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Ex aequo
versão impressa ISSN 0874-5560
Ex aequo no.32 Lisboa dez. 2015
DOSSIER: AUSTERIDADE E REGIMES DE BEM-ESTAR E DE SEXO/GÉNERO
Introdução. Austeridade e regimes de bem-estar e de sexo/género
Virgínia Ferreira1 e Rosa Monteiro2
1Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal
2 Instituto Superior Miguel Torga e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal
Desde 2008 que a crise económico-financeira, social e política e as medidas políticas implementadas para a enfrentar têm provocado alterações significativas no que respeita aos níveis de bem-estar e proteção social de setores significativos da população. Espoletada com a bolha imobiliária nos Estados Unidos da América, esta crise tornou-se global, atingindo diretamente vários países da Europa e, reflexamente, em países de outros continentes mais dependentes da exportação de bens de consumo, em virtude da retração da procura e o congelamento do crédito quer para o consumo quer para o investimento (Seguino, 2010). Marcadas pela austeridade e pela retração da despesa pública em proteção social e apoio ao crescimento económico, as políticas públicas têm exacerbado as desigualdades sociais, na medida em que tendem a privatizar os riscos sociais e a desregulamentar os mercados de trabalho. A literatura sobre a atual crise e a austeridade é já abundante (p.e., Rubery, 1988; Walby, 2009; Seguino, 2010; Rubery, 2011; Karamessini e Rubery, 2014; Griffin, 2015). São, porém, raras as análises sobre os impactos ao nível dos regimes de sexo/género, entendidos como configurações das relações sociais entre mulheres e homens, determinadas, em cada contexto, pelo enquadramento institucional, pela economia e pelos estilos de vida. Nessas configurações são dimensões-chave a divisão da esfera pública e privada e da produção e reprodução entre mulheres e homens (Walby, 2004). Em cada momento histórico, cada regime de sexo/género oferece oportunidades de vida e impõe exigências a mulheres e homens. No contexto da crise atual, interessa, por isso, perceber qual o papel que nos regimes de bem-estar se reserva ao Estado, ao mercado e à família e qual o modelo de família que é promovido (Daly, 2011; León e Migliavacca, 2013). Importa, portanto, conhecer as oportunidades abertas e exigências impostas a mulheres e homens pelas configurações contextualizadas dos regimes de sexo/género e bem-estar e pelos modos de gestão da crise.
Embora as primeiras manifestações da crise tenham atingido primordial-mente os setores mais masculinizados do emprego, vários estudos têm vindo a mostrar que o emprego feminino não deixou de ser afetado principalmente como consequência das medidas de austeridade adotadas pelos governos para «combater» a crise, entre as quais se destacam os cortes nos apoios sociais, o aumento dos impostos e a redução dos efetivos da administração pública (vejam-se o con-junto de análises incluídos no volume editado por Karamessini e Rubery, 2014). O princípio do universalismo tem vindo a ser abandonado em favor da familização (Daly, 2011). A generalização da condição de prova de meios dos agregados familiares reforça o papel subsidiário da família e reduz a autonomia das mulheres em áreas chave da cidadania, a nível individual, social e político. As mulheres são uma vez mais relegadas para a «caixa negra» da família, de onde lutaram para sair ao longo das últimas décadas. A retração do estado de bem-estar formal leva a um reforço da «sociedade-providência» informal, cujo principal pilar é a família, que por sua vez tem no trabalho não remunerado das mulheres a sua principal fonte de sustentação. Resta, portanto, saber como o reforço do carácter contratualista do regime de cidadania e bem-estar, como via de acesso ao gozo de direitos sociais, tem implicado a transformação das relações sociais de sexo/género e as respetivas implicações em todas as esferas da vida pessoal, familiar, social, económica e política.
Estas mudanças colocam enormes desafios aos estudos feministas, sobre as mulheres e de género. Daí o interesse da ex æquo em coligir e visibilizar análises que incluam esta perspetiva, independentemente da área científica de proveniência (estudos sobre as mulheres/de género/feministas, sobre políticas sociais, ou de áreas disciplinares como a sociologia, economia, direito, psicologia, etc.).
Com a organização deste dossier temático procuraram-se contributos centra-dos nas mudanças em curso nos regimes de bem-estar e de sexo/género em consequência das políticas de austeridade adotadas para fazer face à atual crise económico-financeira. É vasta e diversificada, parece-nos, a agenda de investigação aberta pela problemática das transformações nas relações sociais de sexo/género estimuladas pela atual crise. Em breves apontamentos enunciamos algumas das questões que nos merecem destaque:
1. Políticas de austeridade e modelos económico-sociais, de cidadania e de sexo/género;
2. Análises feministas sobre os impactos diferenciais das políticas de austeridade nos padrões de segregação dos mercados de trabalho em regiões/países, setores de emprego, trabalho remunerado/não remunerado e grupos sociais (em função do sexo, etnia, orientação sexual, classe social, idade, etc.);
3. Efeitos da crise e das políticas de austeridade sobre os modelos de proteção social e as suas implicações nas relações sociais de sexo/género;
4. Investimento social mudanças e efeitos sobre a articulação da vida pro-fissional e familiar;
5. Discursos sobre a crise e as políticas austeritárias e respetivas implicações para as representações sobre as identidades e as relações de sexo/género;
6. O regime de sexo/género e os limites do contratualismo;
7. Endividamento e gestão dos orçamentos familiares;
8. Desemprego jovem, precarização, limitações de acesso ao crédito para habitação impactos sobre projetos de autonomização pessoal;
9. O subfinanciamento de centros de investigação e impacto nos estudos feministas, sobre as mulheres e de género;
10.Modalidades de mobilização coletiva e discursos de resistência às políticas austeritárias e respetivas implicações no gender gap;
11.Exploração de futuros alternativos mais igualitários;
12.Reemergência e resistência ao familismo.
Este dossier não fecha certamente esta agenda, pelo que é expectável que ao longo dos próximos anos, as transformações induzidas pela crise e pelas políticas destinadas ao seu combate voltem a merecer a atenção da ex æquo.
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Artigo recebido em 30 de agosto de 2014 e aceite para publicação em 22 de outubro de 2014.
Notas
Catarina Vieira. Mestre em Psicologia da Justiça, fez estágio com jovens e famílias em risco. Os seus interesses de investigação dizem respeito à área de jovens e adultos ofensores, nomeadamente às questões relativas à maternidade e paternidade em reclusão, procurando compreender como as construções sociais de género são vivenciadas em contexto prisional. E-mail: catarina.vieira.90@hotmail.com
Luísa Saavedra. Professora Auxiliar do Departamento de Psicologia Aplicada da Escola de Psicologia, Universidade do Minho. É doutorada em Psicologia e tem lecionado e investigado na área do género e perspetivas feministas, mais recentemente na área da criminologia e justiça criminal. Nesta área tem-se dedicado essencialmente às mulheres ofensoras, nomeadamente no domínio da maternidade e paternidade em reclusão. Estes trabalhos têm dado origem a teses e a diversos artigos nacionais e internacionais. Tem participado, com a CIG, em ações e publicações. E-mail: lsaavedra@psi.uminho.pt
Alexandra M. Araújo. Doutorada em Psicologia e Investigadora no Instituto de Educação da Universidade do Minho, com financiamento pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BPD/85856/2012). É especialista em investigação quantitativa e tem publicado numerosos artigos nacionais e internacionais na área da educação e no seu cruzamento com as questões de género. E-mail: alexandra.araujom@gmail.com
Escola de Psicologia (EPSI) da Universidade do Minho, Campus de Gualtar 4710-057 Braga, Portugal.