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Psicologia
versão impressa ISSN 0874-2049
Psicologia vol.17 no.2 Lisboa jul. 2003
Quem não arrisca não petisca?
A psicologia e a investigação dos comportamentos face aos riscos
Nothing ventured, nothing gained? Psycology and research on behavous towards risk
Maria Luísa Lima*; Graça Vinagre**; Sílvia Silva*
*Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa;
**Escola Superior de Enfermagem Calouste Gulbenkian de Lisboa;
RESUMO
Vivemos numa sociedade em que os riscos que corremos estão cada vez mais mediatizados, e este artigo salienta alguns dos caminhos que a psicologia tem seguido para estudar a forma como encaramos estes riscos e como agimos face a eles. Depois de uma introdução geral sobre a percepção de riscos numa perspectiva psicológica, descrevem-se estudos realizados em Portugal sobre riscos que são geralmente banalizados (acidentes domésticos e acidentes de trabalho) e sobre riscos que são alarmantes (incineração).
Palavras-chave Percepção de riscos.
ABSTRACT
We live in a world where the risks we take have huge media coverage. This paper presents some of the paths that Psychology has created to study the way we think about risk and how we face it. After a brief introduction on the psychological approach to risk perception, some studies conducted in Portugal will be summarized. These studies analyze risks which are usually underestimated (home injuries or work accidents) but also risks that are usually considered as dread (incineration).
Introdução
É frequente as primeiras páginas dos jornais e as aberturas dos noticiários darem destaque às ameaças que nos rodeiam: a pneumonia atípica, os nitrofuranos nos frangos, as dioxinas, o terrorismo. E, de facto, todos os estudos onde se avalia a opinião dos portugueses sobre as questões ambientais salientam o elevado grau de preocupação manifestado pelos inquiridos. Em 1992,90% dos inquiridos portugueses manifestavam-se bastante ou algo preocupados com o ambiente (Lima & Schmidt, 1996) e os portugueses continuam a ser dos povos mais preocupados com as questões ambientais num estudo internacional realizado em 2000 (Lima, 2003a). No entanto, nos últimos anos Portugal tornou-se um país substancialmente mais seguro, de acordo com os números compilados por Barreto (2000). No último século a esperança de vida quase duplicou e, mesmo considerando apenas os últimos 40 anos, as diferenças são enormes: em 1960 menos de 30% das habitações dispunham de água canalizada, quando estas actualmente rondam os 95%; em 1960 havia menos de 80 médicos por cem mil habitantes, quando agora temos mais de 300; e neste momento a grande maioria da população activa (85%) está coberta pela segurança social, coisa que acontecia apenas para 34% dos trabalhadores nos anos 60.
A que se deve então esta disparidade entre os indicadores objectivos de melhoria da qualidade de vida e esta ideia de que o ambiente que nos rodeia é ameaçador? Como compreender que continuemos a pensar que no tempo dos nossos avós e bisavós é que havia segurança, quando então as pessoas morriam aos milhões nas guerras e todos os dias muitos de doenças, de má alimentação e de falta de condições de higiene? Nesta sessão debatemos alguns contributos da psicologia para responder a esta questão.
Percepção de riscos e avaliação de riscos
Para nos entendermos melhor, começamos por definir alguns conceitos que temos vindo a utilizar implicitamente. Por "percepção do risco" entende-se a forma como os não especialistas (leigos ou público) pensam sobre o risco, e referimo-nos à avaliação subjectiva do grau de ameaça potencial de um determinado acontecimento ou actividade. Mas há uma outra área de investigação conhecida por "avaliação do risco", na qual as ciências naturais têm desenvolvido instrumentos e modelos para determinar os níveis de risco objectivo a que as populações estão sujeitas. O problema é que frequentemente os resultados da avaliação dos riscos são completamente diferentes dos da percepção do risco: a avaliação de riscos associados a uma central nuclear ou a uma incineradora classificam-nos como extremamente baixos, mas os estudos de percepção de risco mostram que estes mesmos riscos são vistos pelas populações como assustadores e inaceitáveis; mas os riscos associados a acidentes de automóveis ou ao tabaco são considerados muito elevados pelo mesmo tipo de metodologias de avaliação, mas são desprezados pelo público, que resiste a ser envolvido em projectos de prevenção. São, então, diferentes as visões do risco pelos técnicos e pelos cidadãos leigos. Esta diferença de perspectiva foi interpretada como uma reacção emocional de pessoas pouco informadas, que poderia ser resolvida com mais educação e melhor comunicação. No entanto, as divergências no quadro da própria comunidade científica relativamente à avaliação dos chamados novos riscos (como, por exemplo, o nuclear, o dos alimentos geneticamente manipulados ou das dioxinas) vem mostrar que a melhoria da comunicação de riscos pode não chegar para resolver esta diferença de posições (Castro & Lima, 2003). Alguns sociólogos propõem mesmo que consideremos esta emergência do risco como uma das características da época em que vivemos: a sociedade de risco para Ulrich Beck ou a modernidade tardia para Anthony Giddens. Estes autores dão-nos um primeiro contributo para percebermos este sentimento de ameaça que nos parece rodear: o risco agora pode não ser maior do que antes, mas as fontes de risco são diferentes (invisíveis, globais e resistentes às instituições que tradicionalmente nos garantiam a segurança — as leis, as seguradoras, a ciência); a avaliação destes novos riscos é assim mais incerta (por serem riscos globais e difusos, cujo debate científico ainda decorre); a percepção destes riscos torna-se também mais saliente devido à importância dos valores da cidadania e da participação e à cobertura mediática das preocupações do público.
