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Ex aequo
versão impressa ISSN 0874-5560
Ex aequo no.30 Lisboa dez. 2014
ESTUDOS E ENSAIOS
Tarefas domésticas e género: representações de estudantes do ensino superior
Domestic tasks and gender: social representations of higher education students
Tareas domésticas y género: representaciones sociales en estudiantes de educación superior
Susana Villas-Boas1, Catarina Sales Oliveira2, Soledad Las Heras3
1 Bolseira de Doutoramento em Educação Permanente e Educação e Formação de Adultos na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e financiada pela Fundação Para a Ciência e Tecnologia do Ministério da Educação e Ciência. Licenciada e Mestre em Ciências da Educação. Membro colaborador do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Intercultu-rais/CEMRI da Universidade Aberta de Lisboa. Universidade da Beira Interior, Convento de Sto. António, 6201-001 Covilhã. E-mail: suvboas@gmail.com
2 Professora Auxiliar no Departamento de Sociologia na Universidade da Beira Interior. Doutorada em Sociologia do Trabalho pelo ISCTE. Investigadora do Centro de Investigação e Estudos em Sociologia da Universidade da Beira Interior, pólo CIES-IUL e foi Coordenadora do projeto UBIgual (2009/2013). E-mail: csbo@ubi.pt
3 Universidade da Beira Interior, Portugal. Mestre em Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid. Foi colaboradora do projecto UBIgual. E-mail: soledad@ubi.pt
RESUMO
A mudança dos papéis sociais de género ocorrida na esfera profissional nas últimas décadas tem tido um reflexo não proporcional na organização da vida familiar e doméstica, o que se explica pelo facto do modelo tradicional de divisão do trabalho familiar das tarefas domésticas ter raízes profundas nos nossos padrões culturais. O objetivo deste estudo foi o de compreender o efeito do tempo e a mudança geracional na alteração desta situação. Verificou-se que as desigualdades de género na distribuição das tarefas domésticas persistem e que existe elevada probabilidade da reprodução dos modelos familiares na divisão de tarefas domésticas, sendo as raparigas quem demonstram maior desejabilidade de transformação e mudança.
Palavras-chave: género, atitudes, igualdade, tarefas domésticas, estudantes do ensino superior.
ABSTRACT
Despite the important changes of Portuguese professional gender roles of the recent decades, an equivalent effect on the organization of domestic life hasn't occurred. Gender inequalities in the domestic space are still common in Portuguese society. This article is based on the idea that to understand the effect of generational change in this situation can bring us important information to better understand this. Therefore the purpose of this research is to analyze the social representations of gender in university students in the context of their domestic tasks practices and also to understand in what measure is the young generation willing to reproduce the model in which they were socialized. The results allow us to say that there is a strong trend of continuity among students but the girls are more willing and prepared for the change.
Keywords: gender, attitudes, equality, domestic realm, higher education students.
RESUMEN
Los cambios acaecidos en las últimas décadas en los papeles de género en la esfera profesional no han tenido un reflejo proporcional en la organización de la vida familiar y doméstica, lo que se explica por las profundas raíces que el modelo tradicional de división familiar de las tareas domésticas tiene en nuestros patrones culturales. El objetivo de este estudio ha sido el de comprender los efectos del tiempo y el cambio generacional en la modificación de esta situación. Los resultados muestran que las desigualdades de género en la distribución de tareas domésticas persisten y que existe una elevada probabilidad de reproducción de los modelos familiares de división de dichas tareas; no obstante son las jóvenes las que muestran un mayor deseo de transformación y cambio hacia modelos más igualitarios.
Palabras clave: género, actitudes, igualdad de género, tareas domésticas, estudiantes de educación superior.
