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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.21 Vila Franca de Xira  2010

 

A Fecundidade Ontológica da Noção de Cuidado. De Heidegger a Maria de Lourdes Pintasilgo

 

Irene Borges-Duarte *

Universidade de Évora

 

Resumo

Este texto pretende mostrar na noção heideggeriana de cuidado, analisada a partir das lições de 1925, o apoio fundamental para a ideia de uma democracia do cuidado de Maria de Lourdes Pintasilgo, ainda que tal ideia, enunciada nos seus últimos trabalhos não esteja completamente desenvolvida.

Palavras-chave cuidado, ser, Dasein, responsabilidade.

 

Abstract

The ontological productiveness of the notion of care. From Heidegger to Maria de Lourdes Pintasilgo

This paper aims to find in Martin Heidegger’s use of the notion of care, whose phenomenological analysis is followed along the lessons of 1925, the key support for Maria de Lourdes Pintasilgo’s idea of a democracy of care, which appears, although not quite developed, in his latest works.

Keywords care, being, Dasein, responsibility.

 

Résumé

La fecondité ontologique de la notion de souci. De Heidegger a Maria de Lourdes Pintasilgo

Ce travail essai de montrer dans le notion heideggerienne de souci, analysée en partant des lessons de 1925, l’appui fondamental pour l’idée d’une democratie du souci chez Maria de Lourdes Pintasilgo, quoique cet idée, enoncée dans ses derniers travaux, ne soit pas complètement developpée.

Mots-clés souci, être, Dasein, responsabilité.

 

 

Desde o último quarto do século XX que a noção de cuidado e do cuidar tem vindo a aparecer cada vez mais insistentemente quer no âmbito da filosofia, quer no do mundo da vida. Ao introduzir a categoria do «cuidar» no espaço público, como elemento ou via da sua «ressignificção, Maria de Lourdes Pintasilgo procurou definir um novo princípio de compreensão da realidade estruturada na convivência, que sem ignorar a esfera teórico-prática do social ou do político, a abra a uma outra forma de relação entre os humanos, no sentido de um «novo paradigma». Atender à perspectiva do cuidar significaria, então, tecer uma outra teia de relações de interacção entre os seres humanos entre si e, eventualmente, com o seu oikos, que sem ser alheia à irrecusável teorização sociopolítica, pudesse constituir uma alternativa hermenêutica à pura factualidade desta e alcançar, assim, um outro patamar de compreensão do humano. É neste sentido que me proponho pensar a noção de cuidar, partindo da análise ontofenomenológica surgida com Martin Heidegger para chegar à sua interpretação operativa por Maria de Lourdes Pintasilgo.

Duas anotações prévias. A primeira: a ideia de uma «ética do cuidado», sem carecer de antecedentes no pensamento greco-latino, helenístico e cristão, só tem tido autêntico desenvolvimento a partir da década de 80 do século XX, fundamentalmente na investigação que parte da introdução da categoria de género em filosofia (Gilligan, 1982; Noddings, 1984; Benhabib, 1992), numa tentativa de repensar aquilo que a filosofia tradicional não chegou a pensar, porque não contemplava metodologicamente essa possibilidade. Não é essa a via que vou seguir. A segunda: a tematização clássica do cuidar, fundamentalmente na filosofia estóica e epicúrea, dá-se basicamente sob a forma do «cuidado de si», da alma e do corpo, epiméleia, que, embora tendo derivações pedagógicas e políticas, deixa à margem tanto a dimensão altruísta e solidária, como a da preocupação pelo mundo e pela natureza. Falar hoje do cuidado em relação com o espaço público implica, pois, menos a recuperação de uma tradição filosófica, que a procura de uma fundamentação do «estar-uns-com-os-outros» num fenómeno primordial, cujos contornos há que descobrir e descrever.

O contributo de Heidegger, nesta nossa pesquisa, consiste na sua compreensão do cuidado (Sorge) como ser do Dasein, enquanto este é simultaneamente âmbito de abertura ontológica (ou «aí» do ser), exercício de ser (em que o ser se dá, guarda e aguarda) e vínculo estrutural (que se manifesta fenomenologicamente como temporalidade). Nunca é, em Heidegger, um eu, indivíduo ou pessoa, que cuida de si, mas apenas um Selbst, alguém que se sabe e se sente o Mesmo – o que implica a experiência, consciente ou tácita, da diferença entre si e um/os Outro(s) – no seu ser e estar com outrem no mundo, em que reside, à beira de tudo quanto aí lhe vem ao encontro e de que cuida… ou descuida, ao fazer pela própria vida.

Vou tentar, por isso, fazer um caminho fenomenológico: mostrar como chega à palavra o ser-no-mundo à nossa maneira de humanos – entes que trazem em si o ser de tudo quanto há. Percorrerei os seguintes passos fenomenológicos: o primeiro, linguístico, procurará mostrar o que se oculta sob a palavra-temática do «cuidado»; o segundo, filológico, recuperará a tão conhecida e banalizada fábula, que Heidegger recordou, da «cura»; o terceiro, a partir de uma referência histórico-filosófica, explicitará os meandros da compreensão do cuidado como desdobramento ontológico do conceito husserliano da intencionalidade; o quarto, em percurso pelos textos de Heidegger, apresentará, com a parcimónia adequada, as implicações da noção heideggeriana de cuidado, nos seus diferentes âmbitos de aplicação; o quinto, enfim, conclusivo, em que se afirmará, numa perspectiva contemporânea, em que a meditação de Maria de Lourdes Pintasilgo se integra, a fecundidade ontológica da noção de cuidado.

No fundo, só pretendo dizer o seguinte: a categoria fenomenológica do cuidado, enquanto «existenciário», introduz na história – não tanto da filosofia como do ser –, pela primeira vez, a consideração da responsabilidade ontológica intrínseca aos humanos, não apenas para consigo mesmos (individual ou colectivamente), mas para com o ser de tudo quanto há. O que só pode aparecer, na sua ingente humildade, na era dos deuses em fuga, na época da «morte de Deus» – única esperança de um mundo Outro, nascituro do assumir da plena responsabilidade do humano, enquanto «aí» do ser, ante um mundo antropicamente afectado pelas suas nunca inconsequentes acções e propósitos.

