1. Introdução
Muito embora a lei portuguesa opte frequentemente por definir os conceitos que utiliza (v.g. casamento, parentesco, afinidade), a noção de família não se encontra prevista (Canotilho e Moreira 2007, 856-57; Miranda 2014; Pinheiro 2015). Uma das razões que poderá justificar esta opção legal é a própria complexidade que caracteriza a instituição família, nomeadamente a multiplicidade de formas que toma (Giddens 2013) e as mudanças que atravessa ao longo do tempo (Torres 2001a).
Nos últimos anos, em particular após o 25 de abril, vários fatores contribuíram para mudanças nas relações familiares na sociedade portuguesa (Torres 2001b, 2004; Aboim 2010). A entrada generalizada das mulheres no mercado de trabalho (Torres 2004; Torres et al. 2005) e a aquisição de direitos por parte da comunidade LGBTI+ (Cascais 2006; Almeida 2009) foram dois dos fatores que influenciaram de forma determinante a dinâmica das relações familiares em Portugal.
Estas mudanças não determinaram, porém, uma diminuição do peso e da importância da família na vida do indivíduo. Tal como indicado por Anália Torres e Rui Brites, tendo por base os resultados do European Social Survey, a família continua a ser a dimensão mais importante e valorizada pelos europeus (Torres e Brites 2009). A valorização desta instituição é igualmente considerada pelo Direito, já que prevê no artigo 67.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) que “a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito a proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”.
Como se referiu, a aquisição de direitos por parte da comunidade LGBTI+ implicou a alteração de vários regimes jurídicos no âmbito do Direito da Família. No entanto, na edição de 2021 (relativa ao ano de 2020) do relatório “Rainbow Europe”1, Portugal surge com uma percentagem de 68,35% devido, entre vários aspetos, à ausência de reconhecimento da parentalidade trans (ILGA Europe 2021).
O presente artigo propõe-se analisar o tema do reconhecimento da parentalidade trans em Portugal, questionando, em particular, de que forma a aprovação da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, que estabeleceu o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género, implicaria alterações ao regime da parentalidade e como se conjugam (ou não) atualmente estes dois regimes jurídicos. Para tal, estruturámos a análise do tema em três secções, i) a evolução do reconhecimento da identidade de género em Portugal; ii) os efeitos do reconhecimento da identidade de género no regime da parentalidade; e iii) parentalidade trans: uma questão de direitos humanos.
2. O reconhecimento da identidade de género em Portugal
A 7 de agosto de 2018, a Lei n.º 38/2018 estabelecia no ordenamento jurídico português o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. Uma das grandes novidades introduzidas foi o disposto no n.º 2 do artigo 9.º, que determina que “nenhuma pessoa pode ser obrigada a fazer prova de que foi submetida a procedimentos médicos, incluindo cirurgia de reatribuição do sexo, esterilização ou terapia hormonal, assim como a tratamentos psicológicos e ou psiquiátricos, como requisito que sirva de base à decisão”.
Antes desta lei, em Portugal, o reconhecimento da identidade de género começou por ser realizado através do recurso aos tribunais. As ações interpostas contra o Estado Português, num primeiro momento e até 1981, tratavam a questão como se de um erro no assento de nascimento se tratasse (ILGA 2008; Moleiro et al. 2016). Posteriormente, a causa de pedir começou a ser a disparidade entre o sexo da pessoa no momento da interposição da ação e a menção do sexo que apresentava no documento de identificação (o que implicava que a pessoa já tivesse passado por uma intervenção cirúrgica de reatribuição de sexo). Em ambas as situações, o fator que parecia prevalecer e fundamentar as decisões judiciais de reconhecimento da identidade de género era aparentemente só um: o sexo. Os tribunais faziam depender a procedência do pedido de vários requisitos: a pessoa deveria ser estéril, ter sido submetida a intervenções cirúrgicas e tratamentos hormonais para alterar os seus caracteres sexuais de forma irreversível, ser incapaz de procriar, viver com o “papel social do sexo para o qual transitou durante um ano”, não ter filh@s (ILGA 2008, 6).
