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Ex aequo
versão impressa ISSN 0874-5560
Ex aequo no.34 Lisboa dez. 2016
https://doi.org/https://doi.org/10.22355/exaequo.2016.34.04
DOSSIER: PERSPETIVAS INTERDISCIPLINARES SOBRE O FEMICÍDIO
O feminicídio de juárez: alterações económicas, narrativas sociais e discursos coloniais na fronteira dos EUA e MÉXICO
Feminicide in Juárez: Economic change, social narratives and colonial discourses on the border of the United States and Mexico
El feminicidio en Juárez: Cambio económico, narrativas sociales y discursos coloniales en la frontera de los Estados Unidos y México
Patrícia Alves Lobo*
* Grupo de Estudos Americanos, Centro de Estudos Anglísticos, Universidade de Lisboa, 1600214 Lisboa, Portugal; Escola Superior de Gestão e Tecnologia de Santarém, Instituto Politécnico de Santarém, 2001-904 Santarém, Portugal. Endereço eletrónico: patricia.lobo@esg.ipsantarem.pt Endereço postal: Escola Superior de Gestão e Tecnologia de Santarém, Complexo Andaluz, Apartado 295, 2001-904 Santarém. Portugal.
RESUMO
Desde maio de 1993 que, em Ciudad Juárez, centenas de mulheres foram assassinadas, violadas, torturadas e mutiladas e milhares continuam desaparecidas. Neste artigo, começa-se por evidenciar a interligação entre as alterações económicas geradas pelo Acordo de Comércio Livre da América do Norte e a destabilização dos papéis de género no norte do México, o que originou novos focos de violência contra as mulheres. Em segundo lugar, expõe-se a dialética que está subjacente aos modelos patriarcais enraizados na cultura mexicana, na base de narrativas sociais que desculpabilizam o opressor e culpabilizam a vítima. Por último, considera-se a centralidade da mestiçagem no discurso imperialista e colonial subjacente ao feminicídio de Juárez, relacionando-se ainda a fronteira com o hibridismo identitário de corpos femininos historicamente e culturalmente pluralizados.
Palavras-chave: Juárez, feminicídio, machismo, colonialismo.
ABSTRACT
Since May 1993, in Ciudad Juárez, hundreds of women have been murdered, raped, tortured and mutilated and thousands are still missing. This article begins by highlighting the link between the economic changes generated by the North American Free Trade Agreement and the destabilization of gender roles in northern Mexico, which originated new outbreaks of violence against women. Second, it exposes the dialectic that underlies patriarchal models rooted in Mexican culture, which are on the basis of social narratives that excuse the oppressor and blame the victim. Finally, the article addresses the centrality of miscegenation in the imperialist and colonial discourse of the Juárez feminicide, also relating it to the border and the hybridity of female bodies historically and culturally pluralized.
Keywords: Juárez, feminicide, machismo, colonialism.
RESUMEN
Desde mayo de 1993, en Ciudad Juárez, cientos de mujeres han sido asesinadas, violadas, torturadas y mutiladas y miles siguen desaparecidas. Este artículo destaca la interrelación entre los cambios económicos generados por el Tratado de Libre Comercio de América del Norte y la desestabilización de los roles de género en el norte de México, que originó nuevos brotes de violencia contra las mujeres. En segundo lugar, se expone la dialéctica que subyace a los modelos patriarcales arraigados en la cultura mexicana, que están en la base de narrativas sociales que disculpan al opresor y culpan a la víctima. Por último, se considera la importancia del mestizaje en el discurso imperialista y colonial del feminicídio de Juárez, se relacionando la frontera con la hibridación de la identidad de los cuerpos femeninos histórica y culturalmente pluralizados.
Palabras clave: Juárez, feminicidio, machismo, colonialismo.
Introdução: o caso de Ciudad Juárez
Nas últimas décadas, o femicídio tem sido objeto de estudo de vários investigadores, com o propósito de entender a dialética que lhe está subjacente. Diana Russel começa por defini-lo como o «assassínio de mulheres porque são mulheres» (1982, 286), analisando ainda com Jane Caputi (Caputi e Russel 1990, 34) as motivações que subjazem nas mentes masculinas que o praticam: ódio, desprezo, prazer e um sentimento de posse. Anos mais tarde, a autora reformula o conceito, definindo-o como o assassínio de elementos do sexo feminino por elementos do sexo masculino, englobando assim as muitas crianças assassinadas mesmo antes de se tornarem mulheres (Russel e Harmes 2001).
