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Ex aequo
versão impressa ISSN 0874-5560
Ex aequo n.21 Vila Franca de Xira 2010
Testemunho nomear a aurora sem ela
Marijke de Koning*
Fundação Cuidar o Futuro
Il faut être deux ou, du moins, hélas ! il faut avoir été deux pour comprendre un ciel bleu, pour nommer une aurore!1
Gaston Bachelard
Ela
Maria de Lourdes Pintasilgo é uma presença incontornável na minha vida, desde que a conheci em 1969. No dia 10 de Julho de 2004, a sua presença enquanto Tu constituinte, da minha relação Eu-Tu com ela, utilizando as palavras-princípio de Buber (Buber,1969), transformou-se para sempre numa Ela, sem mais. Naquela madrugada deixou de ser possível com Ela enquanto Tu, nomear a aurora. A Tu do Eu-Tu passou a ser definitivamente um Tu transformado em Ela. Ela tornando-se um Isso.
«Maria de Lourdes Pintasilgo foi uma pessoa de afecto inclusivo» (Koning, 2009:3). Entre Ela e Eu existiu uma relação Eu-Tu, por definição, exclusiva. Uma das muitas relações que pelo mundo fora fazia parte das redes polifónicas abrangidas pelo afecto inclusivo dela.
Os textos em que escrevo sobre Ela permitem-me sair temporariamente do mundo em que Ela está ausente enquanto Tu. Através do acto da minha escrita sobre Ela, entro num ailleurs, em que existe de novo a tensão entre continuidade e descontinuidade, tensão estruturante de todas as relações Eu-Tu.
Mas, escrever sobre Ela pode intensificar o seu estado de Isso, pelo facto de a transformar num conteúdo. Como não a «conteúdizar»? Como não reforçar o seu estado Isso, quando escrevo sobre alguém que foi Tu para Eu?
Quando Eu, Marijke, me dirijo no texto a Tu, Maria de Lourdes, que fora do texto já só existe enquanto Ela na relação Eu-Isso, construo uma continuidade do Eu-Tu. Assim, escrevendo, entro num novo devir com Ela enquanto Tu.
Já escrevi alguns textos em que Eu me dirijo à Tu, como o texto lido por mim no sétimo dia após a sua morte:
Minha querida amiga Maria de Lourdes
Tento
Tento escrever sobre o papel branco
Papel vazio de palavras
Papel que esconde um mar de memórias
Fortes e dispersas
Dizer
Tento
Tento dizer Maria de Lourdes
Dizer o sentido da sua vida para mim
Sei que não vou conseguir já
mas prometo que não me calo
Dizer
Escrever
E o texto «Algures com Maria» no livro Maria de Lourdes Pintasilgo. Retratos sem moldura de Helena Silva Costa:
Maria,
Vários dos seus livros de poesia encontram-se num armário com portas de vidro, junto de outros que tinham um valor especial para si, como o livro Du domaine, de Guillevic.
Des journées/A voir sétirer le temps2 (Guillevic 1977:19). «Est-ce dicible ?» escreve na margem do texto. A sua pergunta faz-me olhar pela janela enorme do domaine que foi o seu apartamento em Lisboa. Janela a abrir sobre o domaine do mundo que para si era do tamanho de uma aldeia. Lembra-se que às vezes me telefonava à hora do pôr-do-sol quando o dia se preparava para se apagar noite dentro? Para dizer a beleza da luz e o tempo que passava devagar. Falávamos de muitas outras coisas. Agora, quatro anos mais tarde, ma chère Maria, a sua presença luminosa intensifica-se à procura de luzes que possam cantar consigo um cântico de profeta. Quand une lumière/Rencontre une autre lumière. /On entend monter/ Un chant de prophète3 (27).