Introdução
Em 1996 a Comissão Europeia (1996) sublinhava a premência de uma mudança duradoura dos papéis parentais e das estruturas familiares com o objetivo de se alcançar uma distribuição mais justa dos papéis e responsabilidades de mulheres e de homens na sociedade. Nas últimas décadas a divisão familiar dos papéis de género tem vindo a ser um tema alvo de crescente atenção visto que vivemos no período histórico da refutação do modelo tradicional do homem provedor/mulher doméstica. A crescente participação das mulheres no mercado de trabalho tem gerado novos modelos de organização familiar que aos poucos se têm vindo a introduzir, não obstante a relativa relutância social de abandonar o dito modelo tradicional. Tal como Karin Wall destaca:
As relações familiares assentam hoje num modelo de família «relacional» e democrática, centrada na descoberta do indivíduo e da sua identidade no seio de um universo «privado» escolhido por ele. [ ] Este modelo pressupõe pelo menos em termos subjetivos, a generalização de atitudes igualitaristas em relação tanto ao trabalho pago como ao trabalho não pago dentro da família (tarefas domésticas, cuidados a pessoas doentes, etc.) (Wall, 2005: 2).
Contudo a realidade apresenta-se muito diferente e as grandes mudanças nas últimas décadas em relação ao trabalho pago não tiveram equivalência ao nível das práticas de trabalho não pago ou doméstico. Importante ressalvar que a entrada das mulheres no mercado de trabalho apesar de ser um processo muito expressivo e transversal, apresenta, a uma análise mais fina, significativas diferenças ao nível da classe ou estrato social e também dos setores de atividade ou grupos profissionais, razão pela qual continuamos a ter ainda hoje uma forte segregação horizontal (Ferreira, 1999; Casaca, 2013). Podemos pois dizer que o processo de análise das mutações dos papéis sociais de género é complexo e que apenas a uma análise comparada se podem constatar nuances menos óbvias. De acordo com Susana Villas-Boas (2011), a tendência geral é para separar as esferas da vida e não associar a influência de uma esfera sobre as outras. Ao pensar e tratar a esfera familiar, a esfera laboral e a esfera pessoal/social separadamente, não só se mascaram desigualdades de género, como se agravam e produzem novas desigualdades entre homens e mulheres.
Ingrid Robeyns (2003) considera que a dupla e tripla jornada de trabalho efeito da entrada da mulher na esfera laboral sem que deixasse de assumir a responsabilidade principal na esfera familiar é a base da desigualdade de género contemporânea visto que está profundamente relacionada com as assimetrias na divisão do tempo e das responsabilidades entre homens e mulheres, ou seja, apesar do aumento exponencial das horas de trabalho pago realizado atualmente pelas mulheres, são elas que continuam a assegurar as horas de trabalho não pago.
Assim, as diferenças entre mulheres e homens na distribuição do trabalho doméstico, ditado por papéis de género, continuam a prevalecer e são uma das principais causas da dificuldade contemporânea em alcançar uma maior igualdade entre os sexos.
É desta problemática que surge o presente estudo, realizado no âmbito do Projeto UBIgual Plano de Igualdade de Género da Universidade da Beira Interior (UBI).
Divisão de trabalho doméstico em Portugal situação atual
O relatório «Gender Equality Index Report» do Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE, 2013a; 2013b), que procura medir a nível europeu o estado da igualdade de género depois de 50 anos de medidas para a sua promoção mediante a combinação de vários indicadores com dados referentes a 2010, coloca Portugal entre os países da Europa com piores resultados, sendo o índice nacional 41.3 e o índice da EU-27 54.0, significando portanto que em Portugal temos um índice consideravelmente mais baixo de igualdade de género do que a média europeia. Para o presente artigo importa referir dois indicadores específicos: a percentagem de mulheres e de homens com emprego que cozinham e realizam trabalhos domésticos diariamente durante uma ou mais horas, e a percentagem de homens e mulheres com emprego que dedicam diariamente uma ou mais horas à educação e cuidado das crianças.
No que diz respeito ao primeiro indicador, 90.2% das mulheres empregadas portuguesas gastam uma hora ou mais diariamente na cozinha e no trabalho doméstico, ficando em primeiro lugar comparativamente às mulheres dos outros países europeus (a média da EU-27 é de 77.1%). Os homens empregados portugueses ocupam a décima terceira posição (19.7% percentagem inferior à EU-27, que é 24.1%) desse mesmo ranking.
