A amiloidose hereditária associada à transtirretina amilóide com polineuropatia, paramiloidose ou doença dos pezinhos, é uma doença neurodegenerativa, autossómica dominante, rara, hereditária, progressiva e sistémica, inicialmente descrita por Corino de Andrade (Andrade, 1952). Atualmente afeta cerca de 5,000 a 10,000 pessoas em todo o mundo (Schmidt et al., 2018), sendo o norte de Portugal uma das regiões endémicas (Inês et al., 2018).
A paramiloidose é provocada por uma mutação no gene da transtirretina, cuja variante mais comum é a ATTRV30M, que, por sua vez, pode levar à formação de fibrilhas de amilóide (Andrade, 1952; Inês et al., 2018). Estas fibrilhas podem ser depositadas em alguns órgãos, nomeadamente, o coração, o aparelho digestivo e rins, causando disfuncionalidade (Andrade, 1952). Entre alguns dos sintomas destacam-se a perda de sensibilidade à temperatura, formigueiros, dor intensa nos membros inferiores, atrofia muscular, perda de peso involuntária, tonturas/desmaios, alterações gastrointestinais, disfunção sexual e dificuldades no sistema urinário (Andrade, 1952). Não obstante, ser portador desta mutação genética, sintomático ou assintomático, também está associado a sofrimento emocional ou ao desenvolvimento de psicopatologias (e.g., ansiedade, depressão; Lopes, Fonseca, et al., 2018), provocados por eventos de vida dolorosos relacionados com o estigma social (Mendes et al., 2017), com a morte precoce dos pais ou com o início e evolução da sua doença ou dos progenitores (Lopes, Fonseca, et al., 2018; Lopes, Sousa, et al., 2018).
Tratando-se de uma patologia incapacitante e irreversível, a paramiloidose pode ser fatal em 10 anos caso os pacientes não recebam os tratamentos mais adequados (Inês et al., 2018). Gradualmente, com a evolução da doença, os pacientes vão perdendo a sua autonomia, necessitando de um cuidador para realizar as suas atividades de vida diária (Jonsèn et al., 1998). Em Portugal, esta função de prestação de cuidados já é reconhecida pela publicação do estatuto do cuidador informal (Lei n.º 100/2019 de 6 de setembro da Assembleia da República, 2019). Sendo o responsável pelo suporte no sistema familiar, traduz-se ainda num papel de elevada relevância para a promoção do bem-estar e para responder às necessidades da pessoa com a doença (Lei n.º 100/2019 de 6 de setembro da Assembleia da República, 2019). Habitualmente, a função de cuidador é desempenhada por um membro da família, por exemplo, o cônjuge ou um dos filhos (que desde crianças ou adolescentes se deparam com os desafios inerentes à paramiloidose; Lopes, Rodrigues, et al., 2018; Lopes, Sousa, et al., 2018; Stewart et al., 2018). Todavia, embora com menos frequência, este papel de cuidador também pode ser prestado por outros significativos, como vizinhos ou amigos (Stewart et al., 2018).
Correspondendo a uma função de grande responsabilidade, a prestação de cuidados acarreta um grande desgaste físico e psicológico para fazer face às exigências da pessoa doente (Stewart et al., 2018). Segundo o modelo integrativo do cuidado informal de Gérain e Zech (2019), a exaustão física e emocional e o sentimento de ineficácia surgem devido à interação das características do próprio cuidador, do contexto de cuidado (e.g., tendo subjacente fatores stressores primários como a duração da doença e o grau de dependência da pessoa cuidada; e fatores stressores secundários como as alterações no estilo/rotina de vida do cuidador, a anulação da própria pessoa, a hipervigilância) e do contexto sociocultural onde está inserido o cuidado prestado. Esse processo é ainda mediado pela avaliação da prestação de cuidados e pela qualidade do relacionamento entre a díade cuidador-cuidado (Gérain & Zech, 2019). Assim, a avaliação da prestação de cuidados como um fenómeno que envolve stresse pode dar origem a sentimentos de sobrecarga no cuidador tendo como consequência problemas de saúde físicos e psicológicos, sociais, financeiros e diminuição do autocuidado (Zarit et al., 1980). Embora a prestação de cuidados possa ter um impacto negativo no cuidador, os indivíduos continuam envolvidos em comportamentos de apoio devido a vários motivos, nomeadamente, às suas necessidades psicológicas de autonomia, de competência e de relacionamento, tal como refere a teoria da autodeterminação de Deci e Ryan (2000). Porém, a ausência de intervenções no sentido de melhorar a qualidade de vida/bem-estar subjetivo do cuidador pode levar a que o mesmo apresente uma grande probabilidade de ficar doente ou até de falecer (Messecar, 2008). Um único estudo (que se tenha conhecimento), desenvolvido em Espanha e nos Estados Unidos da América com o objetivo de caracterizar a sobrecarga psicológica de pacientes e de cuidadores informais de pessoas com paramiloidose, indicou que os segundos participantes reportaram uma sobrecarga considerável que se traduzia numa saúde mental debilitada, comprometimento do trabalho e muito tempo despendido na prestação de cuidados (Stewart et al., 2018). Adicionalmente, estudos que exploraram o impacto desta doença na dinâmica familiar e nos membros da família também salientaram a existência de um impacto psicológico negativo, nomeadamente o desenvolvimento de psicopatologia (Lopes, Rodrigues, et al., 2018; Lopes, Sousa, et al., 2018).
