Doenças raras são aquelas que afetam um pequeno número de pessoas, em comparação com outras doenças da população em geral (Richter et al., 2015) e nas quais os tratamentos e a investigação são insuficientes (Griggs et al., 2009). Na Europa, a definição de doença rara é a que afeta menos de 1 em cada 2000 pessoas (Barbosa & Portugal, 2018; Harari, 2016;). Até à data, foram identificadas mais de 7000 doenças raras.
Desta forma, as associações são uma fonte importante de informação em doenças raras e no apoio ao pequeno grupo de pessoas afetadas por cada uma dessas doenças (Rabeharisoa, 2008). Uma associação é um grupo de indivíduos geralmente voluntários que decidem partilhar os seus conhecimentos e atividades de forma regular e que é consensualmente considerada como importante naquilo que é a vida democrática de uma sociedade desenvolvida (Viegas, 2004). O desenvolvimento deste tipo de participação social afirmou-se principalmente em França, nas décadas de 60 e 70, o que resultou na constituição de associações da mais diversa índole. Esta prolificação do movimento associativo contribuiu para o aumento da solidariedade, através da participação civil (Coelho, 2008), que transpõe para o espaço público os problemas vividos na esfera privada, reformulando-os e tornando-os objeto de discussão pública (Viegas, 2004).
Por outro lado, a sensibilização das pessoas para a área das doenças raras parece vir a crescer nas últimas décadas, espelhada na criação de grupos de defesa dos direitos das pessoas doentes, na divulgação da informação através da internet, no aumento do interesse dos media e no maior financiamento para centros de referência especializados e para investigação sobre as doenças raras e medicamentos órfãos (Griggs et al., 2009), no sentido de se destinarem à prevenção, diagnóstico ou tratamento de doenças raras muito graves que ponham a vida em perigo, sejam cronicamente debilitantes e que afetem até cinco em cada 10 mil pessoas (Tovar, 2014).
A experiência de vida marcada pela doença pode condicionar os indivíduos por fatores ligados à sua situação de saúde, ao contexto de vida e à perceção de exclusão social por serem socialmente percecionados, tantas vezes, como “diferentes” (Shaw & McCabe, 2007). Esta perspetiva de “diferença” com caráter excludente, deve ser combatida desde a linguagem procurando distinguir-se a doença da pessoa doente, humanizando a prática médica (Cavalheiro, 2009) e a própria literatura científica.
O papel das associações adquire, assim, uma importância significativa, pela rede de relações que estabelecem, tornando as pessoas portadoras de doença e as suas famílias conscientes dos meios e dos recursos disponíveis que lhes permitem intervir e reivindicar os seus direitos (Torpe, 2003). O contributo das associações é igualmente valioso na luta pela cidadania, autonomia, defesa dos direitos fundamentais e pela diferença (Rabeharisoa, 2008), dimensão que vai além do reconhecimento da diversidade, explora o sentimento de pertença (Pais & Menezes, 2010) e enfatiza o papel da negociação de decisões (Rappaport, 1981).
Apesar de toda a relevância demonstrada pelo associativismo, o seu potencial educativo não tem sido suficientemente problematizado do ponto de vista científico (Epstein, 2008). Em Portugal, pouco se conhece acerca do trabalho destas associações, da sua tipologia, das suas necessidades, entre outras características. Este estudo exploratório teve como objetivo dar um contributo para a caracterização das associações de representantes e auto-representantes de pessoas com doenças maioritariamente raras em Portugal e destacar o papel relevante que as mesmas têm no apoio às pessoas com esta doença, esclarecendo os seus contributos e necessidades.
