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Ex aequo
versão impressa ISSN 0874-5560
Ex aequo no.27 Vila Franca de Xira 2013
As políticas de conciliação nos planos nacionais para a igualdade: uma análise dos quadros interpretativos
Reconciliation policies in national plans for gender equality: a frame analysis
Les politiques de conciliation dans les plans nationaux pour l'égalité des sexes: une analyse des cadres interprétatives
Rosa Monteiro*1 e Sílvia Portugal*2
Instituto Superior Miguel Torga e CES-Universidade de Coimbra, Portugal / Faculdade de Economia e CES-Universidade de Coimbra, Portugal
RESUMO
Este artigo analisa os quadros interpretativos das políticas de conciliação desenhadas pelos I, II e III Planos Nacionais para a Igualdade. Explicita-se o modo como o problema da conciliação da vida profissional, pessoal e familiar tem sido formulado e construído politicamente nestes documentos. Procura-se perceber a forma como os quadros interpretativos são ou não sexualizados, explorando algumas das características do processo de definição das políticas de igualdade em Portugal, seus protagonistas, dinâmicas e estruturas de oportunidades. A análise do discurso produzido nos Planos revela uma formulação do problema assente em modelos familistas que, em grande parte, desloca a questão da conciliação do âmbito das relações sociais de sexo.
Palavras-chave: Políticas de conciliação, quadros interpretativos, Planos Nacionais para a Igualdade, Portugal.
ABSTRACT
This article examines the frames of reconciliation policies in the Ist, IInd and IIIrd National Equality Plan. It explains how the problem of reconciliation has been politically constructed and formulated in these documents. It seeks to understand the way in which the frames are gendered or not, exploring some characteristics of the policy making of equality policies in Portugal, its actors, dynamics and political opportunities structures. The frame analysis reveals a formulation of the problem focused on familism, what offsets the gendered dimension of the reconciliation issue.
Keywords: Work/Family reconciliation policies, interpretative frames, national plans for gender equality, Portugal.
RÉSUMÉ
Cet article examine les frames des politiques de conciliation présente dans les Ière, IIème e IIIème Plan National pour lÉgalité. Il explicite comment le problème de concilier vie professionnelle, personnelle et familiale a été politiquement construite et formulé dans ces documents. Il veut comprendre si les frames son sexualisés ou non, et dexplorer caractéristiques du processus de production des politiques dégalité au Portugal, notamment ses protagonistes, dynamiques et ses structures dopportunité politique. Lanalyse du discours révèle que les Plans sont basés dans des modèles familistes, qui détournent la question de la conciliation du cadre des rapports sociaux de sexe.
Mots-clés: Les politiques de conciliation, les cadres interprétatives, des plans nationaux pour l'égalité des sexes, Portugal.
Introdução
Qualquer política pública tem subjacente «uma forma de selecionar, organizar, interpretar e fazer sentido de uma realidade complexa de forma a fornecer diretrizes de conhecimento, análise, persuasão e ação» (Hall apud Snow, 2004: 384). Trata-se de significados e interpretações que encontramos nos discursos das políticas oficiais, que não só as justificam e legitimam, mas que procuram orientar a forma como as questões são e «devem ser» equacionadas e entendidas pelos diversos agentes. No universo do estudo das políticas públicas este processo tem sido amplamente estudado, especialmente desde a década de 1980. Um dos seus primeiros e principais propositores foi, sem dúvida, David Snow (2004), focalizado na construção de significado pelos/as ativistas dos movimentos sociais, pelos seus opositores e pelos media, através da análise de frames1.
Do campo estrito de análise dos movimentos sociais esta abordagem construcionista ampliou-se, de forma profícua, também no domínio de análise da produção de políticas de igualdade (Bacchi, 1999; Hafner-Burton e Pollack, 2002; Lombardo, Meier e Verloo, 2009; McBride e Mazur, 2005). Como referem Carol Bacchi e Joan Eveline, «de forma a ser transformadora uma análise de género deve ser capaz de escrutinar as premissas subjacentes nas propostas políticas», revelando se elas são ou não sexualizadas2 (2010). Este conceito dá conta do processo através do qual um fenómeno passa a integrar explicitamente um significado associado às relações sociais de sexo (McBride e Mazur, 2005: 13). Um processo ou uma agenda política é sexualizada se é enquadrada por ideias acerca da forma como o problema e as suas soluções afetam as mulheres em comparação com os homens.
