1. Introdução
A desigualdade de género na investigação e inovação é uma preocupação no contexto da União Europeia (UE) e a sua eliminação está entre as principais prioridades da Área Europeia de Investigação. Apesar dos avanços registados nos últimos anos neste domínio, os esforços legislativos e políticos parecem não ter produzido, ainda, os resultados desejados. Nas instituições de ensino superior (IES), os progressos são lentos e difíceis e as desigualdades tendem a persistir, não só nas estruturas de governação, mas também em termos de segregação vertical e horizontal (European Commission 2019a, 2021; Cheung 2021). De acordo com o SHE Figures (European Commission 2021), em 2018, as mulheres constituíam somente 26,22% dos/as professores/as catedráticos/as (Grau A) na UE-28 e, na área de engenharia e tecnologia, representavam apenas 16,95% das pessoas com essa categoria profissional. Também a proporção de mulheres a dirigir IES tende a permanecer baixa - em 2019 era apenas 23,7% na UE-28 (European Commission 2021, 200). Além disso, em comparação com outros setores, a participação das mulheres em órgãos de tomada de decisão nas IES parece também estar aquém do desejado (European Commission 2019b). Diversos estudos têm salientado o modo como as IES e as carreiras são genderizadas (Ricoldi e Artes 2016). De entre os fatores que conduzem à segregação vertical destacam-se a hegemonia da cultura masculina, da performatividade, da quantificação e da divisão sexual do trabalho, salientando-se o modo como a adoção de políticas de gender mainstreaming são essenciais para promover processos de mudança institucional (Casaca e Lortie 2017; Pereira 2019; Murray e Mifsud 2019).
Para eliminar a desigualdade de género nas IES, a Comissão Europeia (CE) tem vindo a financiar projetos de investigação-ação que visam implementar planos para a igualdade de género (PIGe). Os PIGe são ferramentas de apoio à promoção da igualdade de género que procuram facilitar a implementação e operacionalização de iniciativas neste domínio. São desenhados à medida de cada instituição e têm em conta o seu contexto e as suas especificidades, de forma a espoletar mudanças estruturais e institucionais duradouras. Na UE, estes planos têm vindo a tornar-se dominantes nas IES, e mais especificamente nas universidades, constituindo um critério de elegibilidade para aceder aos fundos do Horizonte Europa (ERAC 2021). O equilíbrio de género na liderança e na tomada de decisão é uma das cinco áreas que a CE recomenda que os PIGe contemplem (idem).
Este artigo tem como objetivo principal apresentar e refletir criticamente sobre a estratégia adotada numa universidade (pública) portuguesa, no âmbito do projeto CHAlleNging Gender (In)Equality in Science and Research (CHANGE), para aumentar a proporção de mulheres em cargos de tomada de decisão, ao nível da gestão intermédia, no período 2018-2020. O CHANGE é um projeto europeu financiado pelo H2020 que visa a implementação de PIGe em IES. Pretende-se, desta forma, verificar se (e como) estes projetos podem contribuir para aumentar a representação feminina em cargos de tomada de decisão nas IES. Em particular, procura-se identificar e refletir sobre os principais fatores facilitadores dos processos de mudança institucional conducentes a ambientes de trabalho mais inclusivos e equitativos, nomeadamente no que respeita aos cargos e processos de tomada de decisão ao nível intermédio.
O artigo está estruturado da seguinte forma: a próxima secção (2) apresenta e discute as principais barreiras e alguns dos fatores facilitadores da dessegregação sexual vertical nos órgãos de tomada de decisão nas IES, e a secção seguinte (3) aborda algumas das principais medidas de ação positiva que podem ser adotadas. Na secção 4, dedicada aos métodos e dados da análise empírica, além de uma breve caraterização do projeto CHANGE (4.1), são apresentados os processos seguidos para aumentar a participação das mulheres nos cargos de tomada de decisão ao nível da gestão intermédia na instituição do estudo de caso (IEC) (4.2). Na secção 5 são apresentados e discutidos os resultados da análise e, por último (6), são apresentadas as principais conclusões do estudo.
