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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.20 Vila Franca de Xira  2009

 

Introdução

Um lugar feminista queer e o prazer da confusão e fronteiras

 

João Manuel de Oliveira e Conceição Nogueira

Centro de Investigação e Intervenção Social/ISCTE
Escola de Psicologia, Universidade do Minho

 

As profundas alterações conceptuais que vieram a reposicionar o modo como o género é constituído socialmente surtiram efeitos inesperados na teoria feminista. Com o desenvolvimento do pensamento feminista, os adquiridos conceptuais que dividiam o sexo e o género seguindo os ditames do nature versus nurture debate (o debate natureza versus cultura), em que o sexo era todo biologia e o género todo cultura, sofreram profundas alterações com as propostas assentes na ideia de que o sexo e a sua materialidade só têm sentido no quadro de uma
inteligibilidade imposta pelas normas de género. Uma das grandes marcas conceptuais deste projecto feminista é a grande desconfiança em relação à essencializada e quintessencial figura da «mulher» enquanto «sujeito» do feminismo, criticada pela sua homogeneização de todas as mulheres a uma figuração que ignora a heterogeneidade das mulheres e as subsume a uma abstracção.

As propostas assentes na performatividade permitiram introduzir as análises que consideram o modo como o poder reiterativo dos discursos produz e constitui os fenómenos que regulam, como mostra a obra de Judith Butler. Assim, deixa de ser possível pensar a materialidade dos corpos, sem as normas que regulam essa materialidade e lhes atribuem significado. Para Butler, o género opera num sistema de normas e as performances de género partem dessas normas para se concretizarem em consonância ou para as tentarem ressignificar, no caso de performances subversivas de género como sejam o drag ou as afirmações queer.

Esta perspectiva da performatividade implica pois uma particular atenção ao modo como as subjectividades se constroem a partir de normas. No caso do género, estas normas incluem a constituição de identidades, tidas como essenciais, constantes e imutáveis, assentes num esquema binário e dimórfico que as constrói em masculino e feminino. Mas incluem também um regime de heterossexualidade hegemónica, constitutivo desta ordem de género e que regula a produção de sujeitos sexualmente diferenciados e heterossexuais.

É no plano da contestação a esta heteronormatividade que surgem as contestações queer (em inglês, pode ser traduzido como estranho, esquisito, mas também como um insulto dirigido a homossexuais e trans). Este termo que é inicialmente uma injúria visa interpelar e inferiorizar quem por esse termo é nomeado. A ressignificação a que esse termo foi sujeito implicou uma reapropriação da historicidade desse termo, citando esse passado injurioso, mas através da ressignificação, o termo passa a ter uma carga de contestação colectiva, como evidencia também Butler.

Teoricamente o termo queer é uma marca de suspeita crítica face aos termos gay e lésbica. Uma suspeita que vem da consideração sobre as identidades serem vistas como essenciais e fixas, mas também das categorias teóricas que decorrem destas identidades. A proposta é que o conceito queer possa desestabilizar as certezas da teoria. Em certa medida, @ queer é uma estratégia de resistência, permitindo a recusa das identidades fixas de gay/lésbica e a criação de uma suspeição generalização em relação ao binarismo que a ordem de género heterossexual introduz.

As perspectivas queer que se vão desenvolver vão manter a recusa da fixidez identitária, a denúncia da ordem de género heterossexual e criticar os processos naives de constituição de sujeitos que encontramos na psicologia, psicologia social e sociologia, por não tomarem em conta as relações de poder e as normas a partir das quais nos tornamos sujeitos. Num debate que é, acima de tudo, transdisciplinar são assim discutidos os fundamentos das teorias que deram origem aos estudos de género e aos feminismos contemporâneos.

É aproveitando este caminho, que foi sendo feito por estas propostas conceptuais, que se inicia a proposta para o dossier temático que se segue. Propusemos um dossier que examinasse os processos de constituição do género, na confluência das perspectivas feministas e das perspectivas queer. Este projecto tem como companheiro um projecto anterior, sob a direcção de Ana Cristina Santos, um número temático da Revista Crítica de Ciências Sociais sobre «Estudos «queer»: Identidades, contextos e acção colectiva». Pretendemos organizar este, na Ex-aequo, no sentido de clarificar as convergências e divergências entre os feminismos críticos e a teoria queer.

