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Ex aequo
versão impressa ISSN 0874-5560
Ex aequo n.18 Vila Franca de Xira 2008
Modelos de enfermeiras nas ditaduras de VARGAS e de FRANCO: femininas, caridosas e patrióticas
Tânia Santos1,2
Magdalena Santo Tomás2
Aline S. da Fonte1
María del Rocío Catalina2
Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal de Rio de Janeiro/Brasil1
Escuela Universitaria. Departamento de Enfermería, Universidad de Valladolid/Espanha2
Resumo
Estudo histórico-social que tem como objetivos descrever as principais características dos regimes ditatoriais do Brasil e da Espanha e caracterizar algumas implicações dessas ditaduras para a enfermagem brasileira e espanhola. As fontes primárias foram constituídas por documentos escritos arquivados no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery (Universidade Federal do Rio de Janeiro), situada no Rio de Janeiro, Brasil, e na Biblioteca Nacional de Madrid. A coleta dos dados foi realizada no período de 01 de fevereiro a 30 de maio de 2008. Os achados foram classificados, contextualizados e interpretados à luz do pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu, possibilitando a análise da importância dos atributos intrínsecos à natureza feminina para a inserção honrosa da enfermeira no espaço público, tradicionalmente consagrado aos homens.
Palavras-chave enfermagem, gênero, história da enfermagem, memória
Abstract
Models of nurses in Vargas and Franco dictatorship: feminine, caring and patriotic
Social-historic study that intends to describe the main characteristics of dictatorial regimes of Brazil and Spain and to characterize some implications of these dictatorships for the Brazilian and Spanish nursing. The primary sources were constituted of written documents filed in the Center of Documentation of the School of Nursing Anna Nery (Federal University of Rio de Janeiro), located in Rio de Janeiro, Brazil, and in the National Library of Madrid. The data collection was carried out in the period from February 01st to May 30th of 2008. The findings were classified, contextualized and interpreted according to the thought of the French sociologist Pierre Bourdieu, which allowed the analysis of the importance of the intrinsic attributes to the feminine nature for the honoured insertion of the nurse into the public space, traditionally dedicated to men.
Keywords nursing, gender, history of nursing, memory
Résumé
Modèles dinfirmières dans les dictatures de Vargas et Franco: féminines, caritatives et patriotiques
Étude historique-social avec lobjectif doffrir une description des principales caractéristiques des régimes dictatoriaux du Brésil et dEspagne, et de caractériser quelques implications de ces dictatures pour les Soins Infirmiers dans ces deux pays. Les sources primaires sont constituées des documents écrits, déposées au Centre de Documentation de lÉcole des Sciences Infirmières Anna Nery (Université Federal de Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, Brésil, et a la Bibliothèque Nationale de Madrid. La recherche des données a été effectué dans la période du 1 février jusquau 30 mai 2008. Les données ont été classées, mises en contexte et interprétées à la lumière de la pensée du sociologue français Pierre Bourdieu, ce qui a rendu possible lanalyse de limportance des attributs intrinsèques à la nature féminine pour linsertion honorable de linfirmière dans lespace public, traditionnellement consacré aux hommes.
Mots-clés soins infirmiers, genre, histoire des sciences infirmières, mémoire.
Considerações iniciais
A instauração do Estado Novo no Brasil, em 1937, sob a liderança de Getúlio Vargas e o Nuevo Estado, na Espanha, em 1939, liderado por Franco, se caracterizam pela implantação de governos autoritários, com significativas repercussões sobre as instituições, os costumes e as relações de gênero. A nova ordem social, em consonância com a ideologia fascista demandou uma série de estratégias políticas e simbólicas, com vista a dar sustentação ao novo regime, ao tempo em que reforçava a idéia de que a democracia liberal estava totalmente aniquilada.
Tais estratégias, entre outras finalidades, visavam construir a imagem de um líder criador e dirigente de um novo projeto de nação, mediante a utilização de signos exteriores como indumentárias e monumentos arquitetônicos, ou através de novos hábitos, de modo a garantir a disseminação social do mito, mediante o reconhecimento tácito da consagração pública.
