Os estudantes estrangeiros oriundos do Brasil no ensino superior em Portugal
O número de estrangeiros que pretende estudar em instituições de ensino superior (IES) portuguesas tem vindo a aumentar nos últimos anos. De facto, entre 2018 e 2019, a procura de candidatos internacionais aumentou 36% (Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência, 2019). Este aumento deveu-se fundamentalmente à aprovação do Estatuto do Estudante Internacional em 2014 (Decreto-Lei n.º 36/2014 de 10 de março do Ministério da Educação e Ciência), o qual permitiu que as IES portuguesas destinassem até 20% do número de vagas dos cursos de licenciatura estabelecidas no concurso nacional de acesso para o concurso especial para alunos estrangeiros.1
O número de estudantes inscritos em mobilidade de grau nas IES portuguesas, isto é, inscritos num curso de um estabelecimento de ensino superior português, que concluíram o ensino secundário num país estrangeiro e que têm como finalidade a obtenção de um diploma português, aumentou 86% entre os anos letivos 2015/16 e 2018/19 (Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência, 2019). O peso dos estudantes internacionais em Portugal é assim cada vez maior e a tendência é para aumentar, representando 9,3% do total dos inscritos nos estabelecimentos de ensino superior portugueses em 2018/2019.
Entre 2017/2018 e 2018/2019 houve um aumento de 27% deste universo de inscritos. De acordo com os dados da Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência (2019), em 2018/19, os estudantes estrangeiros inscritos em IES portuguesas provinham principalmente do Brasil (43%), em menor percentagem de Cabo Verde (9,3%), Angola (9,1%) e França (4,2%). O peso dos estudantes estrangeiros oriundos do Brasil é, assim, bastante elevado tendo aumentado de 2015/16 (32%) para 2018/19 (43%).
No que diz respeito à Universidade do Algarve (UAlg), situada em Faro, na região do Algarve a sul de Portugal continental, verifica-se que esta tem seguido a tendência de internacionalização das restantes IES portuguesas. Em 2015/16, os estudantes estrangeiros representavam 8,4% do total dos estudantes inscritos e em 2018/19 esse peso subiu para 23%. No que diz respeito aos estudantes estrangeiros na UAlg oriundos do Brasil, esse peso aumentou ainda mais do que no resto do país: entre 2015/16 e 2018/19 aumentou 350%. No entanto, o número absoluto de estudantes é ainda relativamente diminuto (cerca de 900), havendo possibilidade para o seu crescimento.
Tendo em conta a importância que estes estudantes têm no total dos estudantes da UAlg, é natural que esta instituição tenha como objetivo aumentar ainda mais o número de estudantes estrangeiros oriundos do Brasil. Neste sentido, lançou recentemente uma nova campanha destinada a atrair estes estudantes. Essa campanha teve como base o slogan “Estudar onde é bom viver”, o qual pretende enfatizar uma série de características inerentes à cidade (Faro) e à região (Algarve), as quais poderão ser potencialmente atrativas para aqueles estudantes, a saber: a segurança, o clima, a gastronomia, a dimensão populacional, a hospitalidade dos residentes. Estes fatores representam, resumidamente, aspetos importantes para a qualidade de vida (QV) dos que optarem por viver na cidade de Faro e estudar na UAlg.
Qualidade de Vida
Os conceitos de Bem-Estar (BE) e QV ganharam uma dimensão mais abrangente ao permitirem explorar diferentes áreas (e.g. Lyubomirsky, Sheldon & Schakade, 2005; Seligman & Csikszentmihalyi¸ 2002) e ao procurarem explicar a razão, ou razões, subjacentes à nossa (in) felicidade (International Positive Psychology Association, 2018; Seligman, 2010), de uma forma multidimensional, subjetiva e temporal (Ribeiro, 2009).
Estudos mostram que os indicadores objetivos para medir a QV são uma parte reduzida deste conceito (Cummins, 2000). De facto, aspetos subjetivos, culturalmente contextualizados, das condições de vida dos indivíduos, tais como felicidade, satisfação pessoal com a vida, relações familiares, sentimento de justiça, sentimento de pertença a uma comunidade, vida sexual, valores pessoais, entre outros, têm uma importância fulcral para perceber o conceito (Rapley, 2003).
Assim, a QV pode ser vista como algo multidimensional, influenciado por características pessoais e fatores ambientais, variando individualmente no tempo e no espaço. Schalock et al. (2011) propõem um modelo operacional de QV que assenta em indicadores, moderadores e/ou mediadores (Figura 1).