Os primeiros três artigos relacionam-se com o feminismo queer e com a crítica às disciplinas. Um tema genérico aos três poderia ser a Crítica Queer: feminismos e os saberes. O primeiro artigo da autoria de João Manuel de Oliveira, Pedro Pinto, Cristiana Pena e Carlos Gonçalves Costa revisita os feminismos e a teoria queer, propondo os feminismos queer como a condição para a viabilidade de um projecto feminista, crítico da diferença sexual enquanto episteme e valorizador das múltiplas alianças que se podem construir no plano conceptual desta inter-relação. Esta revisitação implica um trabalho genealógico e crítico, a que os autores procedem como forma de tornar conhecidas as valências destas propostas para uma teoria do género assente nas multitudes queer e profundamente crítica da diferença sexual. O trabalho de Salomé Coelho parte de pressupostos semelhantes, mas imbrica-se mais profundamente na obra de Beatriz Preciado, que analisa detalhadamente, mostrando o modo como os feminismos queer permitem um re-enquadramento conceptual de questões que outros feminismos trataram como tabu ou mesmo crime, como é o caso da pornografia, que a autora analisa. Numa perspectiva crítica da psicologia lésbica, gay, bissexual, transsexual, transgénero e intersexo, Victoria Clarke e Elizabeth Peel oferecem-nos um contributo para uma queerização cautelosa dessas psicologias, mostrando as vantagens e as desvantagens dessa abordagem. As autoras ilustram as valências das perspectivas queer enquanto manancial crítico e renovador das disciplinas, sem contudo abdicarem das cautelas políticas em relação aos efeitos da queerização.

Um segundo bloco de textos poderia denominar-se de Praxis Queer e Performatividade, pois dedica a sua atenção a estudos empíricos e não é tão centrado no estrito debate teórico. O primeiro artigo deste bloco é de Francesca Rayner que nos oferece uma leitura da peça de Sarah Kane «Cleansed», onde se tematiza a relação entre as performances de género e a violência. Assim, neste trabalho, a análise de Rayner mostra como a falha em cumprir a performance de género implica consequência violentas. Já no domínio da vídeo-arte, o contributo de Teresa Furtado permite mapear o modo como determinados contributos de vídeo-artistas mulheres se constituem como estratégias de contestação das categorias de género e de transgressão dos limites que o patriarcado lhes impõe.

A pesquisa de Ana Brandão sobre as identidades de mulheres lésbicas portuguesas mostra como as suas narrativas recorrem a uma noção identitária que na maioria dos casos poderia ser descrita como essencialista. Outras entrevistas, mais associadas a mulheres de classes sociais mais elevadas e com maiores recursos simbólicos, apelam também a explicações mais construtivistas. O cruzamento a que a autora procede entre classe social e identidade ilumina estas diferentes formas de apresentação do self.

O trabalho de Ana Cristina Santos traz-nos uma contribuição no plano da análise do movimento LGBT em Portugal. A autora discute as performatividades queer dentro do movimento e o modo se coadunam com exigências e expectativas face à esfera pública. Assim, a autora avança com a hipótese de que o próprio activismo LGBT apresenta algumas características decorrentes de ideologias heteronormativas, equacionando esta leitura com questões de orientação estratégica do movimento. No plano da performatividade do género, mas no espaço da escola, Maria do Mar Pereira apresenta um estudo em que a negociação do género entre jovens de uma turma do 8.º ano é estudada a partir de uma perspectiva performativa. Esta etnografia feminista encara o género não como um produto acabado, fruto da socialização, mas como um processo em curso, permanentemente inacabado.

Um último bloco, de textos curtos, com carácter testemunhal e ligados a experiências de intervenção poderia ser denominado de Guerrilha Feminista e Queer. Para esta secção, pedimos a associações LGBT e a activistas queer a sua contribuição. Chegaram-nos estes três textos, ricos no modo como problematizam as questões teóricas e as práticas de intervenção queer e feministas. Abrimos com um texto de Marisol Ramírez Fernández e Mónica Arana Serrano que nos falam da sua experiência de organização da LadyFesta de Bilbao, uma festa feminista e lésbica, assente na autogestão e no trabalho político. Regressamos a Portugal, onde pelas mãos de Bruno Maia, Patrícia Louro e Sérgio Vitorino (Panteras Rosa), é apresentada uma visão do movimento LGBT português e a relação entre as questões queer e as práticas políticas, criticando aquilo a que denominam da política do possível. Encerramos esta secção e parte propriamente temática deste número com um texto de Cristiana Pena, sobre a sua experiência autobiográfica de activismo feminista e queer digital que termina com a ideia de que no espaço da internet é possível construir autoficções políticas que transgridem as fronteiras do género.

Após a apresentação deste número, cumpre-nos apenas o regozijo. Enquanto coordenador@s do dossier «Fazer o Género: performatividade e perspectivas queer», queremos agradecer tanto o trabalho d@s autor@s, como das pessoas que fizeram a revisão e da direcção da revista pelo apoio inestimável que nos deu. Queremos salientar a diversidade de trabalhos apresentados e a evidência inquestionável que oferecem de que tanto as perspectivas performativas como as perspectivas queer fazem parte das pesquisas sobre estudos de género, estudos feministas e estudos sobre a sexualidade em Portugal. Trata-se de um regozijo da ordem do prazer na confusão de fronteiras, como poderia dizer Donna Haraway. Apresentamos assim este número e queremos terminar deixando umas palavras de ordem já muito ouvidas nas manifestações queer, a que acrescentamos a nossa marca feminista, mas que vem a propósito desta indisciplina queer feminista crítica que quisemos trazer às leitoras e leitores da Revista Ex-aequo:

We’re here! We’re feminist queer! Get used to it!1

 

 

Notas

1 Estamos aqui! Somos/Estamos Feministas Queer! Habituem-se!

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