Ao contrário do que acontece na paramiloidose, patologia neurológica de início tardio e sem cura, mas com recentes terapêuticas modificadoras do curso da doença, são vários os estudos realizados para explorar as experiências psicossociais dos cuidadores de pessoas com outras doenças neurodegenerativas, sobretudo na doença de Huntington (e.g., Parekh et al., 2018; Røthing et al., 2015b; Aubeeluck et al., 2012), também ela uma doença neurológica de início tardio e sem cura, mas sem tratamentos eficazes que retardem a sua evolução (Korer & Fitzsimmons, 1985; Lopes, Rodrigues, et al., 2018). Perante esta outra condição, os cuidadores informais geralmente experienciam baixa qualidade de vida, stresse, fadiga (Martins et al., 2018), perda de identidade, sobrecarga financeira, isolamento, solidão e emoções negativas (Aubeeluck et al., 2012). Expressam ainda a necessidade de suporte emocional por parte de amigos e família (Aubeeluck et al., 2012), uma vez que as suas necessidades tendem a ser negligenciadas durante o processo de prestação de cuidados (Røthing et al., 2015a). A corroborar estes resultados, a evidência científica, no âmbito da doença de Alzheimer e de Parkinson (Roland & Chappell, 2019) ou em outras doenças crónicas (Maschio et al., 2019), tem sugerido que o suporte emocional fornecido a cuidadores informais por parte de significativos ou profissionais atenua a experiência negativa da prestação de cuidados (e.g., sintomatologia depressiva e sobrecarga).
Embora existam semelhanças nas experiências psicossociais reportadas por cuidadores informais de pessoas com distintas perturbações neurodegenerativas, há a necessidade de considerar a paramiloidose como uma doença ímpar devido às suas características clínicas específicas (Andrade, 1952) e às terapêuticas disponíveis (Adams et al., 2018; Benson et al., 2018; Connelly et al., 2010; Holmgren et al., 1993). Desse modo, e tendo em conta a escassez de estudos que abordam a experiência psicossocial de cuidadores informais nesta doença, urge a necessidade de ser desenvolvida investigação que tente colmatar esta limitação. Assim sendo, este é o primeiro estudo que tem como objetivo explorar a experiência psicossocial, ou seja, o funcionamento psicológico e social associado à prestação de cuidados (viz., no que se refere ao papel de cuidador, ao autocuidado, ao impacto do papel de cuidador no autocuidado) unicamente de cuidadores informais de pessoas com paramiloidose, bem como identificar as suas necessidades. Estudar este fenómeno é obter uma melhor compreensão do papel de cuidador e das suas necessidades para os ajudar a ter uma melhor qualidade de vida enquanto continuam a prestar cuidados aos seus significativos.
Método
Este trabalho trata-se de um estudo qualitativo exploratório que procurou compreender a experiência psicossocial de cuidadores informais de pessoas com paramiloidose e as suas necessidades. A abordagem qualitativa proporciona uma perspetiva mais diferenciada/heterogénea e abrangente da experiência psicossocial de cuidadores informais comparativamente com a investigação quantitativa, sendo a mais indicada quando se pretende estudar um tema com escassa literatura científica, como é o caso. Uma vez que o estudo pretende compreender este fenómeno vivido pelos participantes através da análise do significado das experiências e perceções pessoais, recorreu-se à análise fenomenológica interpretativa dos resultados obtidos (Smith et al., 1999). Este tipo de análise integra algumas técnicas associadas à teoria fundamentada, uma vez que estas facilitam a compreensão holística da experiência (Smith et al., 1999). Todo este processo permitiu centrarmo-nos nos temas que emergiram, muito embora se reconheça que as interpretações do investigador estejam subjacentes, uma vez que são elas que dão sentido à narrativa do participante (Smith et al., 1999). A investigação situou-se dentro de uma ampla experiência psicossocial relativa à prestação de cuidados, mais concretamente, no que se refere ao seu papel de cuidador, ao autocuidado, ao impacto do papel de cuidador no autocuidado e às suas necessidades.
Participantes
Foram realizadas 22 entrevistas semiestruturadas a cuidadores informais de pessoas com paramiloidose que incluíram a recolha de dados sociodemográficos e relativos à prestação de cuidados (Tabela 1).
aAs distintas áreas de residência pertencem à região norte de Portugal. bExperiência em prestar cuidados a pessoas com paramiloidose e/ou outras patologias.
Procedimento
Os participantes foram recrutados através de uma instituição de apoio à paramiloidose, situada numa região endémica no norte de Portugal. Este procedimento envolveu critérios de inclusão, nomeadamente, os participantes serem os principais cuidadores de pessoas com paramiloidose (variante ATTRV30M), com idade igual ou superior a 18 anos, residentes em Portugal, com nacionalidade portuguesa e sem comprometimento cognitivo grave. Foi agendada reunião com a instituição de forma a apresentar o estudo e explicar a colaboração solicitada. Foi também criada uma folha informativa, onde constavam os objetivos e dados importantes sobre o estudo, a entregar e/ou a ler aos participantes quando estes entravam em contacto com a instituição, presencialmente ou por via telefónica. Posteriormente, os participantes interessados foram contactados presencialmente ou por telefone pelo primeiro autor e foram agendadas as entrevistas.
As entrevistas semiestruturadas foram realizadas entre fevereiro e junho de 2020, de forma presencial nessa instituição de apoio (n = 2) e por via telefónica (n = 20). As entrevistas foram gravadas em áudio, com o consentimento dos participantes, para serem posteriormente transcritas.1 A primeira autora conduziu todas as entrevistas, que tiveram uma duração média de cerca de 1h20min. Foram primeiro explorados dados sociodemográficos, seguidos da primeira pergunta aberta do guião de entrevista semiestruturada, elaborado através da revisão de literatura científica (ver Anexo para aceder ao guião semi-diretivo da entrevista). Nas entrevistas semiestruturadas foram realizadas questões sobre a experiência psicossocial de cuidar de uma pessoa com paramiloidose, mais concretamente: (a) a motivação relacionada com o papel de cuidador, (b) o significado associado a esse papel, (c) os impactos psicossociais inerentes ao ato de cuidar, (d) as preocupações e dificuldades intrínsecas ao processo de cuidar, (e) as estratégias de resolução de problemas utilizadas durante a prestação de cuidados, (f) o tempo que o cuidador dedicava a si/autocuidado e as atividades/passatempos que realizava, (g) o impacto do papel de cuidador no autocuidado, (h) os apoios recebidos e a sua satisfação com eles, e (i) as suas necessidades. A entrevistadora interferiu no decorrer da entrevista, pois clarificou alguns assuntos emergidos e resumiu outros. O parecer do estudo foi obtido pela Comissão de Ética da instituição de apoio à paramiloidose.