 

1. O «cuidado»: do termo à noção

O campo semântico de «cuidar» e de «cuidado» guarda, no português actual, o sentido original de uma etimologia inesperada: a do latim cogitare, pensar. Na forma transitiva, «cuidar» é pensar: atender a, reflectir sobre – e, por isso, interessar-se por, tratar de, preocupar-se por, ter cautela com. Cuidamos de nós e dos outros, quando, solícitos, tratamos de assistir-lhes nas suas necessidades ou padecimentos, quando nos ocupamos deles. «Cuidadosos» – às vezes tão só atentos, outras inquietos – abrimo-nos e oferecemo-nos nesses desvelos. Quantas vezes não «estamos em cuidado», ansiosos ou temerosos de que algo infausto aconteça! «Ter cuidado» é ser diligente mas também cauteloso: é pensar sentindo, atendendo ao encoberto futuro e ao imediato presente, tendo em conta o que já de antemão sabemos. O cuidar é, neste sentido, uma forma activa e pensante de estar ocupado no mundo da vida. Cuido, ergo sou – poderíamos dizer, parafraseando Descartes.

Mas em latim tudo isto se diz mediante duas palavras, de distinta raiz: cura e sollicitudo. A primeira, sem perder essa significação originária, evoluiu nas línguas romances peninsulares (Corominas, 2000: 186) para uma acepção predominante, mais restringida ao âmbito da saúde: curar é sanar, tratar de restabelecer a saúde perdida. Diz um amigo meu, com acuidade, que hoje curar é o que procuram os médicos, enquanto que o autêntico cuidado do doente fica reservado, profissionalmente, para os enfermeiros e, na vida privada, para os familiares. O cunho terminológico de «cura» especializou-se, pois, operatoriamente, o que não acontecia em latim clássico. Cura provém de quaero (procurar), integrando, pois o sentido do buscar com empenho alguma coisa. Mas o seu contexto de uso era bem mais vasto: desde o mais geral de «cuidado»1, aos matizes de aflição, moléstia, afã, solicitude, curação e até gestão ou administração (como em cura rerum publicarum) e culto (cura deorum) (de Miguel, 2000: 250-251). É esta riqueza que temos de ter em vista no uso que Heidegger dará ao termo no contexto da sua filosofia. Sollicitudo, em contrapartida, emprega-se de maneira mais precisa: é «cuidado» no sentido de «estar movido (citus, part. de ciere, mover) ou comovido por inteiro (sollus)», isto é, sentir inquietude, moléstia, pena. É «solícito», portanto, quem se aflige por algo ou alguém.

Digamos, pois, que em cura parece predominar o «mover-se numa certa direcção», em sollicitudo o «ser movido por» aquilo que nos assalta ou se nos apresenta. Heidegger recolherá esta dupla referência, por exemplo, ao estudar os fenómenos do impulso e da inclinação, como adiante veremos. Em ambos os casos, porém, o movimento de que é questão, embora integrando aspectos cognitivos, manifesta uma sensibilidade ou afectividade, um estar porosamente em comunicação com o que se dá no mundo.

Também em grego encontramos dois termos para estas acepções: o «cuidado de algo ou alguém» diz-se epiméleia, que corresponde à cura latina, documentada a partir dos tempos de Sócrates e derivada do vocábulo mais antigo meléte. Platão usa-a com frequência, desde a «Apologia», para designar o «cuidado de si», que implica autognose e, por extensão, serviço à polis. Desde então aparece com frequência na filosofia, como já acima referimos. A acepção de preocupação e inquietude, ligada aos padecimentos e aflições, é recolhida no vocábulo mérimna, usado sobretudo na poesia e na tragédia (Ritter + Gründer,1995: 528-535 e 1086-1090).

Em alemão, finalmente, voltamos a encontrar um termo (Sorge ou sorgen) que, com todos os seus derivados (Fürsorge, Besorgen, Besorgnis Versorgen, Sorglosigkeit, etc.) engloba os dois sentidos fundamentais do cuidado: «inquietude ou angústia», por um lado, e «esforço por ou empenho em ajudar», por outro (Duden, 1963: 651-652).

Este percurso linguístico, que recuperou as etimologias, permite-nos avançar a hipótese de que a compreensão da realidade humana pela via do cuidado e do cuidar impõe a união dos dois vectores: por um lado, o de pensar atento e comovido em outrem ou em si mesmo, esforçando-se por ajudar a que a vida continue em sanidade, e, por outro, sentir a inquieta moléstia de advertir que esse viver quotidiano pode, de algum modo, estar em perigo.

Neste ponto da nossa análise, o termo transformou-se em noção, sem ainda ter chegado a conceito. É essa noção que transparece na Fábula de Hyginus, recolhida por Goethe de Herder e aproveitada por Heidegger para introduzir o seu conceito de Sorge como «ser do Dasein».

 

2. A Fábula de Higino acerca da condição humana

No § 42 de Ser e Tempo2, Heidegger reproduz a fábula clássica, recolhida por Hyginus na sua colectânea de Fabulae com o n.º 220. Reproduzo-a aqui, no essencial, sem atender a critérios filológicos estritos. Reza assim:

«Certo dia, ao atravessar um rio, o Cuidado (Cura) viu um terreno de barro. Pensativo, tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto reflectia sobre o que tinha feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que lhe insuflasse espírito. Júpiter acedeu de bom grado. Quando, porém Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter proibiu-lho, exigindo que lhe fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu a Terra (Tellus). Mas quando também ela quis dar o seu nome à criatura, por ter sido feita de barro, que era um pedaço do seu corpo, começou uma grande discussão. De comum acordo, pediram a Saturno que fizesse de juiz. E ele tomou a seguinte decisão, que pareceu justa: Júpiter, porque lhe deu o espírito, receberá de volta este espírito, por ocasião da morte dessa criatura. A Terra, que lhe deu o corpo, receberá, também de volta o seu corpo, quando a criatura morrer. Ao Cuidado, porém, que moldou a criatura, ficará esta entregue durante a sua vida. E uma vez que há entre vós acalorada discussão acerca do nome, decido eu que esta criatura será chamada Homem (homo), isto é, feita de humus, que significa terra fértil».

