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Psicologia
versão impressa ISSN 0874-2049
Psicologia vol.17 no.2 Lisboa jul. 2003
https://doi.org/10.17575/rpsicol.v17i2.455
Comemoração, nostalgia imperial e tensão social — O desenvolvimento Portugal-Brasil Comentário às análises de imprensa
Commemoration, imperial nostalgia and social strain: Portugal-Brazil divergence
Miguel Vale de Almeida1
1Investigador e professor auxiliar com agregação, IICT e ISCTE, Lisboa; e-mail: mvda@netcabo.pt
RESUMO
As comemorações do descobrimento do Brasil estabeleceram um campo de conflitos semânticos ao nível dos governos dos dois estados-nação, Brasil e Portugal. Neste último, o acento tónico foi colocado na ideia de "descobrimento"; no primeiro foi-o na ideia de celebração dos 500 anos do Brasil. Nos movimentos sociais empenhados no que se pode denominar "política cultural", militantes de grupos minoritários e identidades étnicas subalternas e intelectuais "orgânicos" contestaram as comemorações. Em Portugal, todavia, as comemorações serviram para reforçar a tendência nostálgica imperial que parece presidir às reconfigurações da identidade nacional pós-colonial — prisioneira da retórica dos descobrimentos e cega a novas realidades multiculturais e migratórias.
Palavras-chave Pós-colonialismo, identidade nacional, comemoração do descobrimento do Brasil.
ABSTRACT
The commemorations of the discovery of Brazil set the stage for semantic conflict between the governments of both nation states — Brazil and Portugal. In the latter, the rhetoric was focused on the notion of "discovery", whereas in the former it was on the notion of "500 hundred years of Brazil". Social movements in Brazil which are engaged in cultural politics — Black movement, Indigenous rights' organizations, and the progressive inteligentsia — challenged the rationale of the commemorations. In Portugal, however, these reinforced imperial nostalgia, thus making clear that Portuguese postcolonial identity is still represented around the imagery of the discoveries — and it is blind regarding the new migratory and multicultural aspects of the nation.
As comemorações do descobrimento do Brasil estabeleceram, desde o início, um campo de conflitos semânticos e correspondentes conflitos políticos. Desde logo, ao nível dos governos dos dois estados-nações, Brasil e Portugal: se, no segundo, o acento tónico foi colocado na ideia de "descobrimento", no primeiro foi-o na ideia de celebração dos 500 anos do Brasil. Seguidamente, ao nível das alianças de segmentos sociais empenhados no que se pode denominar "política cultural" (no sentido antropológico de cultura): militantes de grupos minoritários e identidades étnicas subalternas, e intelectuais "orgânicos" seus aliados. Nesse campo, o "descobrimento" foi sistematicamente visto como uma expressão ideológica e propagandística. "Achamento" tem sido, nalguma historiografia, a expressão alternativa. Mas nos segmentos mais radicalizados, se não se chegou à expressão "invasão", enfatizaram-se dois aspectos fundacionais do facto político de há 500 anos: a ocupação do território indígena e a escravatura. Um terceiro nível não pode ser descurado: trata-se daquele em que estas disputas semânticas e políticas fazem parte de um conflito sobre as noções de nacionalidade e pertença, sobre o projecto de sociedade no presente e no futuro. Assim, uma visão histórica conservadora opor-se-ia a uma visão histórica progressista, e esta dicotomia prolongar-se-ia nos diferentes projectos políticos para os países, sobretudo na área do multiculturalismo.
Estes aspectos não são vividos da mesma forma em Portugal e no Brasil. O próprio facto de uma comemoração feita a meias (idealmente) revela os contornos polémicos do assunto. Ingenuamente, poderia pensar-se que tal polémica se deveria a uma relação tensa, ao nível dos estados, entre uma antiga potência colonial e uma jovem nação do Novo Mundo. Nessa visão ingénua, elites, governo e até "povo" da antiga colónia teriam uma animosidade contra o ex-colonizador, que levaria à celebração dos elementos simbolizadores da ruptura e do afastamento. Tal não é, todavia, verdadeiro. Os actores da polémica são, sobretudo, os segmentos radicalizados ligados às causas dos sectores marginalizados da população brasileira. E o "inimigo" não é o colonizador português (não porque tenha sido "excepcional", mas porque é hoje irrelevante no imaginário brasileiro), mas sim as elites privilegiadas, historicamente estabelecidas num contínuo entre o período colonial e o Brasil independente.
O tipo de relação colonial Portugal-Brasil não foi da mesma ordem que o colonialismo moderno na África dos séculos XIX e XX. A própria independência do Brasil, à semelhança das independências latino-americanas, foi feita por uma elite colonial, por razões de mercado e economia, e prosseguindo (poderia mesmo dizer-se "inventando") o modelo de construção de estado-nação que viria a triunfar no século XIX europeu. Além disso, o Brasil ainda teve a especificidade acrescida de nascer de uma cisão nas elites portuguesas e luso-descendentes nele estabelecidas, com a continuação de um sistema monárquico imperial.
No processo de construção da nacionalidade brasileira, três problemas fundamentais foram sendo (ir)resolvidos: o da expansão e consolidação territorial, com o extermínio ou submissão das populações indígenas; o da escravatura, sua abolição, e integração das populações afro-descendentes; e a imaginação da nação como idealmente branca ou realisticamente miscigenada — tendo esta característica sido concebida, primeiro, como negativa e, posteriormente, como positiva.