Este tipo de análise de quadros interpretativos procede também ao escrutínio dos preconceitos de género e conceções enviesadas presentes nos discursos políticos, revelando inconsistências latentes no desenho das políticas de igualdade. Carol Bacchi (1999), por exemplo, desenvolveu a abordagem «qual é o problema? », que explora a construção dos problemas, e portanto a sua aceitação ou negação enquanto agenda, através de cinco questões: Como é que o problema x é representado num debate ou proposta política específica? Que pressuposições ou assunções estão subjacentes a esta representação? Que efeitos são produzidos por esta representação? Como é que os sujeitos são constituídos por essa representação? O que é provável que mude ou permaneça igual? O que é que é deixado como não problemático nesta representação? Em que é que difeririam as respostas se o problema fosse representado de forma diferente? (Bacchi, 1999: 12-13). Emanuela Lombardo e Petra Meier (2006) acrescentaram duas outras questões, que consideramos importantes: Quem tem voz na definição do problema? Quem tem voz em sugerir soluções para o problema?
À luz destas propostas analíticas procuramos aqui interpretar a forma como o problema da conciliação tem sido implícita e explicitamente representado nos planos nacionais para a igualdade. Centramos a análise nos três primeiros, ou seja, o Plano Global para a Igualdade de Oportunidades (1997-99), o II Plano Nacional para a Igualdade (2003-2006) e o III Plano Nacional para a Igualdade Cidadania e Género (2007-2010)3.
Pressionado pelo compromisso europeu com a «igualdade de género» (1997), Portugal passou a adotar Planos Nacionais para a Igualdade, como materialização de uma estratégia de mainstreaming. A importância destes documentos de política é por isso extrema, como ponto de convergência que são de dinâmicas de produção e de construção de significados das políticas públicas de igualdade de género. Neste artigo procuraremos perceber em que medida o discurso político sobre a conciliação visibiliza e ataca, ou não, a cultura patriarcal por detrás do problema, se o identifica como problema baseado nas assimetrias entre sexos, e de que forma legitima a necessidade de intervenção. Num segundo momento, apresentamos as razões e fatores que explicam esse diagnóstico. Procuramos perceber a forma como os quadros interpretativos são ou não sexualizados explorando algumas das características do processo de produção de políticas de igualdade em Portugal, seus protagonistas, dinâmicas e estruturas de oportunidades políticas.
Uma construção da conciliação fora das relações sociais de sexo
A análise que fazemos da forma como o problema da conciliação da vida profissional com a familiar e pessoal tem sido discursivamente construído nos Planos Nacionais para a Igualdade, para além de seguir o esquema interrogativo da análise de quadros interpretativos que apresentamos antes, socorre-se também de uma proposta concetual do que se considera um discurso sexualizado e feminista. Segundo a proposta da Rede de Investigação sobre Género, Política e Estado, um discurso para ser emancipatório das mulheres e sexualizado deve: referir-se explicitamente às mulheres como um grupo, reconhecendo que a situação destas é mais desfavorável; utilizar uma linguagem explicitamente sexualizada, referindo-se às mulheres como distintas dos homens: imagens de como as mulheres são; de como elas diferem dos homens; de como as mulheres são diferentes umas das outras; de como a categoria sexual molda as identidades; representar as mulheres enquanto mulheres. Para além de sexualizado um discurso para ser considerado feminista deve: indicar que os objetivos beneficiarão de alguma forma as mulheres, já que se parte do princípio de que o seu estatuto e a forma como são tratadas pela sociedade lhes são desfavoráveis; desafiar e procurar derrubar as hierarquias sociais de sexo e as formas de subordinação das mulheres (McBride e Mazur, 2005; 2008).
O processo de produção de planos nacionais para a igualdade, como instrumento para a operacionalização da política de mainstreaming de género, foi um processo que apresentou uma considerável demora relativamente aquilo que foram as reivindicações das representantes das mulheres portuguesas. O Primeiro Plano Global para a Igualdade de Oportunidades (1997) apenas surgiu nove anos depois de a Comissão da Condição Feminina e Secção de ONG do seu Conselho Consultivo terem proposto a vários agentes políticos uma Plataforma Comum de Ação, prescrevendo uma estratégia de transversalização das questões da igualdade nos vários domínios de política (Monteiro, 2011).