Que riscos tememos?
Mas nem todos os riscos têm o mesmo potencial de mobilização da opinião pública, e a investigação de um grupo de psicólogos cognitivos coordenados por Paul Slovic identificou duas grandes dimensões que estão na base das apreciações dos indivíduos leigos acerca de uma série de tecnologias, dimensões essas que têm sido replicadas por todo o mundo (Lima, 1994; Slovic, 1987). A primeira dimensão opõe riscos incontroláveis, que representam um perigo para as gerações futuras, que são considerados assustadores e fatais, a riscos controláveis e com consequências menos graves; a segunda dimensão opõe riscos vistos como desconhecidos, novos mesmo para a ciência, com efeitos invisíveis e a longo prazo, a riscos mais familiares e com consequências visíveis a curto prazo. Estes estudos mostraram que o risco percebido não se relaciona directamente com o número de mortes que provocam (que é a forma como os especialistas em análise do risco o quantificam) mas em dimensões qualitativas tais como o grau de
Percepção de riscos e avaliação de riscos
Para nos entendermos melhor, começamos por definir alguns conceitos que temos vindo a utilizar implicitamente. Por "percepção do risco" entende-se a forma como os não especialistas (leigos ou público) pensam sobre o risco, e referimo-nos à avaliação subjectiva do grau de ameaça potencial de um determinado acontecimento ou actividade. Mas há uma outra área de investigação conhecida por "avaliação do risco", na qual as ciências naturais têm desenvolvido instrumentos e modelos para determinar os níveis de risco objectivo a que as populações estão sujeitas. O problema é que frequentemente os resultados da avaliação dos riscos são completamente diferentes dos da percepção do risco: a avaliação de riscos associados a uma central nuclear ou a uma incineradora classificam-nos como extremamente baixos, mas os estudos de percepção de risco mostram que estes mesmos riscos são vistos pelas populações como assustadores e inaceitáveis; mas os riscos associados a acidentes de automóveis ou ao tabaco são considerados muito elevados pelo mesmo tipo de metodologias de avaliação, mas são desprezados pelo público, que resiste a ser envolvido em projectos de prevenção. São, então, diferentes as visões do risco pelos técnicos e pelos cidadãos leigos. Esta diferença de perspectiva foi interpretada como uma reacção emocional de pessoas pouco informadas, que poderia ser resolvida com mais educação e melhor comunicação. No entanto, as divergências no quadro da própria comunidade científica relativamente à avaliação dos chamados novos riscos (como, por exemplo, o nuclear, o dos alimentos geneticamente manipulados ou das dioxinas) vem mostrar que a melhoria da comunicação de riscos pode não chegar para resolver esta diferença de posições (Castro & Lima, 2003). Alguns sociólogos propõem mesmo que consideremos esta emergência do risco como uma das características da época em que vivemos: a sociedade de risco para Ulrich Beck ou a modernidade tardia para Anthony Giddens. Estes autores dão-nos um primeiro contributo para percebermos este sentimento de ameaça que nos parece rodear: o risco agora pode não ser maior do que antes, mas as fontes de risco são diferentes (invisíveis, globais e resistentes às instituições que tradicionalmente nos garantiam a segurança — as leis, as seguradoras, a ciência); a avaliação destes novos riscos é assim mais incerta (por serem riscos globais e difusos, cujo debate científico ainda decorre); a percepção destes riscos torna-se também mais saliente devido à importância dos valores da cidadania e da participação e à cobertura mediática das preocupações do público.
