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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.26 Vila Franca de Xira  2012

 

Múrias, Cláudia e Koning, Marijke de (Coord.) (2012), Lideranças partilhadas: Percursos de literacia para a igualdade de género e qualidade de vida, Porto, Fundação Cuidar O Futuro e Livpsic1, 330 páginas.

 

Eunice Macedo e Amélia Macedo

Instituto Paulo Freire de Portugal, CIIE-FPCEUP, Associação Espaços: Projetos Alternativos de Mulheres e Homens / Instituto Paulo Freire de Portugal

 

Em partilha de lideranças, a responsabilidade autoral enriquece a obra com distintos olhares de apropriação teórica e prática. Como lógica orientadora, a passagem duma visão da liderança autocrática, duma história no masculino, como enfatiza Luiza Cortesão, no prefácio, a uma liderança democrática participativa, com o feminino. Helena Araújo, no posfácio, refere que o livro releva as lideranças partilhadas, «liderança duma outra natureza» que questiona e problematiza (p:324). Obra que vale a pena ler, organiza-se em três partes: a primeira centra as raízes do projeto retratado, a segunda interpela teoria e prática, e a terceira avalia, entre testemunhal e reflexiva.

Na introdução, Claudia Múrias e Marijke de Koning acentuam a «pluralidade de vozes» e destacam argumentos.

O texto de Marijke de Koning substantiva a intervisão no projeto destacando-se pela originalidade. Freiriana, em lugar nómada, antevê possibilidade e desafia-nos a reencaminhar. Contrapondo afetos à liderança messiânica, propõe uma racionalidade outra, como forma humana de saber2, subjetiva e comunicacional. Afirma olhares femininos nos trajetos da FCF e explora aprendizagem pela conversa com conscientização; um paradigma de liderança sustentado na amizade, enquanto forma de luta3. Mostra caminhos, busca inovação social para ultrapassar o vazio, como lugar já referenciado por Giles Lypovetsky nos anos 80, em A era do vazio.

Ine van Emmerik enraíza-se em genealogias feministas, como tradição emancipatória4. Passa da visão linear a uma proposta de circularidade que permite construir lideranças na reflexão sobre a experiência; cada pessoa, sujeito em processo – a palavramundo5 complementada com a leitura do mundo interior. Articula Arendt e Maria de Lourdes Pintasilgo (MLP), no encontro entre literacia e aprendizagem na condição humana – percurso agido, em renascimentos relacionais. Cruza aprendizagem pela conversa, na transição entre ordem e surpresa. A máxima socrática, que faz nascer ideias, induzindo respostas, é ressignificada no feminino, no reconhecimento autónomo do saber pessoal.

Perguntar o que estamos mesmo a fazer é o desafio de Whitespace, intervision and shared agency, da mesma autora. A intervisão dá forma à agência partilhada, num contexto de ressignificação da profissionalidade, acentuação da tensão entre autonomia e controlo e apelo ao currículo de vida oculto nos espaços em branco da narrativa individual.

Jeannette Claessen situa comunicação autêntica, associando comunicare a crear comunidad. Sustentando-se nas «palavras do coração» para exprimir desejos e necessidades, reporta-nos à proposta de Maria Zambrano da tomada da palavra do coração, na maiêutica para uma nova razão, sustentada nos afetos6. Desenha-se uma forma de comunicação, em «conexão connosco mesmos/as» e na escuta com reconhecimento. A criação de comunidades emerge de experiências de arte comunitária.

Kerstin Jacobson inicia o segundo bloco com possibilidade. Sustentada na moralidade cívica durkheimiana, vai além da análise dos mecanismos de desigualdade e de exclusão social. Reflete sobre a Suécia contemporânea «apesar da pluralidade de formas de vida» (p. 116), propósito que parece associar diversidade e desvantagem. Além da relação com o estado, cidadania suporta-se numa consciência cívica relacional com individuação. Emerge solidariedade da autonomia.

Em Produzir conhecimento a partir das pessoas Teresa Toldy debate questões caras ao movimento feminista, com Dona Haraway, Sandra Harding, bell hooks e Chandra Mohanty. Argumenta pela autonomeação. O conhecimento é situado, parcial, parcelar, incompleto e as/os sujeitos plurais. Que vozes se fazem ouvir na produção de conhecimento? Conhecer a partir das pessoas avoca a diversidade e complexidade de léxicos, mapas concetuais e vozes, que uma só linguagem não pode comportar.

Num paradigma de incertezas, Hugo Monteiro interroga o «diálogo como instância de troca e negociação de sentido» (p. 165), tendo em conta o poder subjacente à legitimação de diferentes racionalidades. Afirma o papel da implicação na produção de saber. Situa o projeto em justiça e democracia, como Iris Young7. Explora autoridade e liderança, num quadro ético e político, com MLP. Vê a autoridade produtiva relacional exterior ao sujeito como paradigma mais útil a lideranças partilhadas. Cabe «fazer com que a realidade fale nela, por ela e (…) apesar dela» (p. 177).

