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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.36 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.22355/exaequo.2017.36.01 

DOSSIER - GÉNERO, EDUCAÇÃO E CIDADANIA: CONHECIMENTO, AUSÊNCIAS E (IN)VISIBILIDADES

 

Género, Educação e Cidadania: Que «Agenda» para a Investigação Científica e para o Ensino e a Formação?

 

Teresa Alvarez* Cristina C. Vieira** Joanna Ostrouch-Kamińska***

* Centro de Estudos das Migrações e Relações Interculturais (CEMRI)/Universidade Aberta, Rua da Escola Politécnica 141-147, 1269-001, Lisboa, Portugal.
Endereço eletrónico: mtnunes@cemri.uab.pt

** Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS 20) e Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Rua do Colégio Novo, 3001-802 Coimbra, Portugal.
Endereço eletrónico: vieira@fpce.uc.pt

*** Faculty of Social Sciences, University of Warmia and Mazury in Olsztyn, ul. Żołnierska 14, 10-561 Olsztyn, Poland.
Endereço eletrónico: joanna.ostrouch@uwm.edu.pl

 


 

O género, enquanto categoria de análise da realidade, é um recurso valioso para a «agenda» da investigação científica nas diversas áreas do conhecimento. E, se o fim último da ciência é contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas, importa usar os recursos de que a comunidade científica dispõe para identificar os problemas, dando-lhes visibilidade. Espera-se que a sua análise credível possa trazer contributos para a intervenção, seja ao nível das teorias, das práticas e/ou das políticas públicas que gerem a vida democrática.

O acesso ao conhecimento, quer através do ensino formal, quer por iniciativas não formais de promoção dos níveis de literacia das pessoas, qualquer que seja a sua idade, assume um papel incontornável no combate às desigualdades. É verdade que a garantia de acesso à escola – entendida em sentido lato –, por si, não resolve os dilemas sociais, mas as pessoas com menos oportunidades de domínio de conhecimentos que se adquirem para além do vivido tendem a ser mais pobres, mais propensas a sofrer atropelos aos seus direitos e a ser mais vulneráveis em situações que exijam autonomia de decisão.

Convocando o género e a educação para a sua relação com o exercício da cidadania, sabe-se que pessoas e grupos continuam a ser protagonistas e/ou vítimas de discriminação velada e explícita, seja por razões ligadas a um pensamento essencialista e binário, que acentua dissemelhanças e fomenta hierarquias, seja porque a diferença é vista como «desvio» do tradicional ou do normativo. Tal como escreveu Madalena Barbosa, «enquanto não se reconhecer uma discriminação, não se pode combatê-la» (2008, 89). É aqui que entra a ciência, no seu papel de desocultação de problemáticas específicas, cuja abrangência e impacto na vida de pessoas concretas possam ser desconhecidos, em virtude do seu silenciamento. Através do conhecimento produzido e ensinado, permite-se a quem ensina e a quem aprende o desenvolvimento de uma autonomia crítica, «não neutra» (ou cega) em termos de género, na construção de visões sobre si, as outras pessoas e o mundo (Vieira, Alvarez, e Ferro 2017).

O delineamento de políticas e de estratégias promotoras de mudança no âmbito das relações sociais de género exige o diagnóstico prévio, quer das representações sociais de género prevalecentes, que atravessam a vida quotidiana das pessoas, quer dos meios que veiculam essas mesmas representações (Alvarez 2007). Neste contexto, concordamos com Sofia Neves (2015), quando defende que o género, movido por uma dimensão ética e política fundamentada na teoria feminista, é um conceito, do ponto de vista das potencialidades que oferece, particularmente enriquecedor da análise aprofundada da realidade.