Apesar da procura de consenso quanto aos indicadores presentes na definição de QV, indicadores esses que permitam orientar os investigadores nas diferentes áreas, constatamos, contudo, que a seleção dos indicadores continua a ser um processo muito individual. Não obstante a dificuldade em encontrar uma definição única, com critérios, há características que são comummente aceites: (i) a sua multidimensionalidade, (ii) resulta de uma perceção subjetiva e (iii) está condicionada a fatores temporais (Ribeiro, 2009).
Bem-Estar Subjetivo
O conceito de BE sofre de um problema semelhante ao de QV: a falta de consenso quanto à sua definição e complexidade (Pollard & Lee, 2003). Na realidade, o BE contempla uma dimensão mais alargada, incluindo componentes subjetivas e subdivisões do conceito, a saber: BE subjetivo; BE psicológico; BE social e BE no trabalho. Contudo, aquele que tem sido mais amplamente explorado é o de Bem-Estar Subjetivo (BES) (Albuquerque & Trócoli, 2004; Farsen et al., 2018).
O BES não depende de um único determinante, embora a saúde mental e os relacionamentos positivos sejam importantes, mas não exclusivos, da felicidade humana. Proctor (2014), em referência a vários estudos na área, aponta outros aspetos importantes para determinar o BES, a saber: os traços de personalidade, os fatores temperamentais (extroversão, introversão); as boas relações sociais; os aspetos genéticos; o ambiente, o trabalho; o estado civil; a idade; a cultura, entre outros.
Marcada pela cultura grega clássica, a noção de BE abrange duas correntes distintas de pensamento: o hedonismo e o eudaimonismo. Na primeira, o BE está intimamente ligado à sensação de prazer e felicidade, bem como à satisfação com a vida através de experiências emocionais positivas; na segunda, centra-se particularmente na capacidade ou potencial do individuo, vista numa perspetiva de autorrealização. A corrente hedonista está ligada ao BES, a eudaimonista liga-se ao BE psicológico (Ryff & Singer, 2008).
Diener (1984) define BES como a forma de responder positiva ou negativamente a aspetos globais da vida, isto é, corresponde à perceção cognitiva e afetiva de uma pessoa sobre as suas condições de vida, compreendendo três formas: (i) Satisfação com a vida; (ii) Afeto positivo; (iii) Afeto negativo (Boehs & Silva, 2017). Sempre que o individuo experimenta um nível mais elevado de satisfação com a vida e afeto positivo (otimismo, felicidade), dizemos que tem um BES elevado; pelo contrário, sempre que existe um nível mais elevado de insatisfação com a vida e/ou experimenta com frequência afetos negativos (ansiedade, tristeza), estamos perante um BES baixo.
O contributo da Educação aliada ao Suporte Social no aumento da Qualidade de Vida e Bem-Estar dos Estudantes
O acesso à educação é apontado como determinante para a QV. A este propósito, o Social Progress Index (2019), através de uma visão holística, aponta para elementos de base do progresso social, no qual se inserem os parâmetros ligados à alfabetização, paridade no ensino, entre outros. Também nesta linha, a Agenda de Lisboa preconizava, em 2000, a educação como um fator determinante para a QV e o BE (Alkire, 2010).
As evidências sugerem que os indivíduos que frequentam a escola por mais tempo, ou que obtiveram um diploma de ensino superior, apresentam mais probabilidades de experimentarem um maior BES (e.g. Oreopoulos, 2007). Neste sentido, o estudo do BES e da QV no ensino superior é essencial para conhecermos a forma como os alunos estabelecem, ou não, metas e objetivos na sua vida, criam redes sociais e se tornam ativos e autónomos, facto que pode conduzir à diminuição do abandono escolar (Turashvili & Japaridze, 2012).
A entrada no ensino superior corresponde a uma “fase de transição” na qual um conjunto de alterações (psicológicas, biológicas, ambientais, cognitivas) tem lugar e onde a capacidade de viver de forma autónoma se encontra em interdependência social. Nesta etapa ocorrem algumas ruturas, crises e sentimentos ambivalentes, em resultado da instabilidade emocional que vivenciam (Nogueira, 2017). Alguns transportam consigo quadros sintomatológicos pré-existentes (ansiedade, depressão, gestão de emoções, entre outros) que se agravam consideravelmente quando procuram ajustar-se a uma nova realidade (Guthman, Iocim & Konstas, 2010). De facto, e a este propósito, Durão (2017, p. 52) afirma que “(…) o jovem universitário é confrontado com todo um conjunto de desafios que irão influenciar o desenvolvimento da sua identidade e isso poderá colocar em causa o seu BE psicológico, físico e social e terá implicações no seu desenvolvimento global e no seu rendimento académico.”
