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Psicologia
versão impressa ISSN 0874-2049
Psicologia vol.17 no.1 Lisboa jan. 2003
https://doi.org/10.17575/rpsicol.v17i1.436
Questões actuais em intervenção precoce
Present issues of early intervention
Joaquim Bairrão*; Isabel Chaves de Almeida**
*-**Faculdade de Psicologia e de Citadas da Educação da Universidade do Porto; Centro de Estudo e Apoio à Criança e À Família, MTSS
RESUMO
Tendo como quadro conceptual de referência o modelo de Bronfenbrenner (1979,1998) para a teorização e práticas da Intervenção Precoce, os autores vão, na primeira parte deste artigo, analisar o "estado da arte" da Intervenção Precoce nos EUA, à luz do trabalho de Bailey e Wolery (2002). Em seguida, vão confrontar os principais problemas referenciados nesta área nos EUA, com os problemas detectados na situação portuguesa através do estudo de Bairrão e Almeida (2002). Dessa análise comparativa ressalta a grande distância que nos separa dos EUA em matéria de Intervenção Precoce, tanto no domínio teórico como no das práticas. Os principais problemas que a Intervenção Precoce revela entre nós, aliás comuns aos demais domínios da educação, são: a inexistência de uma organização eficaz de recursos, a ausência de uma planificação realizada com base em opções e objectivos bem determinados e, claro está, um financiamento ajustado às necessidades das crianças com necessidades educativas especiais e suas famílias.
Palavras-chave Intervenção precoce, conceitos, eligibilidade, programas de intervenção.
ABSTRACT
The authors underline the importance of Bronfenbrenner' theory of Human Development (1979,1998) for the theory and practice of Early Intervention (El). Based on the work of Bailey and Wolery (2002), concerning the recommendations for a federal special education agenda, in particular in El, provision of special education and related services for infants, toddlers and preschoolers with disbilities and their families, the above mentioned authors in the second part of this papper made a comparaison with El programmes and provision for Portugal (BairrSo & Almeida, 2002). The authors conclude assuming that there exists a great gap between the two countries in what concerns EL They also stress the need of a good organization, planning, staffing and financing of El programmes in Portugal in order to give to poruguese children with special education needs and their families the urgent education and care they really need.
Bailey e Wolery (2002) dão-nos uma definição genérica de Intervenção Precoce: a Intervenção Precoce abrange serviços de educação especial e afins destinados às crianças de idades precoces e de idade pré-escolar com necessidades educativas especiais e às suas famílias.
Por sua vez, Dunst e Bruder (2002) consideram que a Intervenção Precoce diz respeito:
a) Aos serviços, apoios e recursos necessários para responder às necessidades de todas as crianças que acorrem aos programas de Intervenção Precoce. Com este objectivo inclui actividades e oportunidades que visam incentivar a aprendizagem e o desenvolvimento da criança.
b) Aos serviços, apoios e recursos necessários para que as famílias possam promover o desenvolvimento dos seus filhos, criando oportunidades para que tenham um papel activo neste processo.
Se aceitarmos com Bronfenbrenner, de acordo com a sua Teoria Ecológica, que o desenvolvimento resulta do processo de interacção entre a criança e os vários contextos em que está inserida, é fácil concluir da importância desta teoria para a fundamentação teórica e prática da Intervenção Precoce. A primeira teorização de Bronfenbrenner, de 1979, permite-nos localizar no espaço e no tempo os vários cenários de socialização da criança, desde os mais próximos em que ela está inserida, família, escola e comunidade (micro e mesossistema), até aos mais distantes que vão influenciar estes cenários (exo e macrossistema), quer do ponto de vista dos valores e da cultura, quer da organização de recursos para a criança e família.
Esta primeira conceptualização da teoria ecológica do desenvolvimento vai evoluindo, até que, a partir de 1989, Bronfenbrenner reformula a sua definição de ecologia do desenvolvimento humano, o que vai implicar um alargamento que tem sobretudo a ver com os processos de desenvolvimento desde as suas fases precoces.1 Nesta reformulação, o autor encorpora alguns dos conceitos veiculados por Sameroff no seu modelo transaccional2 e vai considerar que o desenvolvimen to ocorre através de processos de interacções recíprocas cada vez mais complexas, entre um organismo humano biopsicológico em evolução e as pessoas, objectos e símbolos do seu meio ambiente externo. Por outras palavras, Bronfenbrenner vai sobretudo preocupar-se com aquelas interacções duradouras no meio circundante, que ele refere como processos próximos. São exemplos destes processos, alimentar ou brincar com o bebé, actividades de jogo ou outras situações de aprendizagem da criança.