 

Conhecimento científico, educação e ética feminista: tornar visíveis temas silenciados

O conhecimento científico não pode ser excludente, pelo que os modos de fazer ciência devem ir para além do «típico modelo de tamanho único» (UN 2010, 78), inspirado pelos princípios positivistas. Ao manter-se a ênfase somente na quantificação, no estudo de amostras representativas e na generalização de resultados, muitos subgrupos de pessoas – muitos homens e muitas mulheres que sofrem discriminações específicas ou intersecções das mesmas – tenderão a ser marginalizados, ou pior, invisibilizados (Ostrouch-Kamińska e Vieira 2015). Torna- se fundamental, por isso, o recurso a estratégias mais qualitativas, contextuais, holísticas e críticas de desbravamento da realidade (e.g., Järviluoma, Moisala, e Vilkko 2003) para que se proceda à desconstrução da categoria das mulheres, mas também da categoria dos homens, que não podem ser vistos como grupos homogéneos e historicamente estáticos. Importa dar voz às pessoas, ouvi-las em discurso direto, conferindo-lhes desta forma um novo estatuto epistemológico: deixam de ser sujeitos da pesquisa e assumem o papel de participantes na investigação (Amado 2017). O estudo das questões associadas ao género requer, ainda, uma abordagem que considere outros vetores de análise do poder e outros eixos de referência identitária, bem como os contextos histórico-culturais em que as pessoas e as relações entre elas se manifestam e desenvolvem (Bergano e Vieira 2016).

Todavia, uma ciência que incorpore a teoria do género como apenas (mais) uma outra abordagem conceptual – necessária, interessante, útil ou até conveniente – sem o respaldo do pensamento crítico feminista corre o risco de se alicerçar em pressupostos androcêntricos, que é suposto a perspetiva de género questionar, e conduzir a interpretações da realidade social alinhadas com as novas configura ções patriarcais, sociais, económicas, tecnológicas e políticas. Uma ciência que utiliza a teoria do género esquecendo, prescindindo ou rejeitando o feminismo, corre o risco de se posicionar fora do quadro interpretativo dos processos de construção e reconstrução, histórica e socialmente situados, das relações sociais de género levados a cabo por mulheres e por homens, não tendo em conta que tais processos, como todos os processos sociais, sendo dinâmicos, estão sujeitos à reversibilidade e são pautados por avanços e recuos. Uma ciência «asséptica» pode validar retrocessos e, simultaneamente, legitimar propostas que reproduzem as lógicas de subordinação do feminino à universalidade do masculino e das relações de poder assimétrico, simbólico e real, entre mulheres e homens. Referimo-nos a abordagens que, em última instância, parecem penalizar as mulheres pelos direitos que conquistaram, e pelos espaços que conseguiram ocupar, e responsabilizá-las pelo funcionamento «não adequado», às necessidades e problemas dos homens, dos sistemas sociais nos quais predominam, reiterando ou contribuindo para reconfigurar o universalidade do masculino na análise da realidade social. Tais perigos estão patentes na investigação realizada, entre outros, no domínio da educação e no domínio da ação política, como é o caso do enganoso entendimento da paridade como sinónimo de igualdade (Domínguez Castillho 2015). É neste âmbito que se nos afigura pertinente a necessidade de problematizar a retórica da igualdade no quadro das políticas educativas, como defende Custódia Rocha (Rocha 2009).

Os estudos sobre a relação entre a igualdade de género e a educação têm incidido de forma particular sobre a escola ou não fosse ela a única instância de socialização a ter, de forma explícita e intencional, um «projeto de emancipação» dos indivíduos e, portanto, de igualdade social (Collet 2012), em consonância com os alicerces ideológicos da democracia. Todavia, a escola não é o único e, principalmente, não é o primeiro contexto de socialização de género, sendo a família um «espaço de resistência», onde as normas e os papéis sociais de género se apreendem e incorporam muito antes de tal processo continuar a ter lugar em outros espaços, públicos, como a escola. Pensar a educação na ótica das relações sociais de homens e mulheres exige um esforço de análise, crítica e sistémica, da educação como uma complexa rede de atores, formais e não formais, que se sobrepõem, se reforçam ou divergem, se anulam e se confrontam mas que, na sua visão sobre as sociedades humanas, sobre as mulheres e os homens, revelam uma forte e sistemática coerência no que se refere ao género. Como lembra Teresa Pinto (2007, 34), «a mudança não é, pois, algo que se produz de modo automático e natural à medida que as novas gerações vão crescendo e substituindo as anteriores. As conceções estereotipadas que associam as profissões próprias para os homens à sua função de ‘ganha pão', isto é, de sustento da família, e as profissões adequadas às mulheres à sua função ‘maternal', persistem na sociedade portuguesa e atravessam todas as gerações».