Análise de dados
Os dados foram analisados com recurso à análise fenomenológica interpretativa (Smith et al., 1999). Inicialmente, anotaram-se informações e subtemas emergentes em cada entrevista. Nas entrevistas realizadas presencialmente, também se registaram algumas observações contextuais. Posteriormente, cada entrevista foi lida repetidamente para construir um mapeamento preliminar dos subtemas emergentes. Mais concretamente, procedeu-se à análise temática indutiva de cada uma das entrevistas transcritas e das informações registadas envolvendo um nível menos específico comparativamente com a fase inicial. Este processo envolveu as fases de identificação, comparação e codificação de subtemas dentro da entrevista. Após efetuar este procedimento para cada entrevista, identificou-se, comparou-se e codificou-se subtemas compartilhados entre as entrevistas e construiu-se um mapeamento preliminar de subtemas do grupo. Os subtemas identificados foram então codificados2 e progressivamente aprimorados.3 Por fim, estes foram agrupados em categorias distintas dando origem aos temas.4 Em seguida, com o intuito de compreender a experiência de uma forma holística, procedeu-se à construção de uma narrativa protótipo, onde os temas e os subtemas foram relacionados, com recurso à técnica de codificação seletiva da teoria fundamentada5 (Glaser & Strauss, 1967). Ainda com o objetivo de aumentar o rigor analítico, a análise foi discutida com a equipa de investigação e com dois profissionais externos ao projeto que trabalham na área da paramiloidose.
Para analisar os dados sociodemográficos e alguns relativos à prestação de cuidados, procedeu-se ao cálculo de estatísticas descritivas com recurso ao programa estatístico IBM SPSS Statistics 25.
Resultados
Os resultados indicaram quatro temas e respetivos subtemas que se interrelacionam (Figura 1). Cada tema e subtemas são apresentados incluindo excertos ilustrativos dos discursos dos participantes.
Tema 1. Conhecimento como aliado da prestação de cuidados
A maioria dos participantes relatou que as suas experiências prévias associadas ao ato de cuidar de familiares com paramiloidose ou pessoas com outras patologias ajudou-os na atual prestação de cuidados a uma pessoa com paramiloidose. Essa vivência não só permitiu aumentar os seus conhecimentos sobre a doença e suas implicações, bem como facilitou o seu desempenho no atual ato de cuidar. Tais competências foram adquiridas nos contextos familiar, hospitalar e laboral:
Ahm [.] Portanto, não sinto dificuldade porque como já vivi a situação com o irmão dele ((marido)), antes dele, na altura ele não tinha a doença. Depois, portanto, passei a cuidar dele [.] ahm [.] a gente andando nos hospitais começa a perceber como é que as coisas funcionam [.] começa a ver como os enfermeiros trabalham. Começa a aprender, sem querer, muita coisa.
(P1, 56 anos, F, cuidadora há 29 anos, sem paramiloidose)
Além da aquisição de competências, através das suas experiências precedentes como prestadores de cuidados, alguns participantes também mencionaram a presença de uma predisposição para desempenhar o papel de cuidador. Por exemplo:
A minha experiência, a experiência que eu já tive antes faz com que eu também goste de ajudar mais as pessoas com estas necessidades. Não sei. Acho que já vem da pessoa de ser cuidadora [.] / Eu acho que é o instinto e pronto a pessoa, muitas vezes, faz isso automaticamente. / Porque eu, no meu trabalho, sou muito mais [.] também com os idosos tenho aquela coisa do cuidado /.
(P2, 53 anos, F, cuidadora há 15 anos, sem paramiloidose)
Ainda, alguns cuidadores salientaram a importância de se manterem atualizados enquanto prestavam cuidados, demonstrando motivação, curiosidade e interesse para realizar novas aprendizagens:
Na altura era só aquilo que ela necessitava e agora precisa de um outro tipo de apoio, não é? Na muda dos pensos e assim [.] para mim isso foi tudo novo. / É saber que amanhã poderá vir uma coisa mais complicada, mas nós temos de saber enfrentar. / O querer aprender, o querer fazer, o querer fazer tudo. E tento fazer. Às vezes faço perguntas que [.] ‘peço desculpa por estar a fazer, mas [.]’, para fazer seja a quem for, mas tento perguntar. Tento estar sempre dentro do acontecimento.
(P3, 33 anos, F, cuidadora há 1 ano, com paramiloidose)
Tema 2. Impacto psicossocial do ato de cuidar e suas estratégias de gestão
A prestação de cuidados foi percecionada como um processo que provoca impacto no cuidador a vários níveis, nomeadamente, ao nível físico, mas sobretudo, ao nível psicológico/emocional, social/relacional e económico.
Vários participantes reportaram que cuidar potencia um desgaste físico e psicológico/emocional importante, relatando frequentemente um sentimento de impotência:
Satura a cabeça. E uma coisa é o cansaço físico e outra é o cansaço psicológico, mas os dois conjugados, às vezes, as coisas ficam assim um bocado complicadas, não é?
(P4, 29 anos, F, cuidadora há 1 ano, com paramiloidose)
Os desafios [.] é assim [.] será a parte da ajuda / psicológica. / Porque se nós não estivermos bem com nós mesmos como é que nós conseguimos ajudar quem precisa? É um desafio, é uma luta constante, é uma luta constante. É um trabalhar todo o dia. É um desafio grande. / É um papel muito exigente. / Eu acho que o cuidador sente mais dores. Porque não está a sentir a dor dele, mas está a sofrer em dobro. Porque não sabe como fazer para passar aquela dor.
(P2, 53 anos, F, cuidadora há 15 anos, sem paramiloidose)
Vários cuidadores ainda mencionaram a frequente priorização da sua função de cuidadores, o que, devido a sentimentos de medo e hipervigilância/preocupação constantes relativamente ao estado de saúde do doente com paramiloidose, implicava colocarem-se em segundo plano e a anularem-se enquanto pessoas:
E: E agora pensando um bocadinho em si, há algum momento em que diga que tem tempo para si? Ou seja, para cuidar de si?