A existência de família era um elemento fundamental na “avaliação” do pedido de alteração da menção do sexo e do nome próprio, por parte do tribunal. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de novembro de 1988, processo n.º 074408, o tribunal considerou que o recorrente não era transexual por ter filh@s, entendendo que
II - Não sendo o recorrente um transexual, não pode o tribunal dizer quais os direitos que estes porventura tenham de ver alterada a menção do seu sexo no registo civil. III - E sendo a transexualidade a causa de pedir, não pode definir-se das consequências da mudança do sexo aparente, por virtude da vontade do individuo ou por causa diversa da transexualidade, porque fazê-lo seria grave atentado aos limites da atividade do juiz.
Em bom rigor, era-lhes imposta uma escolha entre dois direitos fundamentais: ou optavam pelo reconhecimento da sua identidade pessoal ou pelo direito a constituir família.
Em 2011, a Lei n.º 7/2011, de 15 de março, criou o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil. Esta lei veio finalmente regular a matéria, pondo fim à incerteza que caracterizava os processos judiciais e tornando o procedimento mais célere e acessível (Moleiro et al. 2016, 12-13). Contudo, um dos requisitos para a instrução do pedido era a apresentação de relatório que comprovasse o diagnóstico de perturbação e identidade de género elaborado por profissionais de saúde devidamente habilitados pelo Instituto de Registos e Notariado, I.P. (IRN). Esta última especificidade, apesar de não constar do artigo 3.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 7/2011, de 15 de março (artigo que tratava dos requisitos do pedido e instrução), veio a ser introduzida por deliberação do Conselho Técnico do IRN após informação prestada pela Ordem dos Médicos, a 29 de junho de 20112. Tal como apontado pela ILGA, este requisito acabou por provocar práticas de gatekeeping por parte dos profissionais de saúde (Moleiro et al. 2016, 32-33). Ou seja, estes profissionais impediam o acesso ao procedimento legal, não assinando o relatório exigido enquanto as pessoas não iniciassem tratamentos médicos ou intervenções cirúrgicas de reatribuição de sexo. Na prática, o resultado continuou a ser o mesmo: prevalência do sexo sobre a autodeterminação. Assim, até 2018, a menção legal de sexo correspondia necessariamente ao sexo genital.
Com a Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, deixando o relatório médico de ser um requisito de acesso ao procedimento administrativo, passou a ser possível, do ponto de vista material (uma vez que, em bom rigor, formalmente já o era na vigência da Lei n.º 7/2011, de 15 de março), o sexo genital não corresponder ao sexo legal.
Esta ausência de correspondência traz novas possibilidades e consequências jurídicas e sociais, nomeadamente o facto de passar a ser possível uma mulher (trans) participar na conceção de uma criança através da doação de sémen e um homem (trans) participar através da gestação e parto.
3. Efeitos do reconhecimento da identidade de género no regime da parentalidade
Os procedimentos legais de mudança de sexo tendem a ter um impacto negativo na vida familiar das pessoas trans, nomeadamente nos direitos parentais, de custódia e de reprodução medicamente assistida (European Commission 2020). Quanto aos direitos parentais, muitos dos problemas surgem pela falta de correspondência entre a identidade das pessoas e o registo da filiação presente no documento de identidade d@s seus/suas filh@s menores.
O sistema jurídico português concebe a parentalidade, à semelhança do reconhecimento da identidade, de forma exclusivamente binária - ou se é “pai” ou se é “mãe”3 - e cisnormativa - ou se é homem cis e se é “pai” ou se é mulher cis e se é “mãe”. De acordo com o Código Civil (CC), o estabelecimento da filiação (artigo 1796.º) resulta, relativamente à mãe, do facto do nascimento (n.º 1), e a paternidade “presume-se em relação ao marido da mãe e, nos casos de filiação fora do casamento, estabelece-se pelo reconhecimento” (n.º 2).