A educação e o sistema escolar, em particular, partilham, inevitavelmente, dos alicerces sexistas em que se fundamenta a desigualdade social entre mulheres e homens e que são comuns a todos os outros sistemas sociais, do mercado de trabalho e emprego à academia, da política à cultura. Como sublinha Nicole Mosconi (2009), os mecanismos sociais de género atuam dentro da escola da mesma forma que existem e atuam no conjunto da sociedade, o que permite explicar que as dinâmicas escolares, de discentes e docentes, proporcionem a vivência de experiências diferentes a rapazes e a raparigas, pautadas pelas dinâmicas relacionais de poder e domínio do masculino e de menosprezo e subordinação do feminino, em todas as suas dimensões, conotações e significados.

Parece-nos, pois, que convocar o conceito de coeducação continua a ser útil e necessário para uma reflexão crítica e rigorosa sobre um sistema educativo que se foi tornando, progressivamente, mais consentâneo com uma «universalidade masculina » que continua a (re)configurar os valores e as normas sociais dominantes e, em sua consonância, a condicionar o que devem ser, desejar e escolher raparigas/ mulheres e rapazes/homens e a definir conceções de sucesso, realização pessoal e bem-estar para umas e para outros, em sintonia com discursos e práticas androcêntricas que o neoliberalismo e a tecnologia (Jouet 2007) que o sustenta vieram reforçar. A escola continua, pois, a ser um espaço onde se «socializam igualmente rapazes e raparigas para uma aprendizagem das suas posições sociais desiguais» (Mosconi 2004, s.p.), verificando-se que as discriminações sexuais, que parecem não ter lugar na escola, se situam, não ao nível dos elementos mais visíveis do sistema educativo, como o (in)sucesso escolar, mas, sim, como sublinha Marina Subirats, ao nível mais profundo da «formação de género» de rapazes e de raparigas (Subirats 2016), remetendo para a clássica relação entre sucesso escolar, sucesso educativo e sucesso social que continua a ser central nos estudos sobre género e educação (Bouchard e Saint-Amant 1993). É nessa linha que podem ser analisados os efeitos da construção performativa da masculinidade (Connell 2005) e do caráter imperioso da afirmação dos rapazes nos diferentes espaços públicos, incluindo os da escola, e nos quais as raparigas não necessitam demonstrar a sua feminidade. Esta forma de estar é influenciada pelas diferenças no grau de adesão de rapazes e de raparigas aos estereótipos de género e é indissociável do modo como uns e outras desempenham o «papel de estudante», se posicionam face à escola e a valorizam para o seu futuro (Deslandes e Cloutier 2005), não esquecendo, todavia, que nem alunas nem alunos são grupos homogéneos. O entrosamento do sexo com outras variáveis, como a origem social e o contexto familiar, permite compreender, numa perspetiva de género, as diferentes formas, com maior incidência entre os rapazes, de valorização das aprendizagens formais e do investimento escolar.

