1. Introdução
No Brasil, segundo dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), o número de mulheres é superior ao de homens, ou seja, mais da metade da população brasileira é composta por mulheres. Ao mesmo tempo, mais da metade da população brasileira é composta por pessoas negras, considerando o somatório de pessoas pretas e pardas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2020).
Assim, o Brasil vem promovendo algumas ações afirmativas que contemplam aspectos tais como raça/etnia e gênero, dentre outros. Para Mendonça e Aranha (2020, 186), “a política de cotas raciais é uma ação afirmativa, pois tem por objetivo criar, através da discriminação positiva, a igualdade material entre brancos e negros para o acesso ao ensino superior público”. Dessa forma, estudantes pretos/as ou pardos/as passaram a compor a maioria nas instituições de ensino superior da rede pública do país (50,3%) em 2018. No entanto, permanecem sub-representados/as, já que constituem 55,8% da população, reforçando a existência das medidas que ampliam e democratizam o acesso à rede pública de ensino superior (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2019).
No que se refere à participação por sexo, dos 20 cursos de graduação mais numerosos em 2017, que reuniram 5.432.301 matrículas de graduação, verificou-se que as mulheres continuam sendo maioria em cursos tradicionalmente femininos, como Serviço Social, Enfermagem, Nutrição, Psicologia, Letras, Pedagogia e demais licenciaturas, enquanto carreiras científicas de prestígio na Física, na Matemática, na Computação e nas Engenharias permanecem como campos de conhecimento e de cultura masculinos (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira 2019).
Levando em consideração esse cenário, o presente artigo tem o objetivo de desenvolver reflexões sobre as ações afirmativas no ensino superior brasileiro, considerando a perspectiva de raça/etnia e gênero.
Para tal, realizou-se uma busca no catálogo de teses da CAPES como as palavras-chave “ações afirmativas” e “ensino superior", sendo encontrados 256 trabalhos entre os anos de 2013 e 2021. Os resumos desses trabalhos foram lidos a fim de selecionar as pesquisas que tinham como análise as ações afirmativas no ensino superior brasileiro, as resistências e a inclusão de mulheres. Porém, no presente artigo foram considerados apenas os trabalhos mais atualizados, ou seja, publicados entre 2017 e 2021. O critério utilizado para definir o recorte temporal dos últimos cinco anos foi a fluidez do fluxo de novas publicações associadas ao tema de pesquisa. Também foi realizada pesquisa em sites governamentais brasileiros para coleta de dados sobre ações afirmativas no ensino superior. Trata-se de um estudo qualitativo e pesquisa documental, lidando-se com documentos que ainda não tinham sido sistematizados.
Além disso, para tecer reflexões sobre as ações afirmativas no ensino superior brasileiro também se tornou necessária a utilização dos estudos interseccionais, visto que a crença na superioridade inata de uma raça sobre as outras e o seu direito à predominância (racismo), a crença na superioridade inata de um sexo sobre o outro e o seu direito à predominância (sexismo), além da discriminação etária, do heterossexismo, do elitismo e do classicismo, constituem aspectos que precisam ser considerados. Afinal, “recusar-se a reconhecer a diferença torna impossível enxergar os diferentes problemas e armadilhas que nós, mulheres, enfrentamos” (Lorde 2019, 143).
2. As ações afirmativas no ensino superior brasileiro
Além dos tratados internacionais sobre direitos humanos, as ações afirmativas também foram se tornando cada vez mais relevantes, pois são medidas temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo de igualdade para as mulheres e os grupos étnicos e raciais. Portanto, podem ser consideradas políticas compensatórias que buscam promover uma igualdade formal até uma igualdade material e substantiva (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura 2007).
Segundo Moehlecke (2002), a expressão “ação afirmativa” tem origem nos anos 1960, nos Estados Unidos, quando o país vivia um momento de reivindicações democráticas, expressas no movimento pelos direitos civis e na busca pela igualdade de oportunidades.
Barbara Bergman (1996), inicialmente, apresenta uma concepção mais fluida de ação afirmativa, indo de um programa formal com um planejamento e uma equipe para executá-lo até atividades de um gestor que, conforme sua consciência, decide agir de modo diferente.
A definição de ação afirmativa engloba políticas e parâmetros diversos, dependentes de contextos institucionais e culturais de cada país. Com isso, as justificações públicas para a necessidade de sua implementação variam, algumas sendo multiculturalistas, enquanto outras buscam por justiça social (Feres Junior e Campos 2016).
