SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número45A ausência de reconhecimento legal da parentalidade trans em PortugalA dimensão punitiva no campo de oposição à interrupção voluntária da gravidez (Argentina, 2018) índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.45 Lisboa jun. 2022  Epub 18-Jul-2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.45.08 

Dossier

Direitos LGBTQIA+: um estudo sobre o uso da judicialização pelo Grupo Matizes no Brasil

LGBTQIA+ Rights: A study on the use of judicialization by the Matizes Group in Brazil

Derechos LGBTQIA+: un estudio sobre el uso de la judicialización por el Grupo Matizes en Brasil

Libni Milhomem Sousa* 
http://orcid.org/0000-0001-7348-3881

Olívia Cristina Perez** 
http://orcid.org/0000-0001-9441-7517

*Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina - PI, Brasil. Endereço postal: Campus Universitário Ministro Petrônio Portella, s/n - Ininga, Teresina - PI, Brasil, CEP: 64049-550. Endereço eletrônico:

**Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina - PI, Brasil. Endereço postal: Campus Universitário Ministro Petrônio Portella, s/n - Ininga, Teresina - PI, Brasil, CEP: 64049-550. Endereço eletrônico:


Resumo

O artigo apresenta a judicialização como estratégia de trabalho do Grupo Matizes, um dos principais movimentos sociais LGBTQIA+ brasileiros. A pergunta que guiou a pesquisa foi a seguinte: quais as estratégias que os movimentos sociais LGBTQIA+ vêm utilizando para garantir direitos e por quê a opção pela judicialização? Para responder a esta questão, a pesquisa quantitativa e qualitativa examinou as proposições levadas ao Poder Legislativo pelos movimentos sociais LGBTQIA+ e as demandas judicializadas. Também foram feitas quatro entrevistas com militantes do Grupo Matizes. Mostramos que, na ausência de aprovação de direitos por parte do poder legislativo brasileiro, a judicialização passou a fazer parte das estratégias dos movimentos.

Palavras-chave: Poder legislativo; movimento LGBTQIA+; movimentos sociais; judicialização; Brasil.

Abstract

The article presents judicialization as a working strategy of the Matizes Group, one of the main LGBTQIA+ social movements in Brazil. The question that guided the research was the following: what strategies are the LGBTQIA+ social movements using to guarantee rights and why the option for judicialization? To answer this question, a quantitative and qualitative research study examined the cases brought before the courts by LGBTQIA+ social movements and the judicialized demands. Four interviews were also conducted with members of the Matizes Group. We show that, in the absence of approval of rights by the Brazilian legislative power, judicialization became part of these social movements' strategies.

Keywords: Legislative power; LGBTQIA+ movement; social movements; judicialization; Brazil.

Resumen

El artículo presenta la judicialización como estrategia de trabajo del Grupo Matizes, uno de los principales movimientos sociales LGBTQIA+ brasileños. La pregunta que guió la investigación fue la siguiente: ¿qué estrategias utilizan los movimientos sociales LGBTQIA+ para garantizar derechos y por qué la opción por la judicialización? Para responder a la pregunta, la investigación cuantitativa y cualitativa examinó las proposiciones llevadas al Poder Legislativo por los movimientos sociales LGBTQIA+ y las demandas judiciales. También se realizaron cuatro entrevistas con militantes del Grupo Matizes. Mostramos que, en ausencia de aprobación de derechos por parte del Poder Legislativo brasileño, la judicialización pasó a formar parte de las estrategias de los movimientos.

Palabras clave Poder legislativo; movimiento LGBTQIA+; movimientos sociales; judicialización; Brasil.

1. Introdução

Os tribunais têm garantido direitos importantes para a população LGBTQIA+1 no Brasil, como por exemplo, o reconhecimento da união estável homoafetiva (2011), o reconhecimento ao direito de adoção por casais homoafetivos (2015), a modificação do nome no registro civil por pessoas trans (2018), o enquadramento da discriminação contra LGBTQIA+ “nos crimes previstos na Lei n.º 7.716/1989” (Santos 2020). E, mais recentemente, em 2020, foram suspensas as diretrizes impostas pelo Ministério da Saúde e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, que requeriam aos homossexuais “a abstinência sexual de um ano para doarem sangue” (Santos 2020). Parte desses avanços se deve à força que a judicialização da política obteve no Brasil com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (Araújo e Silva 2019).

Este trabalho aborda o uso da judicialização pelo Grupo Matizes, um dos principais movimentos sociais brasileiros LGBTQIA+. Em 18 de maio de 2002, o Grupo Matizes foi fundado em Teresina, no estado do Piauí, região nordeste do Brasil, e objetivou construir uma cultura voltada aos direitos humanos e respeito à diversidade. O Matizes foi pioneiro na busca de direitos por meio da judicialização no país, a exemplo das duas Ações Civis Públicas (ACP) movidas pelo Grupo (a respeito da vedação da doação de sangue por homens que fazem sexo com outros homens e o requisito da inserção de dependente para contribuinte LGBTQIA+ na Declaração do Imposto de Renda). O pioneirismo e a importância do Grupo Matizes na judicialização de direitos LGBTQIA+ no Brasil determinou sua escolha como objeto desta pesquisa.

Entendemos a judicialização conforme as proposições de Tate e Vallinder (1995), presentes na obra seminal The Global Expansion of Judicial Power. Os autores são precursores no debate sobre a judicialização da política, enquadrando-a em dois eixos centrais: a) deslocamento das decisões do Executivo e ou Legislativo para o Judiciário; e b) assimilação dos procedimentos particulares de decisão dos tribunais, tanto do Poder Executivo como do Poder Legislativo. Na prática, conforme o jurista, professor e magistrado brasileiro Luís Roberto Barroso, a “judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista público, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário” (Barroso 2013, 869).

A expressão “judicialização da política” ganhou tônica no Brasil possivelmente a partir dos trabalhos de Marcos Faro de Castro (1997). As pesquisas do autor buscaram em síntese estudar o conceito da judicialização da política e apresentar parte das características da interação entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o processo político. Vinte anos depois da obra de Tate e Vallinder (1995), o debate recebeu novos contornos nas pesquisas de Rodrigues (2015) que, ao fazer um balanço dos 20 anos da obra The Global Expansion of Judicial Power, concluiu que a terminologia “judicialização da política” tem diferentes significados, o que sugere um afastamento conceitual da teoria de Tate e Vallinder. Dentro desse debate, destacamos também o trabalho de Ribeiro e Arguelhes (2019), que trouxe para a discussão dois pontos pouco estudados pela literatura: o modo como ocorre o acesso ao STF por atores políticos, e o fato de o uso do tribunal poder ser mais complexo do que uma divisão estabelecida entre “oposição e bancada governista”.