Nesta nova conceptualização, Bronfenbrenner vai também aprofundar o conteúdo e duração dos processos próximos que afectam o desenvolvimento e que variam sistematicamente em função das características, quer da pessoa em desenvolvimento, quer do ambiente, da natureza dos produtos do desenvolvimento, da continuidade e mudanças sociais que ocorrem ao longo do tempo e do período histórico em que a pessoa vive (Bronfenbrenner & Morris, 1998).
Assim, quando se fala duma perspectiva ecológico-transacdonal do desenvolvimento humano, é importante ter presente que tal perspectiva tem paralelamente implicações conceptuais e organizacionais. Isto é, tem implicações sobre como fazer Intervenção Precoce tendo em conta a complexidade do processo de desenvolvimento e, simultaneamente, sobre como organizar serviços e recursos de forma a que estes possam responder adequadamente às necessidades das crianças e das famílias.
De facto, tanto o modelo de Bronfenbrenner como o de Sameroff vão ligar-se de perto com os aspectos de fundo da prática da Intervenção Precoce, desde a compreensão da ecologia da família, à elaboração de planos de intervenção ou à inclusão das intervenções educativas ou terapias em contextos naturais.
Tendências actuais da intervenção precoce
Bailey e Wolery (2002) apresentaram perante uma comissão presidencial sobre educação especial uma reflexão sobre o estado da arte da Intervenção Precoce nos EUA nos últimos 30 anos. Nessa comunicação os autores elegeram cinco áreas que consideram merecer especial atenção:
— identificação precoce e elegibilidade;
— modalidades de intervenção;
— avaliação dos resultados dos programas;
— legislação específica e gestão de recursos humanos e financeiros;
— organização e apoio à investigação.
Neste trabalho preocupar-nos-emos apenas com os três primeiros aspectos, abordando em primeiro lugar a situação nos EUA, para posteriormente a compararmos com aquilo que se passa entre nós, sem no entanto nos pautarmos estritamente ao texto referido*
Neste momento há nos Estados Unidos um reconhecimento generalizado dos progressos e da importância das respostas implementadas nos serviços de educação precoce e no pré-escolar. Partindo de um leque muito vasto de investigação e intervenção que implicam abordagens multidisciplinares, em que campos muito diversos se entrecruzam, nomeadamente, a neurobiologia, a psicologia, a antropologia, os estudos sobre a família e sobre o desenvolvimento, chegou-se a um consenso sobre o papel decisivo das idades precoces no desenvolvimento da criança e na vida da família. Assim, hoje, a principal preocupação é a de saber como prestar os serviços mais adequados, ou seja, aqueles que proporcionam melhores resultados no campo da Intervenção Precoce.
Identificação precoce e elegibilidade
É consensual que, quanto mais cedo se iniciarem os programas de Intervenção Precoce e quanto melhor for a sua qualidade, mais eficaz será a intervenção.
Bailey e Wolery também chamam a atenção para estes aspectos, referindo que nas próximas décadas o debate será sobretudo sobre a eficácia da identificação precoce. Pondo a tónica sobre o facto de algumas crianças serem identificadas mais cedo do que outras, os autores indicam vários tópicos de reflexão, nomeadamente: a diversidade local das práticas e de critérios de elegibilidade; a falta de experiência a nível de diagnóstico; a importância da existência de modelos de identificação precoce de carácter multidisciplinar ou baseados na comunidade; a existência de instrumentos de rastreio eficazes; as características próprias das diferentes situações de deficiência e a consequente possibilidade de detecção precoce dos sinais* Finalmente, importa ainda chamar a atenção para os possíveis efeitos perversos da detecção precoce, nomeadamente no que diz respeito ao decréscimo das expectativas e possível desmobilização de pais e de profissionais
Modalidades de intervenção
0 objectivo da Intervenção Precoce não é criar novos serviços, mas antes facilitar e coordenar o acesso aos serviços já existentes, completando-os se necessário. Existem diferentes formas de prestar serviços em Intervenção Precoce. Estes variam ainda, consoante os contextos em que decorrem, o tipo de actividades que desenvolvem e o modelo teórico que lhes está subjacente. Todas estas prestações variam no que diz respeito à quantidade e qualidade dos serviços prestados, mas, em última análise, todos têm como objectivo servir as famílias e as crianças.