Segundo Guilherme de Oliveira, o artigo 1796.º parece ter uma “intenção determinada: vincar a total sujeição da lei ao facto biológico da maternidade” (Oliveira 1999, 8). No mesmo sentido, Diogo Leite Campos (2013, 321) refere que “a lei quer que os pais ‘jurídicos’ sejam os pais ‘naturais’. A mãe será aquela de cujo ventre o filho nasceu; o pai será aquele cujo espermatozoide fecundou o óvulo”. Para o Direito, o parto surge como o elemento jurídico essencial que estabelece “a ligação biológica do filho à mãe” (Pinheiro 2015, 133-34), e o mesmo se aplica à paternidade jurídica: “a lei também quer que o pai biológico assuma o estatuto correspondente, o que está bem denunciado pela existência dos meios oficiosos de investigação” (Oliveira 1999, 8).
Em matéria de registo civil, o Código do Registo Civil (CRC) determina a “obrigatoriedade da declaração de maternidade” e a “menção obrigatória da paternidade” nos assentos de nascimento das crianças (artigos 112.º e 118.º).
Aquando da aprovação da Lei n.º 7/2011, de 15 de março, o CRC sofreu algumas alterações, nomeadamente quanto aos averbamentos, que constituem alterações ao conteúdo dos assentos: passou a prever o artigo 69.º, n.º 1, alínea o) que a mudança de sexo e a consequente alteração de nome próprio são factos que são “especialmente averbados” ao assento de nascimento. De acordo com o artigo 123.º, a mudança de sexo e a alteração de nome próprio podem ser integrados no texto do assento de nascimento, mediante a realização de novo assento de nascimento, caso @ interessad@ o requeira verbalmente. Para este efeito, @ interessad@ poderá ser apenas @ própri@, @s herdeir@s e as autoridades judiciais ou policiais para efeitos de investigação ou instrução criminal (artigo 217.º, n.º 5 do CRC).
A mudança de sexo e a consequente mudança de nome próprio só são averbados “aos assentos de nascimento dos filhos maiores da pessoa que mudou de sexo, a requerimento daqueles” (artigo 69.º, n.º 4, alínea a) do CRC). Carlos Pamplona Corte-Real e José Silva Pereira sublinharam como esta alteração passou, à data, a permitir, pela primeira vez, na ordem jurídica portuguesa, situações de homoparentalidade, mesmo que “superveniente” (Corte-Real e Pereira 2011, 102-3). Relativamente a filh@s menores, a lei é omissa.
Quanto ao cônjuge, a alteração da menção do sexo e consequente mudança de nome próprio só são averbados no seu assento de nascimento “com consentimento deste prestado através de declaração perante oficial do registo civil ou de documento autêntico ou autenticado” (artigo 69.º, n.º 4, alínea b) do CRC). A mudança de sexo e de nome próprio são também averbados ao assento de casamento “desde que haja consentimento do outro cônjuge por declaração perante o oficial do registo civil ou através de documento autêntico ou autenticado” (artigo 70.º, n.º 1, alínea i) do CRC).
A Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, não alterou disposições do registo civil, nem revogou as alterações efetuadas ao CRC pela Lei n.º 7/2011, de 15 de março. Contudo, relativamente aos efeitos da decisão de mudança da menção do sexo e consequente alteração de nome próprio, estabeleceu que “não afeta nem altera os direitos constituídos e as obrigações jurídicas assumidas antes do reconhecimento jurídico da identidade de género” (artigo 10.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto). Quanto aos efeitos após o procedimento, o artigo 10.º, n.º 2, determina que as pessoas “passam a ser reconhecidas nos documentos de identificação, com o nome e o sexo neles constantes”.
Aqui chegad@s, podemos apontar duas conclusões relativamente aos efeitos do presente procedimento na esfera de terceiros: i) os direitos constituídos e as obrigações jurídicas assumidas antes do procedimento não são afetadas, mantendo-se as relações de filiação e afinidade inalteradas; ii) a produção de efeitos da decisão administrativa fica dependente da observação de dois requisitos: por um lado, a maioridade d@s filh@s; e, por outro, a prestação de consentimento, que deve observar certas formalidades (através de documento autêntico ou autenticado, na presença de uma autoridade oficial).