Com Ela nomear a aurora
Under the shadow
of the tall pine trees
there are no strangers4
Maria de Lourdes Pintasilgo
A presença de Ela na minha vida foi «Luminosa e profética», «desafiadora» mas também «perturbadora» (Dacosta, cit. em Koning 2005: 78). Incómoda pela exigência que colocava em cada iniciativa a realizar e pelo que esperava das pessoas que trabalhavam com ela. No tempo disponível de uma relação Eu-Tu estruturada por uma «missão comum» não nos podíamos «distrair», distracção no sentido de falta de atenção para com o trabalho a fazer, trabalho que nos (re)unia. A aurora que iluminava a nossa missão comum tinha Deus ou o Mistério ou o Sagrado no seu horizonte.
Maria de Lourdes Pintasilgo foi junto de mim também testemunho do Mistério de Deus. Após a sua morte encontrei no seu quarto uma pasta com um texto seu que estava a retrabalhar. Texto manuscrito em francês de 14 páginas e datado de 2 de Dezembro 1983. Começa com duas perguntas: «Oú est Dieu aujourdhui? Qui la vu et pourrait en rendre compte ? (Si, 43.31).» Na página 6 sublinha uma outra sua pergunta:
«Et sil y avait un humain si totalement, si universellement humain quil briserait toutes les frontières et deviendrait le terme infini, devenait Dieu?»
«Sen rendre compte», como tentam os autores do livro Deus no século XXI e o futuro do cristianismo, coordenado por Anselmo Borges. Livro fascinante e trabalhado por nós durante o inverno de 2008 no grupo do Graal do Porto. «Sen rendre compte» no mundo de hoje e no contexto da tradição cristã, sabendo que
«nenhuma [religião] nem todas juntas ( ) possuem [o Sagrado], e de que o que, antes de mais, une todos os homens e mulheres é a humanidade, implicando, consequentemente, esse diálogo [inter-religioso] uma praxis a favor do Humanum, critério decisivo da verdade das religiões» (Borges, 2007: 8).
«Deste diálogo fazem parte também os ateus, pois são eles que permanentemente advertem os crentes para o perigo da idolatria e da desumanidade e a idolatria é pior do que o ateísmo» (ibidem: 14).
Ela desafiava-me a estar atenta, também a este horizonte do Sagrado no meu nomear a aurora. Um exemplo da sua exigência às vezes perturbadora para comigo é um episódio que vivemos em Amesterdão em Dezembro de 1994 após um encontro no âmbito do Graal, da rede europeia Lien, sobre o tema Segurança: contextos diferentes diferentes definições. Maria de Lourdes fez a introdução ao tema. Durante a conversa de grupo falou-se entre outras coisas do papel das religiões. Não me lembro do que terei (não) dito, só da sua pergunta e da minha resposta, já na rua, após o encontro: «Tens assim tanta dificuldade em dizer Deus?»
«Sim, tenho.» Acho que ficámos ambas perturbadas. Ela, que fez de Deus o centro da sua vida. Eu, em Amesterdão, na Holanda, distante de Portugal, país em que, em muitos contextos, ainda se podia falar em Deus num registo de uma certa «evidência». Nas ruas da minha terra, longe das sombras dos pinheiros que, em Portugal, protegiam as nossas conversas da luz demasiada do sol, era como se Ela se tornasse estrangeira para mim.
Talvez tenhamos ficado perturbadas porque fazíamos parte deste «entre-lugar» ou «trans-lugar», que é o Graal, movimento internacional de mulheres de inspiração cristã. Devia eu, mulher enraizada na tradição cristã, com tempo partilhado com Ela em iniciativas do Graal, ter sabido (ou ter querido) «dizer Deus»?
«À pessoa compete, se tem fé, tornar-se testemunha junto dos outros da sagrada notícia. ( ) Mas muitos como eu, que não têm força nem fé, podem ao menos reconhecer nestas pessoas a impressão digital, a pegada de Deus. Desta forma também alguém que tem dificuldades em acreditar no céu, se pode tornar testemunha indirecta. Ainda que não tenha visto Jesus elevar-se no ar, pode dizer que viu a força da fé descer sobre um seu semelhante. Pode dizer que viu num outro a notícia» (Luca, 2009: 28-29).