Em termos teóricos, constata-se, nos EUA, uma preferência por programas de Intervenção Precoce individualizados e ecológicos. No entanto, coexistem vários modelos de resposta, que não foram ainda avaliados no que se refere à sua eficácia. Ora é interessante verificar que, de um modo geral, os pais estão satisfeitos com os serviços que recebem e que os consideram eficazes, quer para os seus filhos, quer para si próprios.3
Perante a diversidade de serviços prestados, Bailey e Wolery consideram que a grande questão que se vai colocar na próxima década será a de saber quais os melhores modelos e programas para as diferentes crianças e famílias. Para poder responder a esta interrogação apontam várias questões de investigação que pormenorizaremos em seguida.
1 Até que ponto se pode aumentar a eficácia dos programas de Intervenção Precoce para as crianças dos 0 aos 2 anos e dos 3 aos 5 anos com incapacidades? Bailey e Wolery salientam a necessidade de levar a cabo pesquisas sobre:
a) A eficácia dos diferentes modelos, relacionando as questões da eficácia com as diferentes problemáticas das crianças, as suas diferentes idades e os seus diferentes antecedentes culturais e socioeconómicos.
b) A importância da intensidade ou frequência do programa. Apesquisa já sugerira que os programas mais intensos são os mais eficazes, mas o número de estudos é muito limitado. Importa saber agora qual o limiar abaixo do qual um programa não tem qualquer efeito e acima do qual os benefícios são marginais.
c) A importância da qualidade do programa. A pesquisa com crianças ditas normais provou que a qualidade dos programas está directamente relacionada com resultados mais elevados a nível do desenvolvimento da criança. Não existem, no entanto, pesquisas referentes a programas destinados a crianças com necessidades educativas especiais. São pois necessários estudos que visem o desenvolvimento de instrumentos de medida da qualidade de tais programas.
d) A identificação de factores mediadores e moderadores que influenciam a eficácia dos programas de intervenção. Pesquisas prévias sugerem que a intervenção não pode ser definida apenas pela estrutura organizacional do serviço, pois são os serviços que têm de se adaptar às características das crianças e das famílias e não o oposto. É necessária pesquisa para identificar os factores que promovem ou impedem o fruir dos benefícios da intervenção.
2 Quais os novos tipos de abordagens que são necessárias para responder a domínios e problemáticas específicas? É prioritariamente necessária pesquisa que permita fazer recomendações fundamentadas relativamente a:
a) Modelos de intervenção com crianças com problemáticas específicas: autismo, paralisia cerebral, problemas de comportamento, etc.
b) Intervenção em situações de interacção social nas quais é primordial a utilização da linguagem/comunicação ou a emergência das capacidades de literada.
c) Estratégias de intervenção que permitam compreender e prevenir a emergência de problemas de saúde mental, particularmente no contexto da família e da comunidade.
d) Estratégias de intervenção que surjam inseridas nas interacções continuadas da criança com os diferentes elementos dos seus diversos contextos de socialização.
3 Como podemos garantir que práticas empiricamente validadas sejam usadas de forma regular e apropriada? Parece existir uma discrepância entre as práticas recomendadas, fundamentadas na investigação, e as práticas reais dos profissionais. É necessário desenvolver pesquisa que incida sobre estas últimas, assim como sobre a inclusão de crianças com necessidades educativas especiais em estruturas de prestação de cuidados, identificando factores que impeçam uma Intervenção Precoce de qualidade nesses contextos. Finalmente, são necessários ainda estudos que permitam compreender os processos que possam levar os profissionais a utilizar as práticas mais recomendadas pela pesquisa. Este processo deveria passar pela avaliação dos programas e por incentivos às políticas gerais de funcionamento que se revelassem como mais eficazes.
4 Quais as práticas que promovem o bem-estar da família e que a ajudam a proporcionar um melhor desenvolvimento aos seus filhos? O papel fundamental da família nos programas de Intervenção Precoce é unanimemente reconhecido, porém continua a ser necessária mais pesquisa sobre esta área temática. Bailey e Wolery sugerem três áreas prioritárias:
a) Estudos que incidam sobre famílias que tiveram mais dificuldades em se adaptar ao facto de terem um filho com necessidades educativas especiais. É necessário saber identificar essas famílias e ajudá-las a recuperar a autoconfiança e a tornarem-se activas na resolução de problemas e na tomada de decisão em tudo aquilo que diz respeito ao seu filho.
b) Estudos que incidam sobre a identificação de estratégias que:
— se enquadrem no dia-a-dia das famílias;
— promovam as suas competências no que diz respeito à aprendizagem de estilos de interacção;
— promovam a utilização de estratégias compósitas de intervenção no contexto das rotinas diárias;
— promovam a comunicação pais-profissionais.
c) Estudos que desenvolvam modelos e práticas de apoio às famílias com crianças com necessidades educativas especiais, que vivam, simultaneamente, em condições de risco social grave como: pobreza extrema, zonas de crime organizado, comunidades rurais isoladas, etc.