A história é curiosa, por diferentes vias. Mas não deixa de estranhar a aparição do Cuidado como escultor do Homem – que recebe corpo da terra húmida e espírito do poderoso deus dos céus tempestuosos, e ao seu criador é entregue durante a vida pelo Tempo (Saturno), devorador de seus filhos, que também lhe dá nome. Noutros mitos, é Prometeu quem, titanicamente, sem precisar de ajuda, modela o Homem do barro. O Cuidado é uma figura alegórica, que parece de bastante menor envergadura que um Titã para tão elevada missão de criar a espécie humana. Blumenberg, que dedicou a este texto e ao seu significado páginas de aguda ironia, considera que Higino simplificou a narração alegórica, desvirtuando a sua «óbvia» origem gnóstica, com a provável finalidade de não deixar como irrelevante ou inessencial a participação de Júpiter na obra final. O fundamental da fábula faltaria, pois, nesta versão latina, deixando no ar a inconsistência da travessia, enquanto elemento necessário à compreensão do mito da criação. Na verdade, só atravessando o rio, podia o Cuidado ver-se reflectido nas águas – diz Blumenberg – e, assim, dar ao barro, que bem poderia ter sido recolhido à beira rio, sem travessia nenhuma, a sua própria imagem (Blumenberg, 2001: 154-155)3. A mediação especular seria, pois, o elemento determinante, embora ausente na narração. Tenhamo-lo em conta.

No entanto, o essencial parece-me ser: a condição humana não é cunhada nem pelo espírito, nem pelo corpo, que lhe são emprestados em vida, mas que com a morte se dissolvem e retornam a quem lhos emprestou, mas por aquilo que lhe deu forma – o Cuidado, que o transe e mantém em vida. Cura – portanto, inquieta atenção e tensão vital, que gere esforçada e, tantas vezes, molesta o viver, que o tempo marca e determina. Heidegger explorará esta alegoria como uma «interpretação pré-ontológica» – isto é, como uma explicitação naif, prévia ao discurso ontológico propriamente dito, que requereria o desenvolvimento pleno da interpretação – da diferença entre o «ser» do Homem (que é o cuidado) e a sua «entidade», que é a de composto psicofísico. Já nas lições de 1925, Prolegómenos à História do conceito de Tempo, sublinha a importância relativa destas duas referências: «Há que pôr de lado todas essas distinções teoreticamente formadas, como corpo e alma, sensibilidade e razão, corpóreo e espiritual. O sentido decisivo dos fenómenos não reside primordialmente aqui.» (Heidegger, 1995: 214). Lançando mão de outro excerto da mesma época, em que fala da experiência originária e em cada caso minha do tempo: o que importa «não é um quê mas um como» (Heidegger, 2004: 117; 2008: 48-49).

Ou seja: não é a distinção de alma e corpo e a sua união constitutiva o que caracteriza ontologicamente o humano, mas o seu levar o ser no seu ser, ocupando-se dele, de si, cuidando de e tendo cuidado, desvelando-se por e no viver. É este cunho, eminentemente temporal, que define formalmente o Dasein como «ser o aí», designação heideggeriana do humano na sua suprema dignidade.

 

3. Cuidado e intencionalidade: o salto fenomenológico à existência

Esta perspectiva do cuidado como ser do Dasein enraíza-se fenomenologicamente no que poderíamos chamar um aprofundamento da noção husserliana de intencionalidade. Com este termo, derivado da intentio escolástica, que Brentano importara para o âmbito da psicologia protofenomenológica, Husserl pretende caracterizar o «carácter fundamental do ser como consciência, como aparecimento de algo. No irreflexivo ter consciência de quaisquer objectos, estamos dirigidos a estes, a nossa intentio vai na sua direcção. A rotação fenomenológica do olhar mostra que este estar-dirigido é um traço essencial imanente das vivências correspondentes: elas são vivências intencionais» (Husserl, 1990: 39-41).

A intencionalidade, no sentido husserliano, manifesta, pois, a forma de acesso das «coisas elas mesmas» à consciência intencional que as fixa, de maneira universal, na correlação noético-noemática. Não há coisas «em si», à maneira pré-crítica, que Kant recolhe como de impossível experiência. Tudo nos advém fenomenologicamente sob a forma plural (múltiplas orientações e perspectivas) mas necessária da «vivência intencional». Recordemos que, para Husserl, este fenómeno sendo marcadamente de tipo cognitivo, não o é de maneira exclusiva:

«A estruturação intencional de um processo perceptivo tem a sua tipologia de essência fixa, que tem que realizar-se necessariamente, em toda a sua extraordinária complexidade, para que uma coisa corpórea possa ser simplesmente percepcionada. Se a mesma coisa é intuída de outros modos, por ex. no da recordação ou da fantasia, da exibição em imagem, então, de certo modo, repetem-se todos os conteúdos intencionais da percepção, mas todos particularmente modificados na forma correspondente. Também em qualquer outro género de vivências psíquicas acontece algo semelhante: a consciência que julga, que avalia, que aspira a, não é um mero e vazio ter conscientes os respectivos juízos, valores, metas e meios. Estes constituem-se numa intencionalidade fluida, com a sua tipologia essencial fixa» (ibidem).

