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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.17 no.2 Lisboa jul. 2003

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v17i2.457 

Representações sociais vivas do descobrimento do Brasil: A memória social atualizada de brasileiros e portugueses1

Living social representations of the discovery of Brazil: updated socil memory of Portuguese and Brazilians

 

Renato Cesar Möller*; Celso Pereira de Sá**; Fernando Cesar de Castro Bezerra***

*Coordenador geral de pesquisa de demandas sociais, PRODEMAN, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

**Professor titular de psicologia social, Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

***Coordenador técnico de pesquisa de demandas sociais, PRODEMAN, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 


RESUMO

Neste artigo são evidenciados aspectos comparativamente importantes da memória social actualizada de portugueses e brasileiros a propósito do descobrimento do Brasil. Tal estado da memória é descrito em termos das representações sociais vivas, ou seja, aquelas actuantes nas duas populações por ocasião mesmo da comemoração do quinto centenário. Para isso, foram aplicados questionários, de características semelhantes, sobre diversas questões relacionadas ao descobrimento e à colonização do Brasil — históricas, económicas, políticas, culturais — a 500 sujeitos portugueses em Lisboa e a 789 brasileiros, em sete diferentes cidades do país, todos adultos, de ambos os sexos, com no mínimo oito anos de escolarização. Alguns dos principais resultados dessa investigação são os seguintes: (1) dois terços dos sujeitos brasileiros e um terço dos portugueses citam o descobrimento do Brasil como um dos três factos mais marcantes da história dos seus países; (2) a maioria dos portugueses atribui o descobrimento do Brasil ao acaso, enquanto a maioria dos brasileiros o representa como resultado de uma acção intencional; (3) para a amostra brasileira, uma menor proporção das características favoráveis do Brasil e uma maior proporção das desfavoráveis se devem à influência europeia, em comparação com as influências indígena e africana; (4) a cultura brasileira é representada, tanto pelos brasileiros como pelos portugueses, como uma fusão das culturas europeia, indígena e africana; (5) mais da metade das amostras brasileira e portuguesa remetem a redação da população indígena à matança pelos colonizadores, seguindo-se, como outros factores importantes, as guerras entre tribos rivais, para os portugueses, e as doenças trazidas pelos europeus, para os brasileiros; (6) quanto aos sentimentos associados à memória dos acontecimentos de quinhentos anos atrás, os portugueses sentem-se principalmente orgulhosos ou, em menor proporção, indiferentes, enquanto os sentimentos dos brasileiros se distribuem entre a revolta, a vergonha, mas também o orgulho e a indiferença; (7) para os portugueses, a principal fonte de representações do descobrimento é o aprendizado na escola, seguido da televisão, que são também fontes importantes para os brasileiros, mas em menor grau, pois jornais, revistas e livros recentes contribuem igualmente para a actualização da sua memória; (8) não obstante, metade da amostra brasileira, tanto quanto a portuguesa, não vê muita diferença entre o que se fala hoje sobre o descobrimento e o que se lembra de ter lido nos manuais escolares; (9) dentre os que rejeitam o termo "descobrimento", a maioria dos portugueses preferiria substituí-lo por "encontro entre dois povos", enquanto, em uma proporção maior, os brasileiros julgam mais adequado falar de "invasão" ou "conquista"; (10) finalmente, a quase totalidade dos portugueses e dois terços dos brasileiros são favoráveis à comemoração do descobrimento do Brasil nos respectivos países. Estes resultados comparativos são interpretados em termos das razões pelas quais podem ser semelhantes, mas também distintas e distantes, as memórias actualizadas de um mesmo acontecimento remoto em duas populações ligadas por complexos vínculos históricos e culturais.

Palavras-chave Representações sociais, descobrimento do Brasil, memória social.