Uma ação afirmativa pode ocorrer por meio de programas para melhorar a capacidade de grupos sub-representados em determinados contextos, a fim de terem acesso a oportunidades e a medidas que lhes dão tratamento preferencial (Foley e Williamson 2019).
Em uma perspectiva mais complexa, Bergmann (1996, 7) define ação afirmativa como “planejar e agir para acabar com a ausência de certos tipos de pessoas - aquelas que pertencem a grupos que foram subordinados ou deixados de fora - de certos empregos e escolas.” Ela exemplifica: pode ser uma seguradora tentando modificar sua tradição de promover apenas homens brancos para cargos executivos, pode ser o escritório de admissões de uma universidade que busca aumentar o número de pessoas negras que ingressam no 1.º ano, procurando aqueles/as que podem não ter aprendido a se sair bem em testes de múltipla escolha, mas que são muito inteligentes.
No Brasil, os indicadores educacionais da população preta ou parda apresentaram melhorias entre 2016 e 2018, tanto como resultado da escolaridade acumulada ao longo das gerações quanto em decorrência de políticas públicas de acesso à educação (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2019). Contudo, é possível constatar uma desigualdade entre mulheres por meio do recorte racial. O percentual de mulheres brancas com ensino superior completo é mais do que o dobro do calculado para as mulheres pretas ou pardas.
No campo da educação superior federal, diversas medidas foram adotadas na década de 2000 visando a ampliação e a democratização no acesso ao ensino superior, como o aumento de recursos públicos para as instituições, a contratação de docentes e técnicos/as, a ampliação expressiva da quantidade de campi, e com isso, o alargamento da oferta de vagas para estudantes. Além disso, recuperou-se o investimento na universidade pública e foram adotadas políticas de expansão de acesso e permanência (Ésther 2015; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2019).
Outra ação foi o Programa Universidade para todos (PROUNI), desde 2005, por meio do qual estudantes candidatam-se a uma bolsa. Para isso, devem atender a alguns critérios: participação no Exame Nacional do Ensino Médio, obtenção de nota mínima estabelecida pelo Ministério da Educação, usufruto de renda familiar, por pessoa, de até três salários-mínimos. Outras condições também são exigidas, como ter cursado o ensino médio completo em escola pública (ou em escola privada com bolsa integral da instituição) ou ainda ser pessoa com deficiência, professor/a da rede pública de ensino básico (em efetivo exercício), integrando o quadro permanente da instituição e concorrendo a vagas em cursos de Licenciatura, Normal Superior ou Pedagogia. No entanto, os/as estudantes podem continuar excluídos/as de cursos tradicionais e elitizados, acessando, muitas vezes, o ensino superior em instituições de qualidade duvidosa (Costa e Ferreira 2017).
A Lei de Cotas, Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, normatizou as cotas em todas as universidades federais brasileiras, incluindo a reserva de vagas para pessoas pretas, pardas e indígenas e para estudantes oriundos/as de escolas públicas e economicamente carentes. O artigo 1.º da referida Lei diz que as instituições federais de educação superior deverão reservar, no mínimo, 50% de suas vagas para os/as estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas. Destas, 50% devem ser destinadas a estudantes advindos/as de famílias com renda igual ou inferior a um salário-mínimo e meio per capita.
Pessoas negras, indígenas e com deficiência terão reserva de vagas no âmbito dos primeiros 50%, em proporção igual à existente desses grupos na população do estado onde está localizada a instituição de ensino. Importante lembrar que a reserva de vagas não garante a permanência de alunos/as, sendo necessárias outras políticas de assistência estudantil (Mendonça e Aranha 2020, 186), visto que muitos/as estudantes procedem de famílias pobres e não possuem condições econômicas para manterem seus estudos e atividades acadêmicas na universidade: gastos com transporte, alimentação e livros podem impedir que estudantes cotistas prossigam até a conclusão do curso.
No Ministério da Educação, há referência a ações afirmativas no âmbito da Educação para as Relações Étnico-Raciais, como o Programa Institucional de Iniciação Científica, que é um convênio com o CNPq para a concessão de bolsas anuais de iniciação científica para estudantes de graduação que pertençam ao público-alvo de ações afirmativas de ingresso na universidade, prioritariamente da população negra. Há também o Programa de Bolsa Permanência, uma ação do governo federal de concessão de auxílio financeiro a estudantes matriculados/as em instituições federais de ensino superior em situação de vulnerabilidade socioeconômica e para estudantes indígenas e quilombolas (Ministério da Educação 2021).