Neste sentido, a existência de suporte social, ou seja, o apoio emocional dos pares, família ou da instituição, durante a fase de transição e/ou adaptação dos alunos, pode constituir um fator de proteção a potenciais crises emocionais (Nogueira, 2017). Estudos recentes mostram que o suporte social desempenha um papel muito importante na saúde emocional dos estudantes universitários e que poderá ter impacto na solidão ou depressão (Barroso, Oliveira & Andrade, 2019). De facto, Smith & Khawaja (2011) referem a existência de uma associação positiva entre o suporte social e o bem-estar psicológico dos estudantes.
Segundo Ribeiro (1999), podemos distinguir dois tipos de suporte social: um com caraterísticas mais formais (organizações de apoio que vão de encontro a necessidades sentidas em determinadas áreas); outro, com caraterísticas informais (apoio de amigos, família ou próximos). Numa perspetiva instrumental, o suporte social, seja ele de informação, ou emocional, é reconhecidamente um fator importante na QV e BE dos indivíduos, contribuindo de forma significativa em casos de doença ou recuperação (Ribeiro, 2009).
O envolvimento dos alunos em atividades, o trabalho das áreas de apoio social do ensino superior, bem como a rede de suporte social com o exterior podem facilitar a integração no novo espaço geográfico e académico. Alguns autores (e.g. Soares et al., 2018) destacam a importância do desenvolvimento de habilidades sociais na formação dos estudantes universitários como facilitadores do desempenho técnico e social. De facto, estudos demonstraram a existência de uma relação estreita entre as habilidades sociais e o sucesso académico (e.g. Bandeira & Quaglia, 2005; Soares & Prette, 2015).
Estudos sobre os conceitos de BE e QV têm demonstrado que fatores como: género, idade, estatuto socioeconómico, escolaridade e suporte social, são importantes na avaliação que fazemos destes conceitos (Diener, 1984; Schalock & Verdugo, 2002; Schalock et al., 2011). O suporte social positivo, bem como o contacto com outras pessoas, conduz a um aumento dos níveis de BE que, por sua vez, se refletem no aumento do autoconceito (Durão, 2017). O suporte social é aqui entendido como “(…) a existência ou a disponibilidade de pessoas em quem podemos confiar, pessoas que nos deixam saber que se preocupam, que nos valorizam e que nos amam [assim como] … a perceção que os indivíduos têm dos comportamentos de apoio dos outros para com eles e que desta forma lhes promovem BE físico e psicológico (Gouveia, Leal & Cardoso, 2015, p. 190).”
A importância do papel das instituições de ensino superior (IES) no sucesso de adaptação dos estudantes é muito importante. Na realidade, o interesse das IES pelo desempenho académico do estudante, a promoção da aprendizagem e do sucesso enquanto prioridade, a atenção dada aos diversos aspetos que envolvem a vida académica e a integração do aluno, são fatores que podem influenciar a procura de muitas IES (Soares et al., 2019). As IES devem, ainda, propiciar o desenvolvimento dos estudantes no sentido de contribuírem para que estes adquiram as habilidades e competências necessárias para exercer sua profissão (Soares, Poubel & Mello, 2009). Na realidade, muitas IES têm tomado medidas com vista à aculturação dos estudantes internacionais através da criação de serviços de suporte a assuntos práticos e académicos (Smith & Khawaja, 2011).
No contexto do aumento do número de estudantes estrangeiros no ensino superior em Portugal (Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência, 2019; Nada & Araújo, 2017), a preocupação com o BE e QV desses estudantes e o papel das IES no sucesso académico nesse BE e QV acaba por desempenhar um papel ainda mais importante. Na realidade, alguns fatores podem comprometer o suporte social dos alunos que, indireta ou diretamente, influenciará a sua perceção de BE, ou QV no local. De facto, algumas condições vivenciadas pelos alunos estrangeiros, como a mudança (geográfica, continental, hábitos, costumes); a distância física da família e círculo mais próximo de amizades; os entraves legais (visto de residência/permanência no país); adaptação (horário, clima); racismo, entre outros, podem constituir fatores preditores de problemas a nível emocional, de autoconceito e de autoestima.
Um dos objetivos deste estudo foi, primeiramente, avaliar o BES e a QV dos estudantes estrangeiros oriundos do Brasil da UAlg. Pretendeu-se, ainda, investigar a existência de diferenças no BES e QV desses estudantes em função da sua integração, de terem experimentado crises emocionais, de considerarem Faro um bom sítio para viver e de consideraram a UAlg uma boa universidade para estudar. Por último, pretendeu-se identificar os domínios da QV que explicam a perceção dos estudantes sobre se Faro é um bom sítio para viver e se a UAlg é uma boa universidade para estudar.