Há um debate importante no campo da judicialização que deve ser mencionado, pois ele impacta nas escolhas dos atores, inclusive no campo aqui abordado (direitos para a população LGBTQIA+): trata-se do uso da judicialização. Sobre isso, em linhas gerais, os estudos dividem-se entre aqueles que apontam a judicialização como uma tendência atual da democracia contemporânea (Tate e Vallinder 1995; Carvalho 2004) e outros que criticam a judicialização ao defender que seu uso interfere na atuação dos demais poderes (Kalyvas 2002; Arantes 2007). Esse embate é ressaltado pela própria literatura, que mostra como a judicialização, por um lado, é defendida como um avanço para a democracia e, por outro, é considerada uma prática de risco, que ameaça a soberania popular pela ascensão de posições contra majoritárias (Maciel e Koener 2002).

O debate sobre o uso da judicialização tem como pano de fundo o crescimento da prática como forma de resolver embates políticos (Pogrebinschi 2011; Oliveira 2019) e garantir direitos (Barboza e Kozicki 2012). Como parte da discussão sobre a judicialização como forma de garantir direitos, já há estudos sobre a judicialização como um recurso para atender as demandas LGBTQIA+. Os estudos apontam para o aumento expressivo das ações para os direitos LGBTQIA+ julgadas pelo Supremo Tribunal Federal e Supremo Tribunal de Justiça (Coacci 2015), mostrando como a judicialização é uma estratégia de reivindicação dos direitos LGBTQIA+ (Cardinali 2018).

A presente pesquisa se distingue das demais ao se concentrar no mapeamento das proposições que tramitam no Poder Legislativo, ao mesmo tempo que examina as demandas judicializadas por um movimento social brasileiro. A pergunta que orientou a pesquisa foi a seguinte: quais as estratégias que os movimentos sociais LGBTQIA+ vêm utilizando para garantir direitos e por quê a opção pela judicialização?

Para construir nossa hipótese, retomamos as explicações de Tate e Vallinder (1995, 27-36) segundo as quais a disseminação da judicialização se relaciona com um conjunto de condições facilitadoras que favorecem o seu uso, a saber: 1) regime democrático do país; 2) divisão dos poderes e autonomia do Judiciário; 3) a universalização do acesso à justiça; 4) a presença de uma Constituição que determine direitos e valores; 5) a utilização dos tribunais pelos grupos minoritários para garantir os seus direitos; 6) o uso dos tribunais por grupos de oposição para conter e controlar as decisões majoritárias da arena política; 7) a ineficiência das instâncias majoritárias de criação da vontade pública, fato que leva as demandas ao Judiciário; 8) as instituições majoritárias que atribuem ao Judiciário a resolução de casos polêmicos.

Dentro dessas condições, a hipótese dessa pesquisa guia-se especificamente pelas condições números 5 e 7 (grupos minoritários recorrem aos tribunais para buscar os seus direitos e a incapacidade das instâncias majoritárias que resulta na procura pelo Judiciário). Com base nelas, temos como hipótese que o uso da judicialização por um importante movimento social brasileiro tem relação com a não aprovação das demandas LGBTQIA+ pelo Poder Legislativo. Explicando melhor nossa hipótese, partimos da premissa de que o Poder Legislativo, ao longo do período analisado na pesquisa (outubro de 1988 a novembro de 2021), não tem respondido efetivamente às reivindicações da população LGBTQIA+. Argumentamos que essa baixa resposta pelo Legislativo influenciou o Grupo Matizes a buscar a resolução das questões LGBTQIA+ na Justiça.

A pesquisa quantitativa e qualitativa empregou como técnicas a sistematização de dados do Congresso Nacional, bem como pesquisa documental e entrevistas. Detalhadamente, para verificar a atenção das demandas LGBTQIA+ no Poder Legislativo, primeiro fizemos um levantamento das proposições relacionadas ao campo que tramitaram no Congresso Nacional entre outubro de 1988 (desde a redemocratização brasileira) e novembro de 2021 (período de finalização da escrita do presente trabalho). Levantamos todos os tipos possíveis de proposições que tramitam no Poder Legislativo Federal brasileiro, a saber: a) propostas de emenda à Constituição (PEC); b) projetos de lei (PL); c) projetos de lei complementar (PLP); d) projetos de decreto legislativo (PDL); e) indicações (INC); f) medidas provisórias (MPV); e g) projetos de resolução (PRC).

As consultas foram realizadas nos repositórios on-line da Câmara dos Deputados e Senado Federal. Para refinar nossa busca, usamos as palavras-chave LGBT, LGBTQIA+, discriminação sexual, discriminação de gênero, igualdade de gênero, homossexual, homossexuais, homossexualismo, homoafetivo, homofobia, sexismo, bissexual, bissexuais, ideologia de gênero, identidade de gênero, preferência sexual, opção sexual, orientação sexual - abarcando assim todas as possibilidades de demandas do campo.

Por meio dessa etapa foi possível constatar a falta de acolhimento das demandas dos movimentos sociais LGBTQIA+ por parte do Parlamento brasileiro. Faltava ainda saber se essa baixa resposta do Poder Legislativo tinha relação com a decisão dos movimentos sociais LGBTQIA+ de apelarem para o Poder Judiciário. Para demonstrar essa relação, escolhemos como fonte de dados o movimento social brasileiro pioneiro na judicialização: o Grupo Matizes.

Para entender as ações do Grupo, consultamos artigos, notícias divulgadas na grande mídia e demais publicações que tratam da judicialização engendrada pelo Matizes. Também entrevistamos, em outubro de 2021, os/as quatro militantes do movimento diretamente envolvidos/as no processo de judicialização das demandas LGBTQIA+. As entrevistas exploraram as razões que motivaram o Grupo Matizes a usar a judicialização como estratégia de trabalho. Com o intuito de garantir o sigilo das informações, os/as entrevistados/as são identificados/as por letras e números: E1, E2, E3 e E4.