Marcela Lagarde (2010) entende que o conceito de femicídio deve ser substituído por feminicídio sempre que configura um genocídio feminino, gerado a partir de um clima de terror, de perseguição e de morte de mulheres, quer por agressões físicas, quer por psicológicas. É neste enquadramento que interpreta os crimes que, desde meados da década de 1990, se tornaram parte do dia-a-dia dos habitantes de Ciudad Juárez, considerando que são resultantes de uma forma de organização social, patriarcal e hierárquica, baseada em noções de supremacia e inferioridade. Esta organização fomenta a desigualdade de género, sendo responsável pela exclusão das mulheres das estruturas de poder, bem como pelo silêncio social e governamental que permite que os crimes permaneçam impunes (Lagarde 2010, xxi). O género é sempre o motivador do crime, no entanto Rita Segato (2011) defende a criação de outra categoria dentro do feminicídio, o femigenocídio, que define como o feminicídio dirigido ao sexo feminino como um todo impessoal, ou seja, crimes letais desprovidos de qualquer carácter interpessoal. Embora todos estes termos sejam comummente utilizados como sinónimos, este artigo adota o conceito de feminicídio, seguindo a abordagem proposta por Lagarde (2010) para este caso concreto, uma vez que, em Juárez, os crimes contra as mulheres assentam não só em dinâmicas sociais de género, mas também no racismo e na injustiça social. O conceito escolhido alude, portanto, ao contexto da região onde estes crimes são cometidos, bem como à responsabilidade do Estado mexicano nesta conjuntura.
Desde 1993, mais de quinhentas mulheres foram assassinadas e cerca de mil desapareceram só no Estado de Chihuahua, do qual faz parte Ciudad Juárez. Entre 1993 e 2001 registou-se um aumento de 700% de assassinatos violentos cometidos contra o sexo feminino nesta cidade, 269 casos, dos quais aproximadamente um terço aconteceu em circunstâncias semelhantes: mulheres raptadas e mantidas em cativeiro, violadas, torturadas, sexualmente mutiladas e desmembradas, cujos corpos foram abandonados em áreas pouco movimentadas da região (Fregoso e Bejarano 2010, 6-36). Muitas desapareceram durante rotinas normais, na sua casa, no percurso para o trabalho, em centros comerciais ou em frente a lojas do centro da cidade. O relatório «Intolerable Killings: Ten Years of Abductions and Murders in Ciudad Juárez and Chihuahua», da Amnistia Internacional (Kozma 2003) conta 370 casos até 2003, 137 dos quais incluem abuso sexual. Segundo a base de dados «Feminicide 1993-2008», compilada por El Colegio de la Frontera Norte, entre 1993 e 2005 registaram-se 442 assassinatos de mulheres e crianças do sexo feminino, dos quais 117 de menores de idade; situando-se a média de idades das vítimas nos 26 anos (López, Caballero e Rodríguez 2010, 164-165). A maioria corresponde a um perfil muito concreto: é jovem, pobre, mestiça, magra e tem cabelo comprido (Lagarde 2010, xv). 1
Neste artigo, pretende-se posicionar o feminicídio de Juárez na fronteira geográfica onde ocorre, um espaço onde as significativas alterações económicas conduziram à destabilização de papéis de género, onde a matriz patriarcal representa a base de modelos sociais e onde a herança colonial e imperialista produz narrativas dicotómicas, que assentam em ideias de puro/impuro, igualdade/ /diferença, inclusão/exclusão e dominador/dominado.
1. As alterações económicas da fronteira
A fronteira entre os EUA e o México é uma zona de colisão e convivência entre o primeiro e o terceiro mundo, onde o confronto de realidades, economias e políticas deu origem a esferas que diferem tanto do norte como do sul. A amálgama de línguas e padrões culturais, o fluxo intenso de pessoas e o dinamismo social originaram identidades híbridas que pareciam remeter para um futuro de colaboração entre dois povos, para a promessa de flexibilidade e para a tolerância face às diferenças (Lomelí 2012, 101). No entanto, mais do que local de mistura, esta fronteira converteu-se numa zona de demarcação, uma vez que as desigualdades sociais e políticas a transformam num autêntico apartheid em pleno continente americano (Staudt e Coronado 2002, 13).