Método
População, amostra e recolha de dados
A população-alvo deste estudo foi formada pelos estudantes de nacionalidade brasileira inscritos na UAlg no ano letivo de 2017/18. Os serviços da UAlg estimaram que o universo destes estudantes fosse de 150 alunos, distribuídos pelos três campi localizados em Faro (Penha, Gambelas e Saúde).
Uma vez que questões relacionadas com a confidencialidade e proteção dos dados dos estudantes impediram o acesso à listagem dos estudantes da população-alvo, não foi possível selecionar uma amostra probabilística. Observou-se então uma amostra não probabilística obtida através do método de amostragem “bola de neve”. Assim, aos primeiros estudantes de nacionalidade brasileira contactados para participarem no inquérito foi solicitado para indicarem contactos de novos participantes, a fim de localizar novos alunos com o perfil necessário para a pesquisa, que por sua vez indicaram outros, e assim sucessivamente. Segundo Coelho et al. (2016), este método de amostragem é útil para estudar populações específicas ou difíceis de serem encontradas, que é o caso dos estudantes de nacionalidade brasileira da UAlg.
Fixou-se como objetivo aproximar a dimensão da amostra da dimensão da população-alvo, uma vez que o número de estudantes não era elevado ao ponto de este ser um objetivo irrealista. Não obstante, vários elementos contactados da população optaram por não responder, sendo que se apuraram 102 questionários válidos.
A recolha de dados foi realizada através de um inquérito por questionário com entrevista eletrónica entre abril e junho de 2018. A plataforma escolhida para a elaboração e alojamento do inquérito foi o Google Forms. Para além da gratuitidade, permitiu a compilação das respostas numa folha de cálculo online que podia ser exportada para uma base de dados compatível com um software de análise de dados. O inquérito foi elaborado sem solicitar o nome, endereço de email ou outro dado de identificação pessoal dos inquiridos e a plataforma também não registou essa informação ou outros dados, como a localização do inquirido ou o dispositivo utilizado, assegurando-se assim o anonimato de todos os participantes.
As características sociodemográficas da amostra estão apresentadas na Tabela 1. A maioria dos inquiridos é do género feminino (55,9%), tem entre 18 e 20 anos (61,8%), estuda no campus da Penha (54,9%), morava com os pais ou irmãos antes de ingressar na UAlg (85,3%) e atualmente mora com outros colegas da UAlg (61,8%).
Escalas de medida
Esta investigação utilizou duas escalas, cada uma focando uma das variáveis-chave deste estudo: o BES e a QV.
A escala utilizada para a avaliar o BE dos estudantes foi a Escala de Bem-Estar Subjetivo (EBES) de Albuquerque e Tróccoli (2004). Esta escala, que já foi utilizada em vários estudos (e.g.Carvalho et al., 2018; Scorsolini-Comin & Santos, 2012), está dividida em três fatores: Afeto positivo, composto por 21 itens; Afeto negativo, composto por 26 itens; e satisfação com a vida, composta por 15 itens. A EBES usa uma escala de Likert com 5 pontos. A única alteração efetuada a esta escala foi a sua adaptação para português de Portugal, uma vez que não estava validada para Portugal. Os valores do alfa de Cronbach para cada fator da escala EBES são superiores a 0,9 (Afeto positivo = 0,959; Afeto negativo = 0,971; Satisfação com a vida = 0,948), o que revela a excelente consistência interna dos três fatores. A escala utilizada para avaliar a QV dos estudantes foi a WHOQOL-Bref, desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1994 (WHOQOL, 1994), na sua versão portuguesa (Canavarro, Simões, Serra, Pereira, Rijo, Quartilho & Carona, 2007). A qualidade do instrumento, não obstante possíveis críticas que lhe possam ser apontadas, é assegurada por mais de duas décadas de aplicação em estudos da OMS, tendo resultado do contributo de dezenas de investigadores pertencentes ao grupo de avaliação da QV daquela instituição. Não se efetuou nenhuma alteração à escala, tendo sido utilizada a versão portuguesa, traduzida por Canavarro et al. (2007).
A escala é constituída por 26 perguntas, sendo que a primeira questão avalia a QV de um modo geral e a segunda avalia a satisfação com a própria saúde. As restantes 24 questões compõem quatro domínios distintos: físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente. Estes quatro domínios medem a perceção que cada indivíduo tem sobre a sua QV em cada dimensão específica. As pontuações em cada domínio foram transformadas para uma escala de 0 a 100 (WHOQOL, 1994), tendo uma direção positiva, isto é, quanto maior a pontuação, maior é a perceção da QV. Os valores do alfa de Cronbach para cada domínio da escala WHOQOL-bref foram superiores a 0,8 (Físico = 0,810; Psicológico = 0,881; Relações sociais = 0,813), com exceção no domínio Ambiente (0,606). Os valores obtidos no alfa de Cronbach atestam uma boa consistência interna para cada um dos domínios do WHOQOL-bref na amostra observada.