P2: Ahm [.] não muito, não. Porque [.] é assim há, raramente, um jantar com as colegas do trabalho. Tipo ‘olha vamos aliviar um bocadinho. Vamos estar juntas, vamos ter aqueles momentos’. Mas há sempre aquela [.] no fundo, no fundo há sempre aquela preocupaçãozinha. Aquele viciozinho que não te deixa estar totalmente em paz contigo mesma. / Às vezes, também estou um pouquinho em baixo, mas eu esqueço a minha parte e tento olhar para a parte dele, não é? Porque ele tem mais necessidade do que eu.
(P2, 53 anos, F, cuidadora há 15 anos, sem paramiloidose)
Com efeito, alguns participantes relataram um impacto financeiro negativo resultante do desempenho do papel de cuidador:
A maior dificuldade foi eu [.] a parte que senti foi a financeira. / Eu não poder trabalhar, o meu marido de baixa, não é?
(P5, 36 anos, F, cuidadora há 1 ano, sem paramiloidose)
Ainda assim, outros cuidadores recorriam-se de outras estratégias (e.g., apoio noutros elementos da família, organização das tarefas domésticas ou reajustamento de horários de trabalho) para gerir a preocupação sentida, de forma a assumir outros papéis da sua própria vida, resolvendo o conflito entre os mesmos:
E: O papel em si, enquanto cuidadora, já é um papel muito exigente. Então como é que consegue conciliar o seu papel de trabalhadora com o seu papel de cuidadora?
P6: Como é que eu consigo [.] olhe, eu tenho conseguido. / Agora é assim, quando eu vou trabalhar deixo tudo prontinho em casa. Ahm [.] vou sempre preocupada. A minha maior preocupação é que ele ((marido)) tente-se levantar para ir à casa de banho e que possa cair. / Se o meu filho, / está por casa, eu ligo, eu tento ligar várias vezes para o miúdo não se esquecer ‘olha se o pai está na casa de banho’ para o ajudar.
(P6, 51 anos, F, cuidadora há 1 ano, sem paramiloidose)
Os meus horários de trabalho, tenho de fazer noites na mesma, mas optei por, às vezes, fazer noites porque durante o dia conseguia organizar melhor as coisas em casa.
(P2, 53 anos, F, cuidadora há 15 anos, sem paramiloidose)
Por outro lado, vários participantes também relataram impactos relacionais positivos resultantes do ato de cuidar, nomeadamente, uma melhoria da qualidade da relação como resultado do aumento do contacto/proximidade entre os elementos da díade cuidador-cuidado:
Agora claro, sinto que agora como ela ((mãe)) necessita mais de mim, eu sinto-me mais apegada a ela. Porque tenho de saber que ela pode não estar aqui muito tempo e sei que tenho que lhe dar força e sinto-me muito apegada a ela.
(P3, 33 anos, F, cuidadora há 1 ano, com paramiloidose)
Tema 3. Processo de integração da doença durante a prestação de cuidados
Os relatos de vários participantes demonstraram a presença de um processo de luto de forma a integrar a doença e respetivas consequências enquanto prestavam cuidados. Alguns cuidadores mencionaram ter experienciado períodos de questionamento e/ou de revolta pelo facto de a doença estar disseminada na família e expressaram medo associado à transmissão hereditária da doença:
O pai ((do marido com paramiloidose)) não quis saber de fazer o teste nem quer saber. Para ele os médicos não sabem nada. E isso aí também revolta, não é? / Eu acho que é sempre complicado. E quem vem dizer que não é [.] uma pessoa não sabe, pergunta, questiona [.] o porquê? O que é que nós fizemos para merecer isto, não é? E está-se sempre constantemente a pedir a Deus que o nosso filho não tenha, não é?
(P5, 36 anos, F, cuidadora há 1 ano, sem paramiloidose)
Nesta fase de questionamento, alguns cuidadores referiram utilizar estratégias, tais como crenças religiosas, com vista a conseguir gerir o impacto da doença na prestação de cuidados e promover a sua aceitação/integração. Por exemplo:
E ahm [.] muitas das vezes eu penso, muitas vezes interrogo-me o porquê de isto nos acontecer e o porquê de o meu homem ser doente e o porquê de nós termos de ter estes cuidados. Mas nada é por acaso, não é? Se Deus Nosso Senhor nos deu esta doença para dentro da nossa casa é porque nós aguentamos com ela e estamos e temos que lutar um pelo outro e pela nossa família.
(P7, 31 anos, F, cuidadora há 12 anos, sem paramiloidose)
Outros participantes manifestaram um sentimento de revolta por, durante o processo de prestação de cuidados, serem alvos de estigma pela sociedade, nomeadamente devido à falta de conhecimento da população relativamente à doença ou por possuírem crenças erróneas sobre a mesma:
A mania que é da quinta geração [.] não, não. As pessoas estão muito enganadas. Esta zona [endémica], é a zona de [.] e as pessoas têm sempre essa ideia. E ainda dizem ‘ah mesmo que o teu filho não tenha, os filhos do teu filho podem ter’. Não. ‘Não pensem assim! O meu filho não tendo, acabou’. Acabou mesmo ali. Mas há pouca informação acerca disto. As pessoas têm a ideia do antigamente. As pessoas não sabem [.] não têm essa informação real das coisas.
(P5, 36 anos, F, cuidadora há 1 ano, sem paramiloidose)
Contrariamente, outros cuidadores tendiam a normalizar a condição de prestação de cuidados e os seus impactos, aceitando a doença, apesar de vivenciarem um ambiente estigmatizante. Alguns ainda, recorreram-se de estratégias orientadas para a reintegração, nomeadamente, mecanismos de gestão/ajuste de expectativas e de procura de alternativas para fazer face às dificuldades emergidas:
Continuo a fazer a mesma coisa. E nesses dias ele tem todo o meu apoio, fazemos tudo como os outros fazem. Dentro dos nossos possíveis, fazemos tudo. Gostava que ele pudesse andar. Eu gostava, não é? / Mas eu faço na mesma. Não é andar? Não faz mal. Vamos de cadeira de rodas, andamos na mesma. / Nós ((participante e marido com paramiloidose)) tínhamos sempre a nossa maneira de estar bem e então as pessoas viam-nos assim bem [.] / mas as pessoas aqui ((zona onde habitavam)) tinham uma mentalidade assim fechada e comentavam que, como eu era assim toda jeitosa e o meu marido assim debilitadinho na cadeira, que pronto [.] de certeza que eu tinha um amante. Percebe? São coisas tristes, que magoam. Ainda demos formação a muita gente. / ‘Há soluções.’ / ((discurso da participante)).