Método
Para este estudo descritivo exploratório acerca do papel das associações de pessoas com doenças raras como uma importante fonte de apoio psicossocial, optámos por uma metodologia qualitativa, através de entrevistas semiestruturadas gravadas e transcritas. A abordagem qualitativa proporciona uma perspetiva mais profunda e abrangente do tema, especialmente relevante quando se pretende aprofundar os conteúdos relativos a determinada linha de investigação (McLeod, 2001), como neste caso é o papel e a caracterização das associações de pessoas com doenças raras em Portugal. Foram convidadas a participar um total de 28 associações com as quais o CGPP possuía alguma colaboração prévia (participação em reuniões clínicas, contatos diretos dos seus associados, atividades de promoção de saúde, etc). A técnica da entrevista semiestruturada é considerada um método de eleição para o entrevistador, que pode colocar questões adicionais para aprofundar os temas e o significado das respostas (Gubrium & Holstein, 2001). Recorreu-se à análise temática com o objetivo de alargar o conhecimento sobre o tema, através da identificação e análise de padrões de significado a partir dos dados qualitativos (Braun & Clarke, 2006; McLeod, 2001). O estudo teve aprovação pelo Comité de Ética do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) e da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP).
Participantes
Participaram neste estudo 23 associações, entrevistadas individualmente com a presença de um ou mais elementos representativos das mesmas cujos testemunhos representam a realidade dos associados. Quanto ao número de entrevistados, foram 38 participantes com origem em 2 “associações-chapéu” (ou federações), 14 associações de pessoas com doença e 7 delegações ou núcleos da região norte. Os participantes foram 18 mulheres e 20 homens: 15 pessoas com doença, 14 familiares e amigos de pessoas com doença e 9 profissionais de saúde, todos eles parte integrante dos corpos diretivos das associações representadas. As áreas formativas dos profissionais de saúde centravam-se na terapia ocupacional, psicologia, medicina, biologia e enfermagem.
Instrumento
Elaborámos um guião da entrevista com o objetivo de servir como guia-orientador, esclarecendo os objetivos propostos (Tabela 1). Nas entrevistas semiestruturadas foram realizadas questões sobre a experiência psicossocial do trabalho dos dirigentes associativos, mais concretamente: (a) as expectativas, (b) os objetivos, (c) as atividades, (d) os apoios, (e) as necessidades e (f) as dificuldades.
Procedimento de recolha e análise de dados
Inicialmente, contactámos as associações via email e, após aceitarem participar, visitámos as suas sedes e apresentámos um documento informativo com a descrição do estudo. Seguidamente, os intervenientes preencheram um consentimento informado relativo à sua participação no estudo e à autorização para o registo em vídeo das entrevistas. Nos casos das associações sem sede física ou em que não foi possível a nossa deslocação, realizámos as entrevistas no CGPP.
As entrevistas foram gravadas em vídeo com o consentimento dos participantes, transcritas na íntegra, e verificadas quanto à sua precisão. O formato vídeo prendeu-se com a utilização de excertos das filmagens para a realização de um documentário final. Os participantes foram informados e consentiram esta recolha e divulgação de imagens no encerramento do programa de intervenção. Até esta divulgação, a única pessoa que acedeu às imagens e conteúdos foi a investigadora principal do estudo, assegurando a privacidade e confidencialidade dos dados.
A duração total das 23 entrevistas realizadas foi de 12 horas e 24 minutos, sendo a duração média de 1 hora e 22 minutos e tendo a entrevista mais curta uma duração de 31 minutos e a mais longa 1 hora e 57 minutos. As associações de pessoas com doenças raras entrevistadas estão localizadas, maioritariamente, na região norte, mas também na região centro e sul do país. A designação específica das associações e a sua localização geográfica não será mencionada neste trabalho, por motivos de confidencialidade e anonimato assegurados aos participantes aquando da sua participação.
Participaram neste estudo 23 associações de pessoas com doença ou as suas delegações, selecionadas após elaboração de uma listagem com todas as associações de pessoas com doenças maioritariamente raras em Portugal e da seleção das que, no âmbito clínico ou laboratorial, estavam mais relacionadas com o trabalho realizado no CGPP. As associações entrevistadas surgiram, grande parte, devido à falta de informação e de apoio acerca dessas doenças. Foram criadas a partir 1979 e envolvem cerca de 17500 pessoas associadas. Contudo, o número de pessoas envolvidas nas associações é muito maior, se refletirmos no número de pessoas doentes e familiares que não são associados e participam na vida associativa. A recolha de dados baseou-se na realização de entrevistas a uma amostra de representantes e auto-representantes dos corpos diretivos das associações de pessoas com doenças raras a nível nacional e respetivas delegações ou núcleos da região norte do país, sendo este o único critério de inclusão.