As alterações socioeconómicas da fronteira, que se seguiram à implementação do Acordo de Comércio Livre da América do Norte (NAFTA),2destabilizaram as noções tradicionais de género, ao mesmo tempo que instituíram práticas que vulgarizaram a exploração de mão-de-obra feminina barata na fronteira, convertendo as mulheres em meras peças produtivas numa engrenagem (Moraga 2011, 144). Este acordo formalizou políticas neoliberais, mas não acautelou as mudanças sociais, ambientais e económicas que se desenrolaram, criando-se a base para a proliferação de novas formas de violência contra as mulheres (Segura e Zavella 2007, 5). Ao situarem as indústrias maquiladoras3a sul do seu território, os EUA reduziram custos de manufatura, nomeadamente através da contratação de mão-de-obra feminina a baixo custo, sem direitos laborais ou proteções sociais e de saúde e, simultaneamente, desencorajaram a imigração para o norte. No entanto, a cidade não foi preparada para absorver o elevado número de imigrantes que chega de toda a América Latina, que se aglomera em bairros improvisados, sem quaisquer condições de habitabilidade e segurança, nem tão pouco para dar resposta às elevadas taxas de natalidade da população mais pobre.
O estabelecimento de diferentes políticas e interesses económicos na zona da fronteira gera o que Sergio González (2012) denomina «máquina de femicídio», uma metáfora que alude à industrialização, mas também a uma conjuntura que propicia os crimes e que se relaciona com a degradação institucional: a coexistência de álcool barato e prostituição, os abusos das autoridades mexicanas, a fuga às leis laborais e às regulamentações ambientais e a impunidade judicial e política apresentam-se como o cenário ideal para a proliferação da violência de género e para a atração de criminosos de outros locais. Além disso, o aparecimento de economias paralelas, como a do narcotráfico, alavanca focos de violência em relação aos quais as mulheres latino-americanas pobres se encontram particularmente expostas, devido ao sistema patriarcal enraizado na cultura mexi cana e ao clima de impunidade gerado (Pineda-Madrid 2011, 33).
As fábricas de Juárez são espaços onde as mulheres se encontram vulneráveis a abusos laborais e/ou sexuais, repetindo os padrões machistas de subordinação de género da sociedade mexicana. Por sua vez, os modelos de discriminação das empresas fazem emergir um caos de deturpação de valores e de apatia pelos direitos básicos do sexo feminino que extrapola para a sociedade de Juárez.
As trabalhadoras são, normalmente, contratadas segundo critérios que assentam na sua aparência física, juventude, inexperiência e submissão. A sua capacidade reprodutiva é associada a prejuízo financeiro, o que conduz a práticas laborais ilegais, que nunca seriam possíveis a norte da fronteira, como a obrigatoriedade de testes de gravidez, monitorização de ciclos menstruais e inquéritos sobre hábitos sexuais (Wright 2007, 195; Gaspar de Alba e Guzmán 2010, 64). Assim, a par da feminização dos modelos de trabalho, surge a sexualização das trabalhadoras, encorajada na contratação e supervisionada durante o contrato (Fregoso 2007, 45). O espaço da fábrica é, portanto, um domínio masculino, onde a sexualidade feminina é controlada por empresas que objetificam a mulher e a convertem numa peça a ser consumida e descartada. Deste modo, a trabalhadora é moeda de troca, numa transação onde «o capitalista tem o direito de disciplinar o corpo para a produção» (Fragoso 2010, 62), retirando-lhe a humanidade. O seu valor económico decresce com a idade e com a exaustão, representando a flexibilidade de contratação e a maximização do lucro da economia global (Wright 2007, 186). Práticas discriminatórias incluem ainda vários turnos seguidos sem pausas, salários mais baixos, distribuição de drogas para aumentar a produtividade, assédio sexual por parte dos superiores hierárquicos e falta de segurança nas deslocações entre os locais de residência e de trabalho.
As mudanças sociais provocadas pelo NAFTA e o facto de muitas vítimas serem trabalhadoras das maquiladoras tornam difícil separar a questão económica do feminicídio.4Alicia Gaspar de Alba (Gaspar de Alba e Guzmán 2010, 63) constata que esta é uma questão binacional e transfronteiriça, considerando que os EUA devem ser responsabilizados por permitirem a impunidade e a continuação destes crimes, manipulando mão-de-obra feminina barata em seu benefício e evitando pôr em causa interesses económicos instalados. É de notar que Gloria Anzaldúa (1987, 32) denunciara, anos antes, a alteração de valores comunitários e da estrutura familiar que a implementação das maquiladoras estaria a germinar no sul da fronteira, alertando para a exploração do modo de vida mexicano por valores anglo-americanos imperialistas. De facto, a vítima comum de Juárez representa formas de opressão de género e de opressão económica resultantes da reconfiguração de uma nova modernidade capitalista, racista e sexista (Fragoso 2010, 67). O feminicídio de Juárez é, deste modo, comummente designado de «crimes das maquiladoras», podendo ser percecionado como uma consequência da globalização e do capitalismo económico no Terceiro Mundo, onde a exploração e a redundância dos corpos femininos parece estar na base do seu extermínio (Fregoso 2007, 41).
