses de evolução e podendo ainda coexistir alteração nas seguintes funções: linguagem, cálculo, julgamento, pensamento abstracto, praxias, gnosias ou personalidade". As alterações cognitivas acompanham-se, ou são precedidas, duma alteração do controlo emocional, do comportamento social ou da motivação. Para a ICD-10, a presença de defeito de memória é necessária para o diagnóstico de demência, referindo ainda que este diagnóstico deve ser suportado pela história clínica, estabelecido pelo exame de estado mental e assistido pelos exames de imagem. Esta definição é relativamente ampla e não implica uma deterioração intelectual importante, mas apenas um declínio em relação a um estado anterior.

Outro critério, usado internacionalmente, é o DSM-IV, da Associação Psiquiátrica Americana (APA, 1994), para o qual a demência inclui a presença de defeito de memória, com alterações associadas de outras funções nervosas superiores, tais como a linguagem, praxias ou alterações de personalidade. Este manual define a demência como "a perda das capacidades intelectuais, de gravidade suficiente para interferir com o funcionamento social e profissional", sendo necessária a presença de defeito de memória e de, pelo menos, outra função cognitiva. Também este critério é bastante amplo, deixando grande liberdade de interpretação individual.

De acordo com os manuais, DSM-IV (APA, 1994) e ICD-10 (OMS, 1992), o diagnóstico de demência é baseado principalmente na sintomatologia e independente da etiologia. Os dois critérios têm diferenças, apesar de ambos terem sido elaborados por consensos entre vários especialistas. O DSM-IV (APA, 1994), ao contrário da ICD-10 (OMS, 1992), não refere tempo de duração da síndroma, antes do diagnóstico de demência ser feito, nem se refere às técnicas de imagem cerebral ou à neuropatologia. Na ICD-10 (OMS, 1992), por outro lado, as alterações no comportamento social não são indicadas como um critério de diagnóstico.

Nos critérios de diagnóstico de demência da ICD-10 (OMS, 1992), o defeito do funcionamento na vida diária não é um critério obrigatório, nem os defeitos afásicos, apráxicos ou agnósicos, como o são para o DSM-IV (APA, 1994), apesar de os dois sistemas serem semelhantes, nas áreas identificadas com critérios específicos. Tanto a ICD-10 (OMS, 1992), como o DSM-IV (APA, 1994) dão pouca ênfase ao conceito "global" do defeito cognitivo, salientam que o defeito de memória isolado não é suficiente para o diagnóstico. Os dois critérios excluem a presença de estado confusional, para que possa ser feito o diagnóstico de demência. Na ICD-10 (OMS, 1992) a demência é considerada como "geralmente de natureza crónica ou progressiva", enquanto que, no DSM-IV (APA, 1994) este prognóstico não é mencionado (quadro 1).

Num estudo multinacional, Baldereschi et al. (1994), usando os critérios de demência do DSM-III-R (APA, 1987) e da ICD-10 (OMS, 1992), analisaram a concordância interobservador no diagnóstico clínico da demência e nos diferentes subtipos de demência, tendo encontrado um valor de aproximadamente 0,70 entre ambos os critérios. Este estudo mostra que, para culturas diferentes, estes dois critérios para demência, o DSM-III-R (APA, 1987) e a ICD-10 (OMS, 1992), apresentam discrepâncias, embora com alguma validade interobservador.

Material e métodos

Comparámos os dois critérios de demência, DSM-IV e ICD-10, numa amostra de 897 sujeitos (410 do sexo masculino e 487 do sexo feminino), que foram enviados ao Laboratório de Estudos de Linguagem, para confirmação de diagnóstico ou para caracterização de demência. A idade média dos sujeitos desta amostra é de 61,8 anos (29 a 87), com 3,4 anos de tempo médio de evolução (1 a 29) e uma média de escolaridade de 5,3 anos (0 a 16) (quadro 2). Considerámos como tempo de evolução o tempo decorrido entre o início das queixas (referidas pelo próprio sujeito ou pelo acompanhante) e a data da avaliação neuropsicológica, independentemente do resultado do exame neuropsicológico, isto é, mesmo que o diagnóstico de demência não se confirmasse. Em cada teste e para cada sujeito, foi considerado haver "defeito", sempre que o sujeito obtivesse resultados inferiores a menos um desvio-padrão, em relação á média do grupo de controlo a que pertencia, em função da idade e escolaridade, segundo os valores normativos (Garcia & Guerreiro, 1983; Garcia, 1984).

Todos os sujeitos foram submetidos a avaliação neuropsicológica, com a Bateria de Lisboa para Avaliação das Demências (BLAD), para inferir ou não a presença de demência. Os resultados obtidos na avaliação neuropsicológica foram confrontados com as exigências de cada um dos critérios, DSM-IV (APA, 1994) e ICD-10 (OMS, 1992). A ICD-10 (OMS, 1992) refere, numa primeira definição, as características fundamentais e indispensáveis ao diagnóstico de demência (defeito de memória e declínio no pensamento abstracto), mas acrescenta que o diagnóstico é mais preciso se forem encontradas alterações noutras funções mentais (cálculo, linguagem, etc.) (quadro 1), o que nos levou a realizar duas análises: uma considerando apenas a presença de defeito de memória e de pensamento abstracto, que designámos por suberitério 1, e a outra adicionando a estas características as que tomam o diagnóstico mais preciso, e que designámos por suberitério 2. Acada sujeito foram aplicados os três critérios (DSM-IV e as duas possibilidades da ICD-10), sendo analisado se havia concordância nas três classificações, isto é, se o sujeito era considerado "demente" ou "não-demente" pelos três critérios, ou se os diagnósticos diferiam entre os critérios.