(P2, 53 anos, F, cuidadora há 15 anos, sem paramiloidose)
Tema 4. Necessidades subjacentes ao ato de cuidar
Os participantes identificaram várias necessidades de apoio para atenuar os impactos negativos da prestação de cuidados e facilitar esse processo.
Vários cuidadores salientaram a importância de haver acompanhamento psicológico para si como também para todos os intervenientes do processo de prestação de cuidados:
P4: / E acho que os apoios psicológicos são fundamentais, porque as pessoas têm as limitações físicas, mas as psicológicas são mais graves.
E: E está a falar não só para o doente, mas também para o cuidador, é isso?
P4: Para os cuidadores. Ao nível de todas as pessoas envolventes no processo, não é? Que tenham um envolvimento diário.
(P4, 29 anos, F, cuidadora há 1 ano, com paramiloidose)
Apesar de a maioria dos cuidadores referirem que adquiriram conhecimentos sobre a doença e suas implicações nos contextos familiar, hospitalar e laboral, alguns ainda continuaram a salientar a necessidade de receber formação sobre técnicas que facilitem a prestação de cuidados nas atividades básicas de vida diária e conteúdos psicoeducacionais referentes à evolução da doença:
Devia haver um bocadinho de formação aos cuidadores em relação ao que é que vai aparecer, o que é que pode surgir, da maneira como podemos resolver, com quem é que devemos contactar logo, não devemos esperar, devemos esperar, devemos ver [.] ahm [.] esse tipo de formação.
(P8, 41 anos, F, cuidadora há 5 anos, com paramiloidose)
Outros cuidadores, que continuavam a trabalhar a tempo inteiro, mencionaram a necessidade de haver alguma flexibilidade nos horários laborais e obtenção de medidas de apoio/proteção laboral quando teriam de faltar por motivos de acompanhamento do doente a consultas. Por exemplo:
Eu não sei se é bem um obstáculo, mas eu acho que os cuidadores deviam ter mais apoio, por exemplo, quando formos às consultas, não perdermos o dia. Ganharmos na mesma porque a falta é justificada. Também devíamos ter mais facilidade ao nível de horários de trabalho. Maior flexibilidade de horários.
(P6, 51 anos, F, cuidadora há 1 ano, sem paramiloidose)
Ainda no levantamento das necessidades dos cuidadores, foi relatada por alguns a importância do Estado português disponibilizar mais apoio no acesso aos serviços de medicina reprodutiva e de aconselhamento genético de forma a ajudarem os casais a tomarem decisões mais informadas:
Por exemplo, o nosso caso de tratamentos de fertilidade. Nós só tivemos direito a dois tratamentos de fertilidade. Ahm [.] Porquê? E agora saiu uma lei que alargaram o prazo de tratamentos e o número de tratamentos, mas para a mulher que é portadora da PAF ((paramiloidose)). Porque é que também não alargaram o prazo para o doente? Para o homem? / E então [.] nós, na altura, até comentamos lá no [hospital] [.] porque é assim nós fazíamos o terceiro tratamento, mas eles não nos faziam o teste para ver se o bebé ou os bebés seriam doentes da paramiloidose ou não. / Ou seja, deve ser mais dispendioso ao Estado tratar de um doente transplantado do que praticamente fazer um tratamento de fertilidade.
(P9, 38 anos, F, cuidadora há 13 anos, sem paramiloidose)
Discussão
Este estudo explorou a experiência psicossocial de cuidadores informais de pessoas com paramiloidose. Compreender este fenómeno e as necessidades que ele provoca permite não só apoiar os cuidadores no processo de prestação de cuidados como também apoiar o trabalho desenvolvido pelos profissionais. Os principais resultados desta investigação indicaram temas e subtemas que se interrelacionam. Resumidamente, o conhecimento relativo ao ato de cuidar, adquirido através de experiências anteriores, constituiu um aliado na atual prestação de cuidados. Todavia, essa prestação de cuidados provocou impactos psicossociais que potenciaram a adoção de estratégias de gestão por parte dos cuidadores. Com a finalidade de integrar a doença e consequentes impactos, os cuidadores referiram experienciar diferentes fases de um processo de luto. Por fim, como resultado do desempenho do papel de cuidador, são identificadas necessidades de apoio nesta população.
A maioria dos participantes relatou ter um historial de prestação de cuidados a outros familiares com paramiloidose ou pessoas com outras patologias, tendo mencionado que essa experiência prévia foi um fator facilitador no presente ato de cuidar, na medida em que esse conhecimento se constituiu como um meio de orientação para conseguirem planear o processo de prestação de cuidados e antecipar problemas subjacentes. Por outro lado, o facto de a generalidade dos participantes possuir antecedentes de prestação de cuidados também pode explicar a presença de uma predisposição para o desempenho deste papel mencionada por alguns cuidadores. Tal como refere a teoria da autodeterminação de Deci e Ryan (2000), os indivíduos podem-se envolver em comportamentos de apoio devido a diferentes motivos consoante as suas necessidades psicológicas de autonomia, competência e relacionamento, sendo as forças impulsionadoras desses comportamentos intrínsecas ou extrínsecas. No caso dos relatos realizados por alguns cuidadores deste estudo, parece haver uma motivação intrínseca para desempenhar o ato de cuidar, nomeadamente quando utilizam a procura ativa de informação atual sobre a patologia para se manterem atualizados com vista a melhorar os cuidados prestados aos doentes e para se prepararem para possíveis imprevistos.