Recktenvald, Mattei e Pereira (2018), ao analisarem o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), que tem como objetivo ampliar as condições de permanência dos/as estudantes no ensino superior público federal, verificaram que no artigo 3º do Decreto nº 7.234, que o estabelece, há uma articulação das atividades de ensino, pesquisa e extensão, dentre outras, e cita áreas de atuação das ações da assistência estudantil, como alimentação, moradia estudantil, transporte, esporte, atenção à saúde, cultura, inclusão digital, apoio pedagógico, creche e acesso, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades e superdotação.
O percentual de vagas destinadas às políticas de ações afirmativas para o ano letivo de 2014 nas universidades federais da região sudeste foi de 41%. Assim, os dados mostram que a implantação da Lei de Cotas vem contribuindo para a inclusão racial nessas instituições de ensino, tornando-se um relevante instrumento para reverter a atual exclusão dos indivíduos na educação superior (Silva 2019).
Oliveira (2017) observou que estudantes cotistas em cursos de alto prestígio social tendem a colaborar para a transformação das condições institucionais e intelectuais da universidade, uma vez que as formas de organização dessas instituições de ensino e as especificidades dos cursos são questionadas e confrontadas com as condições sociais dos/as alunos/as. A partir disso, são verificadas questões como mudanças curriculares, relações interpessoais na comunidade acadêmica, horário de funcionamento da universidade, etc.
Nesse mesmo sentido, Macedo (2017) realizou uma avaliação sobre a eficácia do PNAES para a permanência de cotistas nos cursos de graduação da Universidade Federal da Paraíba, entre 2012 e 2016, e concluiu que o programa abrangeu estudantes cotistas de todos os cursos da instituição, contribuindo para a permanência desses alunos e alunas. Todavia, o programa envolveu poucos/as estudantes, na medida que apenas 66% das solicitações foram atendidas, sendo necessários estudos sobre o porquê dos indeferimentos das solicitações de benefícios, o que a princípio aponta para uma elevada seletividade das solicitações.
Apesar de todas dificuldades enfrentadas por estudantes, alguns estudos apontam para a reduzida taxa de evasão de estudantes cotistas em relação à taxa de evasão de estudantes não cotistas (Souza 2019; Silva, Xavier e Costa 2020). Logo, o PNAES trouxe contribuições para a efetivação dos direitos dos/as estudantes e pode ser uma importante estratégia para ampliar o capital cultural e oportunizar a conclusão do curso (Alvarenga 2020). No entanto, percebe-se que esse programa ainda é insuficiente para atender ao quantitativo maior de estudantes que têm ingressado nas universidades públicas estaduais e federais no Brasil (Souza 2017).
Outro aspecto para além das dificuldades financeiras é o enfrentamento de situações de racismo e dificuldades de relacionamento com estudantes não cotistas (Oliveira 2017). Logo, as ações afirmativas, por meio do sistema de cotas, permitiram a emergência da diversidade racial nesses ambientes, provocando tensões até então amortizadas (Medeiros 2017).
Santos (2020) analisou as interações de caráter conflitante relacionadas aos/às estudantes negros/as cotistas na Universidade Federal Fluminense (UFF) e constatou que os conflitos raciais são frequentes e estruturados, principalmente relacionados ao campo simbólico, após a implementação da Lei de Cotas. Porém, a partir dos coletivos de estudantes negros/as na universidade, houve avanços no tratamento dos conflitos.
Assim, em movimentos de resistência contra a discriminação racial, alunos/as cotistas desenvolvem e valorizam a convivência com os seus pares, o reconhecimento entre si, o envolvimento político (por meio do diretório acadêmico de estudantes) e a constituição de espaços de afeto, acolhimento e luta contra o racismo institucional e estrutural (Oliveira 2019; López 2020). Desse modo, a constituição de relações com professores/as e com outros/as estudantes favorece o engajamento na vida acadêmica e contribui para que estudantes cotistas se vejam e sejam reconhecidos e reconhecidas como partes da comunidade acadêmica (Assis 2019).
