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Psicologia
versão impressa ISSN 0874-2049
Psicologia vol.17 no.2 Lisboa jul. 2003
https://doi.org/10.17575/rpsicol.v17i2.448
As memórias colectivas do descobrimento do Brasil imagem comum e juízos diferenciados nas populações portuguesa e brasileira1
Colective memories of the doscovery of Brazil: Common images and differential judgements in Portuguese and Brazilian samples
Celso Pereira de Sá*; Denize Cristina de Oliveira**; Lívia Antunes Prado***
*Professor titular de psicologia social, Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
**Professora titular de pesquisa em enfermagem, Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
***Bolsista de iniciação científica FAPERJ, Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
RESUMO
O artigo trata da actualização da memória do descobrimento do Brasil em função da comemoração do seu quinto centenário. Considerando a memória colectiva como o conjunto de representações sociais acerca do passado, tomou-se como referencial teórico a abordagem psicossocial estrutural, segundo a qual o sistema central de uma representação está ligado à memória colectiva e à história do grupo que a sustenta. Para o levantamento do conteúdo do sistema central e dos elementos periféricos, aplicou-se, por volta de Abril de 2000, a técnica de evocação livre a sujeitos adultos com escolarização mínima de oito anos, sendo 500 portugueses, em Lisboa, e 789 brasileiros, distribuídos pelas cinco regiões geográficas do país. Os dados foram tratados através do software EVOC, de análise das evocações. Os resultados obtidos a partir das duas amostras globais mostram que o central na representação social do descobrimento é a imagem descritiva maciçamente divulgada no nível elementar da educação escolar: os índios, as caravelas, Cabral, o mar (para os brasileiros) e as praias (para os portugueses). A essa memória primordial acrescentam-se, em nível periférico, duas outras ordens de evocação: em primeiro lugar, a escravidão e a exploração das riquezas brasileiras, como um juízo crítico consolidado no âmbito das duas amostras; em segundo lugar e evocados apenas pela amostra brasileira, o massacre dos índios e o termo invasão, para desqualificar o descobrimento, como críticas mais recentes, geradas no contexto polémico da comemoração do quinto centenário de 1492. Em lugar deste último juízo, os portugueses preferem exaltar a figura dos navegadores e a aventura a que se lançaram para descobrir o Brasil. São, ainda, apresentados e discutidos resultados comparativos entre os seguintes recortes da amostra brasileira: quanto ao grau de escolaridade (primária, média, superior); quanto à idade (18 a 34 anos, 35 a 49 anos, 50 anos ou mais); quanto à orientação política (direita, esquerda e sem definição política); quanto à pertença ou referência nacional / étnica (brasileira, latino-americana, descendente de portugueses, branca, índia e descendente, negra e descendente). Conclui-se que as estruturas das representações dessas subdivisões da população brasileira são muito semelhantes, mas apresentam diferenças suficientes para confirmar a proposição clássica de que as memórias colectivas são tão numerosas quanto os grupos sociais que buscam recordar o seu passado ou representá-lo.
Palavras-chave Memória colectiva, descobrimento do brasil, comparação.
ABSTRACT
This paper deals with the updating of memory of the discovery of Brazil in the commemoration of its fifth centennial. Considering collective memory as a group of social representations concerning the past, we used as theoretical framework the psychosocial structural approach according to which the central system of a representation is linked to the collective memory and to the history of the group that sustains it. In order to collect the content of the central system and of the peripheral elements of this representation, a free evocation technique was applied to adult subjects, on April 2000, with a minimum education level of eight years, 500 being Portuguese living in Lisbon, and 789 Brazilian, distributed by five geographical areas of this country. The data were analysed using the EVOC software, specifically designed to analyse evocation data. The results obtained from the two global samples show that the central system in the social representation of the discovery of Brazil is the descriptive image massively spread in the elementary school level: the Indians, the caravels, Cabral, the sea (for the Brazilians), and the beaches (for the Portuguese). To this primordial memory is added, in a peripheral level, two other evocation orders: in the first place, the slavery and the exploration of the Brazilian wealth, evoked as a critical judgement in both samples; in the second place, and just evoked by the Brazilian sample, massacre of the Indians and the idea of invasion, to disqualify the discovery, generated recently in the polemical context of the commemoration of the fifth centennial of 1492. Instead of this last evocation, Portuguese prefer to exalt the navigators and their adventure towards the discovery of Brazil. Also, comparative results of the Brazilian sample are presented, namely education level (primary, average, superior); age (18 to 34 years, 35 to 49 years, 50 years or more); political orientation (right, left and without political definition); national or ethnic belonging (Brazilian, Latin-American, descendent of Portuguese, white, Indian and descendents, blacks and descendents). These results enable us to conclude that the structures of the representations of these subdivisions of the Brazilian sample are very similar to each other, but they present enough differences to confirm the classic idea that collective memories are as numerous as the social groups that try to remember their past or try to represent it.