Ora, o que acontece é que Heidegger transfere esta correlação intencional para a esfera da realização fáctica da existência, não no sentido da perspectiva perceptiva, teorética ou valorativa, mas no da praxis do viver quotidiano, pré-teorético e pré-ético, isto é, para aquilo a que Husserl chamava o «mundo da vida» ou da atitude natural, basicamente presente em sínteses passivas, e que deveria ser objecto de «redução». Mas se o existir se dá em atitude natural, deixa de haver lugar, fenomenologicamente, para a necessidade de «redução»: o que há a fazer é, pelo contrário, explicitar os modos e estruturas tacitamente projectados ou reproduzidos no exercício efectivo do estar a ser uns com os outros, à beira dos entes com os quais lidamos e usamos no nosso dia-a-dia. Nesse contexto rico e pleno da existência, ser à maneira humana é cuidar, em todas as suas formas: atender ao que se dá e assistir, solidário, a outrem, e experimentar, inquieto, o próprio correr palpitante ao encontro do porvir, forjado no que já de antemão somos e nos é habitual, mas também na inteligente e sensível escuta do que, ainda oculto, chegará a mostrar-se no fazer humano. Cuidado é projecção de temores e desejos e molesto padecimento pelo vivido e por viver, mas também escuta do íntimo apelo da consciência e aceitação de si-mesmo na decisão de autenticidade. E é também, privativamente, o des-cuidado retomar de comportamentos ritualizados, que enchem as horas, como que sem dar por isso, sem lhes dar sentido. Por isso,

«visto a partir do fenómeno do cuidado, enquanto estrutura fundamental do Dasein, pode mostrar-se que aquilo que se concebe na Fenomenologia como intencionalidade, e o modo como é concebido, é fragmentário, é um fenómeno visto só do exterior. Ora, o que se menciona como intencionalidade – o mero dirigir-se a – tem ainda de ser retrotransferido para a estrutura fundamental unitária do ser-se-já-antecipadamente-no-ser-à-beira-de. Só esta [estrutura] é que constitui o fenómeno autêntico, que corresponde ao que se menciona de maneira inautêntica e chã, de forma isolada e unidireccional, como intencionalidade.» (Heidegger, 1979: 420).

Chegamos, assim, nesta via de aprofundamento do que inicialmente era a mera intencionalidade, ao patamar em que ganha sentido a fundação de uma compreensão do ser (do ser em geral, de tudo quanto há, e do ser à maneira particular e exemplar do Dasein ele mesmo) sobre a base da categoria ontológica de cuidado. Esta não indica meramente como o ser humano acede ao seu mundo e, nele, às coisas que conhece e com que trafica e utiliza no seu fazer a sua vida; nem indica somente como os entes intramundanos irrompem na vida quotidiana, teorética ou prática, do ser humano. O cuidado é o como do próprio dar-se do ser no seu (ao seu) aí: o seu aparecer na compreensão afectiva do Dasein, já originariamente articulada num comportamento que se expressa em palavra e acto, modalmente identificáveis.

É neste patamar hermenêutico que haverá de formular o novum que a noção de cuidar pode trazer à nossa actualidade, na análise e crítica da nossa cultura. Mas, para lá chegar, temos ainda que explicitar que dimensões do viver humano estão abrangidas nesta designação. É o que vamos tentar fazer, muito brevemente, no próximo parágrafo.

 

4. O cuidado na existência fáctica

A escolha do termo Sorge (cuidado) para exprimir o ser à maneira humana aparece ainda antes da escolha do termo Dasein. Este último faz a sua primeira aparição pública em 1924, na já citada conferência «Der Begriff der Zeit» (Heidegger, 2004: 112-114; 2008: 36-41). Ora, nas lições de 1921/22, oficialmente sobre Aristóteles, quando Heidegger ainda fala da «vida fáctica» (em vez de usar o termo Dasein, que só posteriormente surge nesse sentido preciso), já fala do «cuidar» como «sentido referencial da vida» (Bezugssinn des Lebens), que analisa em várias direcções e aspectos (Heidegger, 1985: 89 ss.). Esta meditação lectiva, tendente a encontrar o que chama «categorias fundamentais da vida», dava continuidade à importante análise, levada a cabo no semestre anterior, do Livro X das Confissões de Sto Agostinho. Fora neste contexto que aparecera pela primeira vez com relevância a chamada de atenção para o «sentido referencial cambiante» (wechselnder Bezugssinn) do curare agostiniano, nomeadamente enquanto «preocupação » e «tratar de/lidar com» (Bekümmerung e Umgehen mit) (Heidegger, 1995: 205 ss.)4, em relação com fenómenos como a tentação, o temor e o desejo, na constituição do «próprio horizonte de expectativa» na descoberta do mundo vivido. Não nos interessa tanto, agora, fazer história do conceito, quanto compreender como surge a temática e a que problema responde. E este é o da constituição do sentido no exercício fáctico da existência humana: enquanto sentir-se arrastado pela vida e enquanto moléstia, esperança de deleite e temor da adversidade.

Em 1923, no curso de Ontologia como Hermenêutica da Facticidade, afirma que o cuidado é o «como do ser ‘em’ [o mundo]» e este «ser-em» é um «viver do (aus) mundo», isto é, a partir do mundo enquanto «aquilo que encontramos ao estar-ocupados» (Heidegger, 1988: 86). O mundo em que nos encontramos (já de sempre) e que (de cada vez) vem ao nosso encontro é, pois, à partida, «das Besorgte»: é com ele que temos de nos «arranjar», fazendo pela vida entre as coisas e com outrem. Em 1925, no citado curso sobre a História do Tempo, esta questão alcança já desenvolvimento sistemático, que depois será incorporado, noutra redacção e com diferentes matizes, em Ser e Tempo. É com base nestas duas exposições que vou procurar sintetizar o seguinte: primeiro, o carácter formal da estrutura do cuidado; segundo, os fenómenos fundamentais em que essa estrutura se revela ou traduz. Vejamos.