Avaliação dos resultados dos programas de Intervenção Precoce
Na sua reflexão Bailey e Wolery (2002) salientam a importância da avaliação das práticas de Intervenção Precoce, chamando, no entanto, a atenção para a complexidade desta tarefa. De facto, avaliar programas de Intervenção Precoce não é fácil, uma vez que o carácter inerentemente individualizado e simultaneamente abrangente (criança, família e comunidade) deste tipo de intervenção implica a coexistência de um grande número de variáveis. Assim, temos uma grande diversidade de formas de prestação de serviços que variam, quer em função das problemáticas das crianças, quer em função das suas idades. É muito diferente o apoio prestado a uma criança com perturbações simples de linguagem, daquele outro que é prestado a uma criança com paralisia cerebral associada a atraso mental. Da mesma forma é diferente a intervenção com um bebé, uma criança de dois anos ou outra de idade pré-escolar.
Por outro lado, ao ser uma forma de prestação de serviços que diz essencialmente respeito à criança e à família, implica que sejam avaliados também os efeitos dos programas a estes dois níveis:
a) Aquilo que se espera para a criança é, por exemplo, a promoção do seu envolvimento, independência e mestria, uma aceleração do seu desenvolvimento em domínios-chave (cognitivo, social, físico, adaptativo) e a generalização de competências. Em síntese, pretende-se preparar a criança para experiências de vida normalizantes e prevenir a emergência de comportamentos problemáticos e condições secundárias à deficiência.
b) Por sua vez, no que diz respeito às famílias, esperam-se resultados referentes à forma como estas percepcionam a Intervenção Precoce, nomeadamente, perceber até que ponto é que elas sentem que esta intervenção veio imprimir uma diferença na vida da criança e da família e trazer uma visão mais positiva dos profissionais e dos serviços. Esperam-se ainda resultados que tenham a ver com a influência que a Intervenção Precoce teve na família, a diferentes níveis, tais como: na forma como a ajudou a promover o desenvolvimento da criança, a trabalhar com os profissionais, a lutar pela melhoria dos serviços, a construir uma rede de apoio eficaz, em síntese, a ter uma melhor qualidade de vida.
No entanto, segundo Bailey e Wolery (2002), aquilo que se passa nos EUA no que respeita às avaliações sobre os efeitos dos programas nas crianças e nas famílias é que estas avaliações são escassas, inadequadas, e os seus resultados não podem, na maioria dos casos, ser utilizados de forma generalizada.
Finalmente, os autores chamam a atenção para um último aspecto que tem a ver com a dificuldade de medir adequadamente o efeito que os antecedentes étnicos, linguísticos, culturais e económicos das populações abrangidas podem ter nos resultados das avaliações.
Apesar de todas estas dificuldades e tendo em conta a importância fundamental da avaliação, os autores apontam como prioritárias as seguintes áreas de investigação:
1) Estudos que incidam sobre os instrumentos de avaliação dos resultados na família. Na opinião de Bailey e Wolery (2002), a maioria dos instrumentos actualmente utilizados não são, de um modo geral, não intrusivos, "amigáveis", eficazes e tecnicamente adequados, tal como seria desejável. Enquanto não existirem instrumentos com estas características dificilmente se poderão conduzir avaliações seguras sobre os ganhos a nível das famílias.
2) No que diz respeito à melhor forma de medir os progressos das crianças que são abrangidas pelos programas de Intervenção Precoce, os autores defendem que estas medidas deverão ser abrangentes, incluindo todas as áreas do desenvolvimento e ainda os efeitos que têm no seu desenvolvimento os factores de risco, assim como os factores de oportunidade, existentes na comunidade e na família. Há pois que estar atento aos efeitos cumulativos de risco, assim como aos de oportunidade. Será que os programas de Intervenção Precoce têm em conta esses factores? Uma segunda questão que se levanta é a de saber até que ponto factores como etnia, linguagem, cultura e pobreza vão influenciar a participação da criança e da família nos programas e consequentemente os resultados. Nos EUA esta questão está longe de ter uma resposta adequada e, como corolário, os autores deixam um alerta: avaliações de programas de Intervenção Precoce baseados em medidas estritas e pontuais conduzem a constatações espúrias sobre a sua eficácia.