Introdução
A existência de relações estreitas entre a memória social ou colectiva e as representações sociais tem sido apontada e explorada por diversos autores no âmbito de psicologia social (Jodelet, 1992; Haas & Jodelet, 1999; Sá, 2000; Sá & Vala, 2000; De Rosa & Mormino, 2000; Roussiau & Bonardi, 2002; Sá & Oliveira, 2002). Mas também na sociologia encontra-se um reconhecimento de tal afinidade através, por exemplo, da definição da memória colectiva por P. Jedlowski (1997) como um conjunto de representações sociais sobre o passado. Diz esse autor, de forma bastante próxima às proposições da teoria psicossocial das representações sociais, que " imagem do passado é produzida, conservada, elaborada e transmitida por um grupo através da interação de seus membros" (p. 24).
Foi com base nessa articulação teórico-conceptual que se conduziu, a partir: de 1998, o conjunto de pesquisas empíricas relatadas neste volume, cujo objecto comum de estudo foi o envolvimento de duas populações contemporâneas — brasileira e portuguesa — na actualização da memória social do descobrimento do Brasil em função da comemoração do seu quinto centenário no ano de 2000. Partiu-se da suposição de que, à medida que a comemoração se aproximasse, a memória daquele evento longínquo seria de algum modo actualizada, a partir de um eventual revisão das relações históricas, da reafirmação ou da atenuação de traço: culturais distintivos e da emergência de novos interesses e necessidades nacionais.
Julgou-se assim adequado investigar tal processo de actualização em três dimensões complementares: a comunicação de massa, o ensino formal da história e as representações sociais da população adulta.
Estas últimas, aqui chamadas de "representações sociais vivas" do descobrimento, para distingui-las das matérias-primas proporcionadas pelos jornais e pelos manuais escolares, foram investigadas através de questionários razoavelmente extensos, com perguntas abertas e fechadas, aplicados tanto no Brasil quanto em Portugal a amostras populacionais adultas, de ambos os sexos, com escolarização mínima de oito anos. Os sujeitos portugueses foram 500, em Lisboa, os brasileiros 789, distribuídos pelas seguintes capitais de estados das cinco regiões: geográficas do país: Rio de Janeiro, São Paulo, Belém, Natal, Salvador, Cuiabá Florianópolis. As aplicações portuguesa e brasileira foram realizadas no prazo máximo de dois meses após o 22 de Abril de 2000, visando incluir o impacto dos acontecimentos que se verificariam no auge da comemoração do quinto centenário.
No presente artigo, as memórias actualizadas sob a forma de representações; sociais vivas do descobrimento são descritas, discutidas e comparadas apenas em função dos resultados de uma tarefa de evocação livre que se fez associar à aplicação dos questionários e que foram respondidas adequadamente por 760 dos sujeitos brasileiros e por 497 dos portugueses. O mérito dessa técnica é que proporciou uma aproximação sintética à estrutura e ao conteúdo temático das representações que pode posteriormente encontrar confirmação e aprofundamento analítico através da articulação não só com os dados de outras partes dos questionários, mas também com os resultados das análises do conteúdo dos manuais escolares e de imprensa. O método de análise das evocações decorre de uma perspectiva complementar à teoria das representações sociais, na qual a questão da memória social é explicitamente contemplada.
De facto, de acordo com a abordagem estrutural das representações sociais (Abril, 1994,1998; Sá, 1996), uma representação se organiza em dois sistemas: um sistema central, integrado por poucos elementos cognitivos, que dá conta do objecto representado de modo relativamente independente do contexto social imediato, apresentando elevada resistência à mudança; e um sistema periférico, que engloba os demais elementos representacionais e se mostra mais influenciável e modificável pela realidade das situações e práticas sociais vigentes. O sistema central de uma dada representação tem, dentre outras características, a de ser (mais) consensual e ligado à memória colectiva e à história do grupo que sustenta tal representação, enquanto o sistema periférico abre espaço para a integração das histórias e experiências individuais, englobando ainda conhecimentos de veiculação e aquisição mais recentes.