No que concerne à condição feminina, no Brasil e na Espanha, tanto o franquismo como o varguismo, instaurados após um processo político democrático, foram convergentes no sentido de reafirmarem uma ideologia e uma política centrada no regresso da mulher ao lar, consubstanciada na glorificação da maternidade e no papel da mulher como núcleo essencial da sociedade (Gracía e Ruiz, 2004: 82), de modo a estabelecer uma sociedade hierarquizada, onde as mulheres ocupariam as funções conformes à sua natureza feminina, as quais eram fundamentadas pelas diferenças biológicas entre o masculino e o feminino.
A Igreja Católica teve um papel importante no processo de socialização da mulher no âmbito do novo regime, não somente no que se refere à influência projetada através das vivências ligadas à prática cotidiana da religião, mas também na prescrição de comportamentos que orientavam a forma adequada de vestir-se e as atitudes que teriam como referentes a pureza e a decência moral (Gracía e Ruiz, 2004: 93).
Desse modo, no Brasil e na Espanha, a interação de poderes e o recíproco apoio entre o Estado e a Igreja contribuíram para a manutenção da nova ordem política, mediante o reforço simbólico desta ordem, em que os princípios antagônicos da identidade masculina e feminina se inscreveram através de uma disciplina relativa à adoção, pela mulher, de posturas, trajes e espaços convenientes.
Ademais, para a Igreja Católica, a diferença entre homens e mulheres era de origem divina e ambos os sexos se complementavam, sendo o homem portador da razão, inteligência e reflexão enquanto que a mulher possuía a intuição e a sensibilidade (Dueñas, 2003: 106). Não obstante, as qualidades intrínsecas à natureza feminina, que eram continuamente evocadas para excluir as mulheres dos espaços públicos, contribuíram para legitimar a saída honrosa da mulher da esfera privada, visando sua atuação em profissões tradicionalmente ligadas à sua condição feminina, em face da natureza do trabalho prestado.
Nesse sentido, em que pese as diferenças relativas às repercussões das ditaduras de Franco e de Vargas no processo de institucionalização da enfermagem no Brasil e na Espanha, o presente estudo parte da premissa de que a incorporação de estratégias de devoção religiosa e de exaltação de atributos inerentes à natureza feminina, expressos de forma ritualística, ao tempo em que ratificou a divisão sexual do trabalho também contribuiu para legitimar a inserção da primeira profissão eminentemente feminina no campo da saúde.
Diante disso, foram elaborados os seguintes objetivos: descrever as principais características dos regimes ditatoriais do Brasil e da Espanha e caracterizar algumas implicações dessas ditaduras para a enfermagem brasileira e espanhola.
Metodologia
Trata-se de um estudo histórico-social que teve como referência téorica o pensamento do sociólogo francês Pierre Boudieu. Sua obra analisa as divisões constitutivas do mundo social, baseada nas oposições entre o masculino e o feminino, as quais funcionam como estratégias simbólicas que ratificam a dominação masculina. Assim, as estratégias que evidenciaram as relações de dominação masculina e as tentativas de contestação dessa dominação foram temas abordados na análise dos achados.
As fontes históricas foram constituídas de documentos escritos localizados no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery (Universidade Federal do Rio de Janeiro), situada no Rio de Janeiro, Brasil e na Biblioteca Nacional de Madrid. A coleta dos dados foi realizada no período de 01 de fevereiro a 30 de maio de 2008. Os livros e artigos que abordam a temática do estudo foram utilizados para a compreensão do contexto histórico referente à temática, com destaque para a condição feminina.
Os achados foram classificados, contextualizados e interpretados à luz do referencial teórico adotado, o que permitiu a construção de uma versão original sobre alguns aspectos relativos a história de mulheres e enfermeiras que lutaram por visibilidade nos espaços públicos consagrados aos homens.