Para além das interações que ocorrem no espaço público que é a escola e, nesta, nos espaços informais de convívio e de recreio e nos espaços formais, como a sala de aula, nela é assegurada a transmissão de uma ciência androcêntrica através do conhecimento que é selecionado para ser ensinado e para ser aprendido, conduzindo este, necessariamente, a uma visão do mundo igualmente androcêntrica, quer de rapazes, quer de raparigas (Sánchez Bello 2002). Não só o conhecimento construído pela escola não é neutro, nele se revendo de forma sistemática os rapazes e muito excecionalmente as raparigas, como a escola «opera uma «divisão socio-sexuada dos saberes»» (Mosconi 2004), continuando a condicionar escolhas académicas, opções de vida e percursos profissionais. Ter este facto em conta permite- nos «questionar a natureza da experiência escolarizada» (Stromquist 2006, 370) e pugnar pelo questionamento, renovação e atualização do conhecimento, tornando-o igualmente emancipador para raparigas e para rapazes (Alvarez e Vieira 2014). Para isso, não bastará integrar a igualdade de género na educação para a cidadania – que nos últimos quinze anos foi emergindo como uma prioridade no discurso político europeu e nas políticas educativas nacionais como as do nosso país –, mas é essencial a sua incorporação nos diferentes saberes disciplinares, partindo de uma análise crítica, de raiz feminista, dos currículos e programas, e dos saberes instituídos, tal como é proposto por investigadoras de diferentes áreas disciplinares numa recente obra coletiva coordenada pela Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres (APEM) (Vieira et al. 2017) e publicada pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG).

Transformar o sistema educativo implica, ainda, exigir a igual valorização social, quer para raparigas, quer para rapazes, das diferentes dimensões da vida humana e da diversidade de competências, saberes e capacidades – cognitivas, relacionais e sociais – necessárias a cada uma delas. Importa que a escola não consagre, para ambos os sexos, as características, experiências e saberes associados à masculinidade e aos homens, como referente universalizante, e não continue a secundarizar ou mesmo a invisibilizar, para ambos os sexos, as características, experiências e saberes associados à feminidade e às mulheres. É na eliminação desta assimetria valorativa no sistema educativo que reside a chave da igualdade entre os dois sexos e para ela são necessárias, para além de abordagens políticas sectoriais, abordagens multissectoriais que congreguem e envolvam, de forma ativa, os diferentes agentes educativos, responsáveis políticos e organismos estatais reguladores do sistema educativo.

Na realidade, a integração da igualdade entre mulheres e homens como um dos eixos estruturantes do sistema educativo, da educação de infância ao ensino superior, permanece um imperativo dos países europeus (European Commission 2016), apesar das diferenças nas políticas nacionais e o maior ou menor sucesso das iniciativas políticas de mainstreaming de género na educação. Estas têm necessariamente de abranger a formação, inicial e contínua, de profissionais de educação e implicam alterações profundas, quer no modo como as instituições educativas e de ensino cumprem a sua missão, quer na cultura organizacional que as carateriza, exigindo a renovação das suas relações de parceria com as diferentes entidades que participam na escola. Foi no quadro da educação para a cidadania das novas gerações, uma das atuais prioridades dos sistemas educativos e das próprias políticas, que Madeleine Arnot (2009) questionou o modo como a integração das temáticas de género responde aos desafios que, no século XXI, a globalização e uma nova visão holística dos direitos humanos têm vindo a colocar à democracia. Também Madalena Barbosa mostrou alguma inquietação sobre a apropriação pelas pessoas de diferentes idades dos reais valores da vivência democrática, questionando a ideia de igualitarismo e defendendo que «a igualdade de género, mais do que um princípio abstracto, mais do que uma compilação de dados ou leis que raramente são cumpridas, deveria ser olhada como uma forma de estar na vida: viver, fazer e sentir» (2008, 87).

As transformações inesperadas da organização geopolítica das nações e os correspondentes desafios colocados às sociedades contemporâneas exigirão cada vez mais das pessoas que sejam membros – cidadãs e cidadãos – de uma comunidade aberta, democrática, plural, solidária e equitativa. A educação, enquanto «ato de intervenção no mundo» (Freire 2000, 22) e pensada segundo as lentes de género (Bem 1993), encerra em si a possibilidade de permitir às pessoas, que aprendem, uma igualdade «de acesso às oportunidades da vida» (Ollagnier 2014, 223). Por essa razão, o conhecimento científico deve contribuir para ajudar homens e mulheres a construir sistemas alternativos de significado, possibilitando-lhes identificar a representação do mundo que eventualmente os/as oprime e transgredir a interpretação dominante, oferecendo-lhes outras possibilidades de entender a cultura em que vivem (Ostrouch-Kamińska e Vieira 2015) e de redesenhar os contextos onde gostariam de viver.