No segundo indicador, que traduz o tempo dedicado a atividades de cuidar e educar crianças, a percentagem das mulheres empregadas portuguesas que dedicam uma hora ou mais tempo diariamente a essa tarefa é de 51.4% (EU-27, 41.1%), ocupando o terceiro lugar das mulheres europeias que gastam mais tempo com estas atividades. Já os homens empregados portugueses, com uma percentagem de 32.4% (EU-27, 24.9%), encontram-se em oitavo lugar.
Os relatórios da EIGE (2013a; 2013b) corroboram os resultados dos estudos nacionais e chamam a atenção para que apesar de alterações positivas ao nível da vivência da paternidade, em Portugal se continua a verificar uma disparidade de género na divisão das tarefas domésticas, sendo este trabalho desempenhado principalmente pelas mulheres (Torres et al., 2005; Schouten et al. 2012).
Divisão do trabalho doméstico e o papel socializador da família
Diferentes estudos demonstraram que a divisão de trabalho doméstico entre os sexos é uma área em que as evoluções são lentas (Singly e Glaude, 1986; Zarca, 1990), em contraste com a rápida evolução das mulheres na esfera profissional. Bernard Zarca (1990) propôs uma tipologia que divide as tarefas domésticas em três grupos: a) o grupo de tarefas domésticas femininas que são maioritariamente executadas por mulheres; b) o grupo de tarefas domésticas masculinas que são cumpridas maioritariamente pelos homens; e entre esses dois grupos situa-se o c) grupo que denomina de tarefas negociáveis tarefas que continuam a ser realizadas sobretudo pelas mulheres, mas, nas quais, de um terço até metade dos homens participa. Estas tarefas negociáveis são as que mais evoluem de acordo com o modelo social dominante. O mesmo autor sugere que cada um dos membros do casal tende a reproduzir, na sua vida conjugal, o papel que tinha o progenitor do mesmo sexo que o seu, considerando, ainda, que as transformações na vida familiar são mais afetadas por outras variáveis (e.g., nível de escolaridade e remuneração do casal, entre outras) do que pela evolução social da divisão do trabalho doméstico. Dito de outro modo, o homem parece desempenhar tarefas classicamente femininas e negociáveis quando a mulher exerce uma atividade profissional fora do contexto familiar, quanto mais alto é o salário da mulher em relação ao do marido e quando os níveis educativos do casal são elevados. Outros estudos comprovam estes resultados, por exemplo no estudo de Anália Torres et al. (2000) realizado com a população portuguesa, verificou-se que na população com os níveis mais altos de instrução os homens participam nas tarefas domésticas relativas à preparação das refeições («preparar refeições», «pôr a mesa», «lavar a louça»), ou seja, nas tarefas que Bernard Zarca (1990) identifica como «tarefas negociáveis». A participação dos homens nas tarefas domésticas parece assim ter relação com a posição social e com o capital cultural do agregado familiar.
Outro estudo nacional, realizado por Gabrielle Poeschl e Rui Serôdio (1998), demonstra que o domínio específico da mulher na esfera familiar parece englobar o trabalho doméstico e os cuidados com os filhos e filhas pequenas. Já o domínio em que a participação dos cônjuges é mais igualitária é o do trabalho de socialização e de partilha com as filhas e os filhos mais velhos, embora a participação da mulher continue a predominar.
Estudos que se dedicam à análise do tempo dedicado às tarefas apontam uma mudança na quantidade de trabalho de assistência realizado pelas mulheres na esfera familiar, ou seja, que este tem vindo a diminuir (EIGE, 2013a, 2013b). Contudo, isto acontece não porque os homens contribuam com mais trabalho de assistência, mas porque objetivamente o agregado familiar dedica menos tempo a estas tarefas (Crompton, 1997), e na verdade a carga remanescente de tratar e cuidar continua desproporcionalmente da responsabilidade das mulheres (Walby, 1997). Karin Wall e Lígia Amâncio (2007) afirmam que a menor participação das mulheres nas tarefas de casa se faz à custa do trabalho pago de outras pessoas e que, muitas vezes, essa diminuição resulta da participação das filhas e das empregadas domésticas, reproduzindo uma divisão feminina do trabalho doméstico. Assim, é incontestável que existe uma mudança nas posições de homens e mulheres na esfera familiar; contudo, esta mudança é uma mudança de permanência (Bourdieu, 1999), ou seja, continuam a ser as mulheres a desempenhar o trabalho doméstico mesmo que desempenhem estas tarefas como trabalho pago.
