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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.24 Vila Franca de Xira  2011

 

Introdução: Género e Migrações

 

Sofia Neves*1 e Joana Miranda*2

*1Instituto Superior da Maia / *2CEMRI – Universidade Aberta

 

Este dossier temático, que em boa hora a Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres (APEM) aceitou connosco organizar, tem como objetivo central congregar leituras teóricas e evidências empíricas que sustentem a indispensabilidade de se analisar as migrações a partir de uma ótica genderizada.

Muito embora pareça ser hoje incontestável a ideia de que as migrações devam ser estudadas tendo em consideração as especificidades das pertenças identitárias de quem as protagoniza, nem sempre as investigações neste domínio problematizam as múltiplas dimensões que o fenómeno comporta em si mesmo.

A crescente genderização das migrações (Yamanaka & Piper, 2006), pese o facto de ter impulsionado o princípio de uma mudança de paradigma nos estudos migratórios (Morokvasic, 1984), não redundou ainda na adoção clara de um enfoque de género (Miranda, 2009) ou intersecional na compreensão das migrações femininas (e das masculinas) (Crenshaw, 1991; Neves, 2010).

Com efeito, a grande maioria dos estudos levados a cabo, quer nacional, quer internacionalmente, tende, ainda, a desvalorizar ou a minorar a influência das pertenças de género, assim como de outras pertenças identitárias (e.g. etnia, orientação sexual, nacionalidade) nos processos e nas dinâmicas migratórias. Como resultado, são produzidas generalizações abusivas, as quais concorrem para a construção de considerações enviesadas sobre a realidade das mulheres e dos homens migrantes.

Na análise da problemática migratória, algumas questões terão de ser forçosamente equacionadas: Quando falamos genericamente de migrações, de que migrações falamos? Serão as migrações um fenómeno homogéneo, cuja caracterização se possa fazer por via de uma linguagem universalista? E quando nos reportamos às migrações femininas, pela voz de que mulheres migrantes falamos? Serão as mulheres migrantes uma categoria una e indecomponível ou uma realidade múltipla, de grande complexidade e em permanente transformação?

As teorias migratórias tradicionais não têm tido em conta as especificidades das realidades migratórias das mulheres, mas estamos hoje conscientes de que a complexidade dos processos e das dinâmicas migratórias não é, de todo, compatível com um discurso simplista e abstrato sobre as migrações.

Os textos apresentados neste dossier demonstram isso mesmo: não só que as migrações se revestem de uma densa complexidade, como são um fenómeno diverso, com matizes e nuances muito próprias. Consoante os contextos e as protagonistas, se em alguns casos as migrações ocasionam vivências de violência e de discriminação, em outros proporcionam experiências empoderadoras, de autonomia, enriquecimento pessoal e transformação das envolvidas e dos contextos sociais em que as mesmas estão inseridas.

Experiências que poderiam, à partida, ser perspetivadas de uma forma negativa podem vir a revelar-se transformadoras e geradoras de mudança individual (como é o caso das gravidezes na adolescência abordadas no texto de Calesso, Mitjavilla, Pizzinato e Barcinski) bem como de mudança social (como é o caso do asilo político de mulheres, focado no texto de Sophie Lhenry).

Os sete textos que compõem este dossier, da autoria de investigadoras e investigadores de diferentes nacionalidades, formações académicas, com perpetivas teóricas e abordagens metodológicas que se cruzam e entrelaçam, contribuem para a compreensão do caráter polissémico da temática deste dossier.

Em Maternidad adolescente en immigrantes en el contexto catalán, Calesso-Moreira, Mitjavila-García, Pizzinato e Barcinski desafiam a visão tradicional mais ou menos consensual da gravidez na adolescência como um acontecimento indesejável e de consequências negativas. Perpetivam-na, antes, enquanto estratégia de empoderamento para mulheres que viveram situações de violência doméstica, de desamparo e de falta de recursos, num contexto em que outras estratégias são escassas. Discutem os resultados de dez entrevistas conduzidas junto de jovens mulheres imigrantes que tiveram os seus filhos quando adolescentes na região da Catalunha.

João Sardinha apresenta-nos no seu texto – Portuguese-Canadian and Portuguese- French second-generation migrant women narrate ‘return’ to Portugal – produzido a partir de dez narrativas de mulheres migrantes de segunda geração luso-canadianas e luso-francesas que «regressaram» a Portugal para viver, uma visão centrada nas experiências das mulheres. Neste texto, resultado de um trabalho etnográfico, discutem-se as questões da integração e da pertença, também à luz das expetativas do pré-retorno e do pós-retorno. É notória neste trabalho a forma como as participantes elaboram os seus planos pessoais de ação na situação de pré-retono, salientando o desejo do retorno a Portugal, aqui significado como um país de oportunidades e de realização cultural.