Questionário
O questionário foi estruturado em quatro partes. A primeira, introdutória, tinha como objetivo explicar aos inquiridos o objetivo do questionário, assim como avaliar se o potencial respondente pertencia à população-alvo. Para tal foi incluída uma questão-filtro que advertia que o inquérito se destinava a alunos de nacionalidade brasileira inscritos na UAlg. A segunda era constituída pelas questões da escala EBES desenvolvida por Albuquerque e Tróccoli (2004), de forma a responder a um dos objetivos desta investigação, i.e., à avaliação do BES dos estudantes de nacionalidade brasileira. A terceira parte era composta pelas questões da versão portuguesa da escala WHOQOL-Bref (Canavarro et al., 2007), tendo em vista alcançar outro grande objetivo desta investigação, nomeadamente, a avaliação da QV destes estudantes. Por fim, a quarta contemplava as questões sociodemográficas, indispensáveis a qualquer investigação desta natureza. Foi realizado um pré-teste a uma amostra de seis estudantes para avaliar se o questionário estava compreensível e se a plataforma de recolha de dados estava a funcionar bem. Como resultado, foram feitas pequenas correções antes do início do inquérito.
Análise de dados
Em primeiro lugar, foi feito o processamento e a pré-análise de dados, seguidos de análises de dados univariadas, bivariadas e multivariadas. A análise descritiva univariada das variáveis sociodemográficas, da QV e do BES dos estudantes foi feita com recurso ao cálculo de frequências absolutas e relativas (apresentadas em tabelas de distribuição de frequências), médias e desvios-padrão. De forma a analisar a relação entre diversas variáveis, nomeadamente a correlação entre os domínios do WHOQOL-Bref e os fatores da EBES, foram calculados coeficientes de correlação de Pearson (apresentados numa matriz de correlações). Foram também usados testes de hipóteses não paramétricos, tais como o teste U de Mann-Whitney e o H Kruskal Wallis, para comparar grupos com caraterísticas diferentes quanto aos domínios da QV e aos fatores do BES. Foram usados testes de hipóteses não paramétricos porque as variáveis de interesse não tinham uma distribuição aproximadamente normal. Para além disso, a consistência interna dos domínios do WHOQOL-Bref e dos fatores da escala da EBES foi avaliada através do alfa de Cronbach. Foi ainda estimado um modelo de regressão logística binária para identificar quais são os domínios da QV que explicam a perceção dos estudantes, nomeadamente sobre se Faro é um bom sítio para viver e se a UAlg é uma boa universidade para estudar. Todas as análises de dados foram efetuadas com o auxílio do software IBM SPSS Statistics, versão 25. Foi utilizado um nível de significância de 5%.
Resultados
Os resultados apresentados na Tabela 2 mostram que a maioria dos inquiridos já teve alguma crise emocional que afetou o seu desempenho (57,8%), considera Faro um bom sítio para viver (86,3%), considera a UAlg uma boa universidade para estudar (86,3%), considera-se bem integrado na UAlg (60,8%), e tem amigos(as) a viver em Faro em quem possa confiar (93,1%).
A Tabela 3 mostra que os estudantes brasileiros manifestam maiores níveis de QV no domínio Físico (69) do que nos restantes domínios. É de destacar que o domínio Psicológico é o que apresenta o valor médio de QV mais baixo (59), após a conversão para a mesma escala de 0 a 100. No que se refere ao BES, a Tabela 3 revela valores médios próximos nos três fatores. Portanto, globalmente, os estudantes revelaram sentir uma boa Satisfação com a vida (3,50), bem como bastantes Afetos positivos (3,32) e poucos Afetos negativos (2,41).
Nota: Os domínios da escala WHOQOL-bref podem assumir valores entre 0 e 100. Os fatores da escala EBES podem assumir valores entre 1 e 5
Na Tabela 4 estão apresentados resultados da comparação de grupos com caraterísticas sociodemográficas (e outras) diferentes quanto aos domínios da QV. Os resultados revelam que existem diferenças estatisticamente significativas em vários domínios para a grande maioria das variáveis. Por exemplo, os homens apresentam maior nível de QV do que as mulheres nos domínios Físico e Ambiente. Também se destaca que os estudantes que nunca tiveram crises emocionais que tivessem afetado o seu desempenho, bem como os que se consideram bem integrados na UAlg, apresentam maior nível de QV em todos os domínios do que os restantes.