As mudanças almejadas incluem também alterações nas normas éticas de funcionamento das instituições, incluindo a própria ciência, que, ao assumir como sua a ética feminista, passará a introduzir na agenda de prioridades da investigação, nas diversas áreas, também as experiências e necessidades de pessoas e grupos socialmente marginalizados (Robinson 2006). As questões fundamentais que o pensamento feminista destaca para a ciência e para os sistemas educativos assentam sobretudo na «ética do cuidado» (Tong 1998; Cockburn 2005), por oposição à «ética da justiça» ou à «ética das normas», contribuindo para que sejam garantidos direitos humanos fundamentais e que a sociedade possa alicerçar-se nos princípios da igualdade de oportunidades para todos/as.

A educação, seja em contextos formais ou não formais, em vez de reproduzir a ordem social de género existente, deverá tornar-se geradora de mudanças sociais assentes em valores humanistas, indissociáveis do exercício pleno da cidadania.

 

A diversidade temática deste dossier1

O artigo de Maria Helena Santos – Género e (in)sucesso escolar: perspetivas de professoras/es do ensino básico sobre possíveis consequências da feminização do ensino – constitui mais um contributo para os estudos que têm evidenciado a relação entre o sucesso e o insucesso escolar de raparigas e de rapazes e a socialização de género, nomeadamente a que ocorre em contexto familiar e durante a primeira infância. Maria Helena Santos traz-nos os resultados de um estudo sobre as perspetivas de professoras e de professores do 1.º ciclo sobre a influência que a atual feminização do ensino poderá, ou não, ter na qualidade de ensino e, portanto, nas possibilidades de cada um dos sexos beneficiar da escola com igual sucesso.

Através de entrevistas individuais a 18 docentes da Grande Lisboa e da Madeira, verifica-se que tanto professores como professoras consideram que há diferenças entre alunas e alunos na sua forma de estar em sala de aula e no recreio, não se verificando o mesmo consenso em relação às aprendizagens individuais. De entre os fatores explicativos do in/sucesso escolar ressaltam a socialização de género que tem lugar na família, considerando-se que esta prepara as raparigas para a escola, não se verificando o mesmo com os rapazes, e a consciência por parte das raparigas de que as desigualdades lhes são desfavoráveis e, portanto, de que a escola lhes fornece os meios para as enfrentar no futuro. O sucesso escolar das raparigas «prende-se com o facto de elas terem de provar que são competentes e eles não [terem de o fazer]», devendo-se esse sucesso «a elas próprias», enquanto para o maior insucesso dos rapazes contribui uma socialização de género que, ao «privilegiar e apaparicar os rapazes na infância, onde lhes é exigido menos, acaba por se virar contra eles no sistema de ensino». No artigo de Maria Helena Santos, as caraterísticas de raparigas e de rapazes apontadas pelos e pelas docentes remetem para a influência da socialização de género no modo como umas e outros são vistos por docentes de ambos os sexos, convergindo, no essencial, com os resultados dos estudos sobre as representações de «bom aluno» e de «boa aluna», de docentes dos ensinos básico e secundário, no nosso país. Em resposta à pergunta que dá o título ao artigo, é consensual a opinião de que a elevada percentagem de mulheres no corpo docente, a «feminização da docência», não tem efeitos na qualidade do ensino dirigido a raparigas e a rapazes e de que a solução para enfrentar esta disparidade de resultados não passa por aumentar o número de homens na profissão docente mas, antes, introduzir alterações no próprio sistema educativo.