Para mostrar como o Grupo Matizes vem obtendo sucesso por meio da judicialização, consultamos duas Ações Civis Públicas (ACP) movidas pelo Grupo. A primeira é a ACP n.º 2006.40.00.001761-6, que solicitava a retirada da vedação da doação de sangue por homens que fazem sexo com outros homens. A segunda é a ACP n.º 2009.40.00.001593-9, que requeria a inserção de dependente para contribuinte LGBTQIA+ na Declaração do Imposto de Renda.

O artigo está organizado em três seções, além desta introdução. A seção 2 apresenta as proposições sobre direitos LGBTQIA+ levadas ao Poder Legislativo Federal brasileiro entre 1988 e novembro de 2021. A seção 3 aborda a judicialização dessas demandas, bem como as explicações do Grupo Matizes por ter optado por essa estratégia. Por fim, são apresentadas considerações sobre os resultados da pesquisa.

2. Poder Legislativo e direitos LGBTQIA+

O Parlamento é a instituição desenhada para acolher as demandas da população em geral e de grupos específicos, como os LGBTQIA+. No entanto, as demandas LGBTQIA+ têm sido judicializadas no Brasil. Este trabalho tem como hipótese que o uso da judicialização tem relação com a não aprovação das demandas LGBTQIA+ pelo Poder Legislativo. Para demonstrá-la, analisamos as demandas LGBTQIA+ protocoladas nas duas Casas que compõem o Poder Legislativo brasileiro, a saber, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados. Os dados sobre os anos das proposições, bem como sobre os principais assuntos abordados, estão organizados na Tabela 1.

Tabela 1 Demandas LGBTQIA+ no Parlamento brasileiro por assunto e ano 

Tema Quantidade % Ano
Direitos Humanos e Minorias 207 53 1992; 1997; 2001; 2002; 2003; 2004; 2005; 2008; 2009; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015; 2016; 2017; 2018; 2019; 2020; 2021
Direito Penal e Processual Penal 56 14,5 1993; 1996; 1998; 1999; 2000; 2002; 2003; 2004; 2006; 2007; 2008; 2011; 2013; 2014; 2016; 2017; 2018; 2019; 2020; 2021
Direito Civil e Processual Civil 34 9,0 1995; 1997; 2000; 2001; 2005; 2006; 2007; 2008; 2009; 2010; 2011; 2013; 2016; 2017; 2019; 2020; 2021
Administração Pública 29 7,4 2000; 2001; 2002; 2005; 2008; 2009; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015; 2016; 2017; 2019; 2020; 2021
Educação 09 2,2 1999; 2000; 2005; 2007; 20015; 2018
Defesa e Segurança 09 2,2 2000; 2012; 2015; 2020; 2021
Trabalho e Emprego 09 2,2 2003; 2009; 2014; 2017; 2020
Comunicações 06 1,5 2000; 2011; 2021
Arte, Cultura e Religião 05 1,2 2009; 2015; 2019; 2020
Homenagens e Datas Comemorativas 05 1,2 2006; 2007; 2020
Saúde 05 1,2 2003; 2008; 2009
Direito Constitucional 03 0,7 2000; 2015; 2020
Direito e Justiça 03 0,7 2011; 2012; 2020
Política, Partidos e Eleições 03 0,7 2003; 2012; 2019
Indústria, Comércio e Serviço 02 0,5 2005
Previdência e Assistência Social 02 0,5 2005; 2015
Processo Legislativo e Atuação Parlamentar 02 0,5 2004; 2011
Cidades e Desenvolvimento Urbano 01 0,2 2021
Direito e Defesa do Consumidor 01 0,2 2020
Finanças Públicas e Orçamento 01 0,2 1997
Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável 01 0,2 2019
Total 393 100,0 -

Fonte: Elaboração própria

O levantamento dos dados entre outubro de 1988 (redemocratização brasileira) e novembro de 2021 (fim da consulta de dados para esta pesquisa) sistematizados na Tabela 1 mostra que, durante esse período, 393 proposições foram protocoladas. Esse total corresponde tanto a proposições favoráveis, como contrárias aos direitos LGBTQIA+. Nos anos de 1988, 1989, 1990, 1991 e 1994 não encontramos nenhuma proposição. No entanto, de 1995 a 2021, observamos que em todos os anos houve pelo menos uma proposição protocolada.

Especificamente entre 1992 e 1999, notamos uma estabilidade no número de proposições, com uma média de duas por ano. Nesse quesito, a década de 1990 se manteve estável. Já em 2000 houve oito proposições, verificando-se um salto expressivo quando comparado ao ano de 1999, quando foram registradas apenas três proposições. Estes resultados têm relação com o crescimento dos movimentos sociais e da discussão sobre direitos para a população LGBTQIA+ no Brasil, que é ainda recente.

Em 2008 foram feitas quatorze proposições, em 2011 dezesseis e em 2015 trinta e seis. O aumento apresentado nestes anos coincide com a realização da 1.ª, 2.ª e 3.ª Conferências Nacionais GLBT e LGBT, durante os anos em que o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve no comando do governo federal (de 2003 a meados de 2016). Inclusive a 1.ª Conferência GLBT (sigla à época) foi considerada “um marco na história na luta pela Cidadania e pelos Direitos Humanos da População LGBT” (Brasil 2008, 155). Logo, o aumento da discussão sobre direitos LGBTQIA+ no Brasil tem relação com a condução da temática pelo governo do PT. De modo mais amplo, o Partido dos Trabalhadores ampliou tanto em números quanto em relevância as Instituições de Participação, como é o caso das Conferências de Direitos (Gomes, Perez e Szwako 2017).

Mas o crescimento dessas demandas não cessou, mesmo quando o Brasil passou a ser governado por partidos mais à direita no espectro político-ideológico (primeiro com Michel Temer, do antigo Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB, que governou o país de 2016 a 2018, e, agora, com Jair Bolsonaro, eleito pelo Partido Social Liberal - PSL). Prova disso é que 2019 foi o ano com maior número de proposições protocoladas: 51.