A exigência, própria dos trabalhos conduzidos segundo a abordagem estrutural, de que a pesquisa não consista exclusivamente no levantamento dos conteúdos das representações sociais, mas que seja completada pela investigação de suas estruturas, apresenta nítidas consequências para o estudo da memória social de um acontecimento passado. Pode-se identificar, na composição do sistema central, alguns aspectos mais antigos ou enraizados, que se mantêm presentes no pensamento contemporâneo sobre aquele passado. Estes, assim, se distinguem das imagens, conhecimentos, impressões e juízos construídos mais recentemente e que, por isso mesmo, se encontram menos homogeneamente distribuídos na população e são, com frequência, objectos de discussão polémica. O que chamamos aqui de "memória actualizada" engloba todos esses elementos representacionais, tanto os centrais quanto os periféricos, mas o exame de suas diferentes localizações estruturais enseja interessantes possibilidades de comparação.
No caso da memória do descobrimento do Brasil, diversas comparações foram tornadas possíveis pelo referencial teórico da abordagem estrutural das representações sociais. Em primeiro lugar, se pôde comparar as representações sociais do descobrimento dominantes na população brasileira antes — fins de 1998 e início de 1999 — e imediatamente após a data do quinto centenário, de modo a verificar se as iniciativas de comemoração e sua repercussão na imprensa teriam produzido alguma transformação representacional. Os resultados, já apresentados e discutidos em Sá e Oliveira (2002) e que, por carência de espaço, não serão aqui reproduzidos, mostraram que tanto o conteúdo quanto a estrutura da representação social se mantiveram praticamente inalterados entre as duas ocasiões, indicando a não ocorrência de uma actualização significativa da memória colectiva brasileira em função da intensificação dos eventos comemorativos e das reacções que provocaram.
Em segundo lugar, colocou-se a comparação entre as representações sociais brasileira e portuguesa manifestadas por ocasião da comemoração, pela qual se puderam identificar semelhanças e diferenças nas memórias actualizadas por duas populações contemporâneas acerca do acontecimento que inaugurou o período histórico comum dos seus passados. Embora estes resultados também já tenham sido objecto de publicação anterior (Sá & Oliveira, 2002), vale a pena apresentá-los e discuti-los novamente, por seu interesse para a presente colectânea de artigos Um terceiro conjunto de comparações, a ser também aqui apresentado, se deu entre subdivisões seccionadas da amostra brasileira, em função dos critérios de idade, escolaridade, orientação política, pertença latino-americana, filiação religiosa e ascendências étnicas portuguesa, indígena e africana.
Dentro do arsenal plurimetodológico associado à perspectiva teórica aqui privilegiada, tem-se mostrado bastante útil, para o estabelecimento de comparações como estas, a técnica de evocação livre proposta e desenvolvida por P. Vergès (1992). Neste trabalho, ela serviu ao levantamento dos possíveis elementos centrais e periféricos das representações, a partir das evocações desencadeadas pela apresentação do estímulo "descobrimento do Brasil". As evocações produzidas pelos sujeitos foram, como preconiza a técnica, registadas na ordem em que foram emitidas, para permitir que se contasse com duas ordens de dados para análise: a frequência de evocação de cada palavra ou expressão e a ordem média em que ela foi evocada (considerados todos os sujeitos que o fizeram). O tratamento desses dados foi feito com auxílio do programa EVOC, disponibilizado por Vergès (1999).
A rationale subjacente à adopção desse duplo critério de análise é de que as palavras que tenham sido ao mesmo tempo mais frequente e mais prontamente evocadas têm maior probabilidade de pertencer ao sistema central, enquanto aquelas menos frequentes e menos prontamente evocadas devem se situar no sistema periférico. O cruzamento da frequência média das palavras evocadas com a média das suas ordens médias de evocação permite configurar uma distribuição das evocações por quatro quadrantes, na qual, como se verá quando da apresentação dos resultados, o quadrante superior esquerdo engloba os elementos mais provavelmente centrais, enquanto o quadrante inferior direito os elementos nitidamente periféricos. Existe uma dificuldade quanto à interpretação dos dois outros quadrantes, dada a relação contrária entre os dois critérios: evocações mais frequentes porém tardiamente emitidas, em um deles; evocações pouco frequentes mas prontamente emitidas, no outro. A reconhecida natureza aproximativa do método tem permitido uma flexibilidade nessa interpretação, no sentido de que se considere alguns dos elementos mais proeminentes desses dois quadrantes como uma espécie de "periferia próxima" (ao núcleo central) ou também chamada de "primeira periferia".