Robert Blood e Donald Wolfe (1989) asseguram que a repartição das tarefas está relacionada com a visão estereotipada da mulher como principal responsável pelo criar e cuidar. Esta visão estereotipada é transmitida sobre a forma de representações sociais, que Denise Jodelet define como «uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático e que concorre para a construção de uma realidade comum a um coletivo» (Jodelet, 1989 citada por Oliveira e Amâncio, 2006: 605).
Impõe-se assim saber qual é o papel da família na transmissão das representações sociais sobre a divisão do trabalho doméstico. Sandra Jovchelovitch (1998) considera que a representação social é um qualquer saber, mas sobretudo aqueles que se produzem no quotidiano, e que pertencem ao mundo vivido, pelo que a família se afigura como um espaço privilegiado para a sua transmissão visto ser a primeira instância socializadora. A família é usualmente quem define o rumo inicial para o desenvolvimento de atitudes, valores e identidade de uma criança antes de ele ou ela ter contacto com outras instituições e/ou com outras influências (Cunningham, 2001a, 2001b; Fan e Marini, 2000). Na generalidade, os principais modelos para as crianças são os progenitores e as progenitoras, uma vez que são aqueles e aquelas cujos comportamentos são mais visíveis e acessíveis à criança, quer pela proximidade quer pelo teor afetivo da relação (relação afetivamente mais forte). De facto, embora a criança não seja uma mera imitadora de modelos e vá, de alguma forma, construindo ativamente a sua própria socialização, não podemos esquecer que, ao observar o comportamento do pai e da mãe, na partilha das responsabilidades do lar, ela aprende, inevitavelmente, inúmeras mensagens de género (Cunninghan, 2001b).
Do mesmo modo, Carole Beal (1994) afirma que na família, o ambiente social tende a ser estruturado, de maneira distinta, para cada um dos indivíduos, fato que condiciona a assunção de responsabilidades ao nível do trabalho doméstico. Em geral, às raparigas são atribuídas tarefas típicas femininas, geralmente executadas em casa, e aos rapazes tarefas de manutenção geralmente realizadas por homens adultos e no exterior da casa (Cogle e Tasker, 1982; Lein, 1979; Lynch, 1975; ONeill, 1978; Osborne, 1979 e Vanek, 1980 citados por Hilton e Haldeman, 1991; Beal, 1994; Vieira, 2006a, 2006b).
Assim, a divisão de tarefas em casa pode transmitir às filhas e aos filhos uma panorâmica geral das principais funções que se espera que o homem e a mulher desempenhem no lar (Basow citado por Vieira, 2006b) durante a vida adulta. Os progenitores e as progenitoras são sempre influências dominantes nas crenças de seus filhos adultos e das suas filhas adultas sobre a igualdade de género e há evidências de que a transmissão intergeracional da ideologia de género tem relação com a aprendizagem social (Cunningham, 2001a, 2001b; Fran e Marini, 2000; Carlston e Knoester, 2011).
Estudo Empírico
O propósito deste estudo é o de analisar quais as representações sociais de género dos e das estudantes da UBI relativamente à realização de tarefas domésticas e perceber se os e as jovens pensam reproduzir a organização familiar da divisão das tarefas domésticas em que foram socializados e socializadas. Assim, os resultados que se apresentam de seguida dizem respeito a dois blocos de perguntas do inquérito aplicado, a saber: I. Tarefas domésticas e família e II. Tarefas domésticas e representações sociais.
Descrição da Amostra
Este estudo realizou-se na Universidade da Beira Interior e abrangeu estudantes do 1º ciclo e/ou licenciatura do ano letivo de 2009/2010, o que corresponde a uma população de 3.790 pessoas inscritas. A fração da nossa amostra é de 10% o que equivale a n= 378 casos.