Quanto ao assunto, as demandas LGBTQIA+ apresentadas no Congresso Nacional estão separadas em 21 eixos temáticos definidos pela Câmara dos Deputados Federais. A maior parte delas pode ser definida como defesa dos Direitos Humanos e das Minorias, com 207 proposições, o que representa 53% do total. Em geral, tais propostas versam sobre união homoafetiva, garantia de acesso a espaços sociais e de permanência nos mesmos, aplicação de sanções a quem discriminar indivíduos em detrimento da orientação sexual, e criminalização da LGBTfobia.

Em segundo lugar, temos o eixo Direito Penal e Processual Penal, com 56 proposições, o que representa 14% do total dos eixos temáticos. Nele encontramos proposições como, por exemplo, o PL 3185/2020, que objetiva enquadrar como crime hediondo aquele realizado contra homossexuais, em virtude da orientação sexual, e o PL 9576/2018, que propõe alterar o dispositivo da Lei n.º 7210/1984, para construir espaços de vivência para travestis e transexuais em instituições penais.

Na sequência, os eixos Direito Civil e Processual Civil, e Administração Pública, apresentaram 34 e 29 proposições, respectivamente. A título de exemplo, apontamos o PL 2760/2021, que visa modificar a Lei n.º 12662/2012, para garantir o registro de dupla maternidade ou paternidade aos casais em união homoafetiva na Declaração de Nascido Vivo (DNV), e o PL 6840/2002, que versa sobre a proibição de normas discriminatórias relacionadas à orientação sexual em editais para provimento de cargo em concurso público. Já os demais eixos apresentaram entre uma e nove proposições. Entre eles, citamos os eixos Educação e Saúde, no âmbito dos quais foram apresentadas proposições que abordam, por exemplo, a necessidade de incluir disciplinas que dialogam sobre orientação sexual, e a elaboração de programa educativo que integre, além da orientação sexual, os meios de prevenção das infecções sexualmente transmissíveis (IST) e o uso de drogas.

O número de proposições tramitando pode dar a impressão de que o Poder Legislativo brasileiro é o locus de garantia de direitos LGBTQIA+. Mas essa impressão precisa ser problematizada, pois parte das proposições é contrária aos direitos LGBTQIA+ e nem todas são efetivadas.

Desenvolvendo melhor esse argumento, primeiramente é necessário destacar que muitas das proposições encaminhadas ao Congresso Nacional pretendem sustar aplicações de decisões, portarias, decretos ou parágrafos contidos em resoluções favoráveis aos direitos LGBTQIA+. Mais detalhadamente, das 393 proposições encontradas, 317 são favoráveis, o que representa 80,7% do total. Por outro lado, 66 são desfavoráveis aos direitos LGBTQIA+.

Para ilustrar, citamos o PDL 48/2015, que intenciona sustar a aplicação da Resolução 12/2015. O projeto de decreto legislativo estabelece as diretrizes que visam a assegurar o acesso de travestis e transexuais a diferentes espaços da sociedade, como também sua permanência nesses lugares. Outro exemplo é o PDL 395/2016, que visa sustar o Decreto n.º 8.727/2016, que dispõe sobre o uso do nome social, tal como reconhece a identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais nos espaços da administração pública. Logo, a disputa sobre os direitos para a população LGBTQIA+ que ocorre na sociedade também está presente no Congresso Nacional. Em grande parte, as proposições contrárias aos direitos são protocoladas por senadores e deputados pertencentes à bancada da bíblia e militar.

Mas o cerne das buscas realizadas para a presente pesquisa tem relação com a aprovação ou não dessas propostas. Para mostrar a falta de acolhimento das demandas LGBTQIA+ pelo Poder Legislativo brasileiro, registramos na Tabela 2 o resultado e o estado atual da tramitação das proposições.

Tabela 2 Situação das proposições no Poder Legislativo 

Situação Quantidade %
Em tramitação - Proposição Original 154 39,2
Em tramitação - Apensado 153 39,0
Arquivado 79 20,0
Retirado pelo Autor 05 1,3
Aprovado 02 0,5
Total 393 100,0

Fonte: Elaboração própria

Os dados da Tabela 2 indicam que 307 proposições ainda correm em tramitação, ou seja, seguem os trâmites para decisão final. Desse total, 154 são originais e 153 foram apensadas a outras proposições. Em outras palavras, 78,2% das proposições estão tramitando. Verificamos que 79 proposições foram arquivadas, em geral, pelo término da legislatura, o que representa 20% do total. Entre as proposições arquivadas estavam pautas importantes como, por exemplo, o direito de casais homoafetivos à inscrição em programas de habitação do Governo Federal e os direitos à identidade de gênero. As proposições retiradas pelos autores foram cinco, o que equivale a apenas 1,3% do total de proposições.

O dado que mais chama a atenção na Tabela 2 é que apenas duas proposições foram aprovadas. A primeira é o PL 5231/2020, do senador Paulo Paim (Partido dos Trabalhadores), aprovado pelo plenário em 10 de dezembro de 2020. O projeto veda a conduta de agente público no exercício da profissão, assente em preconceito, como o de raça, origem, gênero, orientação sexual ou culto. A segunda é o PL 2353/2021, do senador Fabiano Contarato (Rede), aprovado pelo plenário em 4 de novembro de 2021. O projeto altera a Lei n.º 10.205/2001, para impedir a discriminação de homossexuais candidatos a doadores de sangue.

É importante ressaltar que, entre as proposições que tramitam no Congresso Nacional, onze são consideradas prioritárias pela Aliança Nacional LGBTI - um dos movimentos sociais brasileiros mais importantes na área. Esses projetos estão parados, aguardando prosseguimento. Em 2017, a organização elaborou “um estatuto de princípios e propostas”, chamado de Carta da Diversidade, com o objetivo de oportunizar cidadania LGBTQIA+, empenhando-se na militância para que esses projetos de lei sejam aprovados2. Até o momento, nenhum dos projetos considerados como prioritários foram aprovados.

Entre eles estão os seguintes: o PLP 5002/2013, que visa a reconhecer o direito à identidade de gênero, sem que para isso seja necessário intervenções cirúrgicas ou terapias hormonais; o PL 7582/2014, que indica os crimes de ódio e intolerância, incluindo entre os tipos de discriminação os relacionados à orientação sexual e à identidade de gênero; e o PL 5255/2016, referente à abertura do registro civil para pessoas intersexo. Outros projetos prioritários que constam no estatuto e que estacionaram no legislativo tratam de temas como a defesa de pessoas LGBTQIA+ idosas, a criminalização da LGBTfobia, o estatuto das famílias e o estatuto da diversidade sexual e de gênero.