Resultados

Nesta amostra, o DSM-IV classifica como dementes 82,6% dos casos (quadro 3), enquanto que, para satisfazer o suberitério 1 da ICD-10, 63,8% dos sujeitos são considerados com demência. Esta percentagem diminui para 54,2%, quando se aplica o que designámos por suberitério 2 da ICD-10 (quadro 4).

A análise estatística de distribuição de frequências (qui-quadrado), entre o DSM-IV e cada um dos dois subcritérios da ICD-10, revela heterogeneidade significativa nestas distribuições de frequências (x2= 69,5 e x2=148,6, respectivamente para o que designámos por subcritério 1 e subcritério 2, da ICD-10; p< 0,0000) (quadro 5).

O número de casos comuns aos dois critérios, considerando o subcritério 1 da ICD-10 e o DSM-IV, independentemente de serem classificados "com” ou "sem” demência, é de 81,3% (729 casos). A concordância de diagnóstico (sujeitos classificados do mesmo modo nos dois critérios) verifica-se em 61,4% dos casos, sendo 15,9% a concordância entre ausência de demência e 45,5% a concordância na presença de demência. Isto significa que 19,9% dos casos podem ser classificados como "dementes" num critério e como "não-dementes" noutro critério.

Se analisarmos o tempo de evolução, nos casos em que há concordância de diagnóstico entre os dois critérios (considerando o subcritério 1 da ICD-10) e os casos em que se verifica discordância nos critérios, encontramos que a média do tempo de evolução é mais baixa no grupo em que não há acordo de classificação entre os critérios, mas não atingindo a diferença significado estatístico, se aceitarmos o valor de significância de 0,05 (t=1,7; p=0,06) (quadro 6).

 

quadro 7

 

No entanto, se considerarmos a gravidade da demência, avaliada pela escala de Blessed (Blessed et al, 1968), encontramos diferença significativa entre os casos em que existe concordância de classificação e os casos em que existe discordância, tendo estes últimos uma gravidade inferior.

Comentários

Apesar das várias tentativas para uniformizar o conceito geral de demência, e sendo uma realidade que, actualmente, existe muito mais consenso do que há uns anos atrás, continuam ainda a verificar-se discrepâncias evidentes entre os critérios de diagnóstico mais utilizados, o DSM-IV (APA, 1994) e a ICD-10 (OMS, 1992).

O facto de o grau de concordância (casos diagnosticados com e sem demência), entre estes dois critérios, ser relativamente baixo e de o número de casos diagnosticados como dementes ser diferente, em cada um dos critérios usados, revela a necessidade de maior uniformização para os critérios conducentes ao diagnóstico de demência. AICD-10 é um critério mais exigente e mais específico do que o DSM-IV. O DSM-IV é mais sensível, podendo incluir um valor mais alto de falsos positivos (sujeitos normais que são classificados como dementes) do que a ICD-10.

As discrepâncias entre os dois critérios não parecem depender do tempo de evolução dos casos, apesar de este tempo ser maior nos casos onde há concordância, mas a gravidade da demência é superior no grupo onde há concordância de critérios. Este resultado sugere que a concordância dos dois critérios é maior quanto mais graves forem os casos.

Pohjasvaara et al. (1997), num estudo de demência, numa população de doentes com AVC isquémico, encontraram uma frequência de demência de 18,4% com o DSM-IV e de 6% com a ICD-10. Discrepâncias semelhantes foram encontradas em estudos com doentes psiquiátricos, nomeadamente, na presença/ausência de alterações de personalidade após alterações psicóticas agudas e transitórias, em que Jorgensen et al. (1997) encontraram valores de 54%, com a ICD-10, e 71%, com a DSM-IV, e Siebel et al. (1997) referem uma percentagem de concordância de 65,6% entre estes dois critérios, num estudo de fidedignidade do sistema multiaxial do capítulo V(F) da ICD-10. Erkinjuntti et al. (1997), encontraram valores igualmente discrepantes na classificação de demência, utilizando o DSM-III-R e a ICD-10.

Para além dos efeitos que as discrepâncias entre os critérios produzem nos estudos de diagnóstico e de prevalência, também nos ensaios clínicos poderão ter repercussões importantes, pois a selecção de sujeitos a incluir tem de ser criteriosa e fidedigna. Muitos destes ensaios incluem doentes em fase ligeira, e é neste grupo de doentes que se verifica maior discrepância entre os critérios.

Consideramos que a opção por um ou outro dos critérios poderá depender dos objectivos dos estudos e da ponderação do risco em se incluir mais falsos positivos ou mais falsos negativos. No entanto, deverá ter-se sempre presente que estes dois critérios são instrumentos que, mesmo quando utilizados numa mesma população, originam resultados com diferenças importantes.

 

Referências

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