2. A desconstrução social do papel de género e a construção de narrativas sobre o feminicídio
No México, a violência de género é uma expressão legítima do poder masculino, enraizada na cultura, na simbologia religiosa e nas instituições. A dicotomia virgem/prostituta, ou a «síndrome das Três Marias» (Gaspar de Alba e Guzmán 2010, 81-82) – a mãe, a virgem e a prostituta – como os únicos caminhos que uma mulher pode escolher, são crenças que perduram até hoje nesta cultura patriarcal. Segundo o retrato do papel tradicionalmente atribuído, a mulher ideal deve personificar a passividade, paciência, obediência, maternidade e pertença à esfera doméstica – características contrárias às do sexo masculino, imbuído em valores machistas. Esta desigualdade está internalizada de tal modo na sociedade mexicana que se naturalizaram no quotidiano ações discriminatórias, falta de liberdade, coerção, objetificação e exploração sexual – padrões que conduzem à própria autodepreciação, culpa e vergonha da mulher. Por exemplo, segundo a cultura mexicana, a mulher violada é socialmente penalizada, carregando uma imagem denegrida por oposição ao violador – um sinónimo de homem poderoso, conquistador e de verdadeira masculinidade (Paz 2012, 71–74).
A entrada massiva das mulheres no mundo do trabalho, potenciada pelo NAFTA, conduziu à rápida alteração dos papéis sociais. As mulheres saem da esfera doméstica para a vida comunitária, contribuindo de forma direta para a nova economia e assumindo comportamentos emancipatórios, como o do planeamento familiar. Contudo, tais mudanças sociais e culturais não foram acompanhadas por uma alteração de mentalidades, nem tão pouco assimiladas por constituírem uma grave ameaça ao controlo masculino, desencadeando o reforço da cultura patriarcal e da opressão feminina (González 2012). De facto, estas mulheres desafiam e ameaçam a construção social de género, ao deixarem de ser apenas filhas ou irmãs, para assumirem o sustento familiar (Córdoba 2010, 97). González afirma que a presença das trabalhadoras em espaços da vida pública motivou o ódio dos homens, que responsabilizam a alteração do papel social e económico da mulher pela desestruturação da família e pela perda da sua autoridade (2012, 28). Salienta-se que a violência de género na esfera familiar é difícil de provar segundo a lei mexicana e a maioria não é condenada após julgamento (Staudt 2008, 35).
Na engrenagem machista, que vincula a mulher «decente» unicamente ao espaço privado, justifica-se a eliminação dos elementos femininos que não se inserem na função social aceite, culpabilizando as vítimas e desculpabilizando os agressores, o que Radford (1992, 5) denomina de vitimologia. No México, uma mulher que se movimenta na esfera pública, sem supervisão masculina, com meios de subsistência (ainda que mínimos), expõe-se, provoca e merece os crimes de que é alvo. É neste contexto, que as jovens trabalhadoras são vulgarmente designadas de maqui-locas: exemplos de mulheres de má vida, transgressoras do dever moral (Gaspar de Alba e Guzmán 2010, 80-81). A própria construção da palavra maqui-loca alude ao facto de o trabalho nas maquiladoras e o decorrente do negócio do sexo se confundirem nas mentes masculinas. Esta visão é assumida pelas autoridades e agravada pelos média que difundem informações erróneas e imagens de mulheres latino-americanas bastante sexualizadas, sugerindo que as trabalhadoras se dedicam à prostituição depois dos turnos das fábricas – um dos trunfos turísticos do local (Gaspar de Alba e Guzmán 2010, 79; Segato 2010, 72).
A resposta do governo do Estado de Chihuahua mostra-se ineficaz no combate ao feminicídio. Segato considera que a impunidade em Juárez assenta em três características: «a ausência de suspeitos credíveis, a ausência de linhas de inquérito coerentes e a repetição constante de que os crimes são consequência de um determinado comportamento» (2010, 73). A crença veiculada de que as vítimas levam uma vida dupla, frequentam discotecas e bares e se vestem de forma provocante é o argumento utilizado pelas autoridades para explicarem grande parte dos desaparecimentos e mortes (Gaspar de Alba e Guzmán 2010, 67). A relativização dos acontecimentos é ainda acompanhada por práticas legais questionáveis, como a destruição de provas que poderiam ser objeto de análise, ou a utilização de métodos de investigação contraditórios (Dominguez-Ruvalcaba e Ravelo 2010, 183). Em 2005, o governo recusou mesmo as recomendações da Amnistia Internacional e da Organização das Nações Unidas para uma abordagem séria ao feminicídio de Juárez (Olivera 2010, 51; González 2012, 45).