A Tabela 2 também mostra outro dado importante que confirma a falta de acolhida das demandas LGBTQIA+ pelo Congresso Nacional: a maior parte das proposições protocoladas entre 1988 e 2021 estão em tramitação. Elas aguardam análise, tanto das comissões temáticas quanto dos pareceres dos relatores. Explicando um pouco desse processo, em 2018, o então deputado do PSOL Jean Wyllys deu uma entrevista à jornalista Helena Bertho da Universa -UOL, tendo afirmado na ocasião que a falta de aprovação das leis a favor da população LGBTQIA+ revela um distanciamento do Congresso Nacional em relação à sociedade civil3. A afirmação, além de mostrar o descontentamento do ex-parlamentar, aponta para a omissão do Congresso diante da pauta LGBTQIA+, confirmada pelos dados sistematizados na presente pesquisa.

3. Contexto da judicialização das demandas pelo Grupo Matizes no Brasil

No Brasil, especificamente na segunda metade da década de 1970, a luta dos movimentos hoje denominados Movimentos LGBTQIA+ incidiu na criação do Movimento Homossexual Brasileiro - MHB. O MHB foi palco da primeira mobilização política dos sujeitos que se reconheciam como homossexuais (Facchini 2005). Naquela época, o Movimento abarcou as diferentes reivindicações dos grupos que, mesmo incompatíveis do ponto de vista ideológico, de classe, de gênero, cor e orientação sexual, se propuseram a lutar contra a ditadura civil militar que ocorreu no país entre os anos de 1964 e 1985 (Facchini 2005).

Já em 1988, o Brasil experenciou como marco histórico a publicação de uma nova Constituição Federal, a Constituição da República Federativa do Brasil, que se tornou conhecida como Constituição Cidadã, representando uma grande conquista na solidificação dos direitos fundamentais.

Na esteira desse período de conquista de direitos, no Piauí o movimento LGBTQIA+ passou a ganhar forma em 1988, ano da redemocratização do país. A literatura destaca dois grupos importantes que antecederam a criação do Grupo Matizes naquele período: o Grupo Free e o Grupo Babilônia (Morais 2007). Ambos deram uma contribuição decisiva para o desenvolvimento do movimento LGBTQIA+ no estado.

Na primeira metade dos anos 2000, o Brasil elegeu como presidente o ex-sindicalista Luís Inácio Lula da Silva (PT). Paralelamente, no Piauí, o também petista José Wellington Barroso de Araújo Dias assumiu no mesmo período o governo estadual. De fato, a chegada do PT ao poder - considerado um partido com uma inclinação mais “progressista” - trouxe alguns avanços para a população LGBTQIA+, conforme destacado pelos/as militantes entrevistados/as na pesquisa. Um exemplo exitoso desse período foi o Programa Brasil Sem Homofobia (BSH), em 2004. Contudo, os achados mostram que as ações não foram suficientes para que as demandas mais urgentes do movimento LGBTQIA+ fossem atendidas.

Foi nesse contexto de avanço no campo que o Grupo Matizes surgiu, em 2002, durante a era petista, caracterizado como um grupo misto, contando com a participação de militantes ligados/as ao movimento estudantil e sindical (Sousa, Gallas e Perez 2021).

A judicialização não é a principal prática do Movimento. Outras práticas incluem: a) seminários e atividades de formação; b) criação de material com conteúdo educativo; c) formação de agentes multiplicadores da cultura aos direitos humanos através de redes colaborativas; d) parceria com órgãos públicos e iniciativa privada; e e) atividades de advocacy. Inclusive, há no Movimento críticas e desconfianças em relação à judicialização. A título de exemplo, E2 pontuou que a princípio a judicialização não estava na composição das estratégias do Movimento.

Conforme E3, a escolha desta via só veio a ser uma possibilidade quando o Movimento percebeu que as demais estratégias adotadas não surtiam efeito. Para tanto, o Matizes contou com a colaboração de um advogado pro bono, que, em reunião com os/as militantes, explicava os prós e contras da estratégia em virtude do contexto. Após a reunião, decidiam quais as reivindicações que deveriam ser judicializadas do ponto de vista da lei. Os dados da pesquisa dialogam com a literatura ao mostrar que as motivações para a judicialização estão “relacionadas a cálculos que dependem da dinâmica política entre os atores relevantes em um dado momento” (Ribeiro e Arguelhes 2019).

Mesmo assim, o Movimento foi pioneiro na judicialização. A primeira demanda judicializada pelo Grupo Matizes está relacionada à vedação da doação de sangue por homens que fazem sexo com outros homens. De acordo com E2, a decisão por judicializar a referida demanda teve como influência as vivências de uma das militantes do Movimento, que era da área do direito. Já E4 acrescenta que buscar o Judiciário é também reafirmar o compromisso deste na resolução dos conflitos sociais. Além desse motivo, os/as entrevistados/as reforçaram que a judicialização era uma opção pelo fato de os direitos LGBTQIA+ serem negados historicamente. De fato, os dados da seção 2 apontam a falta de acolhida das demandas LGBTQIA+ pelo legislativo brasileiro na esfera nacional.

Durante a entrevista, os/as entrevistados/as relataram que, sabendo que o pleito da doação de sangue não seria nem mesmo colocado como pauta de trabalho, restava ao Matizes provocar o Judiciário. Após o primeiro passo dado pelo Movimento, em 2005, E4 menciona que o Ministério Público Federal (MPF) entrou com a Ação Civil Pública (ACP) n.º 2006.40.00. 001761-6 na Justiça Federal. Esta ACP requeria que a União Federal, o Estado e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) reconhecessem homossexuais e bissexuais como sujeitos aptos a doar sangue (Brasil 2006). Apesar dos esforços realizados pelo Grupo Matizes para derrubar a referida vedação, a ação ainda não se deu por encerrada. Atualmente, a ACP tramita na 6.ª Turma do Tribunal Regional Federal 1.ª Região.