A Tabela 5 apresenta resultados da comparação de grupos com caraterísticas sociodemográficas (e outras) diferentes quanto aos fatores do BES. Os resultados apresentados nesta tabela indicam que não existem diferenças estatisticamente significativas nos três fatores do EBES entre grupos diferentes quanto às variáveis género e com quem morava antes. Nas restantes variáveis foram encontradas diferenças em pelos menos dois fatores. Também nesta escala se verifica que os estudantes que nunca tiveram crises emocionais que tivessem afetado o seu desempenho, bem como os que se consideram bem integrados na UAlg, percecionam um melhor nível de BES em todos os fatores do que os restantes. Para além disso, por exemplo, os estudantes que têm amigos a viver em Faro em que possam confiar apresentam um maior nível de satisfação com a vida e sentem menos afetos negativos do que os restantes.
Os resultados apresentados nas Tabelas 4 e 5 mostram que existem diferenças estatisticamente significativas no BES e na QV dos estudantes que consideram Faro um bom sítio para viver e que consideram a UAlg uma boa universidade para estudar, face aos que não consideram. Por um lado, verifica-se que os estudantes que consideram Faro um bom sítio para viver e que consideram a UAlg uma boa universidade para estudar, apresentam níveis médios de QV mais elevados, em todos os domínios, do que os restantes. O valor médio mais elevado é no domínio Físico (72; 73), mas as diferenças mais acentuadas entre esses grupos são nos domínios das Relações Sociais (+43; +35) e Psicológico (+36; +27). Por outro lado, observa-se que os estudantes que consideram Faro um bom sítio para viver e que consideram a UAlg uma boa universidade para estudar, apresentam melhores níveis médios de BES, em todos os fatores, do que os restantes. O fator Satisfação com a vida é aquele que apresenta o valor médio mais elevado (3,72; 3,68) e que simultaneamente apresenta maiores diferenças entre os grupos (+1,57; +1,28).
A Tabela 6 apresenta os coeficientes de correlação linear de Pearson entre domínios do WHOQOL-bref, entre fatores da escala EBES e entre domínios e fatores de ambas as escalas. Esta análise permite avaliar a validade de critério das escalas utilizadas e a validade concorrente entre escalas. A correlação entre domínios do WHOQOL-bref mostrou correlações moderadas a fortes, todas estatisticamente significativas, entre os seus domínios.
O coeficiente de correlação mais alto encontra-se entre os domínios Físico e Ambiente (0,696). O domínio das Relações Sociais apresentou os coeficientes de correlação mais baixos em relação aos demais domínios. Os coeficientes de correlação linear entre os fatores da escala EBES também são todos fortes e estatisticamente significativos. Naturalmente que se observa uma correlação inversa entre o fator Afeto negativo e os fatores Satisfação com a vida (-0,856) e Afeto positivo (-0,754), o que significa que os estudantes que experienciam menos afetos negativos tendem a manifestar maior satisfação com a vida e a reportar mais afetos positivos.
No que se refere à validade concorrente, verifica-se na Tabela 6 que existem correlações significativas entre todos os domínios do WHOQOL-bref e os fatores da EBES. Como era esperado, todos os coeficientes de correlação com o fator Afeto negativo são negativos. É ainda de salientar que o domínio Psicológico do WHOQOL-bref é o que apresenta correlações mais fortes com todos os fatores da escala EBES.
Por último, para identificar os domínios da QV que explicam a perceção dos estudantes, sobre se Faro é um bom sítio para viver e se a UAlg é uma boa universidade para estudar, foram estimados dois modelos logit binários independentes. Em cada um deles foi usada como variável dependente uma variável que assume dois valores: 1 - se o aluno tem uma perceção positiva (acerca de Faro ou acerca da UAlg), e 0 - em caso contrário. As variáveis independentes utilizadas foram os quatro domínios do WHOQOL-bref, pois os fatores da escala EBES estão fortemente correlacionados com estes domínios.
Os resultados apresentados na Tabela 7 mostram que a hipótese nula do teste de significância global do modelo (teste de Lagrange Multiplier) é rejeitada (p<0,01), mas a hipótese nula do teste de ajustamento global (teste de Hosmer-Lemeshow) não é rejeitada (p>0,05), o que revela que o modelo se ajusta bem em ambos os casos. Para além disso, os dois pseudo-R2 indicam uma qualidade dos modelos boa. Para além destes resultados, verifica-se que ambos os modelos têm uma muito boa capacidade preditiva, pois têm capacidade para classificar corretamente 94% e 84% dos estudantes, respetivamente. A ótima qualidade do ajustamento é ainda confirmada pela área abaixo da curva ROC, que nestes casos é superior a 0,9 (Hosmer & Lemeshow 2000, pp. 160-164).