É sobre este (não) saber ou (não) ser capaz de dizer «Deus» que gostava hoje de falar com Ela. Ela, testemunha directa Dele, Eu talvez, às vezes, indirecta.
Da aurora
Se voar nas asas da aurora,
se habitar nos confins do oceano,
mesmo ali a vossa mão me guiará
a vossa mão direita me sustentará.
Salmo 138
Maria de Lourdes,
Quando em Setembro de 2007 estava na Holanda, a minha mãe telefonou-me, entusiasmada, manhã cedo, do nono andar onde vivia, dizendo: «Agora vi uma coisa tão milagrosa. Levantei-me cedo e de repente havia aquela luz vermelha no horizonte. Primeiro vi um tracinho pequeno, depois um bocado grande que se transformou numa bola enorme encarnada. Foi lindo.» Quando a minha mãe morreu, pouco tempo depois, li, na celebração de despedida que teve lugar na igreja onde ela foi baptizada e onde se casou com o meu pai, as seguintes linhas de Huub Oosterhuis:
«Pernoitamos na sombra uns dos outros/acordamos na primeira luz./ Como se alguém nos chamasse pelo nosso nome» (Oosterhuis, 2005: 105).
Tal como Tu, a minha mãe tinha uma confiança grande em Deus. A existência de Deus era para ela mais inquestionável do que para mim. Lembro-me que uma das primeiras conversas consigo, em Paris em 1969, foi exactamente sobre as minhas muitas dúvidas.
«Que seria de mim, sem o entusiasmo?» escreve, Maria de Lourdes, lembrando que: «entusiasmo significa etimologicamente a confiança em Deus. Não é uma externalidade com que se possa ligar como se fosse apenas um acessório» (Pintasilgo 2005: 173-174). Talvez fosse isso que a perturbou em Amesterdão: se (a confiança em) Deus não fosse um acessório, seria impossível não saber dizê-lo. Podemos pernoitar na sombra, mas é para acordar na luz. Talvez achasse, Maria de Lourdes, naquela rua do meu país, que eu ainda não me tivesse libertado «da exterioridade sufocante e opressora» (Pintasilgo, 2005: 124) do deserto espiritual em que se arriscava transformar a vida. Parafraseando o grande místico do século XVII Angelus Silesius, Maria de Lourdes fez de Deus o centro da sua vida. Talvez estivesse a pensar:
«Je ne peux prétendre voir Dieu si je ne peux pas en rendre compte dans nimporte quel coin de la terre. Ma foi est contextuelle, non seulement ni principalement à un espace mais à un temps, celui que je vis» (Pintasilgo, 1983: 12).
Perante o meu não nomear Deus a que assistiu naquele momento e naquele «coin» em Amesterdão, quero tentar mobilizar algumas palavras, alguma «intensidade-de-entusiasta», com o desejo de devir «pessoa inteira, tornada voz» (Pintasilgo 2005: 125). Sempre na tentativa de (re)construir a minha autenticidade à luz de um horizonte de referências que me transcende, em que Tu foi para Eu «mãe simbólica e filosófica» (Koning, 2006), não em detrimento da minha emancipada autonomia, mas reconhecendo Tu-mãe-simbólico-filosófica como uma das múltiplas condições estruturantes de que «dependia» para ir construindo a minha autonomia. Embora também eu não tenha «grande apreço pelas metáforas familiares», embora também ache que «no plano humano só pode haver relações verdadeiras se forem horizontais» (Henriques 2007: 212), penso que a assimetria que a metáfora mãe introduz na descrição da nossa relação, tenha a «função» de explicitar, paradoxalmente, que a assimetria era constitutiva da horizontalidade da nossa relação. Uma relação Eu-Tu, por definição horizontal, mas atravessada por uma Ela tão além do Eu, que seria insensato pensar em termos de simetria. Tu tão além do Eu em termos de conhecimentos, saberes e experiência, mas tão próxima em termos de afecto.