Assim, no caso d@s filh@s menores, sendo o nascimento e a filiação factos cujo registo é obrigatório (artigo 1.º, n.º 1, alínea a) e b) do CRC), aquilo que decorre da letra da lei, e avançando com um exemplo prático, é que, caso uma mulher trans participe na conceção através da doação de sémen, ou um homem trans dê à luz uma criança, estes serão registados na certidão de nascimento d@s filh@s como “pai” e “mãe”, respetivamente, e com as identidades de género registadas anteriormente ao procedimento de reconhecimento da identidade.
4. A parentalidade trans: uma questão de direitos humanos?
Anualmente, a Transgender Europe (TGEU) elabora um índice sobre os direitos das pessoas trans na Europa e Ásia Central. Na edição de 2021, dos 54 países analisados, somente quatro (Bélgica, Malta, Eslovénia e Suécia) reconhecem a parentalidade trans. Destes, quatro têm leis que reconhecem a identidade de género das pessoas trans dentro das opções binárias no âmbito do regime da parentalidade e só um país (Malta) reconhece identidades não-binárias na parentalidade (TGEU 2021).
No mesmo documento a organização alerta para uma “alarmante” perda de direitos das pessoas trans. Segundo a TGEU, os países progressistas abrandaram o aumento das proteções legais, os países moderados têm bloqueado o progresso e ainda um número crescente de países tem revogado vários direitos (TGEU 2021). Face a esta tendência, reconhecer os direitos das pessoas trans como uma questão de direitos humanos mostra-se cada vez mais necessário.
4.1. Análise à luz dos preceitos internacionais
A Declaração Universal dos Direitos Humanos4 (DUDH) é o instrumento de direitos humanos mais relevante no âmbito do sistema das Nações Unidas (Eide e Alfredsson 1992). A DUDH declara e reconhece a igual dignidade de todos os seres humanos (artigo 1.º), o princípio da igualdade (artigos 2.º e 7.º), o direito à reserva da vida privada e familiar (artigo 12.º) e a importância da família como “elemento natural e fundamental da sociedade” (artigo 16.º).
Estes princípios encontram também acolhimento em instrumentos vinculativos, em particular, nos artigos 2.º e 26.º (princípio da igualdade e não discriminação) e artigo 17.º (direito à reserva da vida privada e familiar) do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos5, e no artigo 2.º, n.º 2 (princípio da igualdade e não discriminação) do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais6.
Quanto a instrumentos que versam sobre questões LGBTI+, desde 2011 o Conselho de Direitos Humanos da ONU emitiu três resoluções sobre a matéria7. Apesar de nenhuma se debruçar especificamente sobre o reconhecimento da parentalidade trans, importa serem assinaladas pela posição que assumem, apelando a um esforço por parte dos Estados na promoção de condições de igualdade e combate à discriminação e violência contra a população LGBTI+.
No âmbito do sistema europeu, encabeçado pelo Conselho da Europa, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos8 prevê, no artigo 8.º, o direito ao respeito pela vida privada e familiar, e no artigo 14.º a proibição de discriminação9. Com fundamento nestas disposições, em 2020 deu entrada no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos um caso sobre o reconhecimento da parentalidade trans (A.H. and others v. Germany - Application no. 7246/20). Em questão está o direito de uma mulher trans, casada com outra mulher, ser registada como mãe da filha de ambas. Segundo a posição das autoridades alemãs, por não ter sido ela a parir a criança, não pode ser registada como mãe, deixando-lhe apenas a possibilidade de ser registada como pai, sob o seu antigo nome, por ter sido quem doou o esperma. Este é um caso que demonstra o problema jurídico-social emergente relacionado com a falta de reconhecimento da parentalidade trans.