A Tabela 7 evidencia que é o domínio Relações sociais que explica a perceção dos estudantes Brasileiros sobre se Faro é um bom sítio para viver. Estima-se que as chances de os estudantes considerarem Faro um bom sítio para viver aumentam com a QV no domínio Relações sociais, sendo que essas chances aumentam 6,6% (odds ratio=1,066) por cada aumento unitário da QV no domínio das Relações sociais, admitindo que as perceções dos estudantes sobre os outros domínios se mantêm constantes. Por sua vez, os domínios que explicam a perceção dos estudantes sobre se a UAlg é uma boa universidade para estudar são o Físico e as Relações sociais. As chances de os estudantes considerarem a UAlg uma boa universidade para estudar aumentam com a QV nos domínios Físico e Relações sociais, sendo que essas chances aumentam 9,5% (odds ratio=1,095) por cada aumento unitário da QV no domínio Físico, assim como aumentam 4,2% (odds ratio=1,042) por cada aumento unitário da QV no domínio das Relações sociais, mantendo tudo o resto constante.
Discussão
A revisão da literatura mostrou que são diversos os fatores que concorrem para a avaliação do BES e da QV. No que toca aos estudantes do ensino superior, fatores como: caraterísticas sociodemográficas, relacionais, desempenho académico, comportamentos de saúde, acontecimentos negativos, podem influenciar, direta ou indiretamente, esta avaliação (Nogueira, 2017). No caso concreto, este estudo tinha como objetivo geral a avaliação do BES e da QV dos estudantes oriundos do Brasil que estudam na UAlg. Para se alcançar este objetivo, foram utilizados na recolha de dados dois instrumentos - EBES, com a análise de três componentes (afeto positivo, afeto negativo, e satisfação com a vida) e WHOQOL-Bref - que permitiram perceber a existência de um conjunto de fatores que concorrem para a perceção formada pelos inquiridos.
Os alunos participantes neste estudo, de origem brasileira, vivem um momento particular nas suas vidas, uma vez que experimentam vivências significativas num meio social e culturalmente novo, experimentam a passagem do ensino médio para o superior e situam-se numa faixa etária maioritariamente jovem, na qual ocorrem muitas alterações psicofisiológicas (De Coninck, Matthijs & Luyten, 2019). De facto, embora rico, este período pode ser marcado por solidão ou outras dificuldades de adaptação que podem potenciar o surgimento de problemas, como a depressão (Barroso et al., 2019). De facto, os resultados apresentados demonstram que os estudantes brasileiros apresentam maiores níveis de QV no domínio físico e menores níveis no domínio psicológico, o qual é mais baixo do que o observado nos estudos de Fleck, Louzada, Xavier, Chachamovich, Vieira, Santos & Pinzon, (2000) e de Serra, Canavarro, Simões, Pereira, Gameiro, Quartilho, Rijo, Carona & Paredes (2006).
Pela análise dos resultados de comparação de grupos quanto aos domínios da QV e dos fatores do BES, é possível perceber que fatores ligados aos aspetos sociais presentes na integração dos alunos, como a existência de amigos, um bom suporte social através de uma rede formal e informal, são indicadores positivamente relacionados e protetores que ajudam a superar eventuais adversidades (Pais Ribeiro, 1999; Sousa & Baptista, 2008).
Por sua vez, foi também possível confirmar em diversos estudos que a ausência do suporte social pode constituir um fator de risco, nomeadamente, no que toca à existência de crises emocionais que podem, posteriormente, conduzir a um aumento de crises de ansiedade, depressão (Alsubaie, Stain, Webster & Wadman, 2019; Barroso et al., 2019; Bolsoni-Silva & Loureiro, 2016), ideação suicida (Rodrigues & Madeira, 2009).
Os resultados mostraram que mais de metade dos estudantes brasileiros inquiridos passou por uma crise emocional. No entanto, os estudantes que não tiveram crises emocionais e os que que estão bem integrados na UAlg, têm uma QV e um BES significativamente mais elevado. Estes resultados estão de acordo com o que foi encontrado por Bolsoni-Silva & Loureiro (2016) que mostram que quanto maiores são as habilidades sociais e o sentido de integração dos estudantes universitários, menor será a possibilidade de viverem problemas emocionais. Os resultados alcançados estão também em consonância com estudos que demostraram a existência de uma associação positiva entre a existência de um suporte social e o bem-estar psicológico dos estudantes (Smith & Khawaja, 2011).
Fazendo os inquiridos parte de um conjunto de alunos a frequentar o ensino superior, esse facto pode ser relacionado com um nível de satisfação mais elevado no que toca à apreciação do seu bem-estar subjetivo e da qualidade de vida, na medida em que os estudos indicam existir uma estreita relação entre estes e o aumento do nível de escolaridade (Javed & Javed, 2016).