Apesar disso, neste período de espera, em 1994, o Governo do Partido Social Democrata produziu a RCM 32/94, de 17 de Maio4. Esta terá sido uma primeira manifestação no sentido do reconhecimento das políticas de mainstreaming. Tratou-se de uma iniciativa que ainda que lançasse um impulso para o mainstreaming de género a todos os Ministérios, e preconizasse uma espécie de Plano, acabava por colocar o enfoque em medidas e políticas em torno da situação da mulher como trabalhadora. A isto não será alheio o facto de as questões da igualdade entre mulheres e homens estarem, nessa altura, sob tutela do Ministério do Emprego e da Segurança Social. Mas o que é mais interessante neste documento político é que no preâmbulo do texto a política de promoção da igualdade de oportunidades e responsabilidades entre homens e mulheres é apontada como um meio para a revalorização social da família como função do Estado, tendo em conta os problemas que o Ano Internacional da Família (celebrado nesse mesmo ano) tinha vindo a revelar. Os quadros interpretativos estavam portanto associados às questões da família e não da igualdade de mulheres e homens e dos direitos das mulheres. Esta falta de vontade política para legislar em nome dos direitos das mulheres ficou bem demonstrada, por exemplo, também na não transposição da Diretiva comunitária 92/85/CEE, relativa à implementação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde das trabalhadoras grávidas, puérperas ou lactantes no trabalho, de que esse governo foi acusado pelas ONG do CC, em Comunicado à imprensa (27 de Outubro de 1994).
Mas a estreita ligação dos problemas da atividade profissional das mulheres e da conciliação às questões da família5 não foi um exclusivo daquele documento. Ela manter-se-á, de alguma forma, no primeiro Plano Global para a Igualdade de Oportunidades, somando-se-lhe a questão demográfica. Repare-se como no preâmbulo da RCM 49/97, que apresenta o Plano, a questão do «confinamento das mulheres às funções assistencialistas» é vista mais como efeito das mudanças demográficas do que das assimetrias sexuais. A problemática da divisão sexual do trabalho nem sequer é invocada:
No plano demográfico, o efeito combinado do aumento da esperança de vida e da baixa taxa de natalidade resulta no progressivo aumento da população idosa e na redução da população jovem. Se a estas tendências associarmos os efeitos da urbanização e da progressiva diminuição da dimensão média das famílias, estamos perante alguns dos fatores que mais contribuem para confinar a atividade das mulheres ao contexto familiar, devido à diversificação, no espaço urbano e no tempo de vida, das atividades assistenciais que são chamadas a assegurar junto dos seus familiares (Plano Global para Igualdade de Oportunidades, 1997).
Quando analisamos o objetivo 4, que formula as medidas específicas no domínio da «conciliação da vida privada e profissional» (não se integra ainda a vida pessoal), emerge claramente esta vinculação às problemáticas da família. De facto, nas sete medidas apresentadas a palavra mulheres apenas aparece uma vez, em detrimento das mais comuns: família, filhos ou crianças e jovens, dependentes. Nas várias medidas não se alude à problemática das assimetrias sexuais, da divisão sexual do trabalho, da diferença entre mulheres e homens. O problema da conciliação é «das famílias».
Este enfoque encontra-se ainda mais acentuado no objetivo cinco que acolheu a designação «Proteção social da família e da maternidade». Na primeira medida falava-se no reconhecimento (fiscal e segurança social) do valor das tarefas domésticas, sem se identificar quem maioritariamente as realiza. Na segunda, de apoio social a mulheres e homens sós «com filhos deficientes» em nome da «proteção social à família». Finalmente, na medida três a proteção às mães adolescentes apresentava-se em nome da sua não exclusão do sistema escolar, e da promoção da educação.
A este enfoque na proteção da família não será alheio o facto de o Plano ter sido impulsionado e elaborado no Gabinete do Alto Comissariado para as Questões da Promoção da Igualdade e da Família, que tutelava a Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres e o Conselho Nacional da Família. A dinamização da execução do Plano cabia a este Gabinete e a execução à CIDM.
A articulação entre políticas de família e políticas de igualdade proposta no programa do XIII Governo Constitucional irá revelar-se apenas retórica. O Governo desenvolverá um discurso marcadamente familista, na continuidade do que encontramos em anteriores governos e as questões da igualdade serão secundarizadas (Portugal, 2000b). Ao Plano Global para a Igualdade de Oportunidades suceder-se-á o Plano para uma Política Global de Família6, que retomará a questão da conciliação seguindo os mesmos quadros interpretativos.
No II Plano Nacional para a Igualdade (2003-06), a «Conciliação da vida profissional e familiar» (a formulação continua a excluir a vida pessoal), aparece como subárea da área sectorial 1 («Atividade Profissional e Vida Familiar»). Logo na Introdução aparece como justificação da sua necessidade a «promoção da cidadania», do «desenvolvimento sustentável» e da «qualidade de vida e liberdade de todos os seres humanos», num claro evitamento e mesmo negação do fenómeno das relações sociais de sexo na estruturação das assimetrias entre mulheres e homens.