Chegamos, assim, ao fim da análise que nos propusemos realizar com base na comunicação apresentada por Bailey e Wolery (2002). As preocupações destes autores revelam uma Intervenção Precoce já estruturada, com largos anos de experiência, quer a nível das práticas, quer da reflexão e da pesquisa. E interessante constatar que, em grande medida, as principais questões que hoje se colocam sobre a Intervenção Precoce em Portugal tocam os mesmos temas, embora numa ordem de grandeza muito diferente e num estádio de desenvolvimento muito inferior.
Algumas considerações sobre a Intervenção Precoce em Portugal
Na segunda parte deste trabalho, iremos então reflectir sobre a realidade portuguesa, tendo como pano de fundo a comunicação de Bailey e Wolery (2002). Serão realçadas algumas das conclusões do estudo nacional levado a cabo por Bairrão e Almeida (2002). Neste estudo, os autores pretendiam avaliar as práticas do universo dos educadores do Ministério da Educação que, nas dnco diferentes Direcções Regionais de Educação existentes no país trabalhavam com crianças entre os 0 e os 6 anos de idade, no âmbito das Equipas dos Apoios Educativos. Para tal, foram enviados 1523 questionários, predominantemente de questões fechadas, tendo o número de respostas válidas sido de 1048, o que corresponde a uma taxa de mortalidade de 31%, que se pode considerar aceitável. Por sua vez, este conjunto de educadores atendia 5206 crianças entre os 0 e os 6 anos, correspondendo 882 à faixa etária dos 0 aos 2 anos,4 e 4324 à dos 3 aos 5 anos,5 números que por si só chamam a atenção para a disparidade no atendimento às duas faixas etárias e para a baixa cobertura na faixa de crianças com idades mais precoces.
Identificação precoce e elegibilidade6
A legislação existente em Portugal relativa à Intervenção Precoce, o despacho conjunto 891 /99, tem sofrido fortes críticas e levantado problemas, nomeadamente, no que diz respeito à sua implementação, por dificuldades de adequação à realidade portuguesa, realidade essa que a lei parece desconhecer. Elaborada a partir da legislação americana, sobretudo da PL 94-457 e da IDEA, não teve na sua base um estudo aprofundado sobre aquilo que nesta área se passava em Portugal, o que a tomou irrealista no que diz respeito à sua operadonalização e equívoca naquilo que tem a ver com a relação entre necessidades e recursos, formas de implementação no terreno, formas de organização e financiamento, etc. Um aspecto importante, em que a lei é omissa, é o problema da elegibilidade.
De facto, no que diz respeito à questão da elegibilidade das crianças para os programas de Intervenção Precoce, no nosso país não existem nem estão previstos critérios nacionais, e a legislação não os define, deixando-os à consideração das várias equipas de coordenação.
Se aceitarmos com Meisels e Wasilc (1990) a definição de risco ambiental, risco biológico e risco estabelecido, constatamos que, pelo menos no que diz respeito ao Ministério da Educação, são predominantemente os casos de risco estabelecido que são atendidos, ficando os de risco biológico e ambiental para segundo ou terceiro planos. De facto, para além dos critérios pediátricos utilizados pelos serviços de saúde, não existem quaisquer outras definições de risco que possam servir de referência às tomadas de decisão dos programas e serviços. fica pois ao critério das equipas a selecção das crianças a apoiar, arriscando-se esta a ser definida essencialmente em função dos recursos humanos e materiais disponíveis.
De igual modo, no que se refere à detecção e encaminhamento das crianças, verificámos no nosso estudo que a sinalização das situações para os recursos de Intervenção Precoce existentes é, na grande maioria dos casos, tardia.
Constataram-se dificuldades a nível dos canais de comunicação entre vários serviços, o que vai comprometer uma organização e coordenação eficaz de serviços e recursos. Por sua vez, a inexistência de critérios de elegibilidade traduz-se numa cobertura irregular e escassa das situações, dependente do critério dos técnicos intervenientes. Na realidade, o que se verifica é que as situações de risco estabelecido, na maioria dos casos, se arrastam nos serviços especializados de saúde com vista à obtenção de um diagnóstico que não deveria ser indispensável à sinalização/intervenção. Por sua vez, as situações de risco biológico e/ou ambiental só com alguma dificuldade são detectadas nos serviços de cuidados primários de saúde, serviços de educação (jardins de infância, equipas de coordenação dos apoios educativos) e segurança social (creches, jardins de infância, rendimento mínimo garantido) e, com maior dificuldade ainda, são assumidas pelos programas e serviços, quer por falta de recursos humanos, quer financeiros.
Modalidades de intervenção
Passamos agora a analisar aquilo que se passa em termos de práticas de Intervenção Precoce, sem esquecer que temos como referência apenas os educadores do Ministério da Educação. São de facto estes os profissionais que cobrem de uma forma mais ou menos homogénea todo o país, quer quando trabalham no âmbito das equipas dos apoios educativos, quer quando estão inseridos em vários projectos de Intervenção Precoce realizados em parceria com outras instituições (cerca de 20% da nossa amostra).