Tabuenca Córdoba considera que a imagem de «transgressoras da moral» veiculada pelo discurso hegemónico mexicano evitou que se encarassem as violações, os assassinatos e os desaparecimentos com a gravidade necessária (2010, 97). Na sua análise às campanhas de prevenção da violência contra as mulheres de Juárez, esta investigadora identificou discursos que veiculam modelos culturais de segregação de género e classe, bem como o uso de estereótipos que conduzem à responsabilização das vítimas: por exemplo, a alusão de que a mulher que não se resguarda na esfera privada pode converter-se num número de uma estatística, ou mesmo a sugestão de que as mulheres de classe alta são mais decentes porque não se expõem (Córdoba 2010, 101-102). Assim, a sociedade é manipulada para concordar com aquilo que é a versão oficial dos factos, sendo o comportamento das vítimas escrutinado. Se tal versão não é justificação para o assassinato recorrente de mulheres, estas deixam de ser percecionadas como vítimas para serem cúmplices da sua própria agressão e morte, criando-se as condições para que a impunidade seja tolerada (Moraga 2011, 144). Ao retirar a base moral das vítimas e a não oferecer justiça às famílias, o Estado mexicano trans-mite que o sofrimento individual das mulheres não é relevante e reforça a ideia de que os seus direitos podem ser violados, contribuindo para a criminalidade.
O sentimento de impunidade e inércia potencia, assim, a despersonalização das vítimas, num círculo vicioso pelo qual os cidadãos comuns se desconectam da dignidade humana. Esta falta de empatia é levada ao extremo e generaliza-se por todo o continente. Em 2010, uma empresa de cosméticos americana decidiu mesmo criar uma linha de produtos inspirada nas mortes de Juárez, banalizando o sofrimento das famílias e objetificando as vítimas (González 2012, 92) – no mundo da moda, onde a magreza extrema é o modelo a seguir, os corpos mutilados e a crueldade contra o sexo feminino atraem o consumidor. Nesta conjuntura, os cartazes de mulheres desaparecidas, que se amontoam nas paredes, nos postes e nas janelas de lojas, e que são parte do dia-a-dia dos habitantes da fronteira, são encarados pela sociedade como representativos de um número sem identidade devido à trivialização de uma narrativa oficial que não penaliza o agressor (Staudt 2008, 145). De facto, estas mulheres são invisíveis aos olhos da sociedade, até que se descobrem os seus corpos na fronteira (Gaspar de Alba e Guzmán 2010, 4).
Quando se justificam os assassinatos com o argumento de que o estilo de vida das mulheres de Juárez as conduz a um destino mortal, utiliza-se os mesmos padrões e códigos patriarcais que as subjugaram em vida. As vítimas são deixadas nuas e mortas, no deserto ou numa lixeira, depois de violadas e torturadas, relembrando simbolicamente o papel feminino na engrenagem capitalista e no sistema social – um corpo a ser explorado, que necessita de ser controlado e punido, um número sem identidade. Esta violência é, pois, uma forma de controlo social naturalizada nas sociedades machistas e expõe uma relação de poder (Fregoso 2007, 36). É também uma forma de tortura, que se relaciona com um ataque à identidade de género, através da violação ou da mutilação de órgãos específicos da anatomia feminina (Bunster-Burotto 1986, 306–307).
Em Juárez, a luta contra os crimes é sinónimo de oposição à versão oficial dos factos e, por conseguinte, aos órgãos governamentais. Depois de 2001, com o assassinato de vários ativistas dos direitos humanos e de mães de vítimas que reclamavam por justiça, a atenção internacional conduziu à alteração da narrativa das autoridades mexicanas. Deste modo, deixaram de utilizar o argumento de que as mulheres teriam vida dupla, para insistir na falta de interligação entre os crimes, encarando cada um isoladamente e defendendo que fazem parte da vida urbana de qualquer cidade (Fregoso 2007, 39). Além disso, a difusão de que os familiares das vítimas, os grupos de manifestantes e os ativistas teriam objetivos económicos de angariação de fundos internacionais para financiar causas feministas, silencia quem põe em evidências as falhas do sistema (Pineda-Madrid 2011, 103). Neste contexto, designam as mães que se manifestam de mujeres publicas numa clara analogia à prostituição – no México, uma mulher pública transgride o papel circunscrito à esfera doméstica, enquanto um homem público é um exemplo social (Pineda-Madrid 2011, 106).