Talvez pudesse formular a minha relação Eu-Tu com Ela desta forma: equilíbrio instável e fascinante entre assimetria e horizontalidade.
Nomear a aurora?
«Silêncio: tal é o lugar. Silêncio teológico; silêncio de toda a linguagem sobre Deus; grande silêncio do ser humano sobre o aquém e o além, sobre o conhecido e o desconhecido, pois nenhum saber conhece de antemão, nenhuma prática assegura a certeza. Mas porque o ser humano vive, esse silêncio não é outro senão a palavra inaugural: aquela que, esgotados todos os recursos da linguagem, mergulha na paz mais profunda, comunica a vida, dá à luz» (Bellet, 1980, citado em Mudar a Vida 35, «Dizer Deus 2»: 3)
A nossa amiga Mimi Marechal, que no Centro do Graal Tiltenberg na Holanda introduziu sessões de budismo zen, fala no conceito japonês wabi que significa algo como «beleza através da sobriedade e da pobreza». Uma sobriedade escolhida e cultivada: «o viver consciente de uma ausência e experimentar esta ausência como algo de bom, como causa e alegria» (Marechal, 2005: 15). Na arte de caligrafia ou de desenhos com tinta, escreve ela, wabi significa que «o branco da página é mais importante que o desenho» (ibidem: 16). Maria de Lourdes, esta ideia faz muito sentido para mim. Até me permitia acabar aqui este meu texto. Deixo uma página em branco para simbolizar o meu silêncio consciente sobre Deus. Deus não visto e de quem não posso «rendre compte».
Silêncio: tal é o lugar
Nomear a aurora com elas
Em 2005, um ano depois de Tu já não estar com Eu para nomear a aurora, foi publicado na Holanda um livro intitulado Devoções Modernas. Mulheres falam da sua fé. Livro escrito por mulheres «com um alto grau de emancipação, oriundas de diferentes tradições religiosas». Catorze mulheres: quatro islamitas, duas judias, sete cristãs e uma hindu. Dizem, no prefácio, as organizadoras (Kalsky, Overdijk & Spek, 2005) que os/as migrantes na Holanda descrevem o país como um «deserto espiritual», em que muita gente está à procura de sentido e de aprofundamento espiritual e afirmam:
«Criar espaço para um desejo religioso não é igual a uma submissão irracional a líderes autoritários e livros sagrados. Significa uma procura muitas vezes individual e às vezes suportada por uma comunidade procura de palavras, imagens e rituais para lidar com o incompreensível. Vida e morte, finitude, amor, o mal, o cosmos, a diferença indissolúvel entre eu e o outro» (ibidem:10).
Traduzi alguns excertos em que nove autoras tentam dizer algo das suas auroras.
Naïma Azough5 (de origem Islamita):
«Se fazer o bem, a solidariedade e o cuidado nas relações interpessoais forem as minhas referências, então não há nenhuma diferença essencial entre islamitas e não-islamitas. A separação encontra-se noutro lado: entre quem cuida do seu próximo, da sua comunidade, da natureza e quem é cego para o cosmos e apenas cultiva crueldade e ódio» (ibidem: 26).
Tamarah Benima6 (de origem Judia):
«Tenho dificuldade em dizer ( ): embora não sinta Deus no meu coração, não há nada senão Deus» (ibidem: 35).
«(Temporariamente) não acreditar e ainda seguir um caminho de vida inspirada pela religião ( ) como uma fase recorrente deste mesmo caminho» (ibidem: 37).
«Vejo as religiões como línguas, ou antes: línguas musicais. ( ) gosto de falar diferentes línguas religiosas de modo que possa comunicar com outros nas suas línguas religiosas» (ibidem: 38).