Diz Heidegger, nas Lições de 1925, que «o cuidado é, pura e simplesmente, o termo para o ser do Dasein», constituindo a sua estrutura formal enquanto aquele ente para quem ser-(residindo)-no-mundo é «levar o ser no seu ser» (Heidegger, 1979: 406)5. No seu sentido mais puro, esta estrutura é um jogo intrínseco de projecção-retrojecção extaticamente temporal: é um ser já de antemão o que, antecipando-se na expectativa, é em cada momento lançado ao porvir, a partir da experiência feita e guardada explícita ou implicitamente na memória. Heidegger designa esta dinâmica formal com uma linguagem complexa, que nos basta aqui registar: «a estrutura completa do cuidado, no seu sentido formal, é ser-se antecipadamente no seu já estar a ser à beira de algo» (Heidegger, 1979: 408). Na expressão pregnante de Ser e Tempo: «ser-se antecipadamente já em (um mundo) como estar-à-beira de (os entes que vêm ao encontro dentro do mundo)»6.

Mas esta estrutura é multíplice, revelando diferentes modalidades, em que o esquema formal-temporal se manifesta, mas que denotam o sentido pleno do existir. A primeira e mais imediata dessas modalidades é, justamente, o «estar ocupado com», das Besorgen. «Levar o ser no seu ser» significa ocupar-se em ser, de ser, estar ocupado sendo. «Sendo no mundo, o cuidado é, eo ipso estar ocupado com» (Ibidem: 407). Esta referência situa no âmbito do viver quotidiano, portanto, na facticidade da existência, a atenção cuidadosa mas pragmática, alheia a qualquer carácter excepcional, do exercício habitual de tratar cada qual de fazer pela própria vida e pela dos seus. É o nível do agir tacitamente ajustado aos padrões impessoais, que correspondem ao que nos é familiar e repetimos sem dar por isso.

Nessas ocupações, que enchem o nosso dia-a-dia, distinguimos, contudo, a atenção aos outros Dasein, com os quais con-vivemos sendo-uns-com-os-outros, do uso que damos às coisas, à beira das quais estamos, tal como elas estão à nossa mão. O ocupar-se de outrem é, em geral, um assistir-lhe solícito, Fürsorge. Mas este nome pode ter diferentes âmbitos de aplicação. Por exemplo, o amor, que seria freigewordene Sorge, «cuidado liberto», isto é, plenitude da atenção a outro, alheia ao que seria dependência ou «deixar-se levar» pela situação (Ibidem: 410). Nos Seminários de Zollikon, em crítica a Binswanger, que dava primazia ao amor relativamente ao cuidado, também chama a atenção para que este último «bem compreendido, isto é, no sentido ontológico fundamental, nunca pode distinguir-se do ‘amor’, não sendo senão o nome para a constituição exstático-temporal do que é rasgo fundamental do Dasein: a compreensão do ser. Portanto, o amor funda-se tão decididamente na compreensão do ser como o cuidado na acepção antropológica.» (Heidegger, 1987: 237) Esta relação é-nos especialmente cara, porque define o exacto contexto em que a escolha heideggeriana revela todo o seu sentido.

«Cuidar» é o mesmo que «compreender o ser» e compreender é «amar», (lieben), gostar de (mögen). Duas implicações, para já.

A primeira: não há compreensão que não seja afectivamente orientada, isto é, não há projecção senão do já lançado a ser, no olfacto inquieto do futuro que constitui a pré-estrutura do aí – na pré-visão cautelosa (Vorsicht), no propósito (Vorhabe), que é um ter de antemão em mente, e na pré-captação (Vorgriff) articulada do assim descoberto. Cuidar em Heidegger – como, depois, explicitamente, a responsabilidade em Jonas – é sempre cuidar do futuro! A construção-projecção de sentido, que faz mundo pertencendo ao mundo, é um abrir de possibilidades, um poder ser.

A segunda: Cuidar, enquanto gostar de (mögen) é tornar possível (möglich) (Heidegger, M., 2002: 5)7, é poder escutar o outro, poder escutar o ser e o seu retirar-se, poder pressentir o abismo e retirar-se a tempo. É estar alerta ante o Perigo, experimentar a angústia e «ter cuidado». A «heurística do medo» de que fala Jonas está também aqui pré-anunciada, oferecendo o solo ontológico para uma possível aplicação ética meta-ontológica, que signifique a resposta responsável do homem, entregue a si próprio em autenticidade, ao desafio do ser, no seu aparecer e ocultar-se.

Nas Lições de 1925, muito centralmente (Heidegger, 1979: 409-411), e em Ser e Tempo, mais de passagem (Heidegger, 1977: 195-196), Heidegger atende, neste contexto, a dois fenómenos habitualmente descuidados na análise: a inclinação (Hang) e a pulsão (Drang), que define como modalidades modificadas do cuidado (Modifikat der Sorge).

A primeira implica o estar pendente de, o «deixar-se arrastar» por aquilo ou aquele de quem se está à beira (ein Hin-zu des Sich-ziehen-lassens aus einem Wobei). Não há consideração do outro como um outro pleno, não só como indivíduo mas como Dasein. É a descrição do que, no comentário de Santo Agostinho, aparecia como tentatio, em contraste com o que em «O que é a Metafísica?» aparecerá, em expressão particularmente feliz, ao mencionar a «alegria que nos proporciona a presença do Dasein – e não da mera pessoa – de um ser querido» (Heidegger, 1976, 110). A inclinação, na sua forma passional, dirija-se a um ser humano ou a coisas (por exemplo, na gula ou na avareza, na ânsia de poder que se impõe à natureza) é uma modificação privativa do cuidado: é o seu «estar preso àquilo de que se está à beira», isto é, o não ser livre nem deixar ser livre, portanto, não abrir possibilidades. É o contrário do que, muito mais tarde, Heidegger chamará serenidade, Gelassenheit.