Para os propósitos comparativos específicos deste trabalho, cabe ainda registar que a teoria propõe que duas ou mais representações sociais poderão ser consideradas diferentes se, e apenas se, as composições dos seus respectivos sistemas centrais forem nitidamente diferentes. Se não for este o caso, tratar-se-á de uma mesma representação básica, que apenas apresenta sistemas periféricos diferencialmente activados em função das condições circunstanciais distintas que caracterizem aquelas populações ou subpopulações.
As memórias/representações globais brasileira e portuguesa
Apresentam-se a seguir os primeiros dois quadros de resultados da evocação (figuras 1 e 2), relativos às representações ou memórias manifestadas respectivamente pelas amostras globais brasileira e portuguesa. Tal apresentação conjunta favorece a comparação dos conteúdos e das estruturas das duas manifestações representacionais, tornando evidente que os sujeitos brasileiros e portugueses tinham basicamente a mesma representação social do descobrimento do Brasil por ocasião da comemoração do quinto centenário.
De facto, verifica-se facilmente que os prováveis sistemas centrais — ou seja, os elementos do quadrante superior esquerdo — das duas representações, brasileira e portuguesa, são praticamente os mesmos, apresentando quase que apenas ama diferença de perspectiva espacial: os brasileiros vêem os portugueses chegando do "mar" e estes se vêem chegando às "praias" brasileiras. Em ambos os casos, trata-se de elementos de natureza descritiva que formam algo como o "núcleo figurativo" (Moscovici, 1976) comum da representação do "descobrimento": do "mar" (para os brasileiros) vêm os "portugueses" (omitidos em sua própria representação), nas "caravelas", comandadas por "Pedro Alvares Cabral", para encontrar os "índios", ou serem por eles recebidos, nas "praias" (para os portugueses).
É exactamente assim, como aponta L. Guimarães neste volume, que a história descritiva do descobrimento do Brasil tem sido contada, desde pelo menos o início do século passado, a sucessivas gerações de estudantes brasileiros do nível funde mental de ensino. Em função dessa socialização escolar inicial teria sido criado uma espécie de memória imagética, que é talvez a porção mais antiga e mais cor sensual da memória socialmente compartilhada do descobrimento. De facto, essa mesma imagem já tinha sido detectada como central na representação da amostra brasileira de 1998-1999, em uma etapa anteriormente noticiada desta pesquisa.
Não obstante, o processo de actualização da memória passa por outras instâncias de apropriação do conhecimento histórico além daquele proporcionado pela escola de nível fundamental. De facto, o ensino de nível médio e a comunic&ação de massa — esta, pelo menos, no contexto sociocultural da comemoração vêm a apresentar uma visão mais crítica do descobrimento e da colonização. Nesse sentido, no caso do Brasil, os quadrantes superior direito e inferior esquerdo, nos quais teoricamente se localizaria uma periferia próxima ou primeira periferia, incluem esses elementos de denúncia. Curiosamente, encontra-se reunida no primeiro deles, que corresponde à combinação de alta frequência e ordem de evocação tardia, uma crítica já mais consolidada, de presença corrente nos manuais escolares: "exploração" das "riquezas" do Brasil, aí incluído o "pau-brasil", bem com dos índios e dos negros pela "escravidão", ao longo do período de "colonização No segundo deles, que corresponde à combinação de frequência mais baixa pronta ordem de evocação, encontram-se críticas mais recentes, surgidas no contexto polémico das comemorações do quinto centenário do descobrimento da América, em 1992: caracterização da chegada dos navegadores portugueses como "invasão" ou como "conquista", ou ainda sua simples desqualificação como "não-descobrimento", porque os portugueses já sabiam da existência das terras brasileiras e estas tinham seus proprietários naturais. Repetem-se ainda, nessa segunda periferia próxima, as denúncias de 1992 quanto ao genocídio e ao confisco da identidade cultural das populações nativas, através da evocação das expressões "massacre dos índios" e "aculturação", esta em um status mais reconhecidamente periférico.