Pelas razões acima apontadas, no que se refere ao trabalho em equipa, são visíveis, na maioria dos casos, dificuldades, quer na constituição das equipas, quer na organização e coordenação das mesmas. A actividade pluridisciplinar não é comum no Ministério da Educação, e quando existe visa sobretudo aspectos avaliativos. Constatou-se, na maioria das situações, a existência de práticas monodisciplinares, centradas na criança, tendo subjacente um modelo descontextualizado e parcelar, decorrente de uma deficiente coordenação de serviços e recursos e bem longe de uma intervenção centrada na família, tal como hoje se recomenda em Intervenção Precoce. De facto, é muito incipiente a participação das famílias nos programas de Intervenção Precoce, e esta, quando existe, é essencialmente a nível da avaliação. Por sua vez, a ausência de recursos limita intervenções diferenciadas, nomeadamente no domínio de terapias específicas, o que obriga a uma constante procura de outros recursos para as crianças e famílias, fora do âmbito dos programas do Ministério da Educação.
No que diz respeito à forma como os serviços e recursos da comunidade estão organizados para dar respostas em termos de Intervenção Precoce, constata-se, de um modo geral, uma forma de organização precária. Esta precariedade decorre de indefinições em termos de políticas gerais e de dificuldades de coordenação no terreno. É de salientar uma sobreposição de acções em certos domíniose a ausênda de intervenções noutros, assim como uma deficiente partilha de informação, quer dentro dos próprios serviços, quer entre serviços.
Um aspecto que pela sua importância convém ainda salientar, é a grande mobilidade dos profissionais, com especial incidência nos educadores, o que implica uma descontinuidade nos programas com gravíssimas consequências nas crianças e nas famílias.
As dificuldades que vimos apontando são sobretudo mais visíveis nos programas monodisciplinares. No entanto, aparece já um número razoável de educadores inseridos em projectos integrados (cerca de 20% deste universo), com práticas j á consolidadas e de maior qualidade, em que se vão ensaiando novos métodos de intervenção. Uma política que incrementasse este tipo de projectos e permitisse a consolidação dos já existentes poderia, a médio prazo, melhorar o panorama de Intervenção Precoce em Portugal, passando-se de um grande número de situações de simples estimulação precoce a uma verdadeira Intervenção Precoce.
Alguns destes projectos procuram, a nível regional, organizar redes mais eficazes de serviços e recursos para dar resposta às características específicas das populações a que se destinam, porém os serviços de tutela não encorajam, definem ou estabelecem parâmetros que permitam balizar a eficácia de tais redes. Muitos destes projectos têm surgido ao abrigo de programas de financiamento, quer do Ministério da Educação (portaria 1102/97), quer do Ministério da Segurança Social (programa Ser Criança). Acontece porém que, na maioria dos casos, não está prevista a forma de continuidade de tais projectos, uma vez que este financiamento tem limites temporais. Daqui resulta que muitas destas experiências inovadoras e com impacte muito positivo nas populações a que se destinam, acabem por se perder, com graves prejuízos para todos os intervenientes.
Finalmente, dentro das práticas de Intervenção Precoce, existe uma peculiaridade que devemos salientar: os programas dirigidos às crianças dos 0 aos 2 anos tendem a aproximar-se mais daqueles que se podem encontrar noutros países, isto é, são programas domiciliários ou centrados em estruturas de diversa natureza, mas, em muitos casos, com um envolvimento da família e alguma preocupação em termos de organização de serviços e recursos. Já no que se refere aos programas destinados às crianças dos 3 aos 5 anos, estes, na maioria dos casos, não se distinguem da prestação de serviços às crianças com necessidades educativas especiais, que é predominantemente realizada em estruturas formais de educação pré-escolar.
Um aspecto que, em nossa opinião, se prende com as dificuldades e lacunas sentidas a nível das práticas dos profissionais de Intervenção Precoce, tem a ver com as questões ligadas à formação.