ABSTRACT

In this paper we evidence important aspects of the process of updating Portuguese and Brazilian social memory concerning the discovery of Brazil. This social memory is described in terms of social representations, i. e., those active in the two populations on the occasion of the commemoration of the fifth centennial. Thus, we applied questionnaires of similar characteristics on several subjects related to the discovery and to the colonization of Brazil — historical, economical, political, and cultural — to 500 Portuguese subjects in Lisbon and to 789 Brazilian in seven different cities of the country, all adults of both sexes, with at least eight years of education. Some of the main results of this study were the following: (1) two thirds of the Brazilian subjects and a third of the Portuguese state the discovery of Brazil as one of the three most outstanding factors of the history of these countries; (2) most of the Portuguese attribute the discovery of Brazil to random factors, while most of the Brazilians represent it as a result of an intentional action; (3) for the Brazilian sample, a smaller proportion of the favourable characteristics of Brazil and a larger proportion of the unfavourable ones are due to the European influence, in comparison with the native and African influences; (4) the Brazilian culture is represented both by Brazilians and Portuguese as a fusion of European, indigenous and African cultures; (5) more than half of the Brazilian and Portuguese samples blame the reduction of the indigenous population to the slaughter commanded by the colonizers, as well as other important factors such as the wars among rival tribes, for the Portuguese, and the diseases brought by the Europeans, for the Brazilians; (6) as for the feelings associated to the memory of the events of five hundred years ago, the Portuguese feel mainly proud or, in smaller proportion, indifference, while the feelings of the Brazilians are distributed among revolt, shame, but also pride and indifference; (7) for the Portuguese, the main source of representations of the discovery is school learning, followed by television, that are also important sources for the Brazilians, but in smaller degree, because newspapers, magazines and recent book publications contribute equally to the updating of this social memory; (8) nevertheless, half of the Brazilian sample, as much as the Portuguese, does not see a lot of difference among what is spoken today about the discovery and what remembers to have read in school manuals; (9) among the ones that reject the term "discovery", most of the Portuguese would prefer to substitute it for "encounter among two civilisations", while, in a larger proportion, the Brazilians judge more appropriate to speak of "invasion" or "conquer"; (10) finally, almost the totality of the Portuguese and two thirds of the Brazilians are favourable to the commemoration of the discovery of Brazil in their respective countries. These comparative results are interpreted in terms of the reasons why the updated memories of a same remote event are similar, but also different and distant, in two linked populations by complex historical and cultural bonds.


 

Neste artigo são evidenciados os aspectos comparativamente importantes da memória social actualizada de portugueses e brasileiros a propósito do descobrimento do Brasil. Tal estado da memória é descrito em termos de "representações sociais vivas", ou seja, aquelas actuantes nas duas populações por ocasião mesmo da comemoração do quinto centenário (ver também o texto de Sá, Oliveira & Prado, neste volume). Para tanto foram extraídas do vasto número de questões propostas pelo inquérito que deu origem a este relato apenas aquelas capazes de descrever de modo mais imediato o contexto ampliado onde se articulam representações sobre os acontecimentos históricos relacionados à comemoração.

Tanto em Portugal quanto no Brasil, a colheita de dados consistiu na aplicação assistida de questionários de conteúdo semelhante, contendo questões abertas e fechadas, dirigidos a uma amostra de sujeitos com idade igual ou superior a 18 anos e com grau de escolaridade mínimo equivalente ao 9o ano completo em Portugal e ao ensino fundamental completo no Brasil. Os questionários foram aplicados a 500 portugueses residentes em Lisboa e a 789 brasileiros residentes em sete diferentes capitais brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belém, Natal, Cuiabá e Florianópolis), representando as cinco grandes regiões geográficas do país. A selecção da amostra obedeceu aos critérios de distribuição proporcional por sexo, faixa etária e grau de escolaridade em relação à população-alvo nas cidades mencionadas. Em ambos os países os questionários foram aplicados nos meses subsequentes ao de Abril de 2000, quando as comemorações tornaram-se mais intensas.

Para balizar o exame dos resultados alcançados conviria, inicialmente, destacar os graus diferenciados de importância atribuídos por sujeitos brasileiros e portugueses ao facto histórico do descobrimento do Brasil. Quando solicitados a indicar os três factos mais marcantes da história de Portugal, 30,6% dos sujeitos portugueses citaram espontaneamente o descobrimento do Brasil. Já entre os brasileiros, como seria de esperar, os resultados do estudo revelam que o percentual dos que situam o descobrimento do Brasil no conjunto dos três factos mais marcantes da história de seu país foi expressivamente maior, chegando a 61,7%.