Embora o guião de entrevista abrangesse vários temas, nenhuma categoria de codificação foi definida a priori e os temas emergiram dos dados. As transcrições das entrevistas semiestruturadas foram lidas repetidamente e analisadas através do método de análise temática de Braun e Clarke (2006). Este método é amplamente utilizado para identificar padrões e temas dentro dos dados recolhidos, sendo apropriado quando a questão de investigação é ampla e se pretende explorar aprofundadamente o tema.
O processo de análise de dados envolveu a identificação de temas e subtemas dentro de cada entrevista, sendo posteriormente efetuada a comparação entre todas as entrevistas, a aprimoração dos subtemas e a construção de um mapa conceptual (Figura 1). Em todo o processo de análise, efetuámos a triangulação interna, método que permite confrontar as visões dos investigadores e detetar as coincidências e as divergências (McLeod, 2001).
Resultados
De acordo com os pressupostos metodológicos utilizados no presente artigo, a análise temática das transcrições das entrevistas resultou em três principais temas conceptuais: (1) ‘a missão’, (2) ‘o contexto atual do trabalho associativo’ e (3) ‘as oportunidades do trabalho associativo’. A Figura 1 ilustra a estrutura destas três categorias conceptuais, incluindo os subtemas.
Os resultados são ainda descritos usando excertos de transcrições que são acompanhados por um código que identifica a associação respetiva.
Tema 1. A Missão
O primeiro tema diz respeito ao enquadramento das associações de pessoas com doença na sociedade e a missão das mesmas. Neste tema evidenciam-se os seguintes subtemas: surgimento das associações e missão e tipologia das atividades. Salienta-se a motivação intrínseca das pessoas associadas na tentativa de dar resposta àquilo que sentem como falta de informação e respostas para pessoas com doenças raras em Portugal.
Portanto, diria que é assim uma criação um bocado por carolice, um bocado por falta absoluta e completa de respostas e de instituições ou organizações deste género em Portugal. (Associação 1)
Eu fui mãe em 1994 (…) ao fim de dois anos e meio a minha filha foi diagnosticada com esta patologia e eu vi-me um bocadinho ‘O que é que existe em Portugal? Quem é que me pode ajudar nesta nova caminhada?’ e deparei-me que em Portugal não existia nada. Não havia associações, não havia informação. A pouca informação que alguns médicos tinham era muito pouca (…) na altura também não havia teste genético. Comecei a tentar procurar famílias, pessoas que tivessem filhos com a mesma doença (Associação 6)
As atividades que as associações organizam são principalmente convívios, atividades de suporte social e de angariação de fundos para permitirem a sua sustentabilidade. Algumas associações providenciam ainda terapias, tais como psicologia, fisioterapia, terapia da fala e nutrição, bem como organizam congressos, seminários e conferências. Outras associações promovem formações para cuidadores (formais e informais) e pessoal técnico, e atividades de sensibilização nas escolas, hospitais e juntas de freguesia. Por fim, há associações que prestam apoio alimentar, apoio em ajudas técnicas, como cadeiras de rodas, apoio para transporte das pessoas doentes para consultas e fornecimento de medicamentos. É interessante notar que a missão das associações enquanto promotoras do apoio inexistente noutros meios e instituições formais, se traduz em funções muito objetivas e transversais, desde a formação de pessoal técnico ao provisionamento de bens essenciais.