3. E as ações afirmativas com foco no gênero no ensino superior brasileiro?
Apesar de o Brasil ter figurado entre os cinco países latino-americanos com melhores condições de resposta às transformações de famílias e mercados de trabalho no período de 2004 a 2014, e de, no mesmo período, a América Latina ter conseguido reverter ligeiramente as desigualdades socioeconômicas, a diferença entre a participação das mulheres pobres e das não pobres na força de trabalho era semelhante à existente no início daquela década. Ainda que as desigualdades socioeconômicas e de gênero estejam relacionadas, não é qualquer tipo de política que consegue promover simultaneamente a equidade socioeconômica e a equidade de gênero (Blofield e Martínez 2014).
A fim de compreender como diferentes visões do Estado sobre as mulheres permeiam o conteúdo dos objetivos, das metas e das iniciativas propostas no âmbito do Plano Plurianual (PPA) 2016-2019, Mello, Ribeiro e Marques (2020) apontam que, entre os programas temáticos desse PPA que apresentavam termos associados à dimensão de gênero, as menções às mulheres aparecem atreladas a áreas temáticas de igualdade de gênero e políticas de desenvolvimento social e sempre em conjunto com outros públicos específicos. Os esforços pela promoção de igualdade de gênero estavam concentrados em algumas partes do aparato administrativo do Executivo Federal, ocorrendo uma alta suscetibilidade dessa agenda conforme as oscilações da relevância política atribuída pelo governo. A concentração de esforços ocorreu em 11 dos ministérios vigentes na época, prevalecendo a Presidência da República e o Ministério dos Direitos Humanos. Portanto, as mudanças na Presidência da República, a partir de 2016, ainda no primeiro ano do PPA, podem ter acarretado a desarticulação na promoção da igualdade de gênero no âmbito do atual governo federal.
Cabe salientar que políticas públicas voltadas para as mulheres são menos abrangentes e estão apoiadas em uma visão tradicional do feminino que vincula a responsabilidade feminina a atividades de educação e cuidado de filhos, pessoas idosas e doentes, enquanto as políticas públicas de gênero consideram os processos de socialização entre homens e mulheres e os conflitos nessas relações, buscando promover a autonomia das mulheres (Bandeira 2005). Outro aspecto a ser mencionado é o uso simultâneo (nas políticas governamentais brasileiras) dos termos igualdade e equidade. Para Espinoza (2007), igualdade envolve uma avaliação que procura tratar todos do mesmo modo, ao passo que equidade procura tratar as pessoas de diferentes maneiras, levando em consideração as históricas injustiças vividas. De acordo com Fraser (2011) e McDonald (2013), para além de uma justiça distributiva na busca pela paridade de participação, as pessoas (em nosso estudo, as mulheres) podem ser impedidas de interagir em termos de paridade por hierarquias institucionalizadas culturalmente, que lhes negam ou dificultam certas posições, devido a uma histórica desigualdade de status e de reconhecimento, o que torna necessário políticas que promovam essa inserção.
A partir de um olhar interseccional, Kimberlé Crenshaw, Audre Lorde, Sueli Carneiro, dentre outras, consideram que não existe hierarquia de opressões entre gênero, classe e raça, por exemplo. O que existe é um olhar a partir de uma perspectiva interseccional, procurando identificar como elas se inter-relacionam e como se somam e potencializam os efeitos sobre um determinado grupo (Berth 2019). Outrossim, Kyrillos (2020) destaca que os estudos interseccionais estão relacionados com as lutas sociais e as elaborações teóricas iniciadas por mulheres negras, e que o seu uso em estudos de gênero amplia a compreensão das diversas relações entre as desigualdades.
Nesse sentido, dentre as ações afirmativas no país está o Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, criado em 2005, que trabalha na construção de ações afirmativas que contribuam para modificar a estrutura que opera na divisão sexual do mercado de trabalho brasileiro por meio da adesão de empresas públicas e privadas que promovam a igualdade entre mulheres e homens no trabalho e reduzam a desigualdade racial (Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres 2016; Instituto Ethos 2016).
Mesmo com esse Programa, em 2015, apenas 28,2% dentre as 500 maiores empresas no Brasil utilizavam políticas de promoção de igualdade, como programa para contratação de mulheres, metas para a participação delas em cargos de comando, redução da desigualdade salarial, dentre outras políticas. Os motivos apontados pelas empresas para a reduzida presença feminina em cargos de comando são a insuficiente qualificação profissional para os cargos (28,9%), a falta de interesse das próprias mulheres por cargos de maior responsabilidade (34,2%) e a falta de experiência para lidar com o assunto (36,9%). A contratação de mulheres em funções operacionais e administrativas causa um afunilamento hierárquico que evidencia a menor inclusão de mulheres nos níveis organizacionais elevados (Instituto Ethos 2016; Proni e Proni 2018).