Exige-se uma abordagem sistémica e continuada não podemos mais compartimentar os interesses das mulheres e dos homens em áreas de intervenção distintas, quando afinal os problemas dizem respeito e têm implicações concretas na vida de todos. Esta é uma questão estrutural que exige a mobilização de todos independentemente do sexo, e que vai muito mais além da salvaguarda dos direitos de uma das partes. Antes, integra-se numa perspetiva mais ampla de cidadania, de desenvolvimento sustentável e do reconhecimento da importância da qualidade de vida e da liberdade de todos os seres humanos (II PNI, 2003: 6).
Ainda assim aparece como positivo que se reconheça que a maternidade como especificidade «natural» da mulher não a circunscreva ao confinamento ao papel familiar e doméstico a ela associado. As «pressões cruzadas da vida familiar e profissional» são reconhecidas às mulheres, enquanto que para os homens o problema apontado é o «da exclusão do seu papel de pais», não se identificando as causas de género que determinam estes problemas e os reproduzem. Fica, assim, ausente qualquer análise de género neste diagnóstico. O enfoque é colocado na capacidade das mulheres para enfrentarem a tensão e se manterem no mercado de trabalho, tendência interpretativa associada à abordagem do investimento social7 identificado por Trudie Knijn e Arnoud Smit (2009) nas políticas europeias de emprego e igualdade.
Os problemas das mulheres ao nível da atividade profissional aparecem associados ao exercício dos seus direitos de maternidade e aos problemas de conciliação decorrentes do assumir das «responsabilidades familiares». Por isso se investe num primeiro grupo de medidas ligadas à divulgação «dos direitos em matéria de igualdade de oportunidades no trabalho e no emprego, e sobre proteção da maternidade e da paternidade e introduzir uma cultura de igualdade de género na sociedade em geral e nas empresas em particular». Ampliam-se também aqueles direitos pelo «alargamento do período de licença parental para assistência a filhos/as ou adotados/as e até aos seis anos de idade, quando gozada a tempo parcial».
Numa análise das mais de dez medidas desenhadas no ponto específico relativo à «Conciliação da vida profissional e familiar» o que se destaca é, por um lado, uma forte aposta no reforço, diversificação e melhoria quantitativa dos serviços de apoio à família, e, por outro, a focalização no trabalho de sensibilização das entidades empregadoras e outros agentes para a necessidade de alterações organizacionais com vista a proporcionar melhores condições. Como mostraram Virgínia Ferreira et al. (2007) esta área de intervenção do II PNI revela um enfoque em ações de sensibilização e divulgação de informação com escassa possibilidade de avaliação de impactos.
A abordagem dos problemas de conciliação centra-se, sobretudo, nas estruturas de apoio à família8, sendo a dimensão da divisão sexual do trabalho secundarizada. Quer se fale no investimento em serviços de apoio à família, quer na sensibilização de empresas ou outros atores sociais, a formulação das medidas nunca refere as culturas patriarcais que estão por detrás dos modelos organizacionais, nem da divisão sexual do trabalho e das ocupações de mulheres e homens. A dimensão sexualizada da questão não é carreada nem no diagnóstico nem no desenho de soluções. Impõe-se, assim, uma interrogação, que questiona a eficácia do desenho das medidas: será possível sensibilizar as organizações para a mudança de modelos organizativos e de trabalho mais igualitários sem desconstruir e atacar a cultura patriarcal que lhes subjaz?
No II PNI existe ainda uma questão a ressalvar, e que se repete no quadro do III PNI: uma minimização da importância das desigualdades sociais para a definição dos problemas. Não só é esquecida a questão da multidiscriminação, como se ignora a situação de grupos específicos de mulheres que apresentam particular vulnerabilidade e especiais dificuldades de conciliação: mulheres sós com filhos, mulheres com deficiência, imigrantes e idosas.
No III PNI (2007-2010), a área (2.3) da promoção da conciliação acolhe pela primeira vez a formulação «Conciliação entre a vida profissional, familiar e pessoal » e toma como referência a definição de prioridades na União Europeia relativamente a esta matéria. Pretende-se atuar ao nível da atividade pública e privada, e desenham-se dois níveis de ação: a promoção da conciliação entre a atividade profissional, vida familiar e pessoal e a promoção da maternidade e paternidade responsável. O problema da conciliação é, mais uma vez, identificado em termos genéricos mudanças no modelo de desenvolvimento devido à entrada das mulheres no mercado de trabalho. Deste modo, a fundamentação das medidas não se baseia no reconhecimento de uma desigualdade entre homens e mulheres, nas esferas pública e privada, mas sim «da necessidade de conciliação entre vida profissional, familiar e pessoal» «para a promoção de um desenvolvimento sustentável», que inclui «o crescimento económico» e o «incentivo à natalidade» (Ferreira et al., 2011).