Tema 2. O contexto atual do trabalho associativo
O segundo tema que emergiu da leitura dos dados recolhidos aborda questões relacionadas com o contexto nacional atual, bem como os problemas e obstáculos que enfrentam as associações. Um dos problemas mais referidos pelos participantes foi a estigmatização de determinadas doenças e condições clínicas, o que se reflete na distinção negativa das pessoas com doenças hereditárias em relação a todas as outras, através da discriminação, e que pode conduzir à marginalização e à exclusão social. Esta exclusão atravessa desde juízos de valor do comportamento das pessoas doentes até à falta de respostas institucionais para determinadas doenças em determinadas fases do ciclo de vida. Por exemplo:
E, às vezes, eu caio ou isto ou aquilo e muita gente diz ‘Ah, já vai com os copos’. Dantes eu ia do trabalho, chegavam ao pé de mim ‘Então, já bebeste uns copos?”. (Associação 2)
(…) ainda há firmas que se souberem que é descendente da doença, que tem a doença ou pode ter a doença já não o quer para trabalhar. (Associação 3)
Esta estigmatização aponta para várias discussões fulcrais neste tema, como a baixa literacia da população e dos profissionais, que é também um dos condicionamentos mais referidos pelos membros dos corpos diretivos que alertam para a resposta médica nem sempre ser a mais adequada. Esta lacuna diz respeito ao fraco conhecimento científico acerca das doenças, bem como ao envolvimento insuficiente da comunidade científica nas atividades das associações:
Não há mal nenhum em o médico estar lá e ‘olhe, eu tenho esta dúvida’ ‘pois, não sei, mas posso ir ver’. No fundo é como um professor, um professor também não sabe tudo. E se não sabe também tem de ter a humildade de dizer ‘não sei, vou ver e já te respondo’. (Associação 4)
Eu marquei reuniões profundas com todos os diretores dos centros de saúde. (…) Falámos com todos os diretores dos centros de saúde. Foram extraordinários, tivemos uma recetividade bestial. (…) Criaram em mim ou em nós uma expectativa extraordinária. Sabe quantos clínicos estiveram presentes no nosso evento, ligados a centros de saúde? Zero. (Associação 5)
Adicionalmente, os dirigentes associativos referem uma grande dificuldade na transição das pessoas doentes da vida escolar para a vida adulta naquelas doenças que se manifestam mais precocemente e uma acessibilidade limitada que condiciona a vida laboral, financeira e familiar dos doentes e dos seus entes queridos, espelhando a exclusão social supracitada:
As nossas jovens a partir dos 18 anos têm de sair da escola oficial. E o que é que acontece? Respostas a partir dos 18 anos a nível de instituições há muito poucas e o que há têm listas de espera infinitas. (Associação 6)
Referem ainda a falta de financiamento por parte do Estado, das entidades públicas e privadas, pelo que o voluntariado é, muitas vezes, o seu único meio de subsistência. O facto de se tornarem Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) parece ser uma saída para algumas, ao contrário de outras que não conseguem obter esse estatuto:
Nós pagamos do nosso bolso, portanto, aquela questão do voluntariado... Isto é esgotante andarmos em voluntariado há 10 anos, a termos de pagar do nosso bolso. (Associação 1)
Porque nós temos outra dificuldade. Nós não somos IPSS, não é? E depois é-nos barrada muita coisa por não sermos IPSS. (Associação 8)
Recorda-se, com certeza, da luta que tivemos para que o medicamento fosse licenciado. E porque é que assim foi quando havia países na Europa onde já estava perfeitamente licenciado? Países esses que não tinham grande representatividade em termos de número de doentes e nós tivemos grande dificuldade. (…) Nós aqui vamos para o Parlamento e nada e nada. (Associação 5)
Vários corpos diretivos referiram também o problema do não reconhecimento do papel potenciador das associações nos cuidados de saúde. Apontam que os centros de referência deveriam ser um motor desse reconhecimento, no entanto, continuam a falhar nos recursos humanos e na divulgação do trabalho das associações:
O que nós pretendíamos era que houvesse uma interligação entre os centros de referência e as associações e que o doente soubesse que há uma associação (…) (Associação 9)
Para além disso, os dirigentes associativos relatam que muitas entidades não conseguem ver as associações como possíveis parceiras para o desenvolvimento de trabalho colaborativo:
As pessoas não podem ver as associações como uma ameaça. Uma associação é um parceiro - e tem de ser um parceiro - de confiança porque as associações estão-se a preparar, cada vez mais, não para substituir o Serviço Nacional de Saúde, mas para terem respostas técnicas, o mais profissionais possível! (Associação 10)
Os diagnósticos tardios ou não conclusivos, o longo tempo de espera para consultas de Genética e outras e a resposta insuficiente da Medicina Reprodutiva continuam a ser apontadas como falhas graves do Serviço Nacional de Saúde, onde as associações, muitas vezes, são confrontadas para darem respostas que vão além das suas capacidades:
Há pessoas que nos contactam porque têm um diagnóstico errático ou o diagnóstico não é ainda certo ou não há conclusões. Enfim, há uma série de fatores que fazem com que as pessoas nos contactem à espera que nós tenhamos uma resposta e por vezes nós não temos essa resposta exatamente porque nos falta resposta do lado de lá (...) (Associação 10)
Às vezes, há ali quase uma guerra aberta com os médicos de família a pedir o P1 para passar para a especialidade. Quando finalmente conseguem, é feito o pedido de encaminhamento e depois a consulta demora meio ano para ser marcada ou às vezes um ano para ser marcada. Entretanto nesse período de tempo, a doença vai evoluindo e vão surgindo dificuldades. (Associação 11)
O caráter voluntário do trabalho associativo foi também encarado pelas pessoas participantes como um obstáculo relevante. A maioria dos dirigentes relata a dificuldade sentida no recrutamento de pessoas para fazerem parte da estrutura das associações, devido a limitações da vida quotidiana como a falta de tempo:
Somos todos voluntários. Eu trabalho de x a x e ainda encontro espaço para trabalhar. Todos os que fazem, fazem assim! Temos de ter a noção se dizemos claramente que uma associação tem este caráter, sobre voluntariado, as pessoas têm o seu trabalho, temos de pensar que são pessoas reais (…) (Associação 4)
Essa dificuldade vai ao encontro da pouca participação das pessoas doentes e da sociedade civil, que se traduz na fraca adesão às atividades por parte de cidadãos que não têm a doença ou que não estão diretamente ligados a ela por razões familiares, profissionais ou afetivas:
(…) Temos sempre a dificuldade em chamar, conseguirmos chamar gente. Até para divulgar a doença. Muita gente ouve falar, não sabe os problemas que esta doença tem, o que causa… E estamos com essa dificuldade. (Associação 12)
A dispersão das pessoas doentes é outra grande dificuldade do ponto de vista dos dirigentes, na medida que as associações ambicionam chegar a todas estas pessoas, mas não têm condições financeiras e estruturais para o fazer:
(…) não podemos constantemente ir fazer um domicílio a Vila Real ou a Bragança ou Braga. Isso é insuportável para a associação (…) Interessa-nos muito chegar, aliás, o nosso grande objetivo é esse: é chegar àqueles doentes que não podem vir ter connosco porque há muitos. (Associação 13)
Por fim, a falta de relevância dada pelos órgãos de comunicação social é outro obstáculo mencionado pelos dirigentes associativos, por não refletir o profícuo trabalho desenvolvido pelas associações e não conferir às atividades das associações a dimensão que elas desejariam alcançar. Por exemplo:
(…) Eu fiquei muito contente porque tivemos no programa que o encerramento ia ser feito pelo Senhor Presidente da República, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa (…) Estavam todos: a TVI, SIC e RTP. Todos presentes. (…) No final do dia cheguei a casa, liguei a televisão para ver o que é que iam falar e então viu-se Marcelo Rebelo de Sousa no final do encontro e as perguntas que lhe colocaram não tinham nada a ver com o encontro. (Associação 10)
As oportunidades do trabalho associativo
Na terceira e última dimensão inserem-se as potencialidades, as estratégias que foram identificadas e que podem aumentar a visibilidade do trabalho associativo. Assim, como oportunidades atuais foi referida a necessidade de aumento das ligações com associações europeias, aspeto que ainda se encontra numa etapa embrionária. Esta ligação permite uma rica troca de experiências e é um veículo para o recrutamento de novos conhecimentos e novas ideias que possam otimizar o trabalho das diversas associações em Portugal:
Fazemos parte também da associação europeia, no sentido também de podermos trazer conhecimento a estas famílias, trazer conhecimento aos médicos, trazer mais-valias. (Associação 6)
A criação de centros de referência para um maior número de doenças raras é também uma oportunidade para elevar as competências de prestação dos cuidados de saúde e participar em projetos de investigação que podem trazer novas descobertas:
O que nós pretendíamos era que houvesse uma interligação entre os centros de referência e as associações e que o doente soubesse que há uma associação que disponibiliza voluntários (…) (Associação 9)
Outra oportunidade é a recente criação de um grupo de especial interesse nas questões de genética na Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), com o objetivo de tornar os médicos de família mais capacitados e mais bem preparados para dar respostas a estas doenças. A este respeito, verificou-se que as associações de pessoas com doença que mantinham um elo de ligação com os profissionais de saúde nos corpos diretivos ou científicos, tinham mais bases estruturais, maior sucesso e maior amparo:
O facto de nós termos ali um apoio científico tão grande e alguém que nos vai conduzindo… E ter disponibilidade e carolice também para acompanhar uma associação de doentes é de louvar. (Associação 8)
Algo também importante para o trabalho das associações é a criação de plataformas de recursos onde esteja disponível de forma gratuita e acessível um resumo das diversas oportunidades para as pessoas doentes, espalhadas por todo o país:
(…) É sistematizar informação, é fazer com que a busca de informação … não seja de semanas de procura intensiva e de filtragem, mas que seja um banco de dados das associações… “ok, esta associação existe”. (Associação 4)
A criação de registos e bases de dados foi referida também como fundamental para a maioria das doenças raras representadas nestas associações, tanto para o aumento do seu conhecimento epidemiológico e planificação de cuidados, como para a investigação e os ensaios clínicos:
(…) Não temos a base de dados e a informação que temos é toda através de sócios, ou familiares que conhecem e que ouvem falar da associação e passam palavra… Assim não conseguimos chegar onde queríamos chegar. (Associação 12)
A criação de um novo modelo de referenciação para a genética médica, que permita uma maior flexibilidade e o acesso atempado foi também referida como uma estratégia para melhorar os serviços disponíveis para as pessoas com doenças raras e as respetivas associações. Dos relatos dos dirigentes surgiu a sugestão adicional de integração de valências de entidades académicas que prestam estes serviços de diagnóstico e aconselhamento genético. Por exemplo:
Nós já fizemos uma primeira abordagem a decisores noutro nível, como disse grupos parlamentares e representantes destes organismos, Conselho Nacional de Reprodução Medicamente Assistida, mas remetem que em última análise tem a ver com o funcionamento das instituições do SNS. (Associação 1)
Relacionado com o tópico anterior, os membros dos corpos diretivos remetem para a necessidade de uma maior valorização e verba para investigação e um maior contributo e disseminação das oportunidades de financiamento existentes:
(…) E depois candidatamo-nos ao INR, todos os anos concorremos e temos conseguido ganhar alguns projetos. Os valores são sempre muito baixinhos para as necessidades que os nossos doentes e os seus familiares precisam. (Associação 14)
Outro fator potenciador referido é a possível criação de grupos de intervenção psicoeducativa, programas de capacitação das associações e protocolos de colaboração entre as associações e centros de investigação e diagnóstico, estratégias que aproximem a ciência e a saúde ao trabalho diário das associações no terreno:
Acho que hoje em dia não é tão assim, mas passa por, por um lado, e sempre sempre sempre informar, consciencializar, divulgar a doença e, por outro lado, prestar todo o apoio possível às famílias (…). (Associação 1)
A Associação Portuguesa dos Profissionais do Aconselhamento Genético (APPAG) mostrou também ser uma oportunidade, na medida em que luta pelo reconhecimento da profissão de aconselhamento genético em Portugal, que poderá dar respostas diferenciadas às necessidades dos doentes enquanto profissionais de saúde que estabelecem a ponte entre as associações e os serviços especializados.