Ainda que a resposta das autoridades mexicanas não tenha sido conclusiva, muitas são as versões que apontam para diferentes responsáveis pelos crimes. Diana Valdez refere que o FBI considera tratar-se de um conjunto de criminosos que encontram na fronteira a conjuntura ideal: vários assassinos em série, traficantes de droga e homens poderosos do sistema (Valdez 2006, 235). Valdez não tem dúvida de que membros do governo, polícias, empresários e traficantes estão entre os agentes que «transformam o feminicídio num desporto em Juárez» (2006, 55). Há indícios de que as mortes e a tortura das mulheres fazem parte de rituais de iniciação de novos membros de cartéis ou mesmo de comemorações por carregamentos de substâncias ilegais chegarem aos EUA sem a deteção das autoridades americanas (Dominguez-Ruvalcaba e Ravelo, 2010, 183). Para além disso, muitos crimes parecem ter sido perpetrados por grupos organizados, com recursos financeiros e logísticos, já que alguns corpos apresentam marcas de congelação, correspondendo a mulheres assassinadas em anos diferentes ou desaparecidas há vários meses. Marcas nos corpos das vítimas sugerem ainda que os crimes podem estar relacionados com a transmissão ao vivo de pornografia sádica (Lagarde 2010, xiv). Para Segato, os crimes de Juárez serão atos comunicativos – a vítima é apenas um meio, um objeto descartável de um diálogo do masculino para o masculino, com o objetivo de fomentar a coesão e o fortalecimento de fraternidades ou grupos, através de rituais de aceitação e pactos de silêncio, pelos quais os próprios corpos mutilados das vítimas transmitem mensagens nos jogos de poder e de controlo de território (Segato 2010, 78). Deste modo, «os crimes serão sinónimo da existência de um Estado paralelo, estabelecido na região, com tentáculos até à administração governamental» (Segato 2010, 83-86).
3. Marcas de discursos imperialistas e coloniais no feminicídio de Juárez
Para as mulheres latino-americanas, a fronteira entre os EUA e o México é um espaço de categorização social, impotência económica, estratificação social e marginalização cultural e linguística. Como Anzaldúa (1987) refere, nesta zona geográfica, a mulher mestiça tem de lutar contra a opressão de género na sua comunidade e a de classe e raça na sociedade dominante, sofrendo de tripla opressão em dois contextos fortemente patriarcais. É, pois, um espaço onde as práticas e os discursos imperialistas confluem com estruturas machistas da tradição mexicana e onde a etnia e o género são inerentes às relações hierárquicas.
O contacto com a fronteira produz na identidade feminina latino-americana formas de hibridismo cultural, através de processos de negociação que contestam valores patriarcais. A inevitável influência dos EUA no norte do México tem impacto na estrutura familiar e social – o sexo feminino percebe que o lar patriarcal pode ser um espaço letal para a mulher (Radford e Russel 1992, 75), questionando os padrões tradicionais e almejando a promessa da sociedade igualitária do norte da fronteira. Como aponta Anzaldúa (1987), o hibridismo identitário gera uma luta interna e externa pelo direito à autodefinição e autodeterminação que, no limite, pode conduzir ao afastamento do núcleo familiar e comunitário. No entanto, numa zona onde os interesses da economia capitalista se sobrepõem ao valor humano, as mulheres latino-americanas constituem o elo mais fraco.
Nos EUA, a crença de que o México se encontra numa fase anterior de desenvolvimento cria um sentimento anti-hispânico em toda a fronteira. A própria fronteira, com uma vasta zona desértica, é encarada como zona oposta aos valores urbanos da civilização (González 2012, 91). Os serviços de imigração dos EUA percecionam o corpo das imigrantes ilegais ora como um domínio imperialista, ora como uma presença ameaçadora no território dos EUA. Corpo e território entram em diálogo com os conceitos de superioridade e inferioridade e, por conseguinte, a violação destas mulheres justifica-se porque contribui para a segurança da nação (Falcón 2007, 204) e evita a mexicanização dos EUA (Castillo 1996, 207). Assim, legitima-se a violência contra quem não «entra como gente decente» (Staudt e Coronado 2002, 146), com abusos que podem ser verbais ou sexuais, mesmo em relação a mulheres latino-americanas que atravessam a fronteira legalmente (Staudt e Coronado 2002, 139). Após o 11 de Setembro, o reforço da militarização da fronteira alude a um estado de guerra, no qual a violação de direitos humanos é apenas uma contingência. Esta militarização incita ainda mais a violência de género, já que, por um lado, desumaniza os elementos femininos e os torna no «outro» (Camacho 2010, 284) e, por outro, promove as contradições do sistema de imigração dos EUA, frequentemente aproveitadas para justificar abusos sexuais. Realça-se que, neste contexto, as mulheres ilegais que tentam cruzar a fronteira recorrem mesmo a anticoncetivos, com o intuito de minimizar as consequências de uma provável violação (García Bernal 2010). Há então uma cultura patriarcal que não é controlada, sendo comum a ambos os lados da fronteira (Staudt, Fragoso e Fuentes 2010, 75).