No III PNI, o enfoque desta área de intervenção centra-se na proteção da maternidade/paternidade mais do que na igualdade entre homens e mulheres. Das nove medidas definidas neste domínio, cinco são, especificamente, sobre o exercício da parentalidade. O Plano menoriza, assim, outras áreas de prestação de cuidados das famílias, nomeadamente os cuidados de idosos/as, de doentes e de pessoas com deficiência, que revelam profundas assimetrias de género. Ao contrário da tendência do anterior PNI, apenas duas das medidas referem a importância do reforço das estruturas de apoio para os cuidados de dependentes. Esta opção é tanto mais problemática quanto o grande desafio demográfico hoje colocado à vida familiar é o envelhecimento da população e o aumento de dependentes idosos/as.
Os quadros interpretativos dominantemente usados para a problemática da conciliação são, portanto, os do declínio da natalidade e do modelo de desenvolvimento e não os das relações sociais de sexo. O problema da conciliação é representado sem que a questão da desigualdade entre homens e mulheres seja assumida como fundamental no modelo de organização social sobre o qual se quer intervir.
Como concluíram Ferreira et al., mais uma vez o III PNI apostou para este domínio de intervenção em políticas soft, pouco vinculativas, reduzindo a eficácia da ação. A ênfase na sensibilização e a falta de mecanismos de atribuição mais efetiva de responsabilidades prejudicaram a efetiva transformação da realidade (Ferreira et al., 2011).
Evidencia-se também neste Plano a influência de um novo paradigma ou conceção sobre igualdade de género no mercado de trabalho presente, apesar que de forma ainda minoritária, nos discursos políticos da UE (Hooyman e Gonyea, 1995; Haas, 2003). Referimo-nos a um quarto paradigma identificado pelas investigadoras feministas, designado de «abordagem da parentalidade partilhada » (Lewis, 1997). Segundo elas este paradigma preocupa-se em alterar o comportamento masculino e atitudes em relação ao cuidar, implicando os pais. Preocupa-se com as mudanças ao nível das unidades familiares, devido ao aumento dos divórcios e às consequências do aumento da participação feminina no mercado de trabalho. As soluções passam pela partilha de responsabilidades entre homens e mulheres induzida, por exemplo, por instrumentos políticos como as licenças de parentalidade (Haas, 2003). O novo regime jurídico para o exercício da parentalidade produzido, em 2009, no âmbito de vigência deste Plano ilustra a influência desta abordagem9.
Como explicar estes quadros interpretativos?
As políticas públicas são definidas, elaboradas e aplicadas no quadro de um sistema de interação, num jogo polissémico de entendimentos sobre os fenómenos transmitidos nos discursos produzidos. Assim, analisar criticamente o discurso político permite-nos explorar e compreender o processo de produção das políticas, os seus atores, as suas dinâmicas de (inter)ação, e cognições. Este tipo de análise permite identificar porquê e como emergiram os quadros interpretativos, situando-os no contexto das normas e valores de género prevalecentes nos processos institucionais de decisão política, e nas estruturas de oportunidades políticas existentes nos ambientes sociopolíticos concretos (Bacchi, 1999; Hafner-Burton e Pollack, 2002; Lombardo, Meier e Verloo, 2009; McBride e Mazur, 2005).
À luz deste entendimento, exploramos quatro fatores principais que nos parecem poder explicar a dessexualização dos quadros interpretativos subjacentes à promoção da conciliação nos três Planos Nacionais para a igualdade que acabamos de apresentar. São eles: 1) os modelos não participados e centralistas de formulação dos Planos, que excluem vozes que poderiam dar um sentido mais sexualizado às políticas; 2) a influência das políticas de emprego de pendor economicista vindas da UE na determinação das políticas nacionais; 3) a reduzida mobilização quer do feminismo institucional quer dos movimentos de mulheres pela questão da conciliação; 4) a prevalência de um enquadramento interpretativo não feminista e moderado na proposta e formulação das políticas de igualdade em Portugal, como estratégia de aceitação num ambiente sociopolítico resistente.
Os Planos Nacionais para a Igualdade traduzem e visibilizam o assumir dos compromissos do Estado Português com as políticas de igualdade, intensificadas internacionalmente depois da Conferência de Pequim de 1995 (Monteiro, 2011).