Discussão
Neste trabalho, explorámos o desenvolvimento das associações de pessoas com doenças raras em Portugal e o seu importante papel como fonte de apoio psicossocial não só às pessoas doentes, mas também às respetivas famílias. Considerando os resultados obtidos e o proposto por Barbosa (2014), as associações, em particular as associações de pessoas com doenças raras, possuem duas formas de ação. A primeira é a priorização de atividades que visam a propagação de informação sobre as doenças. Para tal, as associações utilizam folhetos, revistas, formação de profissionais de saúde e divulgação nas escolas. A segunda forma de ação destas associações visa a representação das pessoas com doenças raras que as constituem, o que inclui, entre outras, a sua participação em estudos e projetos investigação que têm como objetivo aprofundar o conhecimento existente sobre a doença.
No que diz respeito aos problemas e obstáculos que enfrentam as associações de pessoas com doenças raras, os resultados deste estudo destacam a falta de informação. Uma vez que estas doenças são consideradas raras, as lacunas informativas começam, muitas vezes, nos próprios profissionais da saúde, o que se traduz num elevado tempo de espera para que a pessoa doente e a sua família consigam obter um diagnóstico conclusivo (Faurisson, 2000). Este tempo de espera e o sofrimento psicológico e físico associado torna-se um fator determinante para a criação de algumas associações que acabam por emergir como um lugar de partilha de experiências e de apoio mútuo (Allsop et al, 2004).
Destaca-se assim a relevância do apoio social e afetivo encontrado nas associações, que se tornam um importante aliado no processo de reconstrução da identidade e da autoestima das pessoas com doenças raras (Coelho, 2008; Telford et al, 2006). As associações tornam-se também, mediadores entre as famílias, a sociedade e o Estado (Portugal, 2000), abrangendo ainda a denúncia pública de situações discriminatórias (Stainton, 2005) explicitadas em alguns dos testemunhos recolhidos e que evidenciam o papel protetor no combate ao estigma e à discriminação ainda associados a algumas doenças raras. Tal o caso da grande luta pela aprovação de medicamentos.
Outro tema emergente no discurso das pessoas participantes neste estudo foi a insuficiência da atenção dos meios de comunicação social no apoio às associações de pessoas com doenças raras nas suas campanhas de sensibilização. Aqui, é importante salientar que os canais institucionais existentes podem ser poderosos aliados na promoção da visibilidade deste trabalho associativo e, consequentemente, da literacia em saúde, e das doenças raras em particular, no seio da população geral.
A organização dos cuidados de saúde para doenças raras surge nos discursos dos participantes neste estudo como requerendo uma abordagem diferente e, por isso, com necessidade de reestruturação. Pede-se, então, uma abordagem multidisciplinar, organizada, centrada na pessoa com doença, que se torna mais eficaz e que parece gerar melhores resultados do que o modelo atual de cuidados (Van Groenendael et al., 2015). Assim sendo, considerando o papel destas associações, muitas vezes, como primeiro recurso das pessoas com doenças raras, entendemos o seu valor social neste contexto de reestruturação como incomensurável. O conhecimento aprofundado que as mesmas possuem através do contacto próximo, atento e constante com pessoas com doenças raras é preponderante no processo de reorganizar e melhorar a atenção psicossocial integral destas doenças através das suas associações representantes.