Désanne van Brederode7 (de origem Cristã):
«Não acredito que a religião satisfaça necessidades, que seja útil e me dê coisas eu acredito para poder prometer a alguém, um espírito que envolve todo o espírito, que continuarei a dar. ( ) Falo de Alguém, mas no fundo experimento Deus como um espaço leve, fluído, quente à nossa volta. (...) A Fé desaparece quando sei categoricamente em quê. Não quero ocupar este espaço à minha volta, porque assim nada poder fluir ou soprar. Perderia a respiração. Seria a morte do espírito. Morte da fé» (ibidem: 47-48).
Rémi van der Elzen8 (de origem Cristã):
«Não é possível dividir a vida rigidamente em duas partes, entre as causas espirituais e superiores da alma e os baixos prazeres terrestres. Tenho de aprender a ver que a porta que dá acesso ao mais alto, apenas se abre quando abraço o mais baixo» (ibidem: 102).
Kathleen Ferrier9 (de origem Cristã):
«Não há linhas divisórias entre islamitas e cristãos, mas antes entre pessoas de boa vontade e pessoas de má vontade. ( ) Talvez haja mais linhas divisórias entre gente picuinha pessoas com uma fé fanática ou que são fanaticamente contra a fé e a ridicularizam e pessoas que têm algo a ver com a religião. Estes algoistas encontram-se hoje em dia no meio de islamitas, hindus, judeus e cristãos e têm muito em comum» (ibidem: 112-113).
Senay Özdemir10 (de origem Islamita):
«Os meus pais eram gente boa. Porquê? Porque deixaram atrás de si um mundo um pouco melhor do que quando cá chegaram. Segundo eu é esta a mensagem de Alá: cada pessoa é colocada no mundo por uma razão determinada. Leva algum tempo até uma pessoa perceber isto. Acho que é uma mensagem bonita. Ensina-me que não vivo apenas para mim própria. Que tenho responsabilidade» (ibidem: 137).
Annemiek Schrijver11 (de origem Cristã):
«Não era de Etty Hillesum o seguinte comentário: Eu ajudo-te Deus, para que não morras dentro de mim? Era isto que ela queria dizer, que Deus está simplesmente à nossa espera dentro de nós? Que o podemos desocultar com cada gesto, com a nossa própria inspiração? Será que somos co-criadores/as de Deus? ( ) O sentido da vida é viver. De repente comecei a ver pessoas que estão sempre a adiar a vida» (ibidem: 146). «Vamos desocultar Deus. Em cada encontro ( ). Olhar nos olhos uns dos outros e dizer: Não estás sozinho/a. Ter compaixão. O que temos a perder? Só podemos ganhar: em vida, em autenticidade, em humanidade. Jesus tornou-se homem. Agora é a nossa vez» (ibidem: 150).
Rosita Steenbeek12 (de origem Cristã):
«Sou fiel à tradição em que fui educada, não por essa ser forçosamente a verdade, mas por a minha vida estar entrelaçada com ela. Se tivesse crescido num outro lugar do mundo, teria aprendido outras formas e histórias para lidar com as coisas mais profundas» (ibidem: 176).
Rosa van der Wieken-de Leeuw13 (de origem Judia):
«A fé num Deus omnipresente não é muito importante no Judaísmo. O que conta são os actos ( ) Toda a minha identidade é atravessada por valores judaicos ( ). Sou activista política e faço trabalho voluntário, porque fui educada com as palavras: Se eu não for a favor de mim própria, quem o é? E se for apenas a favor de mim própria: o que sou? E se não for agora, então quando? (Palavras de sabedoria dos rabinos, cerca 200 anos depois de Cristo)» (ibidem: 187).
E em 2003, um ano antes de Tu já não estar com Eu para nomear a aurora, foi publicado em Portugal o livro, Dizer Deus Imagens e Linguagens. Os textos da fé na leitura das mulheres, coordenado por Manuela Silva. Trago aqui apenas cinco das quinze vozes, todas (implicitamente) de origem cristã.
Manuela Silva (Economista):
«Não obstante as armadilhas que levanta esta perspectiva teológica de dizer Deus no feminino, o certo é que precisamos de continuar a aprofundar o conhecimento que temos de Deus» (Silva, 2003: 57).