Como uma forma de «reformismo de Estado», o mainstreaming de género (Ferreira, 2000) pressupõe, entre outras condições, um modelo participativo de decisão política, inclusão de várias vozes e fuga ao centralismo na produção de políticas, nomeadamente dos Planos. Em Portugal, isto não tem acontecido. Pelo contrário, algumas análises têm dado conta da exclusão das representantes das mulheres portuguesas, designadamente do principal mecanismo oficial para a igualdade e dos movimentos de mulheres (Cardoso, 2000; Ferreira et al., 2007; 2011; Monteiro, 2011) e da persistência do centralismo juridista que caracteriza a produção de políticas em Portugal, em geral implementadas a partir do topo para a base (Cardoso, 2006; Nicholls, 2007; Santos, 1998). Rosa Monteiro (2011), por exemplo, concluiu que «o Estado português não tem outorgado à Comissão [CCF e CIDM] um papel interventivo na produção das decisões políticas nem nas matérias mais diretamente relevantes para a igualdade de género, nem nas mais indiretamente conexas», apresentando estruturas de oportunidades políticas fechadas.
No caso concreto dos Planos para a igualdade as queixas de exclusão têm sido recorrentes (Ferreira et al., 2007; 2011). O primeiro Plano foi elaborado no Gabinete do Alto Comissariado para as Questões da Família e Igualdade, o que gerou reações especialmente da parte das ONG, que se sentiram ultrapassadas. O segundo seguiu o mesmo modelo de elaboração numa lógica centralista e top-down, por decisão do Ministro da Tutela, que incumbiu o seu Gabinete de o elaborar, sem consulta ou participação de outros atores que não as suas assessoras (Monteiro, 2011).
Esta tendência para fechar nos Gabinetes da tutela a decisão política é frequentemente vista como desrespeitadora da função consultiva da Comissão, acentuando o seu reduzido poder na formulação e decisão políticas (Monteiro, 2011). Esta falta de representação descritiva das mulheres na formulação dos Planos afeta, evidentemente, a forma como as questões são formuladas e o discurso é apresentado, fazendo prevalecer uma linguagem política mais «neutra», não sexualizada e de pendor mais tecnocrático. Nos últimos anos, e face a reestruturações ocorridas no Conselho Consultivo da CIG, algumas ONG queixam-se da perda generalizada de voz e de capacidade de participação na decisão política, como ilustram as palavras de uma representante de uma associação de mulheres no estudo de avaliação do III PNI:
Voltando ainda à questão do novo CC. Se calhar não há grande diferença em termos de eficácia política, é a mesma coisa em termos de eficácia A única diferença é que antes não éramos eficazes mas tínhamos esperança de o poder ser. Agora não somos eficazes nem temos esperança. Porque não temos voz, de facto. Quem tem voz, são conhecidas. Estamos mesmo na lista negra, estamos lá numa caixinha negra da CIG: Estamos na lista negra, ninguém nos pode ouvir. Porque reclamamos que não aparece nas atas, não sei o quê; porque de tudo o que é dito, nada! Porque aquilo são seminários para ouvir, que é propaganda, é só isso que fica registado. (E93) (Ferreira, et al., 2011: 384).
Outro fator que poderá justificar a prevalência de quadros interpretativos, que não ecoam um entendimento sexualizado nem feminista da problemática da conciliação, prende-se, na nossa leitura, com a forte influência que a UE tem sobre as políticas de igualdade no trabalho e no emprego e de conciliação (Rubery, 2002). A adoção pelos Estados-membros das políticas de conciliação, em países como Portugal, tem resultado mais da «interferência das instâncias internacionais nas políticas de igualdade» (Ferreira, 2000), do que em resposta a pressões internas pelos movimentos de mulheres. A União Europeia, submetendo como tem feito as questões da igualdade às políticas de emprego e trabalho (Rubery, 2002), emitindo Diretivas, tem sido uma forte promotora de inovações reguladoras neste domínio, dispensando maior proactividade dos Estados e dos movimentos (Monteiro, 2011). Na retórica política da UE, as políticas de conciliação inscrevem-se mais nas políticas do mercado de trabalho, do que nas da família ou igualdade de género, sendo seu objetivo explícito libertar as mulheres do trabalho doméstico e de cuidados para potenciar e aumentar a sua participação no mercado de trabalho (Donà, 2009; Rubery, 2002). Elas surgem, portanto, enquadradas e fundamentadas pela necessidade de aumentar a participação das mulheres na vida económica e no aumento das taxas de fecundidade, em razão da sustentabilidade dos Estados de Bem-estar. Desta forma as políticas nacionais seguem a formulação emanada das instâncias europeias, cooptando as questões da conciliação como um dos fatores que promovem a igual independência económica de mulheres e homens.