A pulsão (Drang), por seu lado, urge e empurra na direcção de. Também neste caso, não se pode falar de liberdade: a acção compulsiva e o recalcamento cegam, não permitindo descobrir senão o que já de antemão se quer encontrar. Não há, em contrapartida, «amor» que cegue. O amor – diz Heidegger – iluminaria. Só a pulsão pode ser cega (Heidegger, 1995, 410)8. Porém, conduzida pelo Cuidado, no seu sentido autêntico, a impulsividade atenta e inquieta, mais até que a dependência da inclinação, poderia abrir possibilidades, isto é, deixar aparecer livremente o outro ou o ser que, se não, se encobre.

Há que entender esta dupla referência não num sentido psicológico ou, em geral, antropológico, mas no contexto heideggeriano da Ontologia Fundamental, a que a História do Ser deu saída. Compreender (amando) o ser, em todas as suas manifestações, significa ser livre, deixando que o ser aceda a mostrar-se livremente e que os outros humanos o sejam também. Não que ajam compulsivamente, imersos nas suas decadentes rotinas individuais ou colectivas, mas que possam ser propriamente o aí-do-ser, âmbito de abertura ao novum. O homem mostrar-se-ia, desta maneira, como aquilo que, a partir de meados dos anos 30, Heidegger chama o Ereignis: o local-instantâneo (Augenblicksstätte) da apropriação recíproca entre o ser e o seu aí, o propiciar-se ou libertar-se da relação entre o ser do que se dá e o recebê-lo no mundo e cultura humanas, que se institui como seu «aí». Nisso desemboca a ontologia heideggeriana do cuidado.

 

5. Perspectivas de futuro: para uma cultura do cuidado.

O caminho feito mostrou-nos um percurso simultâneo e paralelo: aquele que é o de cada qual, que poderíamos mencionar como o «em cada caso meu», e aquele que se diz de um «ser-uns-com-os-outros», em que o em cada caso meu, sem se diluir totalmente, se apaga no seu protagonismo. Os grupos a que pertenço são também, em cada caso, meus. E a sua história é, em cada caso, minha. A minha decisão confina-me ao espaço-tempo da minha existência histórica, ao meu ser finito. Mas a decisão do meu tempo, da era a que pertenço e não domino, é a que in-flui no fluido que é a história. E esta, no mundo poente – occidens – que é o nosso, leva a dinâmica indelével da decisão implícita da modernidade, que entende o cuidado enquanto progresso da sociedade do bem-estar, com tudo o que ela implica de administração dos bens comuns, isto é, de um mero besorgen, estar ocupado pragmático no trato intramundano com as coisas: da natureza enquanto matéria prima e fonte de energia, dos humanos enquanto mão de obra ou força de trabalho, na transformação do mundo, da cultura enquanto empresa e entretenimento, da educação enquanto formação de uma via de continuidade, do Estado-Providência entendido como «cuidado» no sentido de «gestão do potencial vivo».

Foucault chamou a esta gestão pública da vida humana e seus diferentes âmbitos, mediante o poder político, biopolítica e procurou pesquisar as suas raízes nas «técnicas» ligadas ao «cuidado de si», que vêm da antiguidade (v. Foucault, 2001 e 1976). Criticamente, num artigo recente, Bernard Stiegler sublinha a necessidade de criar uma outra forma social de cuidado, enquanto «cultivar aquilo de que se cuida, de o fazer frutificar e, nesse sentido, de o trans-formar», de tal modo que «educar a população seja formá-la a ela própria para tomar cuidado dela própria e dos outros, e não só deixá-la receber cuidados dispensados por um poder, qualquer que ele seja, e em nome de alguns saberes, quaisquer que eles sejam» (Stiegler, 2007: 170-171). A isto chama o autor, com galas de neologismo, «noopolítica», uma política do espírito.

A recente nomenclatura denota a necessidade sentida no presente da construção de um espaço público em que seja possível a realização – sem utopia – de um mundo cuidado e do cuidar. Ele consistiria no exercício da atenção enquanto abertura ao ser, sob as suas diferentes formas, induzido politicamente pela via formativa da educação. Não é, certamente, esse exercício que estamos habituados a ver promulgar aos mais diferentes níveis na sociedade industrial em crise, de que não podemos ausentar-nos. É, em qualquer caso, a via de programação técnica e profissionalizante, que vemos desenvolver-se na construção actual da realidade individual e colectiva e na sua projecção para o futuro. Nesse contexto, até o cuidado se profissionaliza e tecnifica, tanto ao nível público como privado. E, contudo, a crescente importância dada, por ex., a organizações não governamentais (ONGs) e a estruturas internacionais de gestão de recursos em função da assistência ao desamparo de todo o tipo revela um vector de intervenção pública para que a reflexão sobre o significado ontológico do cuidado pode ter contribuído decisivamente.

O pensamento de Heidegger pode dizer-se que foi, nesse sentido, precursor, desviando-se da via tradicional tecnológico-pragmática, herdada da modernidade, e do correspondente sistema axiológico. E o pensamento ético-político de alguns dos seus discípulos mais próximos, como Hans Jonas ou Hannah Arendt, que haviam assistido àquelas lições de 1923 e 1924, revela a repercussão que neles tiveram aquela leitura dos humanos como entregues em vida à cura. Também, à sua maneira, o diferente retomar da temática por esses outros leitores mais longínquos, como Michel Foucault ou Giorgio Agamben, dá continuidade à inquietude heideggeriana.

O caminho teórico está, pois, iniciado. Urge agir em concordância. Maria de Lourdes Pintasilgo, em textos dos seus últimos anos de vida, tentou configurar possibilidades de levar a cabo esse esforço.