Resultados
O tom de uma nova ordem social
Estado Novo na historiografia brasileira representa o período ditatorial que, sob a égide de Getúlio Vargas, teve início com um golpe de estado em 10 de novembro de 1937, vigorando até 29 de outubro de 1945, com a deposição de Getúlio Vargas. Cumpre ressaltar que Getúlio Vargas permaneceu no poder durante quinze anos, sucessivamente, inicialmente como chefe de um governo provisório (1930-1934), depois, presidente eleito por voto indireto (1934-1937) e por fim, ditador (1937-1945), sendo deposto em 1945 (Boris, 1996: 351).
A expressão Estado Novo foi empregada pela primeira vez por Oliveira Salazar, no início da década de 1930, para justificar o regime autoritário português. Sua utilização alguns anos depois no Brasil, assim como a incorporação à Carta Constitucional de 1937 de dispositivos das constituições de regimes totalitários da época, chegou a ser apontada como evidência da subordinação ideológica da ditadura de Vargas ao fascismo europeu, uma vez que a matriz ideológica era a mesma, no sentido de que ambos os regimes se fundamentaram a partir de uma visão autoritária de governo e de organização de sociedade.
A ditadura de Francisco Franco foi implantada em 1939, como conseqüência da guerra civil espanhola, em que Franco foi vitorioso, derrotando a Frente Popular. Assumindo o poder, o governo espanhol adquiriu contornos autoritários, revelando também semelhanças com o fascismo. As idéias corporativas do regime que foram fixadas pelos Fuero del Trabajo (1938) enalteciam a família, o sindicato e a sociedade.
O franquismo e o varguismo foram convergentes, no sentido de criticar a democracia parlamentar, a pluralidade de partidos e a representação autônoma de interesses. Desse modo, a condenação do modelo republicano anterior foi acompanhada de sua estigmatização, sob a acusação de ter determinado a perda de valores tradicionais, entre eles a família e o lar, tema chave para definir a dicotomia nova ordem versus republicano. A recuperação do sentido cristão da família, fundada na recuperação do papel feminino tradicional, foi um objetivo partilhado pelos diferentes componentes do regime (Gómes-Ferrer et al., 2006: 218).
Não obstante, a ditadura do Estado Novo de Vargas apresentava pontos divergentes em relação a ditadura do Novo Estado de Franco no que dizia respeito às práticas políticas concretas, quais sejam a inexistência de partido único e a não-uniformização da elite dirigente. Além disso, no caso brasileiro, o Estado Novo prescindiu de qualquer mecanismo, ainda que formal, de legitimação, uma vez que o plebiscito previsto na Carta de 1937 nunca chegou a ser realizado.
No Estado Novo, o poder pessoal de Vargas se consolidou mediante estratégias que visavam a personificação do mito, com a ajuda do Estado. O controle dos meios de informação através do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939, mesmo ano da implantação da ditadura de Franco, estimulava o culto ao Estado e disseminava rituais coletivos que exaltavam sempre a figura de Vargas. Eram organizados desfiles, manifestações e programas de rádio que se encarregavam de comemorar o aniversário do ditador, em 19 de abril, com vistas a enaltecer suas qualidades pessoais (Camargo, 1999: 17).
No caso espanhol, a reafirmação do triunfo franquista se materializava mediante a leitura de acontecimentos e culto aos heróis que, selecionados de acordo com critérios religiosos e patrióticos, comportavam a exaltação de comportamentos e estilo de vida do passado (Gómes-Ferrer et al., 2006: 221). No caso brasileiro, a propaganda do Estado Novo, centrada na figura de Vargas, se configurava como um jogo complexo que buscava atrair, em uma comunidade fragmentada politicamente, os níveis máximos de consensos possíveis.