Além da maioria dos cuidadores ter identificado e reconhecido o conhecimento/experiência prévia como um aliado na prestação de cuidados, os mesmos também referiram que o ato de cuidar acarreta impactos psicossociais negativos e positivos no prestador de cuidados. Foram vários os participantes que reportaram que prestar cuidados a uma pessoa com paramiloidose implica um desgaste físico, mas sobretudo psicológico/emocional associado a sentimentos de impotência, de medo e de preocupação/hipervigilância constantes, corroborando os resultados da investigação realizada por Stewart et al. (2018). No seu estudo, os cuidadores de pessoas com paramiloidose mencionaram uma sobrecarga considerável com repercussões negativas ao nível da saúde mental e na atividade laboral, bem como declararam despender muito tempo na prestação de cuidados (Stewart et al., 2018). Contudo, no que diz respeito ao tempo dedicado ao ato de cuidar, os cuidadores do nosso estudo referiram disponibilizar quase o dobro do tempo reportado pelos participantes do estudo de Stewart et al. (2018), correspondendo a cerca de metade do tempo semanal, continuando, na sua maioria, a ter uma atividade laboral a tempo inteiro. Uma vez que as características sociodemográficas das duas amostras são semelhantes (e.g., os cuidadores são maioritariamente mulheres, esposas e sem a doença), este valor mais elevado na prestação de cuidados referida pelos participantes do nosso estudo pode ser explicado pelas diferenças socioculturais entre as amostras das investigações ou pelo significado/definição atribuído pelos cuidadores sobre o que consideram ser a prestação de cuidados. A definição desta expressão pode não estar completamente delimitada e isso pode ter implicações naquilo que consideram o tempo de cuidar. Ou, por outro lado, a definição de prestação de cuidados pode estar bem delineada, mas, uma vez que vários cuidadores do nosso estudo mencionaram sentir preocupação/hipervigilância constantes, os mesmos podem considerá-las como uma forma de prestação de cuidados e contabilizar horas dedicadas ao cuidado enquanto estão a desenvolver a sua atividade laboral ou nas horas de higiene do sono. Caso esta última explicação seja a mais próxima da realidade, está-se perante uma condição com um elevado impacto ao nível da saúde física e psicológica para o cuidador.
Uma outra razão possivelmente explicativa da presença de desgaste físico, mas principalmente psicológico/emocional associado à prestação de cuidados a uma pessoa com paramiloidose, pode ser a existência de terapêuticas nesta doença. Ainda que esta patologia seja incurável, existem tratamentos que retardam a sua evolução, o que a diferencia da doença de Huntington e outras doenças neurológicas de início tardio (Lopes, Rodrigues, et al., 2018). Assim, é possível que os efeitos dos tratamentos na paramiloidose atrasem a progressão da doença na maioria dos doentes, tendo como consequência uma diminuição da necessidade de cuidados físicos e, por isso, os cuidadores reportarem menor desgaste físico comparativamente ao desgaste psicológico/emocional. Contudo, apesar das terapêuticas disponíveis, estas não se tratam de uma cura, podendo explicar a preocupação/hipervigilância constantes mencionadas pela maioria dos cuidadores, o que, por sua vez, lhes provoca um elevado desgaste psicológico/emocional. Contrariamente ao que acontece na paramiloidose, os cuidadores de pessoas com a doença de Huntington experienciam um desgaste físico e psicológico/emocional significativos devido à evolução da doença da pessoa cuidada (Korer & Fitzsimmons, 1985; Pickett et al., 2007).
Também, no nosso estudo, vários cuidadores reportaram que cuidar implica uma priorização do seu papel como cuidador, colocando, frequentemente, as suas necessidades para segundo plano, acabando por se anularem enquanto pessoas. Isto parece refletir-se, entre outros exemplos, quando vários cuidadores referiram que abdicavam do seu tempo de lazer para cuidar ou quando alguns participantes mencionaram que tiveram de deixar/interromper a sua atividade laboral para prestar cuidados ao doente com paramiloidose, tendo isso repercussões negativas a nível financeiro. Estes resultados são semelhantes a outros descritos em estudos realizados com cuidadores de pessoas com outras doenças crónicas (Maschio et al., 2019; Røthing et al., 2015a). Uma possível explicação para esta conclusão pode corresponder ao facto de os cuidadores do nosso estudo, na sua maioria, demonstrarem um padrão centrado no doente e na prestação de cuidados com vista a satisfazer o máximo das necessidades da pessoa doente e diminuir o seu sofrimento, envolvendo uma hipervigilância/preocupação constantes e, por vezes, a presença de um sentimento de impotência. Ainda de acordo com o modelo integrativo do cuidado informal de Gérain e Zech (2019), a anulação da própria pessoa e a hipervigilância são considerados fatores stressores secundários que contribuem para a exaustão e o sentimento de ineficácia do cuidador, o que corrobora os resultados mencionados.
Contrariamente ao referido anteriormente, outros cuidadores reportaram que, apesar de priorizarem o seu papel de cuidador, apoiavam-se na família, organizavam as tarefas domésticas ou reajustavam os horários de trabalho de forma a conseguirem resolver o conflito entre papéis e desempenhar outros, nomeadamente o de trabalhador. São vários os estudos que abordam a importância dos elementos da família no apoio ao cuidador principal (Aubeeluck et al., 2012; Lopes, Sousa, et al., 2018; Maschio et al., 2019). Por hipótese, estes apoios podem permitir que o cuidador consiga conciliar vários papéis em simultâneo, podendo neste caso em concreto contribuir para a diminuição do impacto financeiro negativo subjacente a uma doença limitadora. Além disso, esse apoio ao cuidador, prestado por elementos da família, pode também contribuir para minimizar o desgaste físico e psicológico/emocional mencionados pelos mesmos, visto que permite a partilha de experiências e tarefas com outros significativos.