Esta amostra é constituída por n = 172 estudantes femininas (45,5%) e n = 206 estudantes masculinos (54,5%), pertencentes a todas as faculdades da instituição e aos seguintes cursos: Faculdade de Ciências (Química Industrial e Biotecnologia), Faculdade de Engenharias (Engenharia Civil, Engenharia Eletromecânica e Arquitetura), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Economia, Gestão e Sociologia), Faculdade de Artes e Letras (Design de Moda e Design Multimédia e Ciências da Comunicação), Faculdade de Ciências da Saúde (Medicina e Optometria Ciências da Visão). Sendo que a maioria dos e das participantes são da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (33,3%) e da Faculdade de Engenharias (33,1%). A média de idade da amostra é de 21 anos.
Instrumento
Foi aplicado um inquérito por questionário, dividido em duas partes. A primeira parte é composta por perguntas de escolha múltipla, direcionadas para a compreensão da organização familiar no que diz respeito à execução das tarefas domésticas, com perguntas tais como: «quem executa a maioria das tarefas em casa, o pai ou a mãe», e «se o tipo de organização familiar da divisão das tarefas domésticas da família que formará no futuro irá ser o mesmo que o praticado pela mãe e pelo pai». E uma segunda parte constituída por uma lista de 24 tarefas domésticas que utiliza perguntas fechadas e específicas (ex. «pagar as contas da casa»; «passar a ferro»; «cozinhar»), a serem classificadas numa escala ordinal em que o respondente escolhe apenas um só item, a saber: tarefas mais femininas, tarefas mais masculinas ou tarefas de ambos.
Procedimento de recolha de dados
Para a exequibilidade da recolha de dados no tempo disponível optou-se por aplicar os questionários por administração direta, em contexto de aula, do dia 18 ao dia 31 de Maio de 2010. O tempo médio da participação de cada turma foi de 30 minutos. Numa primeira fase explicou-se o estudo no âmbito do projeto UBIgual, garantiu-se o anonimato explicando que as respostas seriam tratadas em conjunto, solicitou-se que respondessem de acordo com o que pensavam, reforçou-se que não existem respostas certas ou erradas e forneceram-se as instruções necessárias para o preenchimento do questionário.
Para a análise dos dados que se apresenta em seguida utilizou-se o pacote estatístico IBM SPSS Statistics versão 19.0.
Resultados
I. Tarefas domésticas e família
Relativamente ao tipo de organização familiar da divisão de tarefas domésticas apuramos que em 67% das famílias das e dos estudantes da UBI é a mãe quem faz a maioria das tarefas, seguida de 32% em que as tarefas são divididas pelos/as progenitores/as e 1% (que equivale a 5 casos) em que o pai faz a maioria das tarefas (figura 1).
A participação das e dos estudantes na execução das tarefas domésticas em casa varia entre o «ajuda frequentemente» 52%, «muito frequentemente» 32%, «raramente» 16% e «nunca» 0,5%. A percentagem de raparigas que afirmam ajudar as progenitoras e os progenitores no desempenho das tarefas domésticas é de 91%, superior à percentagem de rapazes que faz a mesma afirmação (77%). As diferenças que se destacam entre a ajuda prestada pelos rapazes e pelas raparigas verificam-se nos extremos, ou seja, no item «muito frequentemente», elas pontuam 44% e eles 21% e no item «raramente» eles pontuam 22% e elas 8%.
É importante neste ponto saber se é o pai ou a mãe quem recebe mais ajuda e a resposta a essa questão por parte 66% das e dos estudantes foi de que «ajudam ambos» no desempenho das suas tarefas, 24% «ajudam a mãe», 9% «ajudam o pai» e 2% «não sabe ou não responde». Analisando estes dados por sexo, verificamos que 59% das raparigas «ajudam ambos», 39% «ajuda mais a mãe» e apenas 1% «ajuda mais o pai», e que 71% dos rapazes «ajudam ambos», 15% «ajuda mais o pai» e 10,7% «ajuda mais a mãe».
No que diz respeito ao modelo de divisão de tarefas que possivelmente adotarão no futuro, a maioria (44,71%) refere que adotará um modelo que será «semelhante», 6,98% «igual» e 12,79% «não sabe e não responde»; por seu lado 50% dos rapazes querem um modelo «semelhante à dos /as progenitores/as», 22,23% um «oposto à dos/as progenitores/as», 9,32% «igual» e 18,45% «não sabe e não responde».