A segunda demanda judicializada pelo Grupo Matizes tratou da inserção, na Declaração do Imposto de Renda, de cônjuge de contribuinte LGBTQIA+. Os documentos analisados mostram que, quatros anos depois da judicialização da vedação de doação de sangue por homens que fazem sexo com outros homens, em 2009, o Movimento entrou com uma representação no Ministério Público Federal (MPF/PI) contra a Receita Federal do Brasil (RFB). A representação ocasionou a Ação Civil Pública n.º 2009.40.00.001593-9, que solicitava pedido de liminar para que, ainda em 2009, contribuintes LGBTQIA+ pudessem declarar seus /suas parceiros/as como dependentes na Declaração do Imposto de Renda (Brasil 2009).

Como resultado do pleito, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional construiu o Parecer Normativo 1.503/2010. O parecer assentia a que casais homoafetivos em união estável pudessem inserir o/a parceiro/a na condição de dependente no Imposto de Renda. Na época, o então Ministro da Fazenda, Guido Mantega, ampliou a decisão para todo o país4. Assim, a demanda do Grupo Matizes foi adotada em todo o Brasil.

As duas ações civis públicas citadas mostram que os tribunais são parcialmente favoráveis às demandas LGBTQIA+ protocoladas pelo Grupo Matizes, embora o processo de doação de sangue por homossexuais e bissexuais ainda esteja em disputa e tramitando pelos tribunais. Ou seja, a judicialização, por enquanto, está sendo exitosa.

Ao fazermos uma análise comparativa entre as duas demandas judicializadas, pontuamos que ambas apresentaram processos e características similares. Entre elas, e conforme as entrevistas mostraram, podemos referir que: a) o Grupo Matizes seguiu um rito de trabalho operacional, onde foi discutida a possibilidade real de levar ao Judiciário as demandas relacionadas à vedação de sangue e a inserção de cônjuge LGBTQIA+ na Declaração do Imposto de Renda; b) foi consensual entre os/as militantes do Matizes judicializar tais demandas; c) processualmente as demandas seguiram o mesmo trâmite, obedecendo ao ciclo deliberativo entre o Movimento, elaboração de procedimento administrativo e avanço para Ação Civil Pública; d) as duas demandas foram acolhidas pelo Ministério Público Federal no Piauí; e e) a judicialização das demandas ganhou ampla repercussão, projetando o Grupo Matizes nacionalmente pelo uso da estratégia.

No caso do Grupo Matizes, conforme as entrevistas com militantes, a opção por judicializar uma demanda baseou-se na ineficácia de ações anteriores, assim como na falta de confiança do Movimento em relação ao Poder Legislativo, já que tinha havido anteriores diálogos infrutíferos. Ou seja, houve tentativas do Movimento de concretizar suas demandas por meio do diálogo com o legislativo. Eles apresentaram projetos que versavam sobre direitos LGBTQIA+ aos candidatos que pleiteavam uma vaga nos poderes Executivo Municipal e Legislativo Municipal, havendo expectativas de que estes assumissem uma posição em defesa das propostas. No entanto, essa estratégia não foi exitosa.

Os/as entrevistados/as relataram que, quando esgotadas as possibilidades de diálogo com membros dos Poderes Executivo e Legislativo, através de reuniões solicitadas pelo Movimento, restava levar as demandas ao Judiciário. Como afirmou E1, “as ações do Matizes que foram pleiteadas via Judiciário foram por omissão do legislador [...] omissão da legislação, do Parlamento que não cria leis para o direito de promoção da igualdade”.

As entrevistas também mostraram que tem sido consenso no Matizes buscar resolver as questões prioritárias do Movimento pela judicialização. Inclusive, a compreensão conceitual do grupo sobre a judicialização é clara, como pode ser visto no relato de E1, ao dizer que “[...] a judicialização foi construída para ampliar os dispositivos legais, para ampliar a política, para ampliar a democracia”, e E3, que afirma que a judicialização tem como cerne garantir direitos. Ou seja, apesar de conhecerem os argumentos contra a judicialização, consideram que essa é uma via eficaz dado a ineficácia do legislativo e do executivo brasileiro.

Parte da decisão do Movimento por judicializar suas demandas tem forte relação com as disputas presentes no debate público e no Congresso Nacional. Um claro exemplo disso são os movimentos da ofensiva antigênero somados aos movimentos religiosos reacionários, que frequentemente têm se posicionado a favor da manutenção das concepções tradicionais sobre gênero e sexualidade (Gonçalves 2019).

Logo, as demandas judicializadas pelo Movimento representaram uma possibilidade real de assegurar direitos e trazer visibilidade para as pautas LGBTQIA+. Apesar de não ser a única estratégia do trabalho, E1 citou que a judicialização passou a ser uma realidade para o Movimento, quando analisado o fato de que, na história do Legislativo, não havia projetos LGBTQIA+ aprovados. Além disso, E2 também afirmou que “a judicialização entra como uma estratégia política, que, para além de assegurar o direito, cria o fato político de visibilidade”. O depoimento do entrevistado ilustra os estudos que apontam que a judicialização promove maior visibilidade midiática quando cotejada com outra estratégia de trabalho (Leachman 2014).

Em suma, enquanto pautas LGBTQIA+ não são aprovadas no Poder Legislativo, a judicialização das demandas tem servido para tal fim. Nesse sentido, E3 declarou que “[...] os ganhos em judicialização foram talvez as grandes conquistas do Movimento do ponto de vista de encontrar na justiça, de encontrar na lei a legitimação das suas demandas históricas”.

Contribuindo então para o debate sobre os usos da judicialização - que, por um lado, é defendida como um avanço para a democracia e, por outro, é considerada uma prática de risco (Maciel e Koener 2002) - o caso do Grupo Matizes mostra como a estratégia é vista pelos movimentos sociais como uma oportunidade para que suas demandas sejam atendidas e os direitos sejam garantidos.

Em consonância com a literatura que baseou nossa hipótese, especificamente o trabalho de Tate e Vallinder (1995) sobre a judicialização, a pesquisa mostra que a inércia dos poderes legislativo e executivo contribui para que demandas LGBTQIA+ sejam resolvidas no Poder Judiciário.