Que riscos tememos?
Mas nem todos os riscos têm o mesmo potencial de mobilização da opinião pública, e a investigação de um grupo de psicólogos cognitivos coordenados por Paul Slovic identificou duas grandes dimensões que estão na base das apreciações dos indivíduos leigos acerca de uma série de tecnologias, dimensões essas que têm sido replicadas por todo o mundo (Lima, 1994; Slovic, 1987). A primeira dimensão opõe riscos incontroláveis, que representam um perigo para as gerações futuras, que são considerados assustadores e fatais, a riscos controláveis e com consequências menos graves; a segunda dimensão opõe riscos vistos como desconhecidos, novos mesmo para a ciência, com efeitos invisíveis e a longo prazo, a riscos mais familiares e com consequências visíveis a curto prazo. Estes estudos mostraram que o risco percebido não se relaciona directamente com o número de mortes que provocam (que é a forma como os especialistas em análise do risco o quantificam) mas em dimensões qualitativas tais como o grau de conhecimento ou o seu carácter devastador. Isto quer dizer que perigos de consequências terríveis (como, por exemplo, os associados à energia nuclear), e principalmente quando são simultaneamente considerados pouco conhecidos até pelos dentistas (como é o caso dos OGM), são vistos como particularmente inaceitáveis. Por outro lado, os riscos que estão mais identificados e estudados (como os do tabaco, as doenças cardio-vasculares), e especialente quando são também riscos que nós sabemos como devemos evitar (como os acidentes de automóvel), são banalisados. Assim, são exactamente os riscos que matam menos e os que necessitam dos olhos da ciência para a sua identificação e controlo aqueles que têm um maior poder de alarmar a opinião pública, enquanto que outros mais antigos, que matam muito mais gente (como os acidentes de automóvel), não levam ao levantamento das populações a exigir maior segurança.
Esta diferença na forma como percebemos os riscos obriga a psicologia a ter de encarar dois problemas diferentes. No caso dos riscos quotidianos (os acidentes rodoviários, os acidentes domésticos ou os de trabalho), como são desvalorizados, é preciso intervir para mobilizar as pessoas para a sua própria protecção. No caso dos riscos assustadores (nuclear, incineração, OGM), que são riscos que alarmam rapidamente a população, é preciso intervir para ajudar as pessoas a gerir a ansiedade. Vamos então ver exemplos de pesquisa em ambas as situações.
Um risco ignorado: os acidentes domésticos
O risco de acidentes domésticos espreita-nos em cada momento e em cada local das nossas casas. São no entanto as crianças, nos primeiros anos de vida, as mais vulneráveis a este tipo de riscos, pelo que necessitam da intervenção dos adultos para as proteger dos múltiplos perigos. Sabemos, pelos dados estatísticos disponíveis (EME, 2002; EHLASS, 1999), que enquanto os acidentes de viação são mais frequentes nas crianças em idade escolar e sobretudo nos adolescentes, os acidentes domésticos têm especial relevância no grupo etário de 1 aos 4 anos. Continuam a ser os acidentes que ocupam o primeiro lugar nas causas de morte e de incapacidade temporária e permanente nas crianças e jovens, que associados aos elevados custos pessoais, familiares, sodais e económicos constituem um importante problema de saúde pública (Cordeiro, 1996). Como a maioria destes acontecimentos podem ser evitados, a prevenção deve ser o caminho privilegiado para a intervenção. Tratando-se de riscos do quotidiano que são, como vimos, frequentemente desvalorizados mesmo pelos pais das crianças mais novas, surge-nos a questão; como mobilizá-los no sentido da prevenção?