Além disso, quando solicitados a escolher desse conjunto aquele facto histórico que lhes parecia o mais importante, também, entre os brasileiros, o descobrimento do Brasil predominou sobre os outros factos históricos, respondendo por nada menos que 31,7% das escolhas, sobrepondo-se mesmo a outros factos de relevância inquestionável na história de ex-colónias, como, por exemplo, a conquista da independência em relação ao país colonizador, que na amostra brasileira situa-se num distante 3.° lugar, com 13,9% das escolhas, antecedido pela abolição da escravatura, esta com 25,2% das escolhas. A figura 1 exibe, comparativamente, a opinião de portugueses e brasileiros sobre o facto considerado como o mais importante na história de seus países de origem.

Uma outra questão abordada pelo estudo diz respeito ao modo pelo qual o Brasil teria sido descoberto. Os resultados, mostrados na figura 2, revelam que a tese do acaso do descobrimento predominava em Portugal, enquanto que no Brasil a tese da intencionalidade parecia ter maior aceitação.

A história regista que foi só a partir da segunda metade do século XVI que começaria a surgir em Lisboa, por obra de cronistas oficiais da corte, a tese de que o Brasil fora descoberto por acaso. Interpretações mais recentes associam o surgimento da tese da casualidade do descobrimento ao desprezo e pouca importância que a coroa reservava ao Brasil da época.

Por outro lado, a defesa da tese da intencionalidade surge, no Brasil, no auge do segundo reinado, um período repleto de glórias em que o Brasil parece preocupar-se com a valorização da sua história. É o próprio imperador do Brasil que estimula estudos sobre o tema. Embora bem sustentada do ponto de vista histórico, a defesa da teoria da intencionalidade pode ser interpretada como uma demonstração do orgulho que a nação passa a sentir de si mesma.

Se a história parece indicar a conexidade entre o grau de importância atribuído ao descobrimento do Brasil e a opção por uma das duas teses apresentadas (casualidade e intencionalidade), os resultados do presente estudo parecem mostrar que esta conexidade persiste nos tempos actuais, uma vez que a tese da acção intencional tem maior aceitação no país que confere maior importância ao descobrimento e que faz desse facto histórico uma alegoria de seu nascimento como nação, com a força simbólica que nenhum outro facto remoto foi capaz de imprimir, nem mesmo os relacionados à independência do país.

O caráter ideológico que parece presidir à opção pelas teses da casualidade ou da intencionalidade fica mais evidente quando se observa que nenhum dos três únicos documentos originais referentes à viagem de descobrimento — as cartas de Pero Vaz de Caminha, do Mestre João e do "piloto anónimo" — constituem provas suficientes em favor de qualquer uma destas teses.

O estudo interessou-se também em saber em que medida as influências europeia, indígena e africana são creditadas pelos brasileiros a algumas características comummente atribuídas ao Brasil de hoje. Foram apresentadas à amostra brasileira algumas destas características, tanto favoráveis quanto desfavoráveis. O quadro 1 apresenta este conjunto de características.

Por meio de um sistema de pontuação que creditava um ponto a cada grupo — europeu, indígena ou africano — toda vez que este era responsabilizado por uma característica, o estudo constatou, como mostra a figura 3, que o grupo europeu foi considerado como o que mais exerceu influência sobre as características desfavoráveis atribuídas ao Brasil de hoje.

A figura 4 ilustra, a título de exemplo, a influência atribuída a cada um destes três grupos sobre uma característica desfavorável específica, qual seja, "o subdesenvolvimento económico".

Mas, como evidencia a figura 5, os brasileiros também foram capazes de reconhecer méritos decorrentes do processo de colonização europeu, como, por exemplo, "a integração racial na sociedade".

Estes resultados mostram ter consistência quando confrontados com as respostas dos sujeitos da pesquisa à indagação sobre o que teria ocorrido com as três culturas que conviveram no Brasil durante a sua colonização. A figura 6 mostra que a cultura brasileira foi representada, tanto pelos brasileiros quanto pelos portugueses, como a fusão das culturas europeias indígena e africana.