Cherríe Moraga não tem dúvidas de que o feminicídio representa um efeito pungente da globalização nas mulheres, intimamente relacionado com a sua mestiçagem (2011, 144). O perfil físico da maioria das vítimas aponta para um discurso de superioridade racial de procura pelo exótico, pelo indígena, pelo controlo do elemento selvagem e pela colonização da mulher através do seu corpo. A mestiçagem das mulheres latino-americanas relaciona-se, assim, com a impureza racial e opõe-se à superioridade da raça branca e do sexo masculino. Relembra-se que as vítimas não são simplesmente assassinadas, mas violadas, desmembradas, mutiladas e largadas em lixeiras, no deserto, perto de maquiladoras ou centros comerciais (Gaspar de Alba e Guzmán 2010, 80). Há, pois, uma declaração de poder representado pela vitória do masculino sobre o feminino, com uma brutalidade que excede o simples assassínio. Na tradição patriarcal mexicana, este tipo de mortes alude aos sacrifícios Aztecas de elementos do sexo feminino (Valdez 2006, 28), bem como ao desmembramento de Coyolxauhqui,5que Gaspar de Alba (2014, 132) considera a primeira vítima de feminicídio no México. Para Anzaldúa, esta figura mitológica é não só um símbolo da violência contra as mulheres, mas também do enfraquecimento da sua autodeterminação, uma vez que a divisão entre a mente e o corpo conduz à perda de poder do ser humano (Anzaldúa e Keating 2000, 220).
Além disso, na sociedade da fronteira, a ideia de que o sofrimento e a passividade tornam a mulher moral e espiritualmente superior remete para a dicotomia Virgen de Guadalupe/Malinche: a virgem como o modelo feminino que todas as mulheres devem seguir; Malinche como a traidora que facilitou a conquista e, na sequência de uma violação, gerou um filho de Hernán Cortez, o primeiro mestiço da história do México. A violação é não só símbolo da subjugação física e psicológica (Segato 2010, 74), mas também da vitória do conquistador presente no imaginário dos homens mexicanos. A violação é também considerada a forma de agressão mais próxima da tortura física e moral (Segato 2010, 75) e, nas vítimas de Juárez, surge representada de várias formas, por exemplo, pela introdução de objetos estranhos nos seus corpos (Gaspar de Alba e Guzmán 2010, 77), convertendo-se numa forma de terrorismo que serve para preservar o statu quo masculino (Radford e Russel 1992, 15), que demonstra, assim, quer o seu poder, quer a subjugação do sexo oposto.
Segundo Segato (2010), se os crimes se relacionam com o poder de famílias ou grupos sobre a cidade de Juárez, existe um discurso colonial que perceciona o corpo da mulher não só como meio de conquista e apropriação de território, mas também como símbolo de controlo e de unidade desse mesmo território (83–86). Radford e Russel (1992, 8) relembram que o femicídio traduz historicamente uma experiência diferente para uma mulher negra ou mestiça, uma vez que o próprio sistema social colonial legitima a violação das escravas, por serem consideradas propriedade, uma matriz ideológica que persiste até hoje nos estereótipos da mulher veiculados pelos média ou nos argumentos utilizados pelas autoridades de Juárez. O racismo está então institucionalizado, tal como o machismo, na sociedade da fronteira: nas mentes masculinas, as mulheres mestiças são impuras, animalescas e objetos de entretenimento e, como tal, equiparadas a prostitutas. Da mesma forma, as trabalhadoras das maquiladoras que transgridem para a esfera pública, assumem esse papel, havendo uma normalização social da violência contra as mulheres, que escala até ao feminicídio.