Esta questão tem motivado o investimento em estudos nesta área e o problema tem sido abordado por diferentes perspectivas teóricas, na tentativa de encontrar estratégias de intervenção mais eficazes. Alguns teóricos têm dado mais importância ao estudo dos factores ambientais, como os defensores das abordagens epidemiológica (Rivara & Mueller, 1987) e estrutural (Wilson & Baker, 1987), focalizando as estratégias de intervenção sobretudo no desenvolvimento de equipamento mais seguro (por exemplo, frascos de medicamentos com tampa de segurança) e na aprovação de leis que evitem situações risco (por exemplo, cadeiras e cintos de segurança). No entanto, outros autores mais recentes enfatizam os factores sociocognitivos como determinantes dos comportamentos de risco e de segurança, quer das crianças quer dos pais (Peterson, Farmer & Kashani, 1990; Vinagre, 1995). Isto é, chamam a atenção para o facto de a protecção da criança dos perigos domésticos requerer frequentemente a participação activa dos pais, pois são eles que controlam o espaço doméstico e definem as regras de segurança em casa. A sua intervenção activa é fundamental ao nível da vigilância da criança em muitas situações (por exemplo, na praia), mas também na implementação de medidas de segurança no ambiente doméstico (por exemplo, optar por comprar e colocar protectores nas tomadas), e mais tarde na educação para a segurança, ensinando as crianças a lidar e conviver com os diferentes riscos que as rodeiam (por exemplo, ensinar a usar o fogão).
Contudo, a intervenção junto dos pais tendo em vista a mudança de atitudes e comportamentos para a prevenção de acidentes nas crianças, tem-se revelado difícil, porque se trata de modificar padrões de conduta culturalmente reforçados e hábitos do quotidiano doméstico fortemente implantados e que se desenrolam num espaço privado. Defendemos que a mudança dos comportamentos dos pais visando a segurança dos seus filhos só ocorrerá se a intervenção dos técnicos incidir directamente sobre as suas formas de pensar e de agir (Vinagre & Lima, 1998), e por isso privilegiamos modelos teóricos que permitam compreender o significado que os pais atribuem a esta questão, através do estudo dos determinantes sociocognitivos da sua opção por comportamentos de segurança, como o modelo das crenças de saúde (Becker & Maiman, 1975) ou a teoria do comportamento planeado (Ajzen, 1985).
Foi o que fizemos num estudo sobre os factores sociocognitivos da adesão das mães a comportamentos de prevenção face ao risco de intoxicação doméstica nos seus filhos, onde inquirimos 186 mães de crianças de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os nove e quinze meses (Vinagre, 1995). Vamos referir apenas dois dos principais resultados. Em primeiro lugar, quanto mais benefícios as mães acreditavam vir a ter com a adopção do comportamento de prevenção, maior era a probabilidade de aderirem a esse comportamento. Tratava-se de benefícios quer ao nível da mãe ("sentir maior segurança em relação ao filho, mesmo quando está junto dele"), quer ao nível da criança ("possibilidade de o filho ter maior liberdade para brincar"). Interessante, não só pelo facto de a maioria dos acidentes domésticos nesta idade ocorrer na presença do adulto, como também pela importância que a adopção de medidas de segurança doméstica pode ter, proporcionando maior tranquilidade aos pais e favorecendo o desenvolvimento da criança. Um segundo resultado interessante é que a percepção de risco de intoxicação surge associada à experiência indirecta das mães com o acidente: as mães que tiveram experiências prévias de acidentes domésticos nos seus filhos não têm maior percepção de risco, mas isto ocorre quando tiveram conhecimento dessas situações em crianças de familiares, amigos e vizinhos. Este resultado vem lembrar a importância das redes sociais na construção da susceptibilidade percebida, mas também salientar o facto de que as mães consideraram menos graves os acidentes ocorridos nos seus filhos (sobre os quais tiveram conhecimento das consequências, desvalorizando estas experiências) quando comparados com as experiências de outros, por vezes relatadas como dramáticas e muitas vezes dignas de notícia. Relembramos ainda como é frequente ouvir-se: "isso acontece aos outros., .eu conheço um caso..."; "isso acontece muito em bairros degradados... sobretudo onde não há condições..." Esta tendência que as pessoas têm de se considerarem menos vulneráveis que os outros a alguns riscos (enviesamento designado por optimismo irrealista, Weinstein, 1980) é igualmente visível neste domínio de investigação e foi encontrado num estudo realizado recentemente com 288 mães de crianças de ambos os sexos, com idades compreendidas entre um e seis anos (Alves & Lima, 2002). Estas mães consideram, relativamente aos vários tipos de acidentes domésticos apresentados, que a probabilidade de o seu filho sofrer um acidente que necessitasse tratamento é menor do que a do filho de um amigo, ou a de outra criança em idênticas condições. Realçam-se assim as comparações optimistas com os outros.