Quanto a instrumentos específicos sobre matérias LGBTI+, destaque-se a Recomendação do Comité de Ministros (2010)5, sobre medidas para combater a discriminação em razão da orientação sexual e identidade de género, e duas resoluções da Assembleia Parlamentar: a Resolução n.º 2048(2015), sobre discriminação contra pessoas transgénero na Europa; e a Resolução n.º 2239(2018), sobre a vida privada e familiar de forma a alcançar a igualdade independentemente da orientação sexual (Köhler e Ehrt 2016, 12-13).
A primeira Resolução, no ponto 6.2. (sobre o reconhecimento legal de género), determina que se deveriam assegurar os direitos constituídos d@s filh@s e cônjuges (ponto 6.2.3), assim como ter em consideração os melhores interesses das crianças, em todas as decisões que as envolvam (6.2.5.).
A segunda Resolução, por ser mais recente, já se debruça sobre os direitos das “famílias arco-íris”. O ponto 4.6. aborda especificamente a questão do reconhecimento da parentalidade trans defendendo que, na sequência da implementação das leis de autodeterminação e reconhecimento da identidade de género, devem ser adotadas medidas de forma a prever a identidade de género das pessoas trans nas certidões de nascimento d@s filh@s.
Relativamente ao sistema comunitário, importa sublinhar o crescente envolvimento, ainda que modesto, no combate à discriminação das pessoas LGBTI+. Segundo o artigo 2.º do Tratado da União Europeia (TUE), a União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, democracia, igualdade, não discriminação, justiça, solidariedade e tolerância. O mesmo princípio encontra-se no artigo 10.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), que estabelece que, “na definição e execução de políticas e ações, a União tem por objetivo combater a discriminação”. A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia10 (CDFUE) prevê, no seu artigo 1.º, que a dignidade do ser humano é inviolável, devendo ser respeitada e protegida. O artigo 7.º garante o respeito pela vida privada e familiar, o artigo 9.º o direito de contrair casamento e constituir família e os artigos 20.º e 21.º a igualdade perante a lei e a proibição da discriminação, respetivamente.
Relativamente às políticas e ações conduzidas pela UE no sentido de reconhecer as pessoas LGBTI+ e respetivas famílias, destacam-se duas resoluções do Parlamento Europeu: a Resolução de 18 de dezembro de 2019 sobre a discriminação pública e o discurso de ódio contra pessoas LGBTI+; e a Resolução sobre o futuro da lista de medidas em favor das pessoas LGBTI (2019-2024), de 14 de fevereiro de 2019. As resoluções, apesar de não serem vinculativas, têm uma importância política relevante, pois exprimem a posição do Parlamento Europeu sobre estas matérias e visam influenciar a ação da Comissão e do Conselho (Campos, Campos e Pereira 2014, 163).
Em novembro de 2020, foi aprovada a estratégia para a Igualdade LGBTIQ (2020-2025) da Comissão Europeia. Entre vários objetivos que devem ser concretizados até 2025, dois relacionam-se com o reconhecimento da parentalidade trans: “melhorar o reconhecimento da identidade transgénero e não-binária e das pessoas intersexuais (sic)” e “garantir a proteção das famílias em situações transfronteiriças” (Comissão Europeia 2020).
Por último, e dada a sua importância no âmbito da análise de questões LGBTI+, referimos os Princípios de Yogyakarta (2006)11. Para além dos princípios 1 e 2, que estabelecem a dignidade da pessoa humana e o direito à igualdade e não discriminação, respetivamente, importa sublinhar o princípio 24, que estabelece que tod@s têm o direito a constituir família independentemente da sua orientação sexual e identidade de género, e que nenhuma família deve ser sujeita a discriminação em razão da identidade de género ou orientação sexual de qualquer um dos seus membros. Para tal, os Estados devem tomar todas as medidas legislativas, administrativas ou outras consideradas necessárias ao exercício deste direito. Juntamente com os Princípios de Yogyakarta plus 1012, aprovados em 2017, que adicionaram dez princípios aos originais, foram ainda aprovadas obrigações adicionais dos Estados. Das obrigações adicionais ao princípio 24, destaque-se a alínea h), que determina que os Estados devem proteger as crianças de discriminação, violência ou outro dano em razão da orientação sexual, identidade de género, expressão de género ou características sexuais das figuras parentais, ou de outros membros da família; e a alínea i) que prevê que as certidões de nascimento das crianças devem refletir a identidade de género autodeterminada das figuras parentais.