2. Barreiras e fatores facilitadores da dessegregação vertical nas IES
Apesar de as mulheres representarem a maioria dos/as estudantes na generalidade dos países da UE, os fenómenos de segregação sexual horizontal e vertical persistem na maioria das IES (European Commission 2019a). Enquanto a segregação horizontal diz respeito às diferenças na distribuição de homens e mulheres pelas áreas de estudo no ensino superior (Eurydice 2010), a segregação vertical remete não só para a sub-representação das mulheres nos níveis educacionais mais elevados (Macarie e Moldovan 2015; O'Connor et al. 2015), mas também nas posições de topo da carreira académica e cargos de liderança (White, Carvalho e Riordan 2011; Carvalho, Özkanlı e Machado-Taylor 2012).
As causas da sub-representação feminina na ciência e nos cargos de tomada de decisão das IES, além de serem complexas e multifacetadas, podem, à semelhança do que sucede noutros domínios, decorrer de um conjunto alargado de fatores (Cubillo e Brown 2003; Paço e Casaca 2021). Diversos trabalhos e desenvolvimentos teóricos têm procurado clarificar as causas da persistência da segregação (Le Feuvre 1999; Maheshwari 2021) mas, dado o propósito desta investigação, cingir-nos-emos ao contexto específico das IES.
Maheshwari (2021), num trabalho recente, evidencia que as principais razões para explicar os obstáculos ou barreiras que as mulheres continuam a enfrentar na IES, em termos de segregação vertical, podem ser de dois tipos. O primeiro tipo remete para ‘fatores internos’, relacionados com estereótipos de género e com atitudes negativas em relação a algumas características geralmente mais associadas a mulheres líderes (e.g., simpatia, sensibilidade, gentileza); o segundo tipo refere-se a ‘fatores externos’ e engloba barreiras sociopolíticas (nível macro), institucionais (nível meso) e/ou individuais (nível micro) (Maheshwari 2021, 6).
Relativamente aos ‘fatores externos’, vários estudos têm procurado analisar a influência que o contexto cultural e sociopolítico (i.e., macro) exerce no envolvimento e participação das mulheres em processos e cargos que implicam tomada de decisão (Cubillo e Brown 2003; Diogo et al. 2021a; Maheshwari 2021). Desde logo, alguns estudos enfatizam a relevância dos estereótipos dominantes relativos à ocupação do espaço público e privado, bem como à divisão de tarefas domésticas. A persistente expectativa de que as tarefas domésticas sejam exercidas pelas mulheres acaba por colocá-las em situação de ‘desvantagem’ já que, quando sujeitas a uma dupla jornada de trabalho - que resulta da tentativa de conciliação das responsabilidades familiares com as profissionais -, as mulheres acabam por se afastar mais das posições de liderança (Morley 2014; Maheshwari 2021). Por outro lado, em estudos como o de Diogo e colegas (2021a), salienta-se a relevância do contexto nacional. As autoras analisam comparativamente três países (Portugal, Israel e Eslováquia) e concluem que os contextos nacionais podem ser mais ou menos favoráveis às iniciativas promotoras da igualdade de género nas IES, especialmente no que concerne à conceção e implementação de PIGe. No seguimento deste trabalho, e focando as resistências e desafios que as organizações que constituem o consórcio CHANGE enfrentaram aquando da conceção implementação dos PIGe, as autoras (Diogo et al. 2021b) referem que, embora existam diferenças sociais, culturais e institucionais importantes no consórcio, nomeadamente no que diz respeito à menor ou maior intensidade de estereótipos de género presentes nas organizações, as resistências e desafios que surgem durante os processos de mudança são bastante transversais aos diferentes contextos nacionais e organizacionais.