Teresa Martinho Toldy (Teóloga):
«( ) concebo a teologia como uma reflexão sobre a Palavra de Deus, Palavra essa que, apesar de proferida em palavras humanas, não tem origem em nós» (Toldy, 2003: 41).
Fernanda Henriques (Filósofa):
«( ) a procura de uma outra relação com o divino e de uma outra forma de o imaginar ( ), que saia da fixidez que a tradição da ortodoxia religiosa marcou através da metáfora familiar e parental e se abra a uma dimensão, a um tempo mais adulto e mais espiritual» (Henriques, 2003: 83-84).
Cláudia Kolletzki (Teóloga):
«Nenhuma interpretação pode reclamar para si ser a única verdadeira, eterna e historicamente correcta. Os textos são todos ilimitados, porque as possibilidades de os ler nunca podem ser esgotadas» (Kolletzki, 2003: 271).
Clara Meneres (Escultora e Etnóloga):
«Caminhar para Deus significa despojarmo-nos de todas essas especulações que gratificam a razão e o intelecto. ( ). Quanto mais alto se sobe, mais simples é Deus, ao ponto de não haver mais nada para dizer e o silêncio preencher toda a realidade» (Meneres, 2003: 355).
Da história: a imaginação que abre portas
Evoco a lembrança da tua fé sincera,
que também foi a da tua avó Lóide
e da tua mãe Eunice
e não duvido que é a tua também.
2Tm 1, 5
E Eu, Marijke de Koning14 (de origem Cristã), como digo Deus ou o incompreensível? «Encontro» ou «vejo» Deus nos textos sagrados da Bíblia? Ou através de experiências de beleza e de amor? Ou antes em lugares-silêncio?
E quando falo de Deus, sou eu que falo? Ou apenas oiço a «notícia» desta presença através dos textos escritos e ditos por outros seres humanos? Apenas digo as minhas breves experiências de aurora com palavras e textos que me chegaram através deles/delas? Talvez seja sobretudo como já referi noutro lugar (Koning 2006: 99), com as palavras de Edgar Morin:
«Há um primeiro princípio de incerteza que seria o seguinte: eu falo, mas quando falo, quem fala? É apenas o eu que fala? É através do meu eu, um nós que fala ( )» (Morin, 1995: 55).
Um «nós» que «traduz sobretudo uma ligação prévia à existência de todos os humanos» (Pintasilgo, 2000: 18). Só posso existir quando me sei parte duma unidade maior que me permita transcender o meu «eu». Assim, o meu «eu» que (eventualmente pode dizer algumas palavras verdadeiramente minhas) quando fala, sabe que emerge de uma composição de comunidades polifónicas de vozes. Vozes, algumas mais de acordo com a tradição (cristã), outras dissonantes com ela, outras «fora» dela, outras ainda contra ela. Vozes oriundas de uma diversidade cada vez maior de culturas e formas de vida.
Para tentar situar o lugar a partir de onde posso nomear Deus para além do meu lugar privilegiado de silêncio, lugar de O não nomear mobilizo mais uma vez o conceito história, no sentido de uma narrativa com a qual determinados colectivos «interpretam, desde as suas origens, a sua existência e encontram e reforçam a sua identidade» (Nijk, 1978, citado em Koning, 1986: 832). É com a Bíblia, livro milenar, composto por múltiplas histórias sobre a relação dos homens (e das mulheres) com Deus, que os colectivos judaicos e cristãos interpretam o sentido da sua existência e educam os seus filhos e as suas filhas. Foi nesta tradição que nasci e cresci.
Aplicando sobre estas histórias os aspectos que Nijk distingue para a praxis educativa, as histórias na Bíblia têm (i) um aspecto hermenêutico (contar para apresentar e fazer reconhecer intenções e objectivos), (ii) um aspecto crítico-analítico (denunciar formas erradas de pensar e problematizar formas menos boas de vida) e (iii) um aspecto pragmático (agir de acordo com as leis bíblicas: Amar Deus e o próximo).