Nesse sentido, as chamadas condições litúrgicas, ou seja, as prescrições que regem as formas das manifestações das autoridades, como as etiquetas das cerimônias, os códigos dos gestos e os ordenamentos dos rituais (Bourdieu, 1998), constituem o elemento visível de um sistema de condições que visam determinar a impressão que os outros devem ter dos atributos e de seus portadores, uma vez que os rituais consagram e sancionam uma diferença social, para torná-la conhecida e reconhecida pelo agente investido e pelos demais.
Além disso, no Brasil e na Espanha, instrumentos de ação educativa como o cinema e o rádio garantiram a comunicação direta entre o governo e a sociedade, através da inculcação de hábitos coerentes com a ideologia do regime, os quais visavam fortalecer o sentimento de unidade nacional que, em última instância, representavam as interações simbólicas entre os produtores e os consumidores de bens culturais.
Essas interações, mediadas pelos meios de comunicação, consagravam as relações assimétricas de poder, pois as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre relações de poder, que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidas nessas relações de poder e que permitem a acumulação de poder simbólico (Bourdieu, 1989: 11).
Assim, os meios de comunicação de massas atualizavam as relações de força entre os detentores do discurso legítimo e seus respectivos grupos, uma vez que «o porta-voz autorizado consegue agir com palavras em relação aos outros agentes» (Bourdieu, 1998: 100), pois sua fala concentra o capital simbólico (prestígio ou boa reputação que o indivíduo possui em um campo específico ou na sociedade em geral) acumulado que lhe conferiu a autoridade de falar em nome do grupo.
No que se refere à condição feminina, o Estado Franquista, como todos os fascismos europeus, legislou e produziu um discurso baseado na incompatibilidade biológica da mulher para exercer atividades laborais. No Brasil, em que pese as diferenças relativas à necessidade de mão-de-obra feminina em atividades reservadas às mulheres, a concepção de que a mulher era frágil e dotada de uma inteligência inadequada também justificava sua exclusão de espaços de poder tradicionalmente ocupados por homens.
Assim, a diferença entre os sexos que marcava os corpos e que determinava a classificação de práticas sociais, segundo distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino, contribuíram para a «institucionalização de propriedades de natureza social como se fossem de natureza natural» (Bourdieu, 1998: 99). Nesse sentido, a ordem social funcionava como uma máquina simbólica que ratificava a dominação masculina, mediante a consagração das diferenças entre o masculino e o feminino.
No que concerne a enfermagem brasileira e espanhola, a assimilação dos discursos masculinos dominantes que enfatizavam a existência de características intrínsecas à natureza feminina necessárias ao cuidado, ao tempo em que evidenciou a incorporação da relação de dominação pelas mulheres, também serviu como justificativa para sua saída honrosa do espaço privado.
Enfermeiras caridosas e patriotas
No que se refere ao trabalho feminino, no Brasil, no fim do século XIX, as irmãs de caridade se encarregavam de inúmeras atividades necessárias à sociedade, especialmente no campo da educação e da saúde. Elas foram as primeiras a exercer uma profissão, quando a maioria das mulheres era do lar.
Vale ressaltar que a separação entre Estado e Igreja, ocorrida com a proclamação da República (1889), facilitou a ampliação da intervenção governamental no campo da saúde e, no âmbito dessa intervenção, um acontecimento emblemático foi a reforma técnico-administrativa do Hospital Nacional dos Alienados (Rio de Janeiro), que iniciou o processo de secularização da enfermagem na sociedade brasileira (Sauthier e Barreira, 1999: 64).
O modelo de enfermagem moderna, implantado no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, em 1922, ocorreu sob a égide da saúde pública, no bojo de uma reforma sanitária liderada pelo cientista e sanitarista Carlos Chagas, então diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), criado em 1920. Nesse contexto, uma missão de enfermeiras norte-americanas foi trazida ao Brasil, com o objetivo de promover as inovações requeridas pelo departamento, consideradas necessária à efetivação da reforma sanitária em curso (Santos e Barreira, 2002: 137).