Identificamos também a falta de militância dos movimentos de mulheres portugueses nas questões da igualdade no trabalho e emprego como causa para a não sexualização dos quadros interpretativos. De facto, como constatou Rosa Monteiro no seu estudo sobre feminismo de Estado em Portugal:
A intervenção para a igualdade na área do trabalho e emprego tem estado distribuída pela CITE, desde 1980, pela Comissão, e pela ação errática de alguns sindicatos e partidos. Apesar de ser reconhecida como uma área estruturante da (des)igualdade, e de centralidade indiscutível face aos processos de segregação, de diferenciais salariais, de dificuldades de conciliação, foi também reconhecido nas entrevistas que a área do trabalho e do emprego tem suscitado pouca reivindicação quer da parte dos mecanismos oficiais para a igualdade, quer dos movimentos de mulheres (Monteiro, 2011: 184).
E como ilustra a fala de uma das suas entrevistadas, antiga responsável política e perita em questões de igualdade:
Porque se entende que esse papel tem sido mais assumido pelos parceiros sociais, o que não é inteiramente verdade. Porque como há a CITE e há as questões do trabalho muito ligadas aos sindicatos, as questões do trabalho não têm, de facto, estado nas agendas tanto, porque, no fundo, há como uma delegação nos sindicatos, nas representantes sindicais que essas é que têm feito a batalha. Acho que é uma lacuna muito grande. Isso tem sido mais a parte do diálogo social que tem estado encarregue disso e isso também tem mais a ver com a organização dos grupos, não é? Porque, lá está, para as questões gerais da igualdade você tem a CIDM e para as questões do trabalho a CITE, portanto Umas não têm sindicatos, outras não têm ONG. Portanto, tem havido aqui uma divisão de tarefas, digamos assim, que se calhar é altura de rever (ent. 34, ex-representante Secção Interministerial) (Monteiro, 2011: 184).
Além desta explicação para a ausência de significativa militância feminista por esta questão da conciliação, devemos reconhecer outro fator invocado por Manuela Tavares (2008), ou seja, o do esgotamento das energias ativistas dos movimentos de mulheres portugueses na luta pelo aborto e na agenda da saúde sexual e reprodutiva.
Finalmente, a utilização de quadros interpretativos estratégicos aceitáveis, nomeadamente, a não utilização de um discurso feminista nem de direitos das mulheres, a cautela discursiva, foi uma tática utilizada pelas representantes das mulheres portuguesas na apresentação das suas propostas e reivindicações, num ambiente sociopolítico pouco recetivo a quadros interpretativos feministas (Abranches e Ferreira, 1986; Monteiro, 2011; Tavares, 2008). Como referem Emilie Hafner- Burton e Mark Pollack (2002), para terem sucesso os «quadros interpretativos» devem «ressoar» ou encaixar nos anteriores, com os quais o sistema e seus atores já operam; de outra forma eles serão rejeitados pelas elites, e verão provavelmente fecharem-se-lhes as portas do processo político. A estratégia é a de usar linguagem que ajuda a enquadrar estrategicamente a igualdade de mulheres e homens nos quadros interpretativos que ressoam positivamente à classe política e sociedade em geral, no que Mieke Verloo (2001) designa de «frame extension» ou «frame bridging» capaz de seduzir político/as e funcionário/as público/as, aproximando- se da sua linguagem, dos seus objetivos e valores. Mas como a própria Verloo alerta, esta cedência a uma estratégia de sedução, neste caso através da utilização de um discurso mais «aceitável» e menos sexualizado é um processo perigoso, por tecnocratizar e esvaziar a leitura feminista das desigualdades (Lombardo e Meier, 2006; Verloo, 2001).
Comentários finais
A análise crítica dos quadros interpretativos das políticas de conciliação nos três primeiros Planos Nacionais para a Igualdade permite-nos concluir pela dessexualização da problemática no desenho dos mesmos. O problema da conciliação é representado sem que a questão da desigualdade entre homens e mulheres seja assumida como fundamental no modelo de organização social sobre o qual se quer intervir. Prevalece uma conceção familista, na qual o problema demográfico predomina na argumentação justificativa das medidas.