Na tradição judaico-cristã em que fui educada, Deus não é uma força silenciosa, mas é descrito como um Deus que «fala». Hoje em dia sabemos com a nossa «razão» que Deus não terá falado primeiro e «ditado» a Bíblia, mas sim acreditamos que os seus autores sentiram e imaginaram a presença de Deus que lhes falava e lhes pedia resposta, responsabilidade, humanização.
Na Bíblia temos «acesso» ao divino através da imaginação com que foram construídas as histórias contidas nela. «A imaginação é linguagem: dizemos o que vemos e assim transmitimos o nosso olhar» (Kuitert, 2005: 83). Imaginação também com que as histórias foram transmitidas às sucessivas gerações. «Leio as histórias sagradas, e aí recebo a imensidão de um sentido, ainda que permaneça à superfície das palavras» (Luca, 2009: 9). «Também ao último leitor [das escrituras sagradas] é concedido que acrescente a sua nota ao fim do infinito comentário» (ibidem: 81). Smalbrugge (2009) faz a distinção entre as convicções religiosas que consideram que a imaginação como forma de conhecimento, também do divino, é um elemento constitutivo da realidade de vida e as que abjuram a imaginação. Conhecer Deus ao nível da imaginação implica aceitar que tudo o que se diz sobre Deus faz parte de «uma rede de imaginação que se estende sobre a realidade, uma rede herdada dos nossos antepassados» (Kuitert, 2005: 79).
Numa perspectiva de nomear a aurora e de (re)criar (para mim própria) um possível lugar de fala sobre a realidade divina, preciso de sublinhar a imaginação como forma (privilegiada) de conhecimento. Como é sabido, Spinoza faz uma distinção entre três formas de conhecimento: a imaginação, a razão e a intuição (Knol, 2009). A imaginação permite o acesso a uma representação da realidade e portanto não à própria realidade. Apesar da imaginação ser uma forma limitada e fragmentada de conhecimento, ela é indispensável por anteceder as duas outras formas. Como alguma vez querer descobrir algo do sentido das coisas se em criança não nos tivessem contado histórias?
No horizonte uma verdade metafórica
«Quando me sinto eu própria, não sou apenas eu própria»
(Jaspers, citado em Schüszler 2003: 84).
Maria de Lourdes, dizer Deus sim, às vezes, mas sempre com cuidado ao contexto. (Não vá o meu dizer ser expressão de uma suposta e errada superioridade de quem sabe nomear a aurora «em nome de Deus» no meio de quem não diz Deus. Na minha memória é esta a razão de não O ter nomeado naquele encontro em Amesterdão). Cuidado enquanto hesitante respeito pelo igual direito de cristãos, judeus, islamitas, hindus, budistas, agnósticos, ateus, «algoistas» e outros/as ainda, de estenderem as suas redes de imaginação sobre a realidade, na procura de encontrarem pistas que permitam fazer face ao mistério da vida. E de se inspirarem mutuamente.
Assim, é importante para mim, além do silêncio, além de estar parada num lugar onde «um vento muito leve passa e vai-se sempre muito leve e eu não sei o que penso, nem procuro sabê-lo»15:
valorizar as redes de imaginação;
recorrer às histórias, também da Bíblia, com as quais interpretamos a nossa existência;
olhar para uma obra de arte ou escutar uma peça musical;
ler com atenção, também o que está escrito «debaixo» do texto («Veja, o que está escrito não é o que está escrito» dizia o poeta neerlandês Martinus Nijhoff);
não ficar presa aos factos, mas procurar a verdade escondida neles (com a intuição), sabendo que «a verdade ela própria é de natureza metafórica» (Berk 2007:9). Uma verdade em movimento, feita corrente, sopro, meta fora, «força silenciosa de transcendência» (ibidem: 7);
«contentar-me» apenas com as cifras ou sinais da transcendência. Cifras, não como objectos cognoscíveis ou verificáveis, não como «realidade da transcendência», mas como «a sua possível linguagem» (Jaspers, citado em Schüszler, 2003: 90).