Essa missão permaneceu dez anos no Brasil (1921-1931), atuando de forma simultânea em três frentes de trabalho: na organização de um serviço unificado de enfermeiras de saúde pública; na criação de uma escola de enfermeiras, atual Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal do Rio de Janeiro, em conformidade com os padrões de ensino de enfermagem norte-americano e na reorganização de um hospital que serviria como campo de prática para as alunas da escola de enfermeiras (Barreira, 1997: 2).
A implantação desse novo modelo de enfermagem foi acompanhada por um conjunto de estratégias controladoras de atitudes e gestos, mediante as quais se pretendia obter um grupo homogêneo, de modo a enunciar um modelo de enfermeira (profissional, instruída e interventora entre o doente e o médico) para a sociedade brasileira. Na Espanha, os manuais escritos por médicos que eram utilizados pelas enfermeiras também pontuavam que a enfermeira era a intermediária entre o médico e o enfermo, sendo a mesma responsável pela execução do cuidado prescrito pelo médico (Tornel, 1938: 332).
Ao final da atuação da missão de enfermeiras norte-americanas no Brasil, em 1931, a Escola de Enfermagem Anna Nery obteve a condição de «Escola Oficial Padrão» (Decreto 20.109/31), para fins de criação e equiparação das demais escolas de enfermagem do país. Esse decreto vigorou até 1949 quando tal responsabilidade foi transferida para o Ministério da Educação e Saúde (Lei n.º 775/49).
Sob o ponto de vista da Igreja Católica Romana, o decreto 20.109/31 significou uma ameaça à sua hegemonia no campo da enfermagem, colocando em risco seu poder e prestígio, tanto na assistência, quanto na administração dos espaços hospitalares, uma vez que as freiras não possuíam a titulação de enfermeira. Desta forma, o decreto em tela contrariava os interesses das instituições religiosas, que, em paralelo, mantinham alianças com o Estado, no âmbito do governo Getúlio Vargas.
O Presidente Getúlio Vargas minimizou os efeitos do documento legal citado, mediante a assinatura de outro decreto (Decreto 22.257/32) que garantia às irmãs da caridade o direito de exercício das atividades como as profissionais formadas pela Escola de Enfermagem Anna Nery, bastando que comprovassem, até aquela data, atuação de, pelo menos, seis anos de prática efetiva de trabalho como enfermeira.
Não obstante, a Igreja Católica, mediante o reconhecimento do alto padrão de ensino conferido pela Escola de Enfermagem Anna Nery, promoveu o encaminhamento de religiosas para os cursos de enfermagem, com vistas à criação de escolas de enfermagem católicas (Baptista e Barreira, 1997: 35), pois até 1938 não havia sido criada nenhuma instituição de ensino de enfermagem católica, apesar de a Igreja Católica Apostólica Romana ter sob sua administração a grande maioria dos hospitais (Almeida-Filho, 2004: 21). Na Espanha, as religiosas também eram predominantes na assistência hospitalar, em face das numerosas ordens religiosas e ainda pela abundante e sempre disponível mão-de-obra mais barata (Santo Tomás, 1995: 86).
No que se refere ao processo de formação das religiosas, Laís Netto dos Reys (enfermeira católica formada pela Escola de Enfermagem Anna Nery em 1925), na condição de diretora da Escola de Enfermagem Carlos Chagas (1933-1938), empreendeu estratégias que viabilizaram a diplomação das primeiras religiosas, contribuindo diretamente para que a Igreja Católica fundasse a primeira escola de enfermagem católica do Brasil.
Não obstante, até 1938, apenas cinco religiosas eram enfermeiras diplomadas e todas formadas pela Escola de Enfermagem Carlos Chagas. O número diminuto de religiosas diplomadas parece ser explicado por suas dificuldades de adaptação ao cotidiano das escolas de enfermagem, ou talvez pela demanda de religiosas com tempo de escolaridade insuficiente para lograrem êxito nas escolas de enfermagem (Almeida-Filho, 2004, p. 65).