 

6. Para cuidar o futuro: o projecto Pintasilgo.

Numa tentativa de pôr a descoberto as raízes éticas do exercício político, Maria de Lourdes Pintasilgo reconduz a meditação sobre a democracia para a sua integração na realização da plena humanidade dos humanos. Isto significa entendê-la não como um mero «regime» político ou forma de governo e gestão dos assuntos públicos, que inegavelmente é, mas, num sentido mais amplo, como um modo de estar civicamente num mundo que, para lá da nação e do estado, em sentido moderno, está hoje inexoravelmente marcado pela globalização e pela interculturalidade. Esta concepção metapolítica da democracia implica, decerto, «inventá-la» de novo, como diz em 2002, num artigo de fundo publicado no semanário Visão:

«Para que a Democracia seja viável no século XXI é preciso um outro recomeço. Mas não se trata de partir do zero. Pelo contrário, a invenção da democracia requer que se tenham percorrido os momentos pré-paradigmáticos e se tenha reflectido sobre eles. Só nesse momento é possível dar um salto. E descobrir, vislumbrar, intuir novos paradigmas e assim, talvez, inventar a democracia.» (Pintasilgo, 2002: 40).

Com esta intenção, visita, brevemente mas com acuidade, a meditação de vários filósofos contemporâneos, em busca de um apoio fundamentador do sentido da sua orientação para a acção e intervenção públicas. Desses pensadores, sobressaem Heidegger e Hans Jonas, pela especial caracterização dessa nova democracia como assentando estruturalmente no «cuidado» e na «responsabilidade» enquanto projecto de futuro. Veja-se, por exemplo, no texto fundador por excelência, cujo título programático expressa o desígnio a que daria corpo a posterior Fundação, a referência ao «novo paradigma: um mundo assente no cuidado» – ou, numa outra versão «para um paradigma global: cuidar o futuro.» (Pintasilgo, 0209.034: 16; 0193.021: 8)9. O vector temporal vinculado à atenção ao mundo, em que o homem age e padece, define o imperativo ético, que deve estar na base de qualquer actuação pública no âmbito da polis. Este traduz-se, finalmente, em conceitos sociologicamente aceites, como o de «qualidade de vida», ante o que, contudo, a Autora coloca referências éticas fundamentais como a «felicidade» ou a «dignidade», que denotam o horizonte em que o social deve enquadrar-se. Na verdade,

«a qualidade de vida e a democracia só podem tornar-se em objectivos capazes de darem a felicidade ao povo se, em todas as instâncias, se instaurar uma visão ética de todos os actos. Ao falar de ética não estou a falar de boas intenções, nem sequer daquela espécie de discurso encantatório que julga trazer uma aura de bondade e uma reacção de assentimento a muitos discursos políticos. A ética como ‘sal e pimenta’ do que viola a dignidade humana e, muitas vezes atraiçoa a qualidade de vida, é um travesti de ética. O que refiro aqui, como expressão das grandes correntes filosóficas dos últimos 20 anos, é a ética do cuidado – ou, em outros termos, o princípio responsabilidade.» (Pintasilgo, 0207.002:18).

As palavras de Maria de Lourdes Pintasilgo, poderosamente comunicativas na sua límpida singeleza, são alheias a qualquer pretensão especulativa. O que lhe interessa é a clara indicação dum caminho a seguir. Os apoios invocados, provêm, contudo, do âmbito teológico e, sobretudo, da filosofia: Hans Küng, é citado a propósito da «necessidade de uma ética global para este tempo de globalização» (Ibidem: 2 e 23); o filósofo da ciência Thomas Kuhn, a propósito da questão da mudança de paradigmas, e Hannah Arendt, filósofa da polis, a propósito do carácter fundamental da acção na definição da condição humana (Pintasilgo, 2002: 40); Martin Heidegger, a propósito da definição do humano mediante o cuidado (cura) e dele pertença, como antes vimos, em vida (Pintasilgo, 0207.002, 20; 0193.021, 9)10. São ainda mencionados outros pensadores e pensadoras que desenvolveram uma antropologia do cuidado, como Foucault, Hans Jonas, Lévinas, Paul Ricoeur (Pintasilgo, 0207.002: 22; 0193.021: 8; 0209.034:18), bem como, finalmente, Carol Gilligan e Joan Tronto, a propósito da caracterização da ética do cuidado em paralelo com a ética da justiça (Pintasilgo, 0209.034:19 ss). Mas todas estas referências são de passagem e não desviam a atenção do caminho propriamente a seguir, e que, para terminar, procurarei resumir.

Em primeiro lugar, para a «democracia», que haverá de reinventar em diálogo com o pensamento do século passado e sobre essa base, o novo «paradigma» proposto, pois, é o do «cuidado». Por «cuidado» não entende Maria de Lourdes Pintasilgo algo formal, como vimos que era a compreensão heideggeriana do termo, ao considerá-lo ontologicamente como «ser do Dasein», na sua dinâmica eminentemente temporal. No contexto desta nova democracia, o cuidado aparece, antes, como a unidade intencional dos actos concretos tendentes à consecução do objectivo global, que vem mencionado, eudemonisticamente, como «felicidade do povo». Por isso, o «cuidado» vem a ser, para Maria de Lourdes Pintasilgo, o exercício ou prática do que, em teoria, seria a «responsabilidade», enquanto «princípio» de acção, à maneira de Jonas. Cuidado e responsabilidade constituem, pois, em segundo lugar, as duas caras de uma mesma moeda, que é o princípio ético fundamental, orientador da acção na sua globalidade. Por «democracia» haveria, então, finalmente, que entender o lugar inevitavelmente político ou civil da realização da vida em comum de todos, sobre o solo ou fundamento da capacidade e, portanto, possibilidade de responder ante os humanos de tudo o que, nessa mesma dimensão pública, lhes concerne.