Culturas de liderança fortemente masculinizadas nas IES, assim como estruturas, normas e rotinas institucionais percecionadas (pelas mulheres) como penalizadoras em termos de progressão na carreira, constituem importantes barreiras à participação feminina nos cargos de poder a nível institucional (meso) (Maheshwari 2021). O envolvimento das mulheres em posições de liderança tende a diminuir quando o poder está concentrado nas mãos de homens e a cultura organizacional é por eles dominada. Culturas marcadas por longas jornadas de trabalho e/ou a falta de medidas institucionais de apoio à parentalidade, por exemplo (bem como a perceção de discriminação nos processos de seleção e promoção), são também alguns dos desafios com que as mulheres se deparam nas IES e que são suscetíveis de continuar a limitar o seu envolvimento e participação em posições de liderança (Morley 2014; Jordão, Carvalho e Diogo 2021; Maheshwari 2021).
De acordo com Maheshwari (2021), também os fatores internos, de índole mais individual (micro), podem condicionar o acesso das mulheres a cargos de liderança e de gestão nas IES. Os fatores internos incluem, por exemplo, “a falta de confiança, o medo do fracasso e a deceção com o ambiente de trabalho, bem como a pressão de colegas e da família” (Maheshwari 2021, 7)1. Influenciados pelas perspetivas macro e meso, estes fatores internos podem decorrer, nomeadamente, da pressão exercida sobre as mulheres para que estas cumpram os papéis e normas de género - o que acarreta limitações em termos de tempo -, mas também de mecanismos e práticas institucionais discriminatórias que, de forma mais ou menos explicita, acabam por ‘favorecer’ os homens (White 2003; Morley 2014; Maheshwari 2021).
As barreiras que as mulheres enfrentam na academia e que ajudam a explicar a sua sub-representação em cargos de liderança podem ser visíveis e/ou invisíveis (Regulska 2021). Enquanto as primeiras - facilmente observáveis e identificáveis - incluem, por exemplo, a segregação ocupacional, as segundas - que apresentam um carácter mais subtil e são mais difíceis de identificar - tendem a estar profundamente enraizadas nas práticas quotidianas e na cultura organizacional, pelo que o seu reconhecimento e consequente erradicação se torna mais difícil (Regulska 2021). As barreiras invisíveis relacionam-se não só com os persistentes papéis e normas de género que determinam a divisão do trabalho doméstico e familiar, mas abarcam também um conjunto de ‘micro-desigualdades’ (Aiston e Fo 2021; Diogo et al. 2021b) que, na esfera profissional, acabam por se traduzir no “silêncio/silenciamento das mulheres académicas” (Aiston e Fo 2021). Neste contexto, importa salientar as ‘desigualdades subtis’ enraizadas nas dinâmicas próprias do setor e presentes não só nas práticas de alocação de trabalho dentro das universidades - as quais, muitas vezes condicionadas por expectativas baseadas em normas e estereótipos de género, tendem a ser penalizadoras para as mulheres (Barrett e Barrett 2011; Aiston e Fo 2021) - mas também nas práticas institucionais de recrutamento e seleção (Husu 2000; Diogo et al. 2020); ou ainda naquilo que Husu (2013) designa de não-eventos e que incluem, entre outros aspetos, não convidar as mulheres para redes formais e/ou informais importantes, não citar trabalhos relevantes que tenham realizado ou não as convidar para oradoras principais em eventos científicos (Husu 2013). No campo da ciência, os não-eventos constituem “uma maneira eficaz de subtilmente desencorajar, marginalizar ou excluir as mulheres”2 (Husu 2013, 38).
Em contrapartida, alguns estudos têm procurado identificar fatores facilitadores da dessegregação nas IES e explorar o seu potencial para ajudar as mulheres a progredir nas suas carreiras (Carvalho et al. 2013; Morley 2014; Carvalho e Machado-Taylor 2017; Mate et al. 2019). De acordo com os resultados do estudo conduzido por Maheshwari (2021), é possível identificar três fatores principais que podem levar as mulheres a assumir papéis de liderança nas IES: fatores pessoais, relacionados com a sua autoeficácia; apoio familiar, sobretudo do cônjuge e de outros familiares; e social modelling, relacionado com a existência de role models e programas de mentoria. Também o apoio institucional parece ter um papel facilitador importante em alguns contextos, operando por via de mudanças na cultura, nas normas e políticas organizacionais (Airini et al. 2011, apudMaheshwari 2021). Este é, contudo, um tema pouco explorado e sobre o qual é necessário desenvolver mais estudos (Maheshwari 2021).