O subestimar aquilo que é comum, mais conhecido, com o qual se convive no dia-a-dia, como é o caso dos riscos domésticos, constitui sem dúvida uma forte resistência ao envolvimento das pessoas na prevenção. Fica-nos a sugestão da necessidade de os técnicos reequacionarem as suas intervenções de promoção da segurança infantil, de modo a serem mais ajustadas às crenças e valores dos pais; especificamente a investigação que desenvolvemos com base em modelos da psicologia da saúde mostra que elas devem ser mais dirigidas para a segurança do que para o risco, centrando-se nas vantagens que podem advir, quer para os pais quer para as crianças, da adopção de comportamentos de segurança no espaço doméstico.
Outro risco banalizado: os acidentes de trabalho
Os acidentes de trabalho constituem um outro problema bastante grave em Portugal, sendo o país com maior número de acidentes de trabalho mortais ao nível da União Europeia, como se pode observar no quadro 1. Este panorama não é muito diferente para os acidentes não mortais; a este nível e no ano 2000, Portugal ocupava o quarto lugar quando comparado com os outros países da União Europeia. Estes indicadores sugerem que os acidentes de trabalho são um problema social relevante e que a melhoria da segurança é um grande desafio que temos de enfrentar em que a psicologia pode ser útil.
A abordagem da segurança evoluiu a partir da análise dos acidentes de uma forma reactiva. Inicialmente (século XIX e primeira metade do século XX) as explicações reflectiam uma abordagem técnica na identificação das condições inseguras, i. e., as condições do meio físico do local de trabalho apontadas como sendo a causa principal do acidente. Nesta perspectiva os acidentes eram prevenidos criando condições físicas de segurança e protecção dos perigos, por exemplo, pela instalação de mecanismos de segurança nas máquinas (Hale & Hovden, 1998). Posteriormente surge uma focalização nas acções inseguras (abordagem erro humano), segundo a qual a causa principal do acidente residia no comportamento dos trabalhadores que sofriam os acidentes. A prevenção dos acidentes era conseguida pelo desenvolvimento de regras de segurança que tinham como objectivo evitar que esses comportamentos se repetissem. Esta perspectiva inclui já contributos da psicologia, com o objectivo de identificar atributos individuais associados à ausência de protecção: características de personalidade (como a propensão para o risco) ou avaliações (percepção do risco e atitudes face à segurança).
Os "grandes acidentes", como o de Chemobyl em 1996, acentuam a insuficiência das variáveis anteriormente consideradas no estudo da segurança e sugerem uma abordagem diferente, que salienta a complexidade e multiplicidade dos factores que contribuem para os acidentes (Lima, 1999; Turner & Pidgeon, 1997). É neste contexto que a psicologia contribui para a compreensão de factores grupais e organizacionais, e em particular salienta-se a importância dos valores e normas de segurança para a manutenção desta: é introduzido o conceito de cultura de segurança. A cultura de segurança corresponde às crenças, valores, normas relacionados com a segurança e partilhadas pelos membros de uma determinada empresa (Silva & Lima, 2003). A cultura de segurança reflecte as crenças existentes sobre a segurança, ou seja, aquilo em que se acredita dentro da empresa relativamente à segurança (se a segurança funciona, se vale a pena investir na segurança). É caracterizada pelos valores partilhados sobre a segurança, isto é, o que é considerando importante dentro da empresa (e.g., a produção ou a segurança das pessoas), e pelas normas que orientam os comportamentos de segurança, ou seja, as regras e comportamentos que são utilizados no dia-a-dia (por exemplo, a regra é utilizar sempre o equipamento de protecção, ou é utilizar o equipamento de protecção apenas quando o inspector ou os auditores vão à empresa ou é nunca utilizar o equipamento de protecção).
Vários estudos realizados na Europa, Estados Unidos e em Portugal (Carroll, 1998; Cooper, 1998; Guldenmund, 2000; Lima, 1999; Silva, Baptista & Lima, 2001) revelaram que as empresas com menos acidentes apresentam algumas características que as distinguem das empresas com níveis superiores de sinistralidade. Alguns dos factores referidos na caracterização de culturas fortes são: a importância que a direcção da empresa atribui à segurança, uma consciência dos riscos no local de trabalho e preocupação com o bem-estar dos trabalhadores, e a existência de normas de segurança. O papel da gestão/direcção da empresa é fundamental na definição de quais são os valores e normas vigentes. A importância da segurança é transmitida através de áreas que são privilegiadas nos investimentos financeiros e humanos na empresa, a consistência entre o que a direcção da empresa diz e aquilo que faz, as práticas organizacionais de segurança e os comportamentos que são reforçados ou inibidos dentro da empresa.