Como é sabido, este processo acabaria por resultar numa solução sui generis: a romantização do índio, apesar (ou por causa) do facto da sua subalternização como tutelado do estado; a abolição da escravatura, seguida da criação de uma classe negra urbana marginalizada; a criação do mito da miscigenação, e de um sistema de classificação de classe e fenótipo baseado no continuum da cor da pele. O triunfo deste mito enquanto discurso hegemónico de representação da identidade brasileira viria a ser utilizado para a construção das próprias representações identitárias portuguesas. Esse processo começou pouco depois da independência do Brasil.
E, efectivamente, após esse acontecimento que, em Portugal, ao longo do período liberal, perante a crise identitária provocada pelo Ultimatum e durante a implementação do projecto de criação de "novos Brasis em África", que se constroem as representações hegemónicas da identidade portuguesa tal como as conhecemos hoje. O seu tropo central é a época dos descobrimentos, concebida como época de glória passada e pergaminho; e a personagem principal dessa narrativa é o próprio Brasil como confirmação do suposto carácter humanista, universalista e miscigénador da expansão portuguesa. Esta narrativa mestra da identidade portuguesa foi simplesmente acentuada durante o período colonial moderno correspondente ao salazarismo e ao marcelismo.
Os processos de democratização português e brasileiro estabeleceram um divórcio entre as representações oficiais das identidades dos dois países. Até então — e o exemplo disso será a coincidência entre o mito da democracia racial propugnado pelo Estado Novo brasileiro e o mito da excepcionalidade do colonialismo português propugnado pelo Estado Novo português — as representações oficiais de ambos os países alimentavam-se mutuamente. A formulação do luso-tropicalismo correspondeu mesmo ao triunfo dessa coincidência. Mas a democratização brasileira permitiu a eclosão de fortes contradições sociais e a manifestação de agendas etnopolíticas até então reprimidas. Os movimentos indígenas transformaram-se em movimentos de reivindicação de terra, de autonomia, de ecologia política, de superação da tutela do estado; surgiram os movimentos negros, já não simplesmente culturalistas, mas assumindo a ligação crítica entre a situação de classe e a situação "racial"; e as políticas de discriminação positiva passaram a estar na ordem do dia.
Todas as contestações às comemorações oficiais dos 500 anos do Brasil foram promovidas por estes segmentos. O alvo da contestação não foi sequer a retórica dos descobrimentos — à qual as próprias instâncias oficiais brasileiras haviam tido o bom senso de escapar. O alvo foi o fulcro da contradição social brasileira, geradora de desigualdades e ancorada na própria formação do Brasil, a saber, a escravatura e a criação de um regime de racismo subtil simultâneo da sua negação ideológica.
No caso português, o processo de democratização não criou condições para a contestação plena das representações hegemónicas da identidade nacional. Nem a descolonização, nem a integração na UE, nem o fluxo crescente de imigrantes geraram essa alteração. Provavelmente, estes factos terão mesmo contribuído para o reforço da narrativa mestra, face a "ameaças" de diluição na Europa e na globalização. A relação com as ex-colónias é mesmo vista como vantagem acrescida para a viabilidade de Portugal como país — ao nível económico mas também ao nível identitário. Daí Portugal parecer precisar de comemorações da época dos descobrimentos como de pão para a boca. Aquilo a que se tem assistido é a sucessivas adaptações do discurso comemorativo e celebratório em torno dos descobrimentos: atenuação da componente heróica e masculinista; atenuação da componente religiosa e evangelizadora; mascaramento da componente evolucionista e civilizadora. Estes atenuamentos e mascaramentos têm sido compensados pelo reforço de noções como "humanismo", "universalismo", "encontro de culturas" — tropos que não constituem material suficiente para a superação da narrativa mestra, porque já estavam presentes nela (basta recordar a retórica luso-tropicalista do último quartel do regime colonial português).
No rescaldo de actualizações e modernizações da narrativa mestra portuguesa —pense-se, por exemplo, na Expo'98 — as comemorações dos 500 anos do Brasil ou do descobrimento do Brasil foram encaradas pelas autoridades portuguesas, pelos media e, muito provavelmente, pelo senso comum, como pacíficas. Daí a surpresa gerada pelas reacções dos grupos militantes no Brasil. Em Portugal, a oportunidade perdida foi dupla. Por um lado, a revisão da história, resgatando as ocultações e os esquecimentos, nomeadamente o papel português na instituição da escravatura. Por outro, a oportunidade de construir uma narrativa nova que possa imaginar Portugal como uma nação em que os valores da cidadania individual e do multiculturalismo não comunitarista sejam centrais.
Uma avaliação sumária e não científica do que foram as celebrações do descobrimento do Brasil é necessariamente negativa. O mito do Brasil como jóia da coroa da gesta de Portugal como colonizador excepcional perpetua-se no imaginário português. Pode mesmo dizer-se que, neste momento, é em Portugal que mais sobrevive o mito do Brasil como país de sucesso da miscigenação, como democracia racial. Esta mitologia vive paredes meias com uma impossibilidade real de imaginar (no sentido de construir um projecto) Portugal como um país multicultural, de acolhimento e integração de imigrantes, onde a diversidade conviva com a igualdade social e de cidadania.
Paralelamente, no Brasil, as comemorações dos 500 anos do país, tal como promovidas pelo estado e pela rede Globo, goraram os seus propósitos. As contradições da sociedade brasileira não suportam mais a continuação do mito da democracia racial e da miscigenação perfeita, a não ser como produto de exportação, para a criação de uma mercadoria-Brasil no mercado global das culturas. A agenda da discriminação, da articulação entre "raça" e classe, da etnopolítica e dos direitos de cidadania, criou definitivamente um novo quadro de conflitos sociais e de busca de formas para a sua superação.