Em Armarios de papel: el heterosexismo en los manuales de Español como Lengua Extranjera, Maria Salvia Rodríguez apresenta os resultados da análise da informação textual contida em 14 manuais escolares de língua espanhola editados após 2006, depois da aprovação, em Espanha, da lei relativa ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e no quadro de um ambiente social de forte mediatização das questões LGBTI. Na linha do que têm sido as grelhas de análise deste tipo de materiais utilizadas pelos estudos que têm incidido quer sobre o sexismo e as representações de homens e de mulheres, quer sobre o racismo e as representações étnicas e culturais, a autora conclui da ausência e silenciamento das sexualidades não normativas e, no caso em que estão presentes, do seu carácter excecional. Verificando-se algumas exceções entre os manuais analisados, reveladoras de progressos muito ténues e aparentemente pontuais, a maioria dos manuais continua a ser um meio de normatização das identidades e da sexualidade.

Sandra Palma Saleiro – no artigo intitulado Diversidade de género na infância e educação: Contributos para uma escola sensível ao (trans)género – traz-nos as experiências escolares de crianças e jovens (trans)género, na voz de 37 pessoas transgénero adultas, num processo de revisitação da infância e da juventude patente em relatos «diferidos» através da memória individual e do que esta encerra de recordação e de esquecimento. O artigo privilegia os dados recolhidos no âmbito do Projeto «Transexualidade e Transgénero: Identidades e Expressões de Género» e convoca experiências em torno da «estranheza» que pauta a comunicação escolar, da vigilância da masculinidade entre pares, do bullying e do não reconhecimento. O papel da linguagem e da comunicação, incluindo a informação, explícita e implícita, presente ou omissa/silenciada, a que acedem alunas e alunos constitui um dos elementos presentes neste artigo, a par da estreita relação entre a ordem social de género e as manifestações de exclusão, discriminação e/ou violência vividas pelas pessoas transgénero.

O paradigma da masculinidade desejável/afirmada e da feminidade menosprezada/ silenciada, alicerces das relações de poder que pautam a vida de mulheres e de homens em todas as esferas e dimensões da vida, está igualmente presente no artigo Para uma visão complexa do bullying homofóbico: Desocultando o quotidiano da homofobia nas escolas, de Hugo M. Santos, Sofia Marques da Silva e Isabel Menezes. Tendo como enquadramento teórico a evolução dos conceitos de bullying, bullying homofóbico e violência homofóbica, apresentam-se neste artigo os resultados de um estudo qualitativo, realizado entre 2015 e 2017, com 232 discentes do ensino secundário de 12 escolas do norte do país. Demonstra-se neste artigo o poder regulatório da linguagem homofóbica, considerando as e os jovens que participaram no estudo que o «bullying homofóbico» se prende de forma substancial com os processos de construção da masculinidade no quadro das dinâmicas entre pares próprias das culturas juvenis. É igualmente reiterada a ideia de a feminidade ser um elemento perturbador desses mesmos processos, exprimindo-se a violência homofóbica de forma mais violenta e contundente sobre os rapazes homossexuais do que sobre as raparigas lésbicas, o que remete, uma vez mais, para o sistema social de género, que, associando a feminidade à negatividade e indesejabilidade, não só penaliza o sexo masculino quando este a incorpora, como legitima a desvalorização do sexo feminino e as relações de poder assimétricas entre homens e mulheres.

Brincar ao género: socialização e igualdade na educação pré-escolar é o título do artigo assinado por Catarina Sales Oliveira e Andreia Mendes, e nele se apresenta o estudo realizado numa sala de uma Instituição Privada de Solidariedade Social (IPSS), em 2015/2016, após a frequência, por parte de três educadoras, de uma oficina de formação sobre Educação, Género e Cidadania. As autoras analisaram dimensões como a influência da cultura institucional, as práticas pedagógicas e as representações das educadoras, as interações entre as crianças e entre estas e as educadoras, bem como as suas preferências individuais. Das conclusões, sobressai o poder dos modelos dominantes e dicotómicos de feminilidade e de masculinidade na socialização das crianças e o complexo entrosamento da socialização de género com a educação familiar e os contextos culturais das famílias. Sublinhando que as mudanças não podem depender da ação individual, isolada e por vezes descontínua, as autoras referem-se ao efeito multiplicador, desejado pela formação sobre igualdade de género, de públicos estratégicos em qualquer área social, considerando que o «papel das educadoras que frequentaram a oficina de formação em género, educação e cidadania, ilustrado na voz da educadora entrevistada, apresenta potencial para ser catalisador da mudança institucional». Esta preocupação remete para a sustentabilidade que as dinâmicas coletivas e institucionais podem dar às intenções, e concretizações, de mudança que emergem, em contexto formativo, em cada formanda e formando.