A indicação de Laís Neto dos Reys, pelo presidente da república, para dirigir a Escola de Enfermagem Anna Nery, em 1938, à época escola oficial padrão, se respaldava nas propriedades simbólicas a ela agregadas, mediante sua postura de católica praticante, o que demonstrava sua afinidade com o ideário da religião dominante e com o momento político da época (Almeida-Filho, 2004: 63).
Durante sua gestão como diretora da Escola de Enfermagem Anna Nery (1938-1950), Laís tomou providências para garantir às religiosas católicas um ambiente favorável à manutenção de seu cotidiano religioso, atendendo inclusive à solicitação da Provincial Irmã Blanchot, no sentido de criar uma capela nas dependências da Escola de Enfermagem Anna Nery. Subjacente à afinidade de Laís com a Igreja Católica, a provisão de uma capela em uma escola leiga é emblemática no sentido de evidenciar o monopólio do poder religioso sobre os leigos, o qual assegurava a conservação e a difusão dos bens religiosos.
Laís Netto dos Reys também expressava sua afinidade com a Igreja Católica mediante o uso do véu, em substituição à tradicional touca da enfermeira, nos atos acadêmicos que participava, na Escola de Enfermagem Anna Nery, na condição de diretora. Ademais, o véu, como «instrumento de pudor» (Perrot 2007: 56) atenuava os efeitos sedutores provocados pelos cabelos das mulheres, conferindo às mesmas uma credencial de decência.
No caso espanhol, o véu possibilitava e controlava a presença feminina no espaço público, uma vez que a moralidade pública, em especial, a feminina, traduzida na forma de se vestir e de se comportar, foi objeto de preocupação da Igreja Católica. Nesse sentido, a religião impregnava a vida civil de maneira ostensiva em face da identificação entre o catolicismo e o regime. Além disso, a não participação em atos religiosos se constituía em um risco de ser confundido como opositor ao regime franquista (Galán, 2008: 54)
Assim, além da significação religiosa, o «véu como símbolo de dominação das mulheres e de seu corpo» (Perrot, 2007: 58) evidenciava também a hierarquia entre os sexos, a qual era imposta mediante uma permanente disciplina relativa ao uso do corpo, trajes e penteados adequados, uma vez que as divisões constitutivas do mundo social e, mais precisamente, as relações sociais que são instituídas entre os gêneros se inscrevem sob a forma de hexis corporais opostas e complementares e de princípios de visão e divisão que classificam as práticas sociais segundo oposições entre o masculino e feminino.
Essa repartição de papéis e qualidades impostas às mulheres inicia-se já no âmbito da vida familiar, onde tacitamente se estabelece para a mulher o papel de cuidadora dedicada dos diferentes membros da família (Siles e Solano, 2007: 70). Nesse sentido, no Brasil e na Espanha, a profissionalização da enfermeira se respaldava na necessidade do cuidado feminino que, ao mesmo tempo que legitimou a inserção da mulher no espaço público, também contribuiu para reafirmar as divisões sexuais do trabalho, em face da natureza dos cuidados prestados e de sua origem.
Desse modo, no Brasil e na Espanha, a valorização de atributos femininos no exercício da profissão orientava o trabalho cotidiano da enfermeira. Linha de pensamento coerente é encontrada no Hino da Enfermeira Brasileira, entoado desde a diplomação da primeira turma de enfermeiras da Escola de Enfermagem Anna Nery, em 1925: «E toda a enfermeira nos votos seus será mensageira do amor de Deus». «... dispensa guarida, consolação... é lema de nossa vida e glória de nossa profissão».
No caso espanhol, a enfermeira da época apresentava qualidades de perfeita dona de casa e valores tradicionais de submissão, dedicação e abnegação diante das necessidades do enfermo e do médico (Santo Tomás, Pérez 1995: 85). Essa assertiva encontra respaldo nos manuais dirigidos às enfermeiras, os quais destacavam que sua missão principal era a de atender aos enfermos com altruísmo. Além disso, pontuavam a necessidade de absoluta obediência aos médicos (Tornel, 1938: 172).