Algumas das ações desenvolvidas pelas empresas participantes são: a) adoção de ações afirmativas no recrutamento e seleção de estagiários/as e jovens aprendizes com a ampliação do percentual de contratação de mulheres jovens e da população negra; b) estímulo para a adoção de ações afirmativas na cadeia de relacionamentos a fim de garantir a diversidade de gênero, raça e etnia em peças publicitárias e comunicação visual; c) adoção de cotas para contratação de mulheres em funções tradicionalmente desempenhadas por homens e adoção de cotas raciais em contratos externos. O Programa acaba promovendo uma cultura de igualdade de gênero e raça que ultrapassa o ambiente organizacional, estimulando mudanças mais amplas na sociedade (Instituto Ethos 2016; Proni e Proni 2018).
Um estudo realizado em empresas de capital aberto e que possuíam políticas específicas para gênero na área de gestão de pessoas (Coca-Cola, Nestlé, Unilever, Volkswagen, Magazine Luiza, Natura, Banco do Brasil e Petrobras) aponta uma dificuldade para a inserção de mulheres, mesmo em empresas que adotam programas e ações para a promoção da equidade de gênero: mesmo em empresas onde a participação feminina é crescente nos cargos de liderança, há um estreitamento de oportunidades à medida que aumenta o nível hierárquico e a defasagem salarial entre homens e mulheres é mantida (Proni e Proni 2018). Ainda que ocorram os esforços mencionados, que a educação tenha tido melhorias no país e que as mulheres venham superando os homens nos indicadores educacionais, elas ainda não alcançaram resultados compatíveis com sua qualificação no mercado de trabalho (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2018; Carvalhaes e Ribeiro 2019).
A educação foi uma das principais bandeiras do movimento feminista, visto que o processo de formação se apresentava como uma possiblidade de emancipação e de acesso ao mercado de trabalho (Carvalho e Mendes 2015). Ainda assim, Vianna e Unbehaum (2004) apontam que, no Brasil, poucas investigações consideram a discriminação de gênero nas políticas públicas educacionais.
Ocorreram muitas mudanças na força de trabalho e na educação durante as últimas décadas, pois as mulheres ampliaram sua representação, melhoraram sua remuneração e obtiveram mais reconhecimento do seu trabalho, seja por meio de subsídios e publicações, seja por meio de premiações. No entanto, persistem diferenças nos campos da ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) (Charlesworth e Banaji 2019).
Também não existe paridade entre raça e gênero em relação à desigualdade no campo do ensino superior, pois apesar de o número de mulheres estudantes ser maior do que o de estudantes homens, a distribuição entre eles está em desiquilíbrio nos diversos cursos e carreiras, o que tem reflexos na distribuição de docentes universitários/as e pesquisadores/as, assim como na distribuição de profissionais no mercado de trabalho. Além disso, os estudos sobre ciência e gênero apresentam evidências de que, apesar da melhora dos indicadores educacionais no ensino superior, as mulheres permanecem em desvantagem na carreira acadêmica e no campo científico (Barros e Mourão 2018; Carvalhaes e Ribeiro 2019).
Em estudo realizado na Universidade Federal do Espírito Santo, os dados demonstram que mais homens do que mulheres ingressam em cursos das áreas de ciências exatas e engenharias e que, entre as mulheres, as pardas e pretas estão representadas em menor número, indicando que, apesar dos avanços nos sistemas de ingresso e das políticas públicas de cotas, permanece uma sub-representação de determinados grupos raciais nos cursos considerados de maior prestígio. Outro aspecto apontado pelo estudo é que são poucas as mulheres professoras, reforçando a rarefeita presença feminina nessa área (Petinelli-Souza, Corcetti e Sartori 2021).
Mesmo as mulheres sendo maioria no ensino superior brasileiro, a escolha de cursos permanece estruturada pelo viés de gênero, com mulheres sub-representadas em cursos de maior prestígio e sobrerrepresentadas nos de menor prestígio (Carvalhaes e Ribeiro 2019).