Violência no namoro na Escola Superior de Educação de Lisboa é o tema do artigo de Ana Gama, Ana Veríssimo e Catarina Tomás, que apresentam os resultados do estudo realizado com 371 estudantes, de ambos os sexos, daquela instituição de ensino superior. Analisam-se, entre outros, os diferentes tipos de violência tendo em conta a variável sexo, o curso e o ano frequentados pelas e pelos estudantes, os comportamentos e estratégias de resolução de conflitos e a violência perpetrada e sofrida por jovens de ambos os sexos.

O artigo de Marta García Lastra – La perspectiva de género en la formación inicial del profesorado de educación infantil. Notas sobre una investigación realizada entre el alumnado del grado de magisterio de educación infantil de la universidad de Cantabria (España) – remete para o debate em torno da coeducação, defendendo a autora a necessidade de se «asumir la coeducación como modelo educativo y la perspectiva de género como metodología de éste». Ainda que, segundo a autora, a escola possa ser considerada o espaço onde rapazes e raparigas (con)vivem em condições de maior igualdade, comparativamente a outros contextos sociais, incluindo o familiar, onde o sexismo e a discriminação do sexo feminino é mais evidente, a escola continua a contribuir para perpetuar e reproduzir a ordem social de género. Marta García Lastra apresenta os resultados de um estudo que envolveu 98 estudantes da licenciatura em Educação de Infância e que permite aferir o que sabem e o que pensam sobre coeducação e ensino misto, o papel da escola na construção da igualdade entre os sexos e o modo como a inclusão da temática da igualdade na formação de docentes pode desempenhar essa função. Num outro registo, a autora analisa o que as e os estudantes pensam sobre a partilha e a corresponsabilidade na esfera doméstica, a capacidade de cada um dos sexos exercer cargos de direção, as caraterísticas de rapazes e de raparigas e a sua relação com a escola, concluindo que, tanto para as estudantes como para os estudantes que participaram no estudo, a desigualdade entre os sexos ainda é uma realidade.

Em Jovens estudantes universitários/as perante a futura vida profissional e familiar: a marca do género, Sofia Coelho e Sara Falcão Casaca apresentam um estudo centrado nas expectativas de estudantes do ensino superior sobre o seu futuro profissional e familiar. Através de um questionário envolvendo 100 finalistas do curso de Gestão do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), os resultados revelam as expectativas das e dos estudantes sobre a futura inserção laboral e profissional e o modo como aquelas influenciam o que pensam sobre os seus futuros projetos familiares; o modo como encaram a vida profissional e familiar no que respeita à igualdade de aspirações e de responsabilidades; o que pensam sobre a ligação entre as políticas públicas e empresariais e a relação entre a vida familiar e a laboral. Apesar de uma aproximação entre os sexos no modo como ambos projetam a sua vida (familiar e profissional), as raparigas revelam-se mais igualitárias no modo como veem, quer a partilha da vida familiar e da vida profissional de ambos, quer as políticas de apoio à família (e de incentivo à natalidade) a seguir pelas empresas, mostrando-se menos otimistas em relação às possibilidades de progressão da carreira profissional e mais conscientes dos condicionalismos que o investimento na carreira profissional terá na sua opção de ter filhas/ os. Sara Coelho e Sara Falcão Casaca confrontam-nos, pois, com a permanência, em ambos os sexos, de representações genderizadas sobre si, sobre o outro e sobre o mundo do trabalho, que, nomeadamente no contexto nacional de precaridade laboral, continuam a condicionar e a repercutir-se de forma direta na natalidade, nas desigualdades de realização pessoal e nas assimetrias económicas e de poder entre homens e mulheres. Por último, numa perspetiva que vê a ciência como útil e necessária para a melhoria de vida das sociedades humanas, as autoras centram- -se nos «condicionalismos estruturais e organizacionais» e desafiam a tomada de decisão – política, pública, empresarial e universitária – a

rever os modelos e as culturas de organização do trabalho, as normas, os valores, as narrativas, as práticas e as rotinas (formais e informais), os símbolos e a linguagem, as políticas e os procedimentos internos, as orientações da gestão, as representações sociais dominantes em torno dos papéis de género – no fundo, todos os elementos que constituem barreiras (incluindo as invisíveis) e que sustentam o «teto de vidro».