Muito embora os resultados apontem para o reconhecimento — por parte de portugueses e brasileiros — do carácter integrativo do processo de colonização do Brasil, os sujeitos da pesquisa pareciam não acreditar que esta integração tenha se dado de modo pacífico. Como demonstra a figura 7, metade dos portugueses e brasileiros consideraram "a matança dos índios pelos colonizadores" como a principal causa apontada para explicar a redução da população indígena. Quanto aos outros motivos apontados para explicar tal redução, os portugueses — comparativamente aos brasileiros—pareceram ter pouca simpatia por explicações que aumentassem sua responsabilidade neste processo, como "doenças trazidas pelo colonizador", preferindo explicações que transferissem a responsabilidade pelo extermínio às próprias vítimas, como a "guerra entre tribos rivais" ou a "não procriação intencional dos índios".

Os resultados precedentes parecem explicar porque os brasileiros — mais do que os portugueses — experimentavam sentimentos de revolta ou vergonha quando pensavam nos factos ocorridos há 500 anos no Brasil. De facto, enquanto os portugueses sentiam-se principalmente orgulhosos ou, em menor proporção, indiferentes em relação a esses acontecimentos remotos, os brasileiros, de acordo com figura 8, se distribuíam entre a revolta e a vergonha, além do orgulho e da indiferença.

Conforme a figura 9 revela, para os portugueses a principal fonte de representações do descobrimento foi o aprendizado na escola, seguido da televisão, que foram também fontes importantes para os brasileiros, mas em menor grau, pois jornais, revistas e livros recentes contribuíram igualmente para a actualização da sua memória.

Embora o conhecimento sobre o descobrimento do Brasil tenha sido obtido pelos brasileiros por meio do acesso a diferentes fontes, as quais adoptam modos inteiramente diversificados de tratamento da informação, o estudo revelou, como consubstanciado na figura 10, que metade da amostra brasileira, tanto quanto da portuguesa, não percebia muita diferença entre o que se falava então sobre o descobrimento e o que se lembrava de ter lido nos manuais escolares.

A figura 11 resulta da tentativa de testar a hipótese de que alguns sentimentos experimentados pelos brasileiros quanto aos factos relacionados ao descobrimento pudessem ser explicados pela preferência por um meio específico de informação, através do qual recebessem predominantemente as informações sobre o descobrimento. Como se observa, os jornais e revistas e, sobretudo, os livros recentes sobre história estariam disseminando conteúdos mais críticos em relação aos factos do descobrimento, uma vez que aqueles que os apontaram como principal fonte de conhecimento foram precisamente os que afirmaram experimentar, em maior grau, sentimentos de revolta e vergonha.

O estudo também sugere, através da figura 12, que é entre os mais jovens que prevalecia o sentimento de revolta, acompanhando talvez a maior adesão desta faixa etária às chamadas "críticas recentes" à intervenção europeia no "novo mundo", que teriam emergido no contexto das comemorações do quinto centenário do descobrimento da América, conforme resultados relatados por Sá, Oliveira e Prado neste volume.

Não parece ser por outro motivo que o termo considerado o mais adequado para designar a chegada dos navegadores portugueses ao Brasil tenha sido, segundo a amostra brasileira, "invasão ou conquista", contrariamente aos sujeitos portugueses, cuja preferência recaiu sobre o termo "encontro entre dois povos", como mostra a figura 13.

Embora tenham destacado aspectos negativos relacionados ao descobrimento, brasileiros e portugueses consideraram que o evento deveria ser comemorado. A figura 14 revela que a quase totalidade dos portugueses e dois terços dos brasileiros mostraram-se favoráveis à comemoração do descobrimento do Brasil nos respectivos países.

Finalmente, a figura 15 mostra em que grau brasileiros e portugueses consideraram que os objectivos de recordação do passado foram importantes nas comemorações do quinto centenário do descobrimento do Brasil.

O exame desses resultados indica que a ênfase dada aos aspectos negativos trazidos pela comemoração do quinto centenário do descobrimento não implicou a preferência por objectivos que representassem intenções revanchistas ou correctivas em relação ao passado. De facto, o que se observa é que o objectivo de "melhorar as relações entre os dois países", incluído como alternativa de escolha exclusivamente no questionário português, e o "preparar o país para o futuro", incluído como alternativa de escolha exclusivamente no questionário brasileiro, foram os objectivos considerados os mais importantes, revelando uma função prospectiva das memórias actualizadas do descobrimento, qual seja, a de buscar no futuro um maior estreitamento das relações entre duas populações já tão ligadas por complexos vínculos históricos e culturais.

 

Notas

1Projecto financiados pelos FAPERJ, CNPq, FAP/UERJ.

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