Entre as razões que têm favorecido a elevação do Poder Judiciário na qualidade de ator político estatal, acentuam-se: a) a ineficiência das instituições majoritárias; b) a percepção negativa destas, ao mesmo tempo que se legitimam as instituições judiciais; e c) a delegação de poder das instituições majoritárias para as instituições judiciais (Araújo e Silva 2019, 67). Além disso, é intensa a posição política refratária aos direitos LGBTQIA+ exercida por grupos conservadores na arena legislativa federal (Cardinali 2018), o que tem implicado o aumento dos movimentos sociais que buscam o Poder Judiciário para que suas demandas sejam atendidas. Ao que parece, é uma tendência que as questões ligadas à população LGBTQIA+ continuem sendo decididas na Justiça.

Nesses termos, o Poder Judiciário passou a desempenhar uma posição política de relevo, sobretudo quando analisada “à luz das dificuldades de se gerarem acordos no âmbito do legislativo” (Aguião, Vianna e Gutterres 2014, 242). Afinal, parte das conquistas no campo dos direitos LGBTQIA+ tem vindo através de decisões do Judiciário e não das proposições que deveriam ser aprovadas no Congresso Nacional.

4. Considerações finais

Este artigo procurou compreender se há relação entre a atuação do Poder Legislativo e o uso da judicialização pelos movimentos sociais LGBTQIA+ por meio de um estudo das ações engendradas pelo Grupo Matizes. Para responder à pergunta de pesquisa, o trabalho examinou as proposições sobre direitos LGBTQIA+ que tramitaram no Congresso Nacional entre outubro de 1988 e novembro de 2021, bem como as demandas judicializadas pelo Movimento.

A nossa hipótese era que o uso da judicialização por um importante movimento social brasileiro tem relação com a não aprovação das demandas LGBTQIA+ pelo Poder Legislativo. Demonstramos isso por meio da sistematização das proposições LGBTQIA+ no Congresso Nacional. Os dados levantados nos repositórios on-line da Câmara dos Deputados e do Senado Federal mostram que o Poder Legislativo, em trinta e três anos, aprovou apenas dois projetos de lei direcionados à população LGBTQIA+. Neste cenário, mesmo com as recentes aprovações, não podemos dizer que o Poder Legislativo tem aprovado demandas LGBTQIA+, especialmente se considerarmos todo o período de pesquisa abrangido. Como consequência, as entrevistas mostraram que a inércia do Legislativo tem impulsionado a judicialização das demandas LGBTQIA+, que por esta via têm tido mais êxito.

Os resultados da pesquisa corroboram o que tem sido apresentado na literatura sobre a judicialização, na medida em que se confirmou o crescente protagonismo do Poder Judiciário na conquista dos direitos LGBTQIA+. A estratégia de levar ao Judiciário as demandas do Movimento incide diretamente na omissão do Poder Legislativo para aprovar tais demandas, o que se apresenta tanto a nível nacional, como local. Ou seja, buscar garantir direitos pela via da judicialização tem sido uma ação pontual e específica dos movimentos sociais, quando estes percebem que suas reivindicações estão longe de ser atendidas, fator que justifica a opção pela estratégia. As duas demandas judicializadas pelo Movimento não só permitiram assegurar direitos, como também trouxeram visibilidade aos direitos LGBTQIA+. Ademais, o Movimento tornou-se um dos precursores da estratégia de judicialização.

A pesquisa realizada inova ao trazer a perspectiva dos estudos sobre judicialização para a discussão sobre direitos reivindicados pelos movimentos sociais. Mostramos que a judicialização tem sido uma estratégia de sucesso de movimentos sociais, perante a falta de acolhimento das demandas por parte do Poder Legislativo. Inclusive, essa deve ser uma das tendências para a conquista e garantia de direitos no Brasil, considerando que têm ganhado projeção e visibilidade, tanto no Poder Legislativo quanto no Poder Executivo, grupos contrários à expansão de direitos para as chamadas minorias, incluindo a população LGBTQIA+, mulheres, indígenas e negros. Tendo isto em consideração, esse deve ser um campo de disputas ainda a ser explorado pela academia.

Por conta desse contexto, em pesquisas futuras, recomenda-se a investigação sobre as disputas no judiciário, considerando que ele já é e deve se ampliar como lugar de disputas no campo dos direitos. Além disso, seria importante investigar se a atuação do Poder Executivo também contribui para que movimentos sociais LGBTQIA+ façam uso da judicialização.

1LGBTQIA+ é a sigla para lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais e o mais, que serve para abranger a pluralidade de orientações sexuais e variações de gênero.

2Ver Guilherme Venaglia, “Projetos prioritários para população LGBT estão parados no Congresso.” Veja, 18 de junho de 2018. Disponível em https://veja.abril.com.br/blog/desvendados/projetos-prioritarios-para-populacao-lgbt-estao-parados-no-congresso/ [consultado em 04 de dezembro de 2021].

3Ver Helena Bertho, “Congresso Nacional nunca aprovou nenhuma lei voltada para direitos LGBT.“ Universa - UOL, 6 de junho de 2018. Disponível em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/06/06/congresso-nacional-nunca-aprovou-nenhuma-lei-voltada-para-direitos-lgbt.htm [consultado em 05 de dezembro de 2021].

4Ver Sofia Fernandes, “Casais gays poderão incluir companheiro no Imposto de Renda.” Folha de S. Paulo, 27 de julho de 2010. Disponível em https://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2010/07/774954-casais-gays-poderao-incluir-companheiro-no-imposto-de-renda.shtml [consultado em 04 de dezembro de 2021].