Estes dados solicitam uma análise mais detalhada sobre qual é o modelo de organização familiar de divisão de tarefas domésticas que os e as estudantes da UBI não pretendem reproduzir e qual o modelo que desejam. Consultando a tabela 1 verifica-se que 44,27% das pessoas que vivem numa família em que a «mãe faz a maioria das tarefas» afirmam que no futuro não seguirão este modelo.
Existe uma rejeição maior deste modelo por parte das raparigas (59,48%) do que por parte dos rapazes (31,39%). O modelo que as e os estudantes afirmam pretender seguir é o modelo em que as «tarefas são divididas entre ambos», 70,39% diz que será «semelhante» e 17,65% «exatamente igual». Neste grupo, 64,81% das raparigas predizem que será «semelhante» e 20,37% «exatamente igual», e 75,39% dos rapazes que será «semelhante» e 15,38% «exatamente igual».
II. Tarefas domésticas e representações sociais
Para compreender de que tipo de divisão de tarefas domésticas se está a falar, procurámos compreender quais as representações sociais das tarefas domésticas em função do género. Para encontrar consenso sobre a quem os e as estudantes da UBI atribuem as tarefas domésticas, baseamo-nos no critério utilizado em estudos sobre estereótipos de género (Rosenkrantz et al., 1968 e Doise e Weinberger, 1972-1973, citados por Amâncio, 1994), que utilizam o critério de obter pelo menos 75% de respostas positivas para uma forma de qualificação. Ou seja, é considerado consenso sobre ser tarefa de mulher, de homem ou de ambos se esta for atribuída por 75% da amostra (ver tabela 2). Deste modo, neste estudo obteve-se consenso em treze tarefas domésticas. Destas, doze tarefas são consensualmente atribuídas a ambos (homens e mulheres) e uma é atribuída ao sexo masculino («bricolage», 77,72%). As doze tarefas atribuídas por consenso a ambos distribuem-se da seguinte forma: i) por unanimidade todas as tarefas do grupo das finanças, «pagar as contas de casa» (83,59%); «gerir dinheiro da família» (81,22%); «pagar prestações» (80,69%), ii) no grupo das tarefas de cuidar as crianças, é onde se encontram os con-sensos mais elevados, «brincar com as/os filhas/os» (96,03%); «levar as/os filhas/os à escola» (95,50%); «ajudar nos TPC dos/as filhos/as» (92,86%); «levar os/as filhos/as a atividades de lazer» (90,45%); levar os/as filhos/as ao/à médico/a» (84,65%); «cuidar crianças pequenas» (80,69%), iii) no grupo de tarefas de casa existe consenso sobre a tarefa de «cozinhar» (81,17%) e a tarefa de «lavar a loiça» (75,06%) e por último iv) no grupo das compras a tarefa «escolher equipamentos» (77.78%).
A análise realizada implicou ainda o cruzamento de cada uma das tarefas com a variável sexo, e consequentemente a aplicação do teste Chi-Square, na procura de diferenças significativas entre os sexos (tabela 3). No conjunto dos resultados apurados apenas em quatro tarefas não se verificam diferenças significativas entre as respostas das e dos estudantes. Duas respeitantes ao grupo das tarefas de casa e duas ao grupo de cuidar das crianças, a saber: «passar a ferro» em que a maior parte das mulheres e dos homens considera que é tarefa de mulher; «limpar a casa» em que a maior parte das mulheres e dos homens considera que é tarefa de ambos; «comprar roupa aos/às filhos/as» é uma tarefa que atribuem a ambos e finalmente a tarefa «levar os/as filhos/as a atividades de lazer» que é atribuída a ambos e regista a unanimidade mais elevada entre os sexos.