Liliana Lopes explora o papel do/a trabalhador/a social na promoção da qualidade de vida. A implicação de diversos/as agentes/atores, atinente a interesses particulares, interage com outros níveis de regulação, na «interpretação, apropriação e contextualização local das ideologias políticas» (p. 183). Apela a um desenvolvimento humano sustentável, com igualdade de género. Dá realce ao reconhecimento de si, à orientação ideológica no trabalho social e às configurações intersubjetivas na construção de mudança social responsável.

Cláudia Múrias e Raquel Ribeiro focam desigualdades, estereótipos e papéis de género, em diversas esferas. O género interfere na liderança. «Construindo a igualdade de género enquanto dimensão da qualidade de vida» (p. 216) assume uma dimensão mais analítica e esperançosa. As autoras suportam-se em MLP para enraizarem qualidade de vida com dimensões subjetivas.

Aprender pela conversa: assim como e depois?, de Eunice Macedo e Amélia Macedo, parte dum paradigma de intervisão, como amigas críticas aprendentes. Questiona a aprendizagem pela conversa, pressupostos, procedimentos e potenciais impactos nas vidas das pessoas e instituições. Cruza aprendizagem pela conversa8, conscientização, voz e democracia inclusiva através da comunicação. Articula os workshops observados com construção de literacias, asserção de voz, comunicação e democracia, em transformação.

A terceira parte da obra, Ancorando experiências plurais começa com retalhos sobre a exclusão das mulheres. António Nunes focaliza o contexto português, num texto «despretensioso». Acentua como projetos como o que aqui se reflete, contribuem para a desconstrução de clichés (sic) sobre as mulheres construídos no Estado Novo. Defende a viabilidade duma ponte histórica pela visibilização de percursos femininos de resistência.

A construção de lideranças num contexto de (in)diferença testemunha transformação organizacional pela participação. Fátima Veiga preocupa-se com exclusão social, num quadro de retrocesso legal, simbólico e histórico «em termos de direitos adquiridos» (p. 254) centrado no reforço do masculino. Contextualiza as representações acerca da utilidade social das mulheres, que articula com o apoio da EAPN a pessoas em situações de desfavorecimento. Como participante, reflete sobre tópicos, motivação, dominância do feminino e metodologia.

Pela mão de Ionut Cosmin Nada, acedemos à dimensão mais humana do trabalho. Num texto autobiográfico, este jovem romeno assume o olhar como imigrante acolhido no seio de outro povo. Vê a sociedade portuguesa como possibilidade. Reflete sobre a metodologia do projeto. Elabora sobre igualdade e partilha de lideranças e o seu percurso de literacia. Examina lideranças partilhadas e qualidade de vida. Na primeira pessoa, termina: «Ganhei (…) uma consciência outra tanto em relação aos temas tratados, como em relação às minhas práticas e ações quotidianas» (p. 284). Que melhores resultados?

Filiada na Sementes de Futuro e jornalista, Filipa Júlio inspira na partilha duma experiência distinta de outras ações – a arte como meio e fim da expressão pessoal. Permite realçar o potencial apropriativo do projeto. Uma efetiva intertextualidade cobre imagens, texto escrito e voz… a mensagem de continuidade na máxima Transformamos, transformando-nos, cultivamos, cultivando-nos, visando a sustentabilidade do projecto social» (p. 295).

O texto de Raquel Ribeiro e Claúdia Múrias discute o contributo do projeto. Cruza dados percentuais e vozes. Aborda a metodologia. Evidencia a diversidade das pessoas participantes, motivações, enriquecimento pessoal e mudança de atitudes e práticas. Acentuando os efeitos transformadores do projeto, permite a reflexão para futuro.

Helena Araújo, no posfácio, assume deixar-se seduzir por algumas das linhas do livro. Acentua novos «registos duma linguagem que sublinha o que se procura de novo» (p. 323).

Como avaliadoras externas, que dialogaram com o projeto, congratulamo-nos também com o aval dado à equipa, quando questionadas quanto ao potencial valor da obra para publicação.

 

Notas:

1A obra em análise foi produto do projeto Literacia para a Igualdade de Género e Qualidade de Vida Lideranças Partilhadas, cujas avaliadoras externas foram Eunice Macedo e Amélia Macedo, no âmbito da parceria entre a Fundação Cuidar O Futuro e o Instituto Paulo Freire de Portugal. Detalhes sobre a obra podem ser consultados no Relatório do Projeto.

2Fernanda Henriques apela a este conceito em «As teias da razão: A racionalidade hermenêutica e o feminismo» na obra organizada por M. Luísa Ribeiro Ferreira As teias que as mulheres tecem, de 2003.

3Ideia central ao texto de Valerie Hey, na ex aequo 7, de 2002.

4Categorização utilizada por Madeleine Arnot, em Gender voices in the classroom, em 2006, distinguindo tradições no uso da voz.

5Paulo Freire estabelece, com este neologismo, a articulação inalienável entre palavra e mundo.

6Andrea Peniche e Eunice Macedo exploram este tema, em 2004, na recensão duma obra de Maria Zambrano, na ex aequo, 9.

7Na linha de Inclusion and democracy, de 2002.

8Expressão que traduz a denominação utilizada por Ann Baker, Patricia Jensen e David Kolb em Conversation as experimental learning, de 2002.

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