Partindo do entendimento da mobilidade como um dos elementos centrais da teoria social contemporânea e de um paradigma da mobilidade que reforça a centralidade dos conceitos de espaço, lugar e fronteira, em Mobilidades, migrações e orientações sexuais: Percursos em torno das fronteiras reais e imaginárias, Paulo Jorge Vieira relaciona as mobilidades com as orientações sexuais. Sendo o armário o centro das vivências lésbicas e gays nos tempos da modernidade, a «saída do armário» é perspetivada como o centro e o vórtice de um primeiro processo de mobilidade metafórica e simbólica. Mas a mobilidade metafórica do armário corresponde, muitas vezes, a um outro tipo de deslocação e de mobilidade real, sendo pois salientadas as motivações de ordem sexual subjacentes às migrações para as cidades. É salientada a interseccionalidade do género e da sexualidade com as identidades nacionais, étnicas e diaspóricas, sendo tecidas fecundas reflexões paralelas em torno da questão do asilo político, da globalização gay e da crítica queer.

Marisa Caroço Amaro, com o seu texto La prostitución en la era digital: análisis de estructuras y contenidos de los anuncios publicitados en Internet, discorre sobre os efeitos da globalização ao nível da expansão da internet como ferramenta de publicidade e de consumo sexual. A autora procura caracterizar a indústria do sexo em Espanha, recorrendo para isso à análise de anúncios da internet. As suas conclusões apontam para o facto da Internet se ter configurado como um recurso publicitário adaptado às vivências das sociedades contemporâneas, servindo como plataforma de troca de informação. A indústria do sexo parece seguir essa mesma tendência, sendo a Internet atualmente um valiosa ferramenta de divulgação de conteúdos sexuais.

Em L’exil des feministes: délocaliser la lutte pour continuer à agir, Sophie Lhenry apresenta uma perspetiva de análise e reflexão afastada de visões mais estruturalistas dos movimentos migratórios que enfatizam o impacto das dificuldades que as mulheres encontram nos países de destino e de modelos binários de análise das sociedades de partida/sociedades de chegada. Com base na recolha de histórias de vida de trinta e duas mulheres argelinas e iranianas exiladas em França e nos documentos por elas produzidos, Lhenry dá voz às exiladas políticas (quando classicamente, os exilados políticos eram apenas os homens), revelando a sua vontade de serem atoras da história. É discutido o impacto do feminismo (e de uma vontade consciente ou não consciente de transgredir as regras genderizadas do país de origem) nas carreiras militaristas atravessadas pelo exílio.

Vera Silva, no texto As mulheres no conflito armado do Ruanda, propõe uma análise ao conflito do Ruanda, desde o seu início até ao genocídio de 1994 e período pós-genocídio, problematizando as experiências e práticas das mulheres neste contexto de conflito armado. A autora procura evidenciar as problemáticas específicas das mulheres, sobretudo no que concerne ao processo de formação das identidades étnicas. Segundo a mesma, as mulheres no conflito do Ruanda, devido às construções sociais e culturais sobre os sexos, nomeadamente sobre o sexo feminino, e ao processo de etnicização sofreram e participaram no conflito através de experiências e práticas específicas e diferenciadas, sobre as quais é necessário refletir.

Com o texto Da participação à integração: Estruturas e oportunidades, discriminação e género no contexto da participação cívica e política de jovens imigrantes brasileiros/ as, Maria Fernandes-Jesus, Norberto Ribeiro, Pedro D. Ferreira, Elvira Cicognani e Isabel Menezes convidam-nos a uma reflexão sobre as formas, contextos e níveis de participação cívica e política de jovens imigrantes brasileiros/as em Portugal. A partir da realização de grupos de discussão focalizada as/os autoras/es analisam experiências, perceções e significados que os/as jovens brasileiros/as atribuem à participação, à integração, às estruturas políticas e ao preconceito/discriminação. Neste estudo, o discurso dos/as jovens reflete uma visão sobre as políticas de integração consideradas positivas no plano teórico, refletindo contudo algumas ambivalências no plano prático.

Esperamos que este dossier possa enriquecer um debate informado e interdisciplinar sobre as migrações, favorecendo o desenvolvimento de olhares críticos sobre o fenómeno e estimulando novos percursos de investigação.

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