No artigo das investigadoras italianas Lisa Brambilla, Giulia Pozzebon e Marialisa Rizzo – Gender in contemporary Italian context. A focus on informal education and proposals for a gender sensitive approach through intergenerational and intercultural dimensions –, discute-se o modo como a ordem social de género permeia todas as experiências de educação informal no contexto do sistema educacional italiano. No entender das autoras, sem uma educação intencional que aborde temáticas de género e faça uso de uma abordagem sensível ao género, a escola, em particular, e as instituições educativas, em geral, correm o risco de não concretizar as suas finalidades fundamentais: a promoção da igualdade de oportunidades e a cidadania ativa. De acordo com a «vocação transformadora da investigação pedagógica [sic]», neste artigo, as autoras exploram os riscos e as oportunidades da educação informal sobre género. Para tal, as autoras propõem a intergeracionalidade e a interculturalidade como dimensões a explorar para uma melhor compreensão da complexidade da ordem de género na atualidade em Itália, abrindo dessa forma novas possibilidades para desafiar o statu quo instalado.

A diversidade de temáticas reunidas neste dossier do n.º 36 da ex aequo não esgota as possibilidades da «agenda científica» inspirada pelas lentes de género. Muitos temas permanecem invisíveis e outros necessitam de maior aprofundamento para que se cumpra o imperativo do mainstreaming de género (cf. Pinto et al. 2015, 328), ou seja, para que seja efetiva a integração sistemática, de forma ativa e explícita, das condições, das prioridades e das necessidades próprias das mulheres e dos homens em todas as ações planeadas, o que implica a planificação, (re) organização, melhoria, desenvolvimento e avaliação dos processos de tomada de decisão, incluindo legislação, políticas e programas que assegurem a incorporação transversal, em todas as áreas e a todos os níveis, da igualdade entre homens e mulheres.

 

 

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Teresa Alvarez
Investigadora do Centro de Estudos em Migrações e Relações Interculturais (CEMRI), da Universidade Aberta, no Grupo de Investigação em Estudos sobre as Mulheres, Género, Sociedade e Cultura. É membro do Fórum de Perit@s do Instituto Europeu de Género. As suas publicações incidem sobre a temática das relações entre mulheres e homens nas áreas da educação formal e ensino da História, da comunicação e da formação de docentes.

Cristina C. Vieira
Professora Associada da FPCE-UC, investigadora do CEIS20/UC. Vice-Presidente da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres (APEM). Membro da Direção da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE) e da Sociedade Europeia para a Investigação em Educação de Adultos (ESREA). Tem trabalhos publicados no domínio da educação, género e cidadania em contextos formais e não formais, e vasta experiência na formação de docentes sobre estas temáticas. É coautora dos Guiões de Educação, Género e Cidadania, publicados pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG).

Joanna Ostrouch-Kamińska
Associate Professor and Chair of the Department of Research on Family and Social Inequalities, Faculty of Social Sciences, University of Warmia and Mazury in Olsztyn, Poland. Convenor of Network on Gender and Adult Learning in the European Society for Research on the Education of Adults (ESREA), as well as member of the Presidium of the Polish Educational Research Association. Her research interests focus on social and cultural aspects of gender, learning, and family.

 

 

Notas

1 Nesta apresentação, optou-se por uma análise temática dos conteúdos das diversas investigações que deram origem à publicação dos artigos e não por seguir a ordem de aparecimento dos mesmos no dossier.

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