A sub-representação das mulheres ocorre em áreas como a ciência e a tecnologia, engenharias, na indústria criativa, em cargos políticos e altos cargos em empresas. Por outro lado, o fenômeno da sobrerrepresentação feminina ocorre em atividades ligadas às áreas de educação infantil, cuidados com crianças, idosos e doentes, higiene e limpeza e prestação de serviços.
De qualquer modo, o governo federal não vem promovendo políticas no ensino superior que considerem o gênero, o que pode vir a prejudicar, neste caso, ainda mais as mulheres negras e mulheres pobres. Também não há política ou ação no ensino superior para aquelas mulheres que precisam de renda para permanecer estudando, tampouco para aquelas que se defrontam com a maternidade.
No âmbito educacional, existem algumas dimensões em relação à igualdade de gênero a considerar: a) haveria igualdade de gênero se existisse igualdade de acesso entre homens e mulheres, ou seja, oportunidade para ambos acessarem o mesmo tipo de educação no sistema escolar, de qualquer nível, inclusive no nível superior; b) haveria igualdade de permanência se ambos tivessem as mesmas condições de permanência no sistema de ensino durante o seu processo de formação; c) haveria igualdade de produção se ambos tivessem a probabilidade de adquirir conhecimentos semelhantes; e d) haveria igualdade de resultado se homens e mulheres tivessem as mesmas oportunidades de usufruírem de vidas com rendimentos iguais e obtivessem trabalhos do mesmo status social (Farrell 1999; Espinoza 2007). Atingir a igualdade de gênero pressupõe que os/as estudantes não sejam excluídos/as ou não sejam desencorajados/as das trajetórias que levam a melhores empregos somente porque são meninas ou mulheres.
Embora, ao longo da história, as mulheres tenham se tornado cada vez mais críticas e atentas às desigualdades que sofrem em relação aos homens, a consciência de gênero, muitas vezes, permaneceu abaixo de outras consciências coletivas, como a racial e a de classe (Aronson e Boisson 2015). Portanto, ao se constatar na atualidade a existência de mulheres que foram subalternizadas por meio da combinação de diversos processos, como o de racialização, de colonização, de exploração capitalista, dentre outros (Lugones 2019), torna-se imprescindível desenvolver ações afirmativas no formato de políticas públicas em prol da igualdade e equidade de gênero no ensino superior.
No ensino superior, as mulheres podem ter dúvidas com relação à legitimidade de sua inserção em certas áreas profissionais, originadas em estereótipos de gênero que demarcam que alguns campos do conhecimento são destinados aos homens. Isso pode levar ao abandono da área escolhida (Dasgupta e Stout 2014). Os estereótipos de gênero também produzem uma desvalorização do trabalho feminino e uma valorização do trabalho masculino, ao mesmo tempo que o gênero é atravessado por categorias sociais, como raça e etnia, classe social e idade (Valentine, Trautner e Spade 2019).
Os diplomas não conferem os mesmos ganhos para os/as profissionais formados/as, pois existem diferenças de acesso e conclusão entre estudantes em termos de gênero, etnia/raça e classe, o que pode gerar desigualdades no mercado de trabalho (Carvalhaes e Ribeiro 2019).
4. Conclusões
Não há dúvidas de que as ações afirmativas no ensino superior brasileiro proporcionaram, a partir de 2000, um maior acesso de grupos que estiveram excluídos desse nível de ensino durante muitos anos. Elas também introduziram uma nova forma de organização no movimento estudantil, a partir do recorte racial, em benefício de suas próprias demandas.
Logo, as ações afirmativas no ensino superior vêm caminhando para alcançar o seu objetivo de minimizar as desigualdades sociais e raciais no Brasil. Entretanto, elas ainda não abrangem as desigualdades de gênero. Embora as mulheres sejam maioria nas universidades brasileiras, a baixa participação nos cursos de ciências exatas, matemática e engenharias (formadores de mão de obra para as profissões consideradas do futuro), faz com que elas fiquem mais vulneráveis às mudanças que a tecnologia impõe ao mercado de trabalho.
A partir do estudo realizado, torna-se perceptível que, na concepção de políticas públicas no ensino superior, o gênero vem sendo preterido em relação a outros aspectos considerados nos estudos interseccionais. No momento da pesquisa, a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, que é vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, não apresentou política nem ação específica para o ensino superior. Do mesmo modo, o Ministério da Educação não apresentou política nem ação que considerasse o gênero ou, ao menos, que fosse voltada para as mulheres.