Bailey e Wolery (2002), no artigo que vimos citando, não elegeram o problema da formação dos profissionais de Intervenção Precoce como uma das áreas prioritárias de reflexão. Tal facto não espanta se tivermos em conta as exigências existentes a este nível nos EUA. Já entre nós a situação é substancialmente diferente, tanto no que concerne a formação de base, como a pós-graduada ou a formação em serviço. No nosso estudo constatámos que apenas cerca de 50% tinham formação especializada em qualquer área ligada às crianças com necessidades educativas especiais. Esta gravíssima lacuna é ainda agravada pela escassa formação específica (nível graduado ou pós-graduado) em Intervenção Precoce, embora cerca de 39% tenham tido alguma forma de sensibilização/formação neste âmbito. É de salientar que, mais uma vez, os educadores que participam em projectos integrados se distinguem por terem, em maior número, uma formação complementar em Intervenção Precoce (52% contra 31%) e também maior acesso à formação em serviço (60% contra 24%). O mesmo se passa no que diz respeito à supervisão sistemática do seu trabalho, em que 42% dos educadores integrados em projectos referem a sua existência, contra 27% dos não integradas.
Estes aspectos referentes à formação proporcionada a diferentes níveis aos profissionais que estão no terreno, são fundamentais para melhorar as suas práticas. Por exemplo, uma formação em serviço prestada através de uma supervisão bem organizada e estruturada poderá dar um grande contributo a nível da qualidade das práticas. Um trabalho continuado, quer em termos de supervisão, quer em termos de formação conjunta das equipas, é fundamental se nos quisermos aproximar de um modelo de trabalho em equipa transdisdplinar, tal como hoje se recomenda em Intervenção Precoce. Tudo isto implicaria a existência de uma estabilidade na constituição das equipas, o que, como infelizmente sabemos, está em regra pouco ou nada assegurado. Seria portanto desejável encontrar formas que permitissem incrementar essa estabilidade. Paralelamente, seria ainda desejável alargar a formação pós-graduada de qualidade, que actualmente apenas existe em algumas universidades, assim como desenvolver uma maior articulação entre serviços de acção directa e universidades. Do mesmo modo, no que diz respeito ao trabalho de investigação, seria desejável essa articulação tendo em vista um trabalho de pesquisa a vários níveis, desde a adequação dos modelos dominantes em Intervenção Precoce à realidade portuguesa, passando pela adaptação e concepção de instrumentos mais adequados a esta realidade e pelo ensaio de novos métodos.
Avaliação dos resultados dos programas de Intervenção Precoce
Em Portugal não existe tradição no que respeita genericamente à avaliação. Até à data, têm sido muito raros os programas de Intervenção Precoce que se têm preocupado em levar a cabo uma verdadeira avaliação das suas práticas. Daqui se depreende que está quase tudo por fazer nesta área, começando, logo à partida, pela necessidade, quer de adaptar instrumentos de avaliação à nossa realidade, quer, principalmente, de criar novos instrumentos que possam dar um retrato mais fiel daquilo que, entre nós, se passa neste campo. Com base nesses instrumentos, será então mais fácil avaliar a influência dos programas, tanto no que diz respeito aos progressos no desenvolvimento das crianças, como à melhoria da qualidade de vida das famílias.
Actualmente, em Portugal, constata-se a existência de um leque de famílias com características muito diversificadas a acorrer aos serviços/programas de Intervenção Precoce. Assim, ao lado das famílias tradicionais com filhos com necessidades educativas especiais, existem famílias de diferentes etnias que levantam questões que se prendem com os seus hábitos culturais e linguísticos. Outro tipo de famílias, que podem ou não coincidir com as anteriores, e que também levantam problemas particulares, são as famílias em situação de risco social grave, seja por se encontrarem em situação de pobreza extrema, seja por estarem inseridas em zonas de marginalidade. Este tipo de situações coloca grandes desafios aos técnicos de Intervenção Precoce que, na maioria das vezes, sentem uma enorme dificuldade em conseguir a sua mobilização para os programas. Uma área importante de investigação a este nível, seria a de analisar processos e estratégias que respondessem de forma mais adequada a estas situações, conseguindo assim uma maior adesão das famílias aos programas de Intervenção Precoce.
Por sua vez, se nos debruçarmos agora sobre a problemática das crianças, encontramos igualmente situações muito diversificadas, desde problemas de saúde física e mental graves, a crianças com perturbações do espectro do autismo, paralisias cerebrais ou trissomias 21, entre outras, a implicar programas diferenciados que necessitariam de um estudo aprofundado incidindo nas práticas mais adequadas para responder a cada tipo de situação.
Finalmente, no que diz respeito aos profissionais, seria desejável fazer uma avaliação das suas ideias relativamente à forma como decorre a sua intervenção, constrangimentos ao seu trabalho, alterações desejadas, bem como ainda no que se refere às suas necessidades de formação.