No caso da amostra portuguesa, observa-se que o que está sendo aqui—e doravante — chamado de "críticas consolidadas" encontra-se igualmente presente, conquanto de forma abreviada, no mesmo quadrante superior direito da sua representação: "escravidão", "ouro", "colonialismo". Enquanto o uso deste último termo (ao invés de "colonização") permite inferir uma auto-acusação — ou seja, à prática histórica do país colonizador —, a evocação de "ouro" parece corresponder mais concretamente aos benefícios auferidos da "exploração" colonialista, cujos produtos ainda são bastante palpáveis na Lisboa de hoje, em resultado de sua reconstrução parcial, após o maremoto de 1755, com o "ouro do Brasil" (como um colega português caracterizava diversos prédios e mesmo quarteirões inteiros, enquanto mostrava a cidade pela primeira vez a um dos autores deste artigo). As evocações de "riquezas" e de "pau-brasil", que se referem a um passado mais remoto e cujas referências se apresentam de forma genérica (como na carta de Caminha) ou datada (na história da indústria de tecelagem), assumem, por isso mesmo, um carácter nitidamente periférico na representação portuguesa.
A grande diferença entre a representação portuguesa e a brasileira se situa na outra periferia próxima, consubstanciada por elementos do quadrante inferior esquerdo. As aqui e doravante chamadas "críticas recentes" (destacadas em negrito, para fins de comparação posterior), pelas quais a memória colectiva brasileira parece se actualizar, encontram-se inteiramente ausentes da actualização portuguesa. Isto já se havia verificado em pesquisa anterior sobre a comemoração do quinto centenário de 1492 (Sá, Vala & Mõller, 1996), quando a amostra portuguesa se posicionou de forma bastante diversa da amostra espanhola quanto a um reconhecimento da culpa que lhes imputava o conjunto dos latino-americanos. Oito anos depois e não pressionados por uma polémica semelhante, os respondentes portugueses novamente deixaram de conceder espaço a tais críticas em sua representação de um evento histórico do qual, agora, foram os principais protagonistas. Em seu lugar, são exaltadas as figuras dos "navegadores" e da "aventura" a que se lançaram para descobrir o Brasil. Além disso, a resposta "descobrimento", que não faz mais do que repetir o estímulo proposto, mas acaba por assegurar um destaque central (alta frequência e pronta evocação) ao empreendimento, pode ser interpretada como uma reafirmação do orgulho português em relação àquele facto histórico. Isto, de resto, é confirmado por outros resultados dos questionários e da análise da imprensa portuguesa, apresentados neste mesmo volume. Abem da verdade, os temas da "conquista" e da aculturação, pela "evangelização", não deixaram d ser evocados, mas em nível bastante periférico e talvez não necessariamente cor uma conotação negativa.
Finalmente, no quadrante inferior direito da representação social brasileira como seria de esperar da heterogeneidade de uma periferia representacional viva encontram-se misturados: elementos da história oficial, como "primeira missa" "carta de Caminha" e "jesuítas", dentre outros; elementos descritivos, como "florestas", "terras" e "belezas naturais"; novos elementos críticos, como "guerras' "dominação", "destruição" e "morte". A periferia portuguesa, por seu turno, contrasta com o tom histórico e crítico da representação brasileira, pela ênfase que dá características do "novo mundo", dentre as quais se valorizam o "bom clima", a "florestas" da "Amazónia" e as "especiarias", a banalidades positivas como "café' "açúcar", "samba" e "carnaval" e, enfim, a uma reafirmação do papel desempenhado pela "coragem" dos "descobridores" no "comércio" e na "expansão marítima" portuguesa, que teriam culminado com o advento do "novo mundo".