Assim, parecem existir muitas estratégias e oportunidades para legitimar o trabalho essencial das associações representadas neste estudo. O reforço de profissionais de saúde nos seus corpos científicos, por exemplo, poderá levar as associações a ampliarem o seu alcance e a tornarem-se mais capacitadas para dar resposta aos seus associados e as suas necessidades. Da mesma forma, sugere-se a integração de diversas iniciativas clínicas na rede do Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente centros de diagnóstico e de investigação das universidades e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que têm vindo ao longo dos anos a suprir lacunas assistenciais importantes, prestando cuidados de saúde em áreas onde não existe uma resposta especializada ou atempada. Para a criação destas respostas especializadas, será ainda essencial incrementar as competências em genética dos profissionais da saúde, através da formação, facilitando o atendimento de pessoas com estas doenças nos cuidados de saúde. Emerge também a necessidade de uma maior valorização da investigação translacional, com o financiamento de projetos de investigação que possam centrar-se na comunicação da ciência, em programas de intervenção psicoeducativos, projetos comunitários e outras formas de investigação ou ação que permitam a capacitação e intervenção social nestes grupos e comunidades.
Por fim, ainda que já existam outras iniciativas como a Estratégia Integrada para as Doenças Raras (Direção Geral de Saúde, 2017), a Carta para a Participação Pública em Saúde (Gat Portugal, 2017), o processo de Revisão da Lei de Bases da Saúde (Diário da República Eletrónico, 2018), a Orphanet (2018), as pessoas participantes neste estudo elucidam através do seu discurso a importância de estratégias políticas mais específicas e centradas na melhoria de serviços e recursos que respondam às necessidades de pessoas com doenças raras. Fica aqui claro o papel associativo naquela que é a construção de uma consciência política em que cada pessoa com doença se reconhece no interior de uma coletividade que cria condições para a sua autodeterminação e autorrealização. Tal sublinha, mais uma vez, a importância de se atender às necessidades específicas das associações pelo seu papel decisivo no bem-estar biopsicossocial das pessoas com doença (Gohn, 2008).
Como limitações do presente estudo, realçamos a amostra de conveniência que apenas representa uma parte da realidade das associações portuguesas de pessoas com doenças raras. Vale, no entanto, destacar que foram aqui incluídas pessoas associadas, na qualidade de representantes e auto-representantes dos distintos grupos associativos e com motivação para participar neste processo e que, a inexistência de uma listagem clara, completa e pública de todas as associações de doenças raras em Portugal, dificulta o processo de amostragem.
Não obstante, este trabalho apresenta um caráter pioneiro e oportuno, dada a realidade das associações de apoio a pessoas com doenças raras em Portugal. Ainda que seja necessária alguma precaução na análise dos resultados pelas limitações inerentes à amostra, o estudo é particularmente relevante porque sublinha informações pertinentes acerca do estado atual e das necessidades do trabalho associativo, reforçando a pertinência do associativismo para a preservação e mobilização do tecido social.
Apesar das limitações, o presente estudo contribuiu para a caracterização de um grupo de associações de doenças raras, que são frequentemente um meio de promoção do convívio e da participação social, da vivência em comunidade, da ocupação dos tempos livres e de preservação da identidade (Coelho, 2008).
Assim, várias necessidades estruturais de apoio do movimento associativo são também clarificadas neste estudo, podendo informar possíveis estratégias sociopolíticas a serem implementadas para sua otimização. Parece ainda haver muito a ser feito para promover e otimizar o trabalho das associações de pessoas com doenças raras. Considera-se, pois, que o caráter exploratório deste estudo pode ser uma alavanca para potenciar a integração destas associações e aumentar a sua visibilidade.
Declaração de contribuição de autoria CRediT
Catarina Costa: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Aquisição de financiamento; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Software; Validação; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição. Isabel Alonso: Concetualização; Metodologia; Administração do projeto; Validação; Visualização; Redação - revisão e edição. Jorge Sequeiros: Metodologia; Validação; Visualização; Redação - revisão e edição; Milena Paneque: Concetualização; Curadoria dos dados; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Software; Supervisão; Validação; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.