Conclusão
Constatar que uma grande distância nos separa dos EUA a todos os níveis da Intervenção Precoce, é uma conclusão óbvia. Não temos nem o mesmo percurso histórico, nem os mesmos níveis de formação, nem os mesmos recursos, nem o mesmo enquadramento legal e organizativo. Os problemas nacionais nesta área decorrem, como aliás todos os problemas em matéria de educação, da falta de uma organização eficaz dos recursos já existentes e de uma planificação realizada com base em opções e objectivos bem claros e, obviamente, da falta de financiamento ajustado às necessidades das populações.
Sabemos que a Intervenção Precoce em Portugal não se esgota no Ministério da Educação, apesar de ser esta a única rede com cobertura nacional e a que conta com maiores recursos humanos. Sabemos ainda que existem, principalmente nas grandes cidades - Lisboa, Porto e Coimbra -, programas que se podem considerar de qualidade, quer por o terem provado através de uma já longa prática, quer pelos recursos materiais e humanos de que dispõem, quer pelas publicações e materiais que produzem. Finalmente temos também conhecimento de várias experiências dignas de nota e que também consideramos de qualidade, quer no âmbito de serviços do Ministério da Educação e do Ministério da Segurança Social, quer através das instituições por eles tuteladas. No entanto, como foi acima referido, a ausência de organização e articulação de recursos e a ausência de objectivos claros da parte dos diferentes ministérios implicados (Educação, Saúde e Segurança Social) e das estruturas por eles tuteladas, traduz-se na existência de uma enorme diversidade de programas de qualidade muito diversificada e na quase inexistência de avaliação das suas práticas.
O principal objectivo dos programas de Intervenção Precoce é o de actuar aos diferentes níveis de prevenção, no sentido, não só de atenuar as consequências dos casos de risco estabelecido, mas, igualmente, de tentar evitar que situações de risco biológico e social se consolidem. Isto iria traduzir-se, a médio prazo, numa diminuição dos custos, tanto humanos como financeiros, que as estruturas especializadas exigem. No entanto, daquilo que nos tem sido dado conhecer, ficamos com sérias dúvidas, quer sobre a qualidade dos programas de Intervenção Precoce, quer sobre as taxas de cobertura das crianças com necessidades educativas especiais actualmente existentes em Portugal. Pensamos que os diversos programas existentes só muito pontualmente conseguirão uma real eficácia aos diferentes níveis de prevenção que referimos, até porque não lhes são proporcionadas as condições de que necessitam.
É importante não esquecer que a Intervenção Precoce é predominantemente uma organização de serviços e recursos, portanto com carácter pluridisciplinar. Sem estruturas de saúde bem organizadas e capazes de realizar um rastreio precoce e um acompanhamento a nível da saúde destas crianças, sem redes sociais organizadas, sem a garantia por parte da Segurança Social de um trabalho com a família e de uma rede da comunidade e sem um sistema educativo realmente capaz de prestações muito diferenciadas, a Intervenção Precoce permanecerá letra morta.
Referências
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Notas
1Definição 1: a ecologia do desenvolvimento humano é o estudo científico da acomodação progressiva e gradual, através da vida, entre um organismo activo, em crescimento e altamente complexo - caracterizado por um conjunto complexo específico de capacidades interrelacionadas e em evolução, para pensar, sentir e agir — e as propriedades em mudança dos cenários imediatos onde a pessoa em desenvolvimento vive, sofrendo este processo a influência das relações que se estabelecem entre estes cenários e os contextos mais alargados nos quais estes cenários estão inseridos (Bronfenbrenner, 1989).
2Sameroff (1975, 83,87,90), no seu modelo transaccional, considera o desenvolvimento como um produto das interacções dinâmicas, contínuas e bidireccionais, que se estabelecem entre a criança e as experiências que lhe são proporcionadas pela família e pelo contexto social.
3Sobre este assunto ver artigo de Pimentel neste mesmo volume.
4Esta faixa etária inclui todas as crianças, desde o nascimento até à data em que completam os 3 anos de idade. 5Esta faixa etária inclui todas as crianças, desde os 3 anos até à data em que completam os 6 anos. 6Intervenção Precoce e elegibilidade é uma questão que, nos Estados Unidos, ainda levanta alguns problemas, embora assente em bases legais já bem sedimentadas. Bailey e Wolery referem três datas decisivas no âmbito da legislação sobre Intervenção Precoce: em 1968 a criação do Handicapped Children's Early Education Program instituído no Bureau of Education for the Handicapped; em 1975 a publicação do Education for All Handicapped Children Act; em 1986 a promulgação da Public Law 99-457, salientando a Parte C desta lei, Individuals with Disabilities Education Act (IDEA, PL 101-476), que abrange as crianças em idades mais precoces e suas famílias.