Nas restantes vinte tarefas verificam-se diferenças significativas nas respostas por sexo: as raparigas tendem a atribuir mais as tarefas a ambos do que os rapazes e são eles quem mais atribuem tarefas diferenciadas a mulheres ou a homens. É ainda de salientar outros resultados: mais de metade dos rapazes atribuem as tarefas relacionadas com o carro e a «bricolage» aos homens, mais de metade das raparigas atribuem como tarefa mais feminina «passar a ferro»; «decorar a casa» e «comprar roupas aos/às filhos/as» e nenhuma das 378 pessoas inquiridas atribuiu a tarefa «cuidar de crianças pequenas» aos homens, sendo que a esmagadora maioria adjudicou a tarefa a ambos e aproximadamente 20% responderam que é uma tarefa mais de mulher (esta atribuição é feita maioritariamente por rapazes).
Por último, procurámos compreender qual a relação que existe entre a organização familiar na divisão das tarefas e a atribuição das tarefas por género. Por outras palavras, pretendemos saber se a ideia de que a tarefa é feminina, masculina ou de ambos está relacionada com o modelo de divisão de tarefas domésticas em que foram socializados e socializadas. Para tal, calculámos para cada grupo de tarefas o número médio de atribuições femininas, masculinas ou a ambos e comparámos segundo o sexo e o tipo de divisão de tarefas na família dos e das inquiridas (tabela 4). Para esta análise utilizámos os testes paramétricos (test t e Anova) quando as variáveis cumpriam os critérios de normalidade e homogeneidade da variância, e os testes não paramétricos (Kruskall Wallis e U de Mann Whitney).
Da comparação entre os sexos, verifica-se que as diferenças entre rapazes e raparigas se encontram sobretudo nas famílias em que é a mãe que faz a maioria das tarefas, confirmando uma desejabilidade de mudança para padrões mais igualitários por parte das raparigas. Por outro lado, não se verificam diferenças significativas nas atribuições que fazem as raparigas e rapazes de famílias em que as tarefas domésticas são divididas entre o pai e a mãe.
Da análise intragrupo de raparigas e intragrupo de rapazes por grupos de tarefas e tipo de organização familiar na divisão das tarefas domésticas, verifica-se que no caso das raparigas não há diferenças significativas na atribuição das tarefas e a organização familiar da divisão de tarefas. O que indica que o tipo de organização familiar da divisão de tarefas não tem uma influência significativa na atribuição da tarefa a um ou a outro sexo, por parte das raparigas. É de destacar, porém, a exceção do grupo das compras, em que as raparigas oriundas das famílias que dividem tarefas atribuem significativamente mais as tarefas das compras a ambos e aquelas que provém de famílias em que a mãe faz a maioria das tarefas atribuem significativamente estas tarefas às mulheres.
No caso dos rapazes, o tipo de organização familiar da divisão de tarefas tem uma influência significativa sobre a forma como atribuem as tarefas. Nomeadamente, nos grupos das tarefas da casa, das compras e cuidar de crianças os rapazes que atribuem estas tarefas como mais femininas provêm de famílias em que a mãe faz a maior parte das tarefas domésticas, já os oriundos de famílias em que as tarefas domésticas são divididas atribuem significativamente as tarefas de casa a ambos. Nos grupos de tarefas relacionadas com as finanças e o carro são expressivamente mais atribuídas a ambos por aqueles que provém de famílias em que os e as progenitores/as dividem as tarefas do que por aqueles que são de famílias em que a mãe faz a maioria das tarefas. Demonstrando que os rapazes que provém de famílias em que os progenitores e as progenitoras dividem as tarefas são mais igualitários na distribuição das tarefas e que os rapazes socializados em famílias em que a mãe faz a maioria das tarefas apresentam uma atribuição genderizada das tarefas domésticas.
Discussão dos resultados
O presente estudo tinha como objetivo compreender quais as representações sociais das tarefas domésticas das alunas e dos alunos da UBI e em que medida tencionam reproduzir a divisão de trabalho doméstico da sua família de origem no núcleo familiar que no futuro estes e estas jovens irão formar. Procurava, simultaneamente, compreender o efeito do tempo, especificamente da mudança geracional, na alteração desta situação.