Em síntese, as memórias colectivas do descobrimento do Brasil nas populações brasileira e portuguesa por ocasião da comemoração do quinto centenário consubstanciadas em suas representações sociais daquele evento histórico, guardam muitas semelhanças e algumas diferenças. A principal semelhança foi evidenciada na composição dos seus respectivos sistemas centrais, sugerindo que as duas populações têm uma mesma representação do descobrimento, sob a forma de uma imagem comum da chegada dos navegadores portugueses às terras brasileiras.. esse núcleo central comum, de natureza descritiva, associam-se, em nível periférico, três diferentes ordens de juízos acerca do facto descrito, sendo a primeira dela constituída pelas chamadas "críticas consolidadas" ao processo de colonizaço em cuja manifestação mais uma vez portugueses e brasileiros se assemelham. Este finalmente divergem em relação às duas outras ordens de juízos valorativos acere do descobrimento: brasileiros, através das "críticas recentes", o desqualificam e avaliam negativamente; portugueses o exaltam e se orgulham do papel historie desempenhado pelos descobridores.
As memórias/representações de diferentes conjuntos sociais brasileiros
Por definição, os elementos periféricos de uma representação social não são consensuais e traduzem a incorporação de impressões e juízos sustentados por um numero menor de indivíduos, que participam de grupos restritos ou são simplesmente ligados pelos mesmos interesses e condições socioculturais. Nesse sentido, buscou-se apreciar a contribuição de diferentes subconjuntos populacionais — definidos quanto à idade, à escolaridade, à orientação política, à pertença latino-americana, à religião e às ascendências portuguesa, indígena e africana para a configuração estrutural da representação manifestada pela amostra brasileira como um todo.
O propósito principal desta investigação complementar foi o de comparar í localizações estruturais das "críticas recentes", pois esperava-se — como, de resto acabou por ficar demonstrado — que as "críticas consolidadas", por força mesmo de sua consolidação psicossocial, mantivessem o status de periferia próxima, embora com pequenas variações, em todas as amostras parciais. As "críticas recentes", por seu turno, em função da origem mais datada e do carácter polémico de que se revestiu sua incorporação à memória do descobrimento, deveriam ter sua localização estrutural ora mantida e ora perdido o seu efeito de conjunto, com alguns elementos deslocados para o núcleo central ou para a periferia propriamente dita ou ainda eliminados do campo representacional (em função da sua frequência reduzida de evocação em uma ou outra das subamostras). Como tais elementos de aquisição polémica recente não se fizeram presentes na representação portuguesa, não houve razão para submetê-la a um procedimento semelhante de análise subamostral.
Seguem-se os resultados comparativos das divisões da amostra global brasileira segundo os critérios antes elencados. Por falta de espaço, apresenta-se em relação a cada um dos critérios, como base para discussão, apenas o quadro de quatro quadrantes que descreve a estrutura da representação parcial que mais privilegia as "críticas recentes". Para facilitar a visualização das localizações estruturais dos diversos elementos que compõem tais críticas, estes se encontram grafados em negrito, da mesma forma que o foram na representação global.
Quanto à idade, a figura 3 mostra que na representação manifestada pelos sujeitos de 18 a 34 anos estão presentes todas as "críticas recentes", chegando a denúncia do "massacre dos índios" a assumir uma posição de centralidade. Nas representações parciais das duas outras faixas etárias — 35 a 49 anos e 50 anos ou mais — apenas dois desses elementos aparecem e, em ambos os casos, o "massacre dos índios" se situa na periferia, conquanto talvez próxima.
Esperar-se-ia que a formação dessa representação crítica por parte da sub amostra de 18 a 34 anos tivesse recebido uma importante contribuição dos estudantes universitários e dos jovens adultos de nível superior. Não obstante, vê-se pela Figura 4 que ela coincide justamente com a representação do conjunto dotado apenas de escolaridade fundamental. Nas representações parciais das subamostras nível médio (incluindo os sujeitos em formação universitária) e de nível superior as "críticas recentes" são periféricas (próximas ou não) e não estão todas presentes.
As duas ordens de resultados — quanto à idade e quanto à escolaridade — sugerem, em conjunto, que a incorporação da polémica originada em 1992 à memória actualizada do descobrimento do Brasil é menos resultante da experiência e de educação e provavelmente mais de um envolvimento com as questões contemporâneas da nacionalidade, para cujo fomento os media teriam contribuído decisivamente, e, especula-se, da orientação política dos sujeitos.
De facto, como mostra a Figura 5, um privilégio concedido às "críticas recentes", pelo qual inclusive se localiza a denúncia de genocídio no núcleo central, caracteriza a representação da subamostra de orientação política de esquerda ou centro-esquerda. Enquanto isso, as poucas de tais críticas manifestadas pelos sujeitos sem definição política e por aqueles de direita ou centro-direita são estruturalmente periféricas (próximas ou não), estando mesmo o "massacre dos índios" ausente da representação dos últimos deles.