Além da divulgação de atributos religiosos agregados à imagem da enfermeira, a vinculação entre patriotismo e enfermagem foi uma estratégia bem sucedida no sentido de justificar a participação feminina no espaço público. Tanto assim que o prospecto de divulgação do curso da Escola de Enfermagem Anna Nery, veiculado em 1922, intitulado «A Enfermeira Moderna: apelo às moças brasileiras», conclamava às mulheres a servirem à pátria através da enfermagem: «O Brasil precisa de enfermeiras e convida-vos ao desempenho do maior serviço que uma mulher bem educada e prendada pode prestar».
No curso da vinculação da imagem da enfermeira brasileira à pátria, evidencia-se a participação de sessenta e sete mulheres na Força Expedicionária Brasileira, por ocasião da 2.ª Guerra Mundial, no cuidado aos feridos nos campos de batalha. Na Espanha, a difícil situação sanitária do país, no bojo da guerra civil espanhola (1936-1939), também demandou a necessidade de enfermeiras que, preparadas em cursos rápidos, foram denominadas: enfermeiras de guerra, enfermeiras de campanha e enfermeiras militares (Santo Tomás, 1995: 82).
Vale ressaltar que, apesar da presença feminina no cenário da guerra, as divisões simbólicas dos sexos se tornavam mais sólidas e visíveis, pois, «em tempos de guerra, os homens estão na frente da batalha, as mulheres na retaguarda» (Perrot, 1998: 143). Nesse sentido, as guerras, profundamente conservadoras, reafirmavam as representações mais tradicionais das diferenças entre os sexos.
Considerações finais
No Brasil e na Espanha, a moral feminina, fundamento da ordem social, consagrava a necessidade de reclusão da mulher no espaço doméstico, em estado de dependência simbólica, femininas à expectativa masculina, cuja missão era o cuidado da casa e da família.
Não obstante, as demandas sociais, políticas e sanitárias possibilitaram o exercício em público das qualidades maternais de mulheres, através do cuidado aos doentes, principalmente em situações de calamidades e de guerras, contribuindo para a visibilidade de um modelo de enfermeira respaldado em aspectos religiosos e patrióticos. Além disso, as enfermeiras, religiosas ou leigas, eram regidas por códigos bastante precisos relativos à sua indumentária e à maneira de usar o corpo, de modo a construir uma ética e uma estética consoante com a condição feminina da época.
À guisa de considerações finais, no Brasil e na Espanha, os dados analisados evidenciaram que os atributos intrínsecos à natureza feminina e necessários ao cuidado do ser humano, ao mesmo tempo que expressaram e reafirmaram as oposições fundantes da ordem simbólica, através da dicotomia entre o masculino e o feminino, contribuíram para a atuação honrosa da mulher no espaço público, mediante a visibilidade das qualidades consideradas dignificantes da imagem feminina.
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Tânia Cristina Franco Santos, Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta da Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal de Rio de Janeiro/Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Estágio Pós-Doutoral na Escuela Universitaria, Departamento de Enfermería, Universidad de Valladolid. Membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira.
Magdalena Santo Tomás Pérez, Professora Titular da Escuela Universitaria. Departamento de Enfermería, Universidad de Valladolid. Membro ordinario do GIR (grupos de investigación reconocidos): Historia de género y de las mujeres «Leticia Valle».
Aline Silva da Fonte, Enfermeira. Aluna do Curso de Mestrado da Escola de Enfermagem Anna Nery/Universidade Federal de Rio de Janeiro/Brasil. Membro do Núcleo de Pesquisa de História da Enfermagem Brasileira.
María del Rocío Catalina García, Aluna. Escuela Universitaria. Departamento de Enfermería, Universidad de Valladolid.
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Artigo recebido em 31 de Maio de 2008 e aceite para publicação em 7 de Outubro de 2008.