É notável o esforço de síntese da Autora na reunião dos traços caracterizadores desta democracia do cuidado enquanto «defesa arrojada da dignidade de todos» (Pintasilgo, 0207.002: 9 ss). Esta estrutura-se na categoria de «qualidade de vida», que Maria de Lourdes Pintasilgo explicita, não exaustivamente, como sendo a erradicação da pobreza, a aquisição de saber (aprendizagem e reflexão) em todas as etapas da vida, o acesso «inegociável» à saúde, mas, sobretudo, a «obrigação que cabe a todos nós de deixarmos um planeta em que seja possível viver» (Ibidem: 12). Talvez esta evocação final, apesar da sua clara proximidade jonasiana, também permita inscrever Maria de Lourdes Pintasilgo na linha da biopolítica. Seria mais um sintoma da sua acuidade hermenêutica. Mas penso que o mais interessante é a sua tentativa de dar corpo àquilo que os pensadores do século XX, sobretudo depois do acontecimento metafísico ligado ao totalitarismo e ao genocídio, estabeleceram como novum na compreensão da quotidianeidade do exercício da vida pública: o carácter vinculante do cuidado, como modo de ser e estar uns com os outros num mundo freneticamente impulsado pelo desenvolvimento técnico-científico, politicamente gerido, e regido por leis, que um só imperativo, único e primordial, deve ter vigência: a responsabilidade como princípio e os corolários da sua aplicação. Se o primeiro destes aspectos tem o cunho do pensamento de Martin Heidegger e o segundo o do seu discípulo Hans Jonas, o traço de união entre ambos, que eu própria tenho tratado noutros contextos (Borges-Duarte: 2005), poderia, mediado pelo aggiornamento realizado pela Eng.ª Maria de Lourdes Pintasilgo, resumir-se na expressão que creio poder traduzir o seu pensamento: o cuidado é o exercício fáctico da responsabilidade. O novo paradigma da democracia seria, então, o projecto, inequivocamente metapolítico, de realização plena do respeito pelo ser que, no seu aí inequívoca, inevitavelmente humano, se deixa albergar e edificar cultural, histórica e politicamente.

 

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Notas

1 É nesse sentido que se fala do «curador», aquele que tem o encargo de cuidar ou administrar, ou do pároco como «cura», que cuida de seus fiéis. Mas este uso linguístico, embora se mantenha, é arcaizante.

2 As referências a Sein und Zeit [SuZ], embora feitas pela Edição Integral de Martin Heidegger, a Gesamtausgabe [GA], volume 2, 1977, manterão a paginação da 7.ª edição (Tubingen, Niemeyer, 1953), que aquela reproduz à margem. A fábula é incluída em latim e traduzida para alemão em SuZ § 42, 196. Também fora tratada nas Lições de 1925, Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, GA 20, 1979, 418.

3 «… parece-me óbvio que se trata de um mito gnóstico. E é justamente aquilo que na maior parte dos mitos gnósticos marca o ponto crucial, que fica suprimido na fábula: Cura atravessa o rio para poder reflectir-se nele. […] Os reflexos fazem parte fundamental do mito gnóstico. […] Na mitologia gnóstica, a mais alta hipóstase, Sophia, vê-se a si mesma no espelho. […] Este núcleo chave está ausente da fábula da Cura [….] Por isso, não é que a cura possa possuir o homem durante a vida, por tê-lo inventado, mas ele pertence-lhe porque foi feito à sua imagem e semelhança.»

4 Atenda-se especialmente à nota explicitativa na página 207: «phänomenologische Zusammenhang zwischen curare als Bekümmerung (vox media) und uti als (in Bekümmerung) Umgehen mit.» Não me parece, pois, que Blumenberg acerte ao considerar que a introdução do conceito de Sorge no pensamento do autor de Ser e Tempo se deveu à leitura de Burdach (em 1923), apesar da citação em nota do próprio Heidegger, a pé de página, não sendo «tão teológica como parece pelas referências de Heidegger a Santo Agostinho». V. Blumenberg, 2001: 153. A questão não é teológica, mas surge no seio de uma interpretação fenomenológica de Santo Agostinho, que está na génese da problemática de Ser e Tempo.

5 «Die Sorge ist der Terminus für das Sein des Daseins schlechthin. Sie hat die formale Struktur: Seiendes, dem es bei seinem In-der-Welt-sein um dieses Sein selbst geht»

6 «Sich vorweg schon sein in (einer Welt) als Sein bei (innerweltlich begegnendem Seienden).» SuZ, § 65, 327. Na análise desta estrutura eminentemente temporal remeto para o meu texto «O tempo do cuidado e o tempo do mundo. Um núcleo conceptual heideggeriano», in Razão e liberdade. Homenagem a M. J. do Carmo Ferreira, Lisboa, C.F.U.L.,1391-1405.

7 «Der Mensch kann denken, insofern er die Möglichkeit dazu hat. Allein dieses Mögliche verbürgt uns noch nicht, dass wir es vermögen. Denn wir vermögen nur das, was wir mögen.»

8 Reproduzo o original alemão (GA 60, 410): «der Drang als solcher blendet, er macht blind. Man pflegt zu sagen: Liebe macht blind. In diesem Rede meint man Liebe als Drang, man supponiert ihr ein ganz anderes Phänomen; Liebe dagegen macht gerade sehend

9 Numa tentativa de precisão, os inéditos de Maria de Lourdes Pintasilgo serão, doravante, citados meramente pelo seu número de arquivo, embora na bibliografia final se especifique a data da sua redacção, quando é conhecida.

10 A referência a Heidegger extende-se à própria fábula da cura, que a Autora recorda nas suas linhas gerais.

 

Texto recebido em Janeiro de 2010 e aceite para publicação em Fevereiro de 2010

 

*Irene Borges-Duarte é Professora associada na U. de Évora e doutorada pela U. Complutense de Madrid, onde leccionou (1992-1996). Investigadora em Mainz (Kant-Forschungsstelle) e Freiburg im Breisgau. Coordena, no Centro de Filosofia da U. de Lisboa, o Projecto «Heidegger em Português» e a edição da Obra de Martin Heidegger (Caminhos de Floresta, 2002, e Lógica. A pergunta pela essência da verdade, 2008, FCG). Traduziu Heidegger, Reinhold, Eberhard, Gadamer e von Herrmann, entre outros. Publicações mais recentes: A Natureza das Coisas e as Coisas da Natureza. Um estudo da ‘Crítica da Razão Pura’, Lisboa, 2006; A Morte e a Origem. Em torno a Heidegger e a Freud (Ed.), Lisboa, 2008.

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