Os estudos nesta área (Silva & Lima, 2003) têm revelado que o grande dilema que dificulta a existência de culturas de segurança fortes é a oposição segurança/produtividade: a segurança ser considerada pelos gestores e administradores como um obstáculo à produtividade. Se os trabalhadores sentem que o que é importante é apresentar resultados, produzir, a segurança só se traduz em práticas e comportamentos quando a produção "não está em risco". Nestas empresas é partilhada a crença de que o risco compensa. No entanto, as compensações do risco têm uma vida curta, porque a falta de segurança rapidamente se transforma em acidentes, e estes têm muitas consequências que contribuem para a diminuição da produtividade. Para além das consequências facilmente contabilizáveis, como os custos directos dos acidentes (mortes e lesões humanas, danos materiais, coimas, seguros...), os acidentes têm ainda custos indirectos, como a desmotivação dos trabalhadores, o absentismo, diminuição do desempenho. As melhores empresas ao nível da segurança diferenciam-se pelo facto de a vida, saúde e segurança serem valores essenciais: a segurança mais do que uma prioridade deve ser um valor nuclear da empresa, porque as prioridades alteram-se facilmente.
Como colocar então a segurança em primeiro lugar? E necessário que a segurança seja um valor nuclear. Para conseguir que a segurança passe de uma prioridade da empresa para um valor partilhado por todos é necessário conseguir a implicação da direcção da empresa (esta é a pedra basilar), a implicação das chefias assim como a implicação de todos os trabalhadores, e é necessário que os acidentes sejam considerados como oportunidades para a empresa aprender com os seus erros (Toft & Reynolds, 1997). Como intervir no sentido de conseguir esta implicação de todos? É necessário dar formação, que deve começar pelo topo da empresa e seguir a hierarquia, principalmente se as empresas forem burocracias, desenvolver sistemas de comunicação e participação e incluir a segurança nas práticas organizacionais.
É possível mudar a cultura de segurança de uma empresa, mas esta mudança necessita de tempo e a intervenção deve ser planeada com cuidado, como a psicologia organizacional nos ensina (Caetano, 2001). O diagnóstico (da cultura de segurança da empresa) é fundamental para identificação dos problemas existentes e definição de prioridades de intervenção. Uma forma de conseguir um maior sucesso a este nível é através da implementação de práticas organizacionais de segurança adequadas às práticas organizacionais que já existem na empresa.
Um risco empolado: a incineração
Tivemos a possibilidade de acompanhar os residentes de uma zona onde foi construída uma incineradora de resíduos sólidos urbanos na zona do Porto, desde a altura do plano até ao seu funcionamento.1 Foi uma obra contestada pelos ambientalistas e por cerca de 20% dos residentes das zonas próximas. De facto, tinha todos os ingredientes para provocar contestação: era uma tecnologia nova, associada a um agente cancerígeno envolto ainda em polémica científica (as dioxinas), um agente invisível, com eventuais consequências para a saúde, em particular de crianças e idosos. Nestes anos temos assistido a uma evolução da posição destes residentes: habituaram-se, aceitam agora melhor a incineradora e desvalorizam os riscos a ela associados. Estes riscos tornaram-se familiares e conhecidos (e portanto banalizados) apesar de o esforço para lidar com esta ameaça ter tido custos na sua qualidade de vida (Lima, 2003b).
Como é que se ajuda as pessoas a gerir estes riscos? A resposta vem daquilo que sabemos sobre o que assusta as pessoas (o incontrolável e o desconhecido): damos-lhe mais informação sobre o risco e formas de controlo sobre a ameaça (comissões independentes de peritos, monitorização dos efeitos). No entanto, pensamos que este medo dos riscos novos e potencialmente catastróficos não é irracional e tem benefícios sociais, porque exige cautela aos decisores e legisladores. Por exemplo, as ondas de alarme face à BSE tiveram importantes consequências económicas e ao nível da confiança política dos consumidores. Nada que agrade a quem tem de ganhar eleições, que procura, no futuro, garantir que não se repitam esses episódios com mais controlo e legislação mais apertada.
Referências
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Notas
1Este acompanhamento foi feito através da participação no Estudo de Impacto Ambiental da LIPORII e na equipa de Monitorização Externa da Lipor II, coordenada pelo prof. Carlos Borrego pelo IDAD.