Por outro lado, prestar cuidados não tem somente impactos negativos no cuidador, pois os participantes descreveram efeitos mais positivos desse processo. Segundo vários cuidadores do nosso estudo, prestar cuidados ao doente com paramiloidose teve um impacto relacional positivo. Este resultado foi distinto do mencionado em investigações na doença de Huntington (Parekh et al., 2018; Røthing et al., 2014). Esses estudos, cuja maioria dos cuidadores eram esposas dos doentes, sugeriram que, devido a alterações na personalidade e ao aumento da dependência do doente com Huntington, a relação foi negativamente afetada, havendo perda de intimidade (Parekh et al., 2018; Røthing et al., 2014). Também no nosso estudo a maioria dos cuidadores eram esposas dos doentes com paramiloidose. Contudo, esta patologia, apesar de ser também irreversível e, por vezes, imprevisível, como a doença de Huntington, tem terapêuticas que retardam a sua evolução (Lopes, Rodrigues, et al., 2018) e sintomas que a diferencia (Andrade, 1952), o que pode contribuir para que a prestação de cuidados aos doentes com paramiloidose seja experienciada, por vários dos cuidadores, de forma diferente daquela reportada nos estudos sobre a doença de Huntington. Especificamente no caso da paramiloidose, e como mencionado na nossa investigação, apesar de o ato de cuidar continuar a provocar sobretudo desgaste psicológico/emocional nos cuidadores, a relação entre a díade cuidador-cuidado aparentemente não é afetada. Segundo os dados obtidos, o medo da perda da pessoa cuidada acaba, inclusive, por fomentar a aproximação emocional entre os elementos da díade. Assim, na paramiloidose, o efeito retardador das terapêuticas no desenvolvimento dos sintomas específicos da doença, em conjunto com o medo de perder a pessoa cuidada, podem constituir-se como fatores protetores da relação entre cuidador e cuidado.
Segundo a literatura, viver com uma doença genética incurável provoca alterações na dinâmica familiar (Lopes, Sousa, et al., 2018). De acordo com Domaradzki (2015), surgem alterações nas expectativas, nos projetos de vida e podem ocorrer eventos perturbadores que influenciam as transições normativas da vida familiar. Não obstante, algumas famílias parecem ter dificuldade em integrar a doença (Domaradzki, 2015), podendo ocorrer um processo de luto durante a prestação de cuidados envolvendo várias perdas (Sanders & Corley, 2003). Vários participantes do nosso estudo também referiram experienciar um processo de luto, integrando a doença e as suas respetivas consequências enquanto prestavam cuidados. Alguns experienciaram períodos de questionamento/revolta pela doença estar disseminada na família e expressaram medo associado à transmissão hereditária da patologia. Outros, apesar de se questionarem, utilizavam estratégias baseadas em crenças religiosas com o intuito de facilitar a aceitação/integração da doença. Ainda outros tendiam a normalizar a nova condição. Esta variabilidade na resposta face ao mesmo fenómeno pode ser devida à personalidade dos cuidadores, aos recursos internos utilizados para fazer face às dificuldades surgidas e/ou ao facto de terem apoio socioemocional. Contudo, não é de descartar que outras variáveis possam influenciar o processo de aceitação da doença por parte dos cuidadores como, por exemplo, as circunstâncias que rodearam esse processo e antecedentes históricos no percurso de vida.
Porém, independentemente da fase do processo de luto, alguns cuidadores do nosso estudo reportaram ser alvo de estigma pela sociedade, considerando-se um grupo adicional de discriminação para além dos doentes, como estudado por Mendes et al. (2017). Estes cuidadores referiram que o estigma dever-se-ia à falta de conhecimento sobre a doença e a crenças erróneas possuídas por elementos da sua comunidade, apesar destas residirem em regiões endémicas da paramiloidose (Inês et al., 2018). O sofrimento associado a esta discriminação pode dificultar o processo de luto/aceitação da doença, podendo ter um impacto nefasto no prestador de cuidados.
Por fim, tratando-se de uma experiência complexa, prestar cuidados a uma pessoa com paramiloidose contribuiu para o surgimento de necessidades do próprio cuidador. Visto que vários cuidadores mencionaram que cuidar acarreta um desgaste psicológico/emocional elevados, os mesmos salientaram a importância de haver acompanhamento psicológico tanto para os próprios como para todos os intervenientes no ato de cuidar. Além disso, alguns cuidadores também reportaram a necessidade de receber formação sobre técnicas que facilitem a prestação de cuidados nas atividades de vida diária e de conteúdos psicoeducacionais, apesar de a maioria ter mencionado já possuir conhecimentos sobre a doença e suas implicações adquiridos em diferentes contextos. Esta necessidade de realizar novas aprendizagens pode estar relacionada com o facto de alguns participantes apresentarem uma motivação para se manterem atualizados e prestarem os melhores cuidados possíveis. Estes resultados foram semelhantes ao relatados num estudo desenvolvido com cuidadores de pessoas idosas (Abreu et al., 2012).
Ainda, alguns dos cuidadores referiram a necessidade de haver maior flexibilidade de horários e obtenção de medidas de apoio/proteção laboral nos momentos em que têm de faltar por motivos de acompanhamento do doente às consultas. Em Portugal, existe o estatuto do cuidador informal que contém um artigo sobre o reforço da proteção laboral, sendo direcionado a cuidadores informais não principais (Lei nº 100/2019 de 6 de setembro da Assembleia da República, 2019). Embora, pela interpretação que fizemos dos discursos dos participantes estes pareçam autointitular-se de cuidadores principais, segundo esta lei, os mesmos são considerados cuidadores não principais, pelo que são abrangidos por ela e beneficiam dela. Assim, o surgimento deste tipo de necessidade referido por alguns cuidadores do nosso estudo pode indicar a presença de uma falha na transmissão de informação da lei ao grupo-alvo. Outro motivo que pode explicar este resultado pode ser o facto de esta se tratar de uma lei recente e as entidades patronais ainda poderem não estar familiarizadas com a mesma.
Uma outra necessidade manifestada por alguns cuidadores está relacionada com a importância de o Estado português disponibilizar ainda mais apoio no acesso aos serviços de medicina reprodutiva e de aconselhamento genético de forma a ajudarem os casais a tomarem decisões mais informadas. Apesar de o Estado já apoiar a procriação medicamente assistida (Lei nº 17/2016 de 20 de junho da Assembleia da República, 2016), devem ser encetados esforços com vista à minimização ou supressão das dificuldades sentidas e referidas por alguns participantes da nossa investigação.