«A porta que dá acesso ao mais alto, apenas se abre quando abraço o mais baixo» dizia Rémi van der Elzen. Lembro-me, Maria de Lourdes, uma conversa com o meu irmão Hans, quando soube que tinha um tumor incurável na cabeça. Ateu convicto, perguntou às suas duas irmãs: «Vocês acreditam em Deus?» Contou-nos como nas noites de tempestade costumava sair de casa e deixar «cair» o seu corpo no vendaval, ficar pendurado no vento e pensar, eternidade ou instante, numa força que tudo suportava.
«Quem viu Deus? Quem o pode descrever», leio na tradução da minha Bíblia Neerlandesa em Sirach, 43, 31.
Vou terminar, Maria de Lourdes, tentando de novo uma resposta que não soube dar em Amesterdão e parafraseando Edgar Morin: eu falo em Deus, mas quando falo, quem fala? Não sou quase nunca Eu que fala. Talvez apenas através do meu Eu, um Nós (também Tu) que fala há milénios:
Vivo minha vida em círculos em expansão
que sobre as coisas estão a passar.
Talvez não consiga ao último cumprimento dar,
mas vou tentar com determinação.Ando à volta de Deus, da torre ancestral,
e ando há milénios sem repouso;
e ainda não sei: sou um falcão, um vendaval
ou um cântico grandioso.Rainer Maria Rilke (2009: 29)
Penso muitas vezes
que a única coisa que se pode fazer
é deixarmos irradiar por toda a parte
o bocadinho de bondade que temos dentro de nós.
Tudo o resto é secundárioEtty Hillesum (2009:67)
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Notas
1 «Temos de ser duas pessoas para compreender um céu azul, para nomear uma aurora».
2 «Dias, e ver o tempo a estender-se».
3 «Quando uma luz encontra outra luz, ouve-se subir um cântico de profeta».
4 Foi o que caracterizou o ambiente dos nossos encontros internacionais junto a barragem do Castelo de Bode, perto de Tomar! Escrito a lápis por MLP num pequeno papel branco, encontrado num dos livros da sua biblioteca: COHEN, William Howard (1972). To walk in seasons An introduction to Haiku. Tokyo: Charles E. Tuttle Company.
5 Nascida em Marrocos em 1972, membro do parlamento pelo partido Groen Links (The Green Left).
6 Nascida na Holanda em 1950, escritora, colunista, e rabina em formação.
7 Nascida na Holanda em 1970, escritora e filósofa.
8 Nascida na Holanda em 1960, apresentadora e criadora de programas de rádio.
9 Nascida em Suriname em 1957, membro do parlamento pelo CDA, Apelo Cristão Democrata.
10 Nascida no Egipto em 1953, colunista e tradutora.
11 Nascida na Holanda em 1964, apresentadora e realizadora de programas na televisão.
12 Nascida na Holanda em 1959, escritora.
13 Nascida na Holanda em 1948, membro do conselho municipal de Amesterdão.
14 Nascida na Holanda em 1947, pedagoga social.
15 Fernando Pessoa, numa composição musical de Stuhlmacher, de que Maria de Lourdes tanto gostava.
* Marijke de Koning, é coordenadora do Programa de Investigação e Intervenção Literacia-Mulheres-Liderança da Fundação Cuidar O Futuro e integra o seu Conselho de Curadores. Trabalha desde há vários anos no movimento internacional Graal. Entre 1989 e 2004 animou, em conjunto com Maria de Lourdes Pintasilgo, a Rede Europeia Lien, uma rede de jovens mulheres profissionais. Actualmente integra o International Study Centre do Graal em Utrecht, o Instituto Paulo Freire de Portugal e o CIIE da FPCE da Universidade do Porto. Publicou Lugares Emergentes do Sujeito-Mulher. Viagem com Paulo Freire e Maria de Lourdes Pintasilgo (Afrontamento, 2006).