4.2. Análise à luz dos princípios constitucionais
Importa, desde logo, ter em consideração o disposto nos artigos 26.º, n.º 2, e 36.º, bem como o disposto nos artigos 67.º e 68.º da CRP. Enquanto os dois primeiros reconhecem e garantem os direitos de todas as pessoas à família, casamento e filiação, os segundos reconhecem que a família (enquanto instituição), a “maternidade” e a “paternidade” (parentalidade) têm direito à proteção da sociedade e do Estado (Canotilho e Moreira 2007, 561; Miranda e Medeiros 2010, 689).
O artigo 1.º da CRP determina que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular empenhada na construção de uma sociedade justa e solidária”. Tal como é sublinhado por Jorge Reis Novais (2018), a dignidade da pessoa humana comporta duas dimensões fundamentais: a integridade humana e a igual dignidade das pessoas. Na dimensão da integridade humana, a dignidade surge, por um lado, como respeito da humanidade intrínseca da pessoa e, por outro, como respeito da autonomia individual desta (Novais 2018, 109, 113). Será nesta última dimensão, que reconhece a pessoa como “sujeito da sua própria vida”, que poderemos compreender melhor de que forma o presente princípio se aplica ao caso ora em análise (Novais 2018, 113).
A falta de reconhecimento dos direitos parentais das pessoas trans afeta, sobretudo, o exercício dos seus direitos de cidadania. Seja quando deixam de poder ir buscar @s filh@s à escola, por não conseguirem provar a parentalidade através dos documentos de identificação das crianças (European Commission 2020, 93); ou quando deixam de viajar de avião, como é o caso de um homem trans na Alemanha, que teme que mesmo que apresente a decisão administrativa do procedimento de mudança da menção do sexo e nome próprio lhe sejam levantados problemas pelas companhias aéreas, por só constar no documento de identificação da filha o nome pelo qual era identificado antes do procedimento (TGEU 2018). Em suma, aquilo que se verifica na prática é uma limitação, ou até mesmo impedimento, de uma plena participação na vida em sociedade em razão da falta de reconhecimento legal daquilo que a pessoa é (Novais 2018, 132,144).
Simultaneamente, interessa avaliar os efeitos desta situação nos direitos à identidade pessoal e à privacidade ou à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, n.º 1 da CRP). Tal como afirma Jorge Reis Novais:
[…] há violação da dignidade quando a pessoa é desapossada do controlo sobre si e sobre a apresentação pública do eu, quando sofre uma alienação identitária; quando a pessoa é impedida de conhecer e de ter domínio sobre a sua identidade e de se apresentar publicamente com a sua identidade. Já na dimensão de intimidade pessoal, há violação quando a pessoa fica decisivamente privada do controlo sobre a conformação, preservação e reserva do que pode ser designado como o seu reino interior: sobre a definição e delimitação do eu na relação com a sociedade, sobre o que, de si própria, pretende ou aceita revelar aos outros e sobre a imagem que quer dar de si. (Novais 2018, 132)
O n.º 2 do artigo 26.º obriga o Estado a garantir e instituir mecanismos que impeçam utilizações abusivas ou contrárias à dignidade humana (Silva 2003; Canotilho e Moreira 2007; Miranda 2014). No caso ora em análise, um destes mecanismos poderia ser, por exemplo, a aprovação de uma lei que reconhecesse a parentalidade trans.