Dos resultados obtidos corroboramos várias conclusões de outros estudos de género. Verificamos, por um lado, a disparidade de género na divisão destas tarefas (Torres et al., 2005; Vieira, 2006; Schouten et al., 2012), já que a organização familiar de pertença (das e dos participantes) que predomina é a divisão de tarefas domésticas em que a mãe faz a maioria das tarefas. Por outro lado, verificamos através dos resultados obtidos sobre a ajuda que estas e estes estudantes prestam aos progenitores e às progenitoras no desempenho destas tarefas, que a socialização primária destes e destas jovens é na maioria diferenciada por sexo (Hilton e Haldeman, 1991; Beal, 1994; Vieira, 2006a, 2006b). E que esta socialização influenciará distribuição de tarefas domésticas por género na futura organização familiar dos inquiridos e das inquiridas (Cunningham, 2001a, 2001b; Fran e Marini, 2000; Carlson e Knoester, 2011), visto que 53% afirmam ter a intenção de reproduzir o modelo de família de pertença. Embora o modelo que mais pretendam reproduzir seja o modelo de divisão de tarefas quando comparado com o modelo tradicional, a análise por consensos das tarefas domésticas demonstra que apesar dos inquiridos e das inquiridas atribuírem a maioria das tarefas a ambos (homens e mulheres), as desigualdades de género na distribuição das mesmas e a presença de estereótipos de género persistem. Sendo que as tarefas em que se atingiu maior consenso sobre serem tarefas de homens e mulheres são as tarefas que Zarca identifica como tarefas negociáveis (1990), o que pode significar que a atribuição a ambos os sexos signifique afinal que seja uma tarefa desenvolvida maioritariamente pela mulher e que a participação do homem seja apenas uma «ajuda».
Da relação entre a atribuição das tarefas domésticas e o tipo de organização familiar na divisão das tarefas domésticas, verifica-se que as raparigas são menos influenciadas pela organização de divisão de tarefas da família de pertença na atribuição das tarefas do que os rapazes. E são elas quem mais deseja um modelo diferenciado daquele em que foram socializadas, nomeadamente quando são oriundas de famílias com uma divisão não igualitária. Por seu turno, os rapazes socializados em famílias em que existe divisão de tarefas entre pai e mãe, são mais igualitários na atribuição das tarefas do que rapazes que provêm de famílias em que o modelo de divisão das tarefas domésticas é tradicional.
Da realização deste estudo, compreende-se uma mudança geracional nas questões de género, provavelmente consequente das mudanças na esfera laboral e do facto das relações familiares serem cada vez mais democráticas (Wall, 2005). Todavia, esta mudança está longe de ser a mudança social desejada, visto que se comprovou que a distribuição do trabalho não pago continua a não ser igualitária e que provavelmente continuará a não o ser nas futuras organizações familia-res destes e destas jovens. Em nosso entender, este estudo sugere, igualmente, um possível efeito positivo de disseminação da mensagem de igualdade de género: as raparigas, enquanto primeiras agentes naquilo que é uma participação mais igualitária de ambos os sexos na esfera doméstica, parecem estar mais abertas à mudança quando convocada a partir de fora, pela ação da sociedade civil na divulgação de um modelo social mais equilibrado mesmo quando tal questiona o seu padrão familiar. Já os rapazes, interlocutores menos diretos visto que tipicamente menos prejudicados na divisão tradicional de papéis, são mais sensíveis à mensagem quando a mesma é veiculada pelo seu modelo familiar já de si mais igualitário. O que nos leva a concluir que a educação familiar tem um papel muito importante na transmissão de tarefas a executar e funções a desempenhar por homens e mulheres, e na construção da identidade de género dos e das jovens. Parece-nos, assim, que dar continuidade ao questionamento do modelo tradicional da divisão das tarefas através da educação familiar é um trilho importante para a promoção da igualdade de oportunidades e direitos entre homens e mulheres (Vieira, 2006b), e que outros agentes educativos têm igualmente um papel importante nesta missão, entre os quais as instituições do ensino superior (Oliveira, Simões & Villas-Boas, 2011).
Referências Bibliográficas
Amâncio, Lígia (1994), Masculino e Feminino. A construção social da diferença, Porto, Edições Afrontamento. [ Links ]
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Artigo recebido em 21 de novembro de 2013 e aceite para publicação em 7 de setembro de 2014.