Conclusão
A região da fronteira continua uma «ferida aberta» tal como Anzaldúa (1987) a caracterizava há três décadas, verificando-se uma conjuntura que reprime os valores da dignidade humana: a concentração da maioria das maquiladoras da fronteira conduz a que a população se aglomere sem o mínimo de condições de habitabilidade; a poluição atmosférica e a acumulação de resíduos condenam a cidade à insalubridade; o aparecimento de economias paralelas, como a do narcotráfico, origina novos focos de violência; os assassinatos das mulheres, sem qualquer suspeito verosímil, conduzem à replicação da violência sexual devido ao sentimento de impunidade gerado.
A realidade concreta do feminicídio de Juárez é indissociável do espaço geográfico onde ocorre e cujas características se deixaram expostas neste artigo. Nesta cidade da fronteira, as alterações económicas desencadeadas pelo NAFTA e a estrutura social fortemente patriarcal coexistem com discursos colonialistas e imperialistas, baseados em narrativas históricas e capitalistas. O machismo mexicano encontra nesta conjuntura um terreno fértil para as assimetrias de género e exploração feminina. Tamanha violência de género é ainda compactuada por criminosos, polícias, militares, oficiais do governo, média e cidadãos, cujos discursos se baseiam na responsabilização das próprias vítimas, acusadas de assumirem comportamentos desviantes. Nesta engrenagem, as mulheres latino-americanas pobres encontram-se especialmente vulneráveis, por serem objeto de dois tipos de opressão – de género e de classe, e por conterem na sua identidade marcas de hibridismo e mestiçagem, encontrando-se em plena luta pela sua autodeterminação numa sociedade que as perceciona como um elemento selvagem a ser dominado e castigado pelos elementos masculinos que pretendem preservar o controlo social através da propriedade dos corpos e territórios.
Referências bibliográficas
Anzaldúa, Gloria. 1987. Borderlands/La Frontera – The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books. Anzaldúa, Gloria, e Ana Louise Keating (eds.). 2000. Interviews/Entrevistas. New York: Routledge. [ Links ]
Bunster-Burotto, Ximena. 1986. «Surviving beyond fear: Women and torture in Latin America». In Women and change in Latin America, editado por June Nash e Helen Safa, 297-325. Westport, CT: Bergin & Garvey/Greenwood. [ Links ]
Camacho, Alicia. 2010. «Ciudadana X». In Terrorizing Women. Feminicide in the Americas, editado por Rosa Fregoso e Cynthia Bejarano, 275-289. Durham: Duke University Press. [ Links ]
Artigo recebido em 15 de abril de 2016 e aceite para publicação em 20 de outubro de 2016.
Notas
Patrícia Alves Lobo. Professora Assistente no Instituto Politécnico de Santarém e no Instituto Politécnico do Oeste e investigadora no Grupo de Estudos Americanos do CEAUL da Universidade de Lisboa. É doutorada em Estudos da Literatura e da Cultura, na área de especialização de Estudos Americanos. A sua investigação centra-se na conjuntura da fronteira entre os EUA e o México e como esta se faz representar culturalmente na identidade feminina nas últimas décadas.
1 Lagarde apresenta uma caracterização das mulheres assassinadas, por idade, profissão, estrato social, nacionalidade e tipo de morte (2010, xix).
2O Acordo de Comércio Livre da América do Norte (NAFTA – North American Free Trade Agreement), é um acordo estabelecido entre os EUA, o México e o Canadá (1994), que tem como principal objetivo a abolição de restrições à circulação de bens e serviços, criando assim uma gigantesca área de comércio livre.
3 Na década de 1960, foram implementadas indústrias maquiladoras no México como parte do programa de industrialização da fronteira, embora a partir da década de 1990 se tenha verificado um rápido incremento e expansão para outras zonas do país. São indústrias pertencentes aos EUA, ao Japão e a alguns países da Europa, cujo ponto de contacto com a economia mexicana é unicamente a contratação de trabalhadores a baixo custo, uma vez que a matéria-prima não é adquirida no território nem os produtos passam pelo mercado mexicano.
4 Nem todas as mulheres assassinadas ou desaparecidas são trabalhadoras das maquiladoras. O feminicídio de Juárez fez vítimas de outros países, como do Canadá, EUA, Holanda, Honduras, El Salvador, Brasil e Guatemala (Valdez 2006, 29).
5Na mitologia azteca, Coyolxauhqui, filha mais velha da deusa Coatlicue, foi decapitada e cortada em pedaços por um dos irmãos, Huitzilopochtli, que enterrou as diversas partes em locais diferentes.