Quanto à segunda dimensão da dignidade da pessoa humana (a igual dignidade das pessoas), o princípio da igualdade estabelece uma “regra de estatuto social dos cidadãos”, proclamando e defendendo a sua “idêntica validade cívica” (Canotilho e Moreira 2007, 337, 338). Este princípio, estabelecido no artigo 13.º da CRP, visa a proteção de três dimensões essenciais na ordem jurídica: a proibição do arbítrio, a proibição da discriminação e a obrigação da diferenciação; ou seja, as diferenciações de tratamento devem ser justificadas de acordo com razões constitucionalmente objetivas, e não em razão de valores ou “categorias meramente subjetivas”, como as enunciadas no n.º 2 do artigo 13.º (Canotilho e Moreira 2007, 339-41; Miranda e Medeiros 2010, 224). Neste sentido, e sendo o elenco do n.º 2 meramente exemplificativo, pode argumentar-se que a identidade de género e o género são também categorias “meramente subjetivas” que entram no âmbito de proteção do princípio da igualdade (Miranda e Medeiros 2010, 230; Canotilho e Moreira 2007, 340).
Assim, uma situação viola o princípio da igualdade e o princípio da dignidade da pessoa humana quando envolve, entre outras condições, i) estigmatização, impondo um estatuto de inferioridade ou de menor consideração; ii) “descapacitação”, quando estamos perante um caso em que as condições de autodeterminação pessoal não são garantidas, apesar de o Estado e a sociedade disporem de condições suficientes para as proporcionar; e iii) devassa ou humilhação, quando a imagem que alguém pretende construir de si próprio e apresentar em público é desconsiderada ou exposta ao conhecimento dos outros, sem que essa humilhação ou devassa se justifiquem na proteção de direitos ou interesses legítimos (Novais 2018, 150-51). Estas condições, tal como verificámos, parecem estar presentes quando analisamos os efeitos jurídico-sociais da falta de reconhecimento da parentalidade trans.
5. Conclusão
Ao longo da História, o Direito não só não teve um papel positivo e ativo na construção da igualdade, como na realidade construiu e contribuiu para a discriminação e desigualdade das mulheres e das pessoas LGBTI+ (Beleza 2010). Em particular, em relação à comunidade LGBTI+, nunca a lei se coibiu de oprimir, punir e excluir (Bastos 1997; Brandão 2008; Cascais 2016).
Progressivamente, as questões da sexualidade e identidade vieram a conhecer rumos mais “igualitários”. Nos últimos 20 anos, a comunidade LGBTI+ conquistou vários direitos em Portugal e assegurou a sua igual dignidade perante a lei (Almeida 2010; Santos 2018). A aprovação da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, implicou a conquista de um direito fundamental: o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género e a proteção das características sexuais de cada pessoa. Contudo, esta nova realidade não apagou a “herança” secular de repressão e de discriminação legal e institucionalizada e, tal como observámos, presunções de caráter cisnormativo e binário continuam presentes, em particular, no regime da parentalidade.
Muito embora tenhamos optado por analisar este problema na sua vertente jurídica, esta questão tem, sobretudo, consequências sociais (TGEU 2018). Por esta razão, importa compreender como o reconhecimento da parentalidade trans é uma questão de direitos humanos. Através da enunciação de instrumentos de Direito Internacional, procurámos perceber de que forma os sistemas da ONU, Conselho da Europa e UE têm encarado as questões LGBTI+, em geral, e o reconhecimento da parentalidade trans, em particular. Neste âmbito, apesar de se verificar um crescente envolvimento por parte das instituições internacionais na promoção dos direitos LGBTI+, os instrumentos normativos utilizados para o efeito são maioritariamente não vinculativos. Ficou ainda evidente como a ausência de reconhecimento da parentalidade trans implica o desrespeito de vários princípios fundamentais, nomeadamente, a dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade e o direito à intimidade da vida privada e familiar.
Apesar dos avanços consideráveis dos últimos anos, conforme foi possível constatar, continuam a existir lacunas legais que perpetuam a desigualdade e invisibilidade das pessoas LGBTI+. Neste contexto, caberá agora ao Estado português, na sequência da aprovação da lei de identidade de género, aprovar diplomas e harmonizar regimes que regulem as possibilidades jurídicas e sociais que dela advêm, nomeadamente, a parentalidade trans.