Quanto à pertença latino-americana, verifica-se que a metade da amostra que a reconhece e a valoriza é a que abriga em sua representação, como mostra a figura 6, as mais incisivas das "críticas recentes". Estas, por outro lado, se encontram inteiramente ausentes do campo representacional da metade da amostra que não reconhece (cerca de 20%) ou, reconhecendo, não valoriza (cerca de 30%) o facto de ser latino-americana. Considerando a origem de tais críticas num movimento social vigoroso de resgate da identidade latino-americana, estes resultados, associados àqueles referentes à orientação política dos sujeitos, conferem coerência ao perfil até agora esboçado da subpopulação brasileira responsável pela actualização da memória colectiva através da extensão dessas denúncias ao carácter da intervenção portuguesa na América.
Quanto à filiação religiosa, também coerentemente, a adesão mais clara às "críticas recentes", como mostrado na figura 7, vem dos sujeitos que declaram professar alguma religião que não a católica e que não a mencionam juntamente com outra (como é algo comum no caso das religiões afro-brasileiras) ou que dizem não ter nenhuma religião. Na representação da subamostra católica, somente o "massacre dos índios" está presente, em nível periférico. Isto pode ser interpretado como a admissão de um aspecto da actuação dos colonizadores da qual seus parceiros religiosos não teriam sido necessariamente culpados. Já no que se refere aos demais elementos de denúncia—invasão, conquista, não-descobrimento e, principalmente, aculturação —, a participação da igreja teria sido muito evidente para que eles pudessem ser tranquilamente incorporados à memória actualizada dos sujeitos católicos.
Algo semelhante ocorre quando a divisão da amostra é feita entre os sujeitos que não reconhecem ou, se reconhecem, não valorizam a própria ascendência portuguesa e aqueles que a reconhecem e a valorizam. A representação dos primeiros, como se vê na figura 8, inclui em sua periferia próxima três das principais "críticas recentes", enquanto a dos segundos apenas regista, no espaço nitidamente periférico do quadrante inferior direito e não necessariamente em termos negativos, a "aculturação".
Embora de clareza quase didáctica, estes resultados não reflectem a continuidade de uma memória cultivada por gerações sucessivas de descendentes dos primeiros colonizadores do Brasil. Tais grupos, se não desapareceram, misturaram-se ou se integraram àqueles resultantes de imigrações mais recentes, incluindo a que ocorreu maciçamente em fins do século XIX e início do século XX. Não obstante, a consistência da memória actualizada desses sujeitos é assegurada pela intensidade com que, constituindo apenas uma quarta parte da amostra global, assumem a ascendência portuguesa como um aspecto muito significativo de sua identidade étnica, visto que outros 25% da amostra não dão qualquer importância ao facto de descenderem de portugueses.
Quanto à ascendência indígena, embora a quarta parte da amostra que a reconhece e a valoriza inclua, como se vê na figura 9, dois elementos críticos em sua representação do descobrimento, isto não chega a ser, como se esperaria, uma posição muito mais incisiva do que a dos sujeitos que não a reconhecem (60%) ou, reconhecendo-a, não a valorizam (12%), os quais também evocam o "massacre dos índios", apenas em frequência menor.
Não obstante, a interpretação possível de que os descendentes dos índios não privilegiem na actualização de sua memória as "críticas recentes", que tanto lhes dizem respeito, pode ser enganosa. Certamente, o percentual de quase 40% de sujeitos que reconhecem uma ascendência indígena está inflacionado em relação à realidade, resultando em boa parte de alguma forma de identificação simbólica com esse grupo étnico, cuja participação na formação da nacionalidade brasileira é valorizada desde pelo menos o século XIX, como indica L. Guimarães neste volume. A representação indígena teria ficado diluída entre evocações produzidas em função de grupos de pertença e de simples referência; daí, possivelmente, sua inconsistência.
Finalmente, também o reconhecimento e a valorização da ascendência africana não parecem desempenhar um papel significativo na incorporação das "críticas recentes" à memória actualizada do descobrimento. A representação desta sub-amostra (um terço da amostra global), mostrada na figura 10, é bastante semelhante, nesse aspecto, à dos sujeitos que não reconhecem (54%) ou, reconhecendo, não valorizam (13%) o facto de serem negros ou deles descenderem.