A interpretação dos resultados deste estudo deve ser feita com cautela, tendo em conta algumas limitações da investigação. Primeiro, pelo facto de as entrevistas terem sido, maioritariamente, realizadas por telefone, é possível ter-se perdido informação contextual relevante que pudesse contribuir para uma melhor interpretação dos resultados. Todavia, devido à pandemia de COVID-19, a realização das entrevistas por essa via foi a alternativa mais viável que se encontrou para a concretização da recolha de dados. Segundo, realizar entrevistas, mesmo que por telefone, pode ter subjacente a desejabilidade social e isso pode ter afetado os resultados obtidos no estudo. No entanto, de forma a contornar esta limitação, recorreu-se a algumas estratégias, nomeadamente a exploração de respostas incongruentes/incoerentes, a adoção de uma postura empática por parte da entrevistadora e a reformulação de questões. Por último, apesar de se ter procurado constituir uma amostra heterogénea, onde se recrutou homens e mulheres, com diferentes graus de parentesco, com distintos anos como cuidadores e com diferentes graus subjetivos de dependência do doente, a mesma tendeu para uma maioria constituída por mulheres, esposas do doente com paramiloidose e com experiência anterior de prestação de cuidados. Esta amostra, embora corrobore a evidência científica sobre o facto de as mulheres assumirem mais vezes o papel de cuidador (e.g., Gérain & Zech, 2019; Parekh et al., 2018; Røthing et al., 2014; Stewart et al., 2018), pode ter influenciado os resultados do estudo. Ainda que a amostra possa ter constituído uma limitação desta investigação, durante o processo de análise e interpretação dos dados, depreendeu-se que os mesmos não suscitaram diferenças, visto que tanto os cuidadores que prestavam cuidados há mais tempo como os que cuidavam há menos tempo reportaram desgaste físico, mas principalmente psicológico/emocional semelhantes. O mesmo se sucedeu em relação ao género, uma vez que os homens, na sua maioria, apresentavam uma prestação de cuidados proativa idêntica à referida pelas mulheres.
Apesar das limitações, e tendo em conta a escassez de literatura neste tema, os resultados do nosso estudo contribuem para uma melhor compreensão sobre a experiência psicossocial de cuidadores informais de pessoas com paramiloidose. Os resultados apontaram para algumas implicações clínicas e práticas importantes. O facto de a maioria dos cuidadores ter mencionado que as suas experiências prévias como prestadores de cuidados facilitou o atual ato de cuidar pode contribuir para a definição de objetivos específicos e para a construção de planos de intervenção com esta população, nomeadamente ao nível do planeamento de intervenção em grupo onde existe apoio por pares. Esta investigação salientou ainda o sofrimento psicológico/emocional e físico reportado pelos cuidadores. Tratando-se de cuidadores que relataram, em média, mais de metade do tempo semanal a prestar cuidados, envolvendo uma hipervigilância/preocupação constantes, tal salienta a necessidade urgente de haver intervenção de forma a atenuar o elevado impacto ao nível da saúde física e psicológica nos mesmos. Além disso, de acordo com os resultados do nosso estudo, parece não ser só a prestação de cuidados que provoca um impacto negativo nos cuidadores. Estes, apesar de residirem em regiões endémicas da paramiloidose, mencionaram também ser alvo de estigma pela sociedade, o que lhes provoca sofrimento psicológico e possivelmente dificuldade no processo de luto/aceitação da doença. Estes dados salientam a necessidade de intervenção também a um nível comunitário (e.g., escolas, serviços de saúde), onde seja promovida a partilha de informação sobre esta doença e suas respetivas consequências. Este estudo pode contribuir também para o desenvolvimento de respostas mais otimizadas por parte dos profissionais das unidades de saúde que, já tendo um papel importante no âmbito da informação/promoção de conhecimentos sobre a doença, podem assim ir de encontro a outras necessidades desta população-alvo, como as de obtenção de conhecimentos técnicos para a prestação de cuidados referidas por alguns dos participantes desta investigação. Neste âmbito e mais concretamente, os dados do nosso estudo sugerem a importância de que os serviços de saúde desenvolvam um trabalho mais próximo, estruturado e sistemático de acordo com as necessidades vivenciadas pelos cuidadores no processo de evolução da doença. A um nível mais macrossistémico/social, a nossa investigação salientou a importância de o Estado intervir com mais medidas de apoio no âmbito laboral e no acesso aos serviços de medicina reprodutiva e de aconselhamento genético. Tratando-se de uma doença hereditária (Andrade, 1952), este é um tema fundamental para erradicar a doença e, consequentemente, todas as implicações subjacentes.
Apesar dos resultados reportados neste estudo, é preciso ter em conta que a experiência psicossocial de cuidar de uma pessoa com paramiloidose consiste num fenómeno multifatorial. Com efeito, investigações futuras deverão contornar as limitações identificadas e contribuir para aprofundar a compreensão sobre alguns temas e subtemas descritos neste estudo. Especificamente, seria importante investigar quais os fatores preditores dos impactos positivos e negativos do ato de cuidar (e.g., avaliar o grau de influência do elevado tempo dedicado ao ato de cuidar). Além disso, também seria relevante esclarecer o papel de outras variáveis no processo de luto/aceitação da doença reportado por vários dos cuidadores (e.g., estigma/discriminação pela sociedade, circunstâncias envolvidas, antecedentes históricos no percurso de vida).
Conclusão
Este estudo, pelo que se tem conhecimento, foi o primeiro a ser desenvolvido com o objetivo de explorar a experiência psicossocial unicamente de cuidadores informais de pessoas com paramiloidose. Verificou-se que prestar cuidados a uma pessoa com paramiloidose acarreta um impacto psicossocial elevado, contribuindo para o surgimento de necessidades psicoeducacionais, sociais e estatais, algumas delas identificadas pelos próprios cuidadores participantes no estudo. Assim, estes resultados enfatizam a importância de se intervir com os cuidadores informais de forma a satisfazer as suas necessidades, contribuindo para a redução de níveis de desgaste psicológico/emocional e, consequentemente, promover uma melhor qualidade de vida subjetiva.