Os valores encontrados apontam, à semelhança do verificado em outros estudos (e.g.Hardeman, Przedworski, Burke, Burgess, Phelan, Dovidio & van Ryn, 2015), que os inquiridos do género feminino tendem a demonstrar valores mais baixos no que toca à avaliação do seu BES e na sua QV. É, também, de referir que os estudantes que consideram a UAlg um bom sítio para estudar e Faro um bom sítio para viver apresentam níveis mais elevados de QV e de BES. Os fatores ambientais na apreciação da cidade de Faro (perceção de segurança, o clima, a língua, a gastronomia, entre outros) podem influenciar o grau de satisfação dos inquiridos na construção de uma imagem positiva da UAlg como um bom lugar para estudar e da cidade de Faro como um bom lugar para viver (Brás, 2012).
Neste estudo, foi identificado o domínio Relações sociais como explicativo da perceção dos estudantes brasileiros sobre se Faro é um bom sítio para viver e os domínios Físico e de Relações sociais da perceção dos estudantes sobre se a UAlg é uma boa universidade para estudar, o que demonstra a importância das relações sociais e de um bom nível físico na avaliação positiva da UAlg. Perante estes resultados, sugere-se que a UAlg promova e apoie a realização de ações de integração de estudantes brasileiros, as quais devem incluir atividades físicas e eventos sociais, de forma a aumentar a probabilidade destes estudantes percecionarem a UAlg como uma boa universidade para estudar.
Este estudo, como qualquer outro, tem limitações que importa reconhecer. Uma delas está ligada ao facto de ter sido utilizada uma amostra e não um recenseamento, como se pretendia inicialmente. Por outro lado, como foi usada uma amostra “bola de neve” - uma amostra não probabilística - não é possível a generalização dos resultados para a população em estudo. É, ainda, de referir que o estudo realizado foi transversal, isto é, foi feito apenas num momento do tempo; um estudo longitudinal permitiria analisar alterações ao longo do tempo de permanência dos estudantes na UAlg. Adicionalmente, é de salientar que foram incluídos estudantes de apenas uma IES; a inclusão de estudantes de outras IES poderia ter contribuído para a identificação de outros fatores que possam contribuir para o BES e a QV destes estudantes. Por último, embora este estudo não tenha sido concebido para avaliar diferenças entre estudantes que estão a viver na cidade e a frequentar a universidade pela primeira vez, teria sido interessante comparar os resultados de BES e QV entre quem se está a adaptar a uma nova cidade e a uma nova universidade e quem já vive em Faro e estuda na UAlg há mais tempo. Esta comparação poderia ser explorada em estudos futuros.
Este estudo permitiu verificar que mais de quatro quintos dos estudantes estrangeiros oriundos do Brasil consideram Faro um bom sítio para viver e a UAlg uma boa universidade para estudar. Por outro lado, três quintos sentem-se bem integrados e em geral apresentam uma boa QV e um bom BES, sendo os estudantes que consideram Faro um bom sítio para viver e a UAlg uma boa Universidade para estudar os que têm uma QV e um BES significativamente mais elevado. No entanto, embora mais de metade dos estudantes brasileiros inquiridos já tenha tido uma crise emocional, aqueles que não tiveram crises emocionais e aqueles que estão bem integrados na UAlg têm uma QV e um BES significativamente mais elevado. Por último, é de referir que os estudantes com um nível físico e de relações sociais mais elevados têm maior probabilidade de considerarem a UAlg uma boa universidade para estudar.
Os resultados deste estudo permitem contribuir para conhecer o BES e a QV dos estudantes universitários oriundos do Brasil e a elaboração de propostas que visem melhorar o seu bem-estar subjetivo. Considerando a importância que os estudantes universitários oriundos do Brasil têm no número total dos estudantes do ensino superior português, e na UAlg em particular, é muito importante que as IES tenham consciência dos níveis de BES e QV destes estudantes para que possam definir estratégias que visem contribuir para a adaptação dos estudantes, para o sucesso do seu desempenho académico e para melhorar o seu BES e QV e a sua experiência universitária em Portugal. De facto, tal como referido por Smith & Khawaja (2011), sendo a indústria da educação internacional uma área em crescimento, existe uma necessidade de explorar e avaliar intervenções futuras para além do que as IES já fornecem, reconhecendo o papel importante que as IES detêm na facilitação da integração e aculturação dos estudantes internacionais nas universidades e na sociedade.
Declaração de contribuição de autoria credit
Lara Noronha Ferreira: Metodologia, Validação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição; Luís N. Pereira: Concetualização, Análise formal, Metodologia, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição; Maria da Fé Brás: Visualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição. João Dourado: Investigação