Cabe ainda observar que não é apenas em relação aos elementos sistematicamente aqui examinados que a subamostra de ascendência africana não difere da outra em sua maneira de representar o descobrimento. Também o elemento "negros", que lhe diria mais respeito, aparece com uma frequência apenas dois pontos percentuais mais elevada do que na representação dos que não têm ou não valorizam tal ascendência.
Conclusão
Segundo M. Halbwachs (1994,1997), o inaugurador de uma "sociologia da memória" na primeira metade do século passado, as memórias colectivas são tantas quantos sejam os grupos sociais que as sustentam. Neste texto, que se quer da ordem de uma "psicologia social da memória", examinou-se, inicialmente, a constituição temática e estrutural das memórias de duas populações contemporâneas suficientemente distintas, acerca de um facto e um processo remotos que marcaram em comum mais de três séculos de suas respectivas histórias. Como os viveram sob perspectivas diferentes, senão opostas, parecia justificado esperar que a máxima sociológica bem se aplicasse às suas memórias, o que, em um certo sentido, ocorreu.
É interessante, não obstante, observar que a distinção entre as memórias mantidas pelo grupo brasileiro e pelo grupo português não se manifestou senão em função de uma abordagem conceptual, teórica e metodológica de natureza psicossocial. Em primeiro lugar, enquanto a perspectiva halbwachiana não autorizaria falar em memória colectiva quando os grupos que testemunharam o evento — ou dele tiveram um relato directo por seus participantes — deixaram de existir, como é o presente caso, o conceito psicossocial de "actualização da memória", aqui engendrado (Sá, 2000), permitiu dar conta de uma continuidade — menos directa, mas que, afinal de contas, não deixa de existir — entre os protagonistas originais e seus herdeiros sócio-histórico-culturais.
Em segundo lugar, o conceito de memória colectiva como um conjunto de representações sociais acerca do passado, proveniente de uma releitura da obra de Halbwachs, ensejou a análise teórica psicossocial das memórias portuguesa e brasileira actualizadas, em termos da decomposição das representações que lhes correspondem em seus respectivos sistemas centrais e periféricos. Somente através de uma tal perscrutação interna, as duas memórias vieram a exibir suas diferenças, as quais poderiam ter permanecido mascaradas sob um enfoque sociológico mais globalizante.
Em terceiro lugar, foi a metodologia especificamente associada à abordagem teórica utilizada que permitiu identificar a existência de um conteúdo descritivo absolutamente comum nas duas memórias: a imagem da chegada dos navegadores portugueses às terras brasileiras. A descrição consensual, entretanto, os dois conjuntos populacionais somaram "lembranças" de atributos, factos e processos em que, mais ou menos nitidamente, se embutiam juízos de valor. Foi na incorporação variável destes, como tecnicamente detectada em um nível menos evidente de manifestação, que as memórias brasileira e portuguesa se actualizaram diferentemente por ocasião da comemoração do quinto centenário.
Nesta mesma perspectiva psicossocial foram, em seguida, examinadas as representações de diferentes segmentos da amostra global brasileira, para buscar inferir o perfil do conjunto responsável pela integração de um dado juízo crítico — de elaboração recente, minoritário e polémico — à memória actualizada da população. Em síntese, verificou-se, em termos aproximativos, que esse conjunto é predominantemente constituído de jovens, em sua maioria sem formação universitária, com orientação política de esquerda ou centro-esquerda, que valorizam sua pertença latino-americana, não se encontram muito ligados à religião católica e não têm ou não valorizam a ascendência portuguesa.
Os elementos críticos então focalizados podem estar inteiramente ausentes da memória actualizada de outros conjuntos populacionais brasileiros que se afastem de tal perfil e é, pois, nesse sentido que a presente investigação empírica traz algum suporte à concepção de que podem existir tantas memórias colectivas quantos sejam os grupos que se esforçam por representar seu passado comum. As memórias colectivas dos mesmos acontecimentos foram construídas diferentemente não apenas pelos dois grandes grupos nacionais que tiveram suas histórias por eles marcadas, mas também por subconjuntos social, política e culturalmente distintos no âmbito de pelo menos um deles.
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Notas
1Projecto financiados pelos FAPERJ, CNPq, FAP/UERJ.