Referências bibliográficas

Aguião, Silvia, Adriana Vianna, e Anelise Gutterres. 2014. “Limites, espaços e estratégias de participação do movimento LGBT nas políticas governamentais.” Em Movimentos Sociais e Esfera Pública: o mundo da participação, organizado por José Sérgio Leite Lopes e Beatriz Heredia, 238-269. Rio de Janeiro: CBAE. [ Links ]

Arantes, Rogério. 2007. “Judiciário: entre a justiça e a política.” Em Sistema político brasileiro: uma introdução (2.ª ed.), organizado por Lúcia Avelar e Antônio Octávio Cintra, 81-115. São Paulo: Konrad Adenauer/UNESP. [ Links ]

Araújo, Aline Laura Toscano de, e Carlos Sérgio Gurgel da Silva. 2019.” Judicialização da Política: a nova postura do Poder Judiciário como efetivador de direitos fundamentais.” RJLB 6(5): 51-75. Disponível em https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2019/6/2019_06_0051_0075.pdf [consultado em 15 de março de 2022]. [ Links ]

Barboza, Estefânia Maria de Queiroz, e Katya Kozicki. 2012. “Judicialização da Política e Controle Judicial das Políticas Públicas.” Revista Direito GV 8(1): 59-86. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/23970/22728 [consultado em 22 de novembro de 2021]. [ Links ]

Barroso, Luís Roberto. 2013. “Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo.” Pensar 18(3): 864-939. [ Links ]

Brasil. 2006. Ação Civil Pública n.º 2006.40.00.001761-6. Ministério Público Federal. [ Links ]

Brasil. 2008. Anais da I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais - GLBT. Brasília: Presidência da República - Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Disponível em https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/IConferenciaNacionaldeGaysLesbicasBissexuaisTravestiseTransexuaisGLBT.pdf [consultado em 15 de novembro de 2021]. [ Links ]

Brasil. 2009. Ação Civil Pública n.º 2009.40.00.001593-9. Ministério Público Federal. [ Links ]

Cardinali, Daniel Carvalho. 2018. A judicialização dos direitos LGBT no STF: limites, possibilidades e consequências. 1.ª ed. Belo Horizonte: Arraes. [ Links ]

Carvalho, Ernani Rodrigues. 2004. “Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem.” Revista de Sociologia e Política 23: 115-126. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-44782004000200011Links ]

Castro, Marcus Faro. 1997. “O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política.” Revista Brasileira de Ciências Sociais 12(34): 147-156. [ Links ]

Coacci, Thiago. 2015. “Do homossexualismo à homoafetividade: discursos judiciais brasileiros sobre homossexualidades, 1989-2012.” Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana 21: 53-84. DOI: https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2015.21.05.aLinks ]

Facchini, Regina. 2005. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond. [ Links ]

Gomes, Gustavo da Costa Santos, Olívia Perez, e José Szawako. 2017. “’Gêneros da Participação’: refletindo sobre limites e possibilidades da participação social na promoção da equidade de gênero e da diversidade sexual em âmbito estatal.” Estudos de Sociologia 2(23): 19-74. Disponível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/revsocio/article/view/237054/29416 [consultado em 23 de novembro de 2021]. [ Links ]

Gonçalves, Alexandre Oviedo. 2019. “Religião, política e direitos sexuais: controvérsias públicas em torno da ‘cura gay’.” Religião e Sociedade 39(2): 175-199. DOI: https://doi.org/10.1590/0100-85872019v39n2cap07Links ]

Kalyvas, Andreas. 2002. “The Stateless Theory: Poulantzas’s Challenge to Postmodernism.” In Paradigm Lost: State Theory Reconsidered, organizado por Stanley Aronowitz, e Peter Bratsis, 105-142. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press. [ Links ]

Leachman, Gwendolyn. 2014. “From Protest to Perry: How Litigation Shaped the LGBT Movement’s Agenda.” University of California Davis Law Review 47: 1667-1751. Disponível em https://ssrn.com/abstract=2472077 [consultado em 02 de outubro de 2021]. [ Links ]

Maciel, Débora, e Andrei Koerner. 2002. “Sentidos da judicialização da política: duas análises.” Lua Nova 57: 113-133. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-64452002000200006Links ]

Morais, Soraia. 2007. “Grupo Free: uma ebulição clandestina.” Em Homossexualidades sem fronteiras: olhares sobre o Piauí, organizado por Francisco de Oliveira Barros Júnior, e Solimar Oliveira Lima, 139-148. Rio de Janeiro: Booklink. [ Links ]

Oliveira, Vanessa Elias de. 2019. Judicialização de políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. [ Links ]

Pogrebinschi, Thamy. 2011. Judicialização ou representação? Política, direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier. [ Links ]

Ribeiro, Leandro Molhano, e Diego Werneck Arguelhes. 2019. “Contextos da judicialização da política: novos elementos para um mapa teórico.” Revista Direito GV 15(2): 1-21. DOI: https://doi.org/10.1590/2317-6172201921Links ]

Rodrigues, Paulo Joaquim da Silva. 2015. “Os 20 anos do ‘The Global Expansion of Judicial Power’ e as diferentes teorias de Judicialização da Política no Brasil: continuidades e descontinuidades.” Ponto de Vista 2: 1-14. Disponível em http://neic.iesp.uerj.br/pontodevista/pdf/Ponto_de_Vista_Paulo_Rodrigues_N2_Agosto_2015.pdf [consultado em 12 de março de 2022]. [ Links ]

Santos, Lauane dos. 2020. Orgulho LGBTI+: conheça avanços e direitos conquistados nos últimos 50 anos de luta. Secretaria da Cidadania e Justiça do Tocantins. Disponível em: https://www.to.gov.br/cidadaniaejustica/noticias/orgulho-lgbtqi-conheca-avancos-e-direitos-conquistados-nos-ultimos-50-anos-de-luta/5edj4wa3bl98 [consultado em 11 de dezembro de 2021]. [ Links ]

Sousa, Libni Milhomem, Ana Kelma Gallas, e Olívia Cristina Perez. 2021. “A interseccionalidade em um movimento LGBTQI+ de Teresina (PI): trajetória do Grupo Matizes.” REBEH 14(4): 158-179. Disponível em https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/article/view/12100 [consultado em 10 de março de 2022]. [ Links ]

Tate, C. Neal, e Torbjon Vallinder. 1995. The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press. [ Links ]

Recebido: 07 de Janeiro de 2022; Aceito: 09 de Março de 2022

Libni Milhomem Sousa. Doutorando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professor do Instituto Federal do Piauí (IFPI), campus Campo Maior. Mestre em Ciência da Propriedade Intelectual pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Participante do Grupo de Pesquisa Democracia e Marcadores Sociais da Diferença.

Olívia Cristina Perez. Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Pós-doutorado em Ciencias Sociales, Niñez y Juventud (CINDE/CLACSO). Professora Adjunta na Universidade Federal do Piauí (UFPI), vinculada aos cursos de bacharelado e mestrado em Ciência Política e ao programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Políticas Públicas. Líder do Grupo de Pesquisa Democracia e Marcadores Sociais da Diferença.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.