A análise revela também características já apontadas noutros estudos em matéria das políticas de conciliação de forma mais genérica: serem desenhadas a pensar em nichos específicos de trabalhores/as (sobretudo, mulheres com crianças pequenas); não questionarem os valores tradicionais de carreira, especialmente a ideia abstrata de trabalhador/a ideal (Santos, 2010). Desvenda, ainda, uma relação estreita com visões tradicionais do masculino e feminino e escasso compromisso com o combate à estereotipia de género. As estratégias dos Planos foram essencialmente de políticas soft, baseadas em medidas de formulação vaga e pouco vinculativas dos atores implicados na sua implementação.
Este artigo enuncia quatro fatores explicativos para este desenho das políticas de conciliação nos Planos para a Igualdade: 1) a exclusão de vozes que poderiam dar um sentido mais sexualizado às políticas; 2) a influência da UE na determinação das políticas nacionais; 3) a reduzida mobilização social em torno da questão da conciliação; 4) a prevalência de um discurso moderado, e não sexualizado, como estratégia de aceitação num ambiente sociopolítico resistente.
A análise aqui apresentada revela as fragilidades dos Planos para a Igualdade, no domínio analisado, enquanto instrumentos de política de mainstreaming. Ao apresentarem quadros interpretativos dessexualizados, as medidas sobre conciliação invisibilizam um modelo de organização social patriarcal. Fazem-no, essencialmente, pelo mimetismo relativamente a enunciações políticas europeias e porque não ecoam as vozes representativas das mulheres a que se dirigem.
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Artigo recebido em 30 de novembro de 2011 e aceite para publicação em 30 de dezembro de 2012.
Notas
*1Doutorada em Sociologia. Professora no ISMT e investigadora do Centro de Estudos Sociais (U. Coimbra). Publicação recente: «A agenda da descriminalização do aborto em Portugal: Estado, movimentos de mulheres e partidos políticos », Análise Social, 204, XLVII, 2012. monteiro.rosa14@gmail.com
*2Doutorada em Sociologia. Professora da Faculdade de Economia e Investigadora do CES (U. Coimbra). Diversas publicações nacionais e estrangeiras. Editou recentemente Cidadania, Políticas públicas e Redes sociais, Coimbra, IUC, 2011. sp@fe.uc.pt
1Que, neste artigo, traduzimos por quadros interpretativos.
2Neste artigo optámos por utilizar sexualizado/a ou sexualização em tradução dos termos gendered e gendering, comummente encontrados na literatura.
3No Plano Global para a Igualdade de Oportunidades (1997-99) foram analisados o Preâmbulo, o Objetivo 4 «Conciliação da vida privada e profissional» e o Objetivo 5 «Proteção social da família e da maternidade»; no II Plano Nacional para a Igualdade (2003-2006) foram analisados os textos da Introdução e, na Área Sectorial 1 («Atividade Profissional e Vida Familiar»), da subárea «Conciliação da vida profissional e familiar»; no III Plano Nacional para a Igualdade Cidadania e Género (2007-2010) foi analisada a Área 2.3 «Conciliação entre a vida profissional, familiar e pessoal».
4Esta iniciativa legislativa do Governo chefiado por Cavaco Silva, no último ano de governação, foi interpretada como uma tentativa de demonstrar à comunidade internacional que Portugal estava a tomar seriamente a Conferência de Pequim em preparação, tal como Amy Mazur (1995) concluiu ter sido também o caso do Governo francês nessa altura (Monteiro, 2011).
5Esta ligação foi certamente influenciada pela celebração, em 1994, do Ano Internacional da Família. Uma análise das comemorações em Portugal revelou que a maioria das iniciativas promovidas, centrando-se nas «capacidades e responsabilidades» das famílias, contribuiu para uma reprodução da visão tradicional dos papéis familiares e da desigualdade sexual (Portugal, 2000).
6RCM 7/99, Diário da República de 9/2/1999.
7Neste paradigma, o receio das baixas taxas de natalidade e do envelhecimento da população faz voltar as atenções para a «incapacidade de combinar desejos», ou seja, para a dificuldade de as mulheres participarem no mercado de trabalho e continuarem a ter filhos. Em termos de políticas aposta-se na capacitação individual das mulheres, através do aumento da sua escolaridade.
8Francamente insuficientes, nomeadamente, em termos de equipamento de apoio aos cuidados da infância e da terceira idade.
9Lei de 7 de Fevereiro de 2009 que aprovou a revisão do Código de Trabalho; o Decreto-Lei nº 89/2009 de 9 Abril que regulamentou a proteção da parentalidade; o Decreto-Lei nº 91/2009 de 9 Abril que estabeleceu o regime jurídico de proteção social na parentalidade, no âmbito do sistema previdencial e no subsistema de solidariedade.