3. Medidas de ação positiva nas instituições de ensino superior: entre as quotas baseadas no sexo e os planos para a igualdade de género
As medidas de ação positiva para promover a igualdade de género em órgãos de tomada de decisão podem assumir diversas formas. Uma das mais populares são as quotas baseadas no sexo que, não obstante o seu carácter controverso (Santos e Amâncio 2010), são um método facilitador da promoção do equilíbrio entre mulheres e homens nos lugares de decisão das organizações. Enquanto forma de ação positiva (AP), elas têm sido implementadas com algum sucesso em vários países, quer no setor público quer no setor privado (Higher Education Authority 2018; Wroblewski e Striedinger 2018). Na Áustria, por exemplo, a percentagem de mulheres nos órgãos e comissões de gestão e decisão universitária tem aumentado continuamente desde que, em 2010, foi introduzido um regulamento de quotas (Wroblewski e Striedinger 2018). No entanto, a opinião negativa que geralmente acompanha este tipo de quotas pode contrariar o efeito de mudança organizacional e cultural que se pretende nas IES e, frequentemente, são usadas outras medidas de ação positiva, de carácter mais soft (Santos e Amâncio 2010). Já no Brasil, o estudo de Corcetti e Petinelli-Souza (2021) refere que estas medidas têm em conta a perspetiva de raça/etnia combinada com a dimensão de género, com o objetivo de contribuir para a inclusão racial nas IES brasileiras, tornando-se um meio relevante para reverter a exclusão de indivíduos do ensino superior.
Em Portugal, não obstante a igualdade entre mulheres e homens estar há largos anos consagrada na lei, a tendência tem sido para a promover como princípio geral na legislação, evitando a utilização de ações positivas explícitas. Há, no entanto, algumas exceções para as quais vale a pena chamar a atenção: a Lei Orgânica n.º 3/2006, de 21 de agosto, que determina a paridade entre mulheres e homens nas listas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais; a Lei n.º 62/2017 de 1 de agosto, que estabelece que todas as empresas do sector público e as empresas cotadas em bolsa tenham pelo menos um terço (33,3%) de mulheres nos seus órgãos administrativos e de fiscalização; e, mais recentemente, a Lei n.º 26/2019 de 28 de março que institui um limiar mínimo de representação equilibrada entre homens e mulheres para o pessoal dirigente e para os órgãos da Administração Pública. Esta última lei estabelece, em relação às IES e às suas unidades orgânicas (UO), que a proporção de pessoas de cada sexo não pode ser inferior a 40% nas listas apresentadas para a eleição de membros dos órgãos colegiais de governo e de gestão (este limiar aplica-se também relativamente à composição dos conselhos de curadores das IES públicas de natureza fundacional) (artigo 6.º).
No entanto, as políticas e práticas baseadas em AP estão ainda muito ausentes nas IES, nomeadamente no que concerne aos cargos de gestão intermédia, relativamente aos quais não existem medidas legislativas vinculativas no sistema de ensino superior português (Carvalho, White e Machado-Taylor 2013). Apesar de o número de mulheres e de homens em início da carreira ser idêntico em Portugal, de o país ser um dos membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com um maior número de mulheres nas áreas da ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) e de ser o Estado-membro da UE que possui o menor desfasamento nas publicações de homens e mulheres na investigação (Analytical Services 2020), as mulheres estão ainda sub-representadas em posições de topo na carreira e em cargos de decisão e liderança nas IES (European Commission 2019a; Diogo et al. 2020). Ao mesmo tempo, o discurso sobre a igualdade entre mulheres e homens nas IES portuguesas tende a ser subvalorizado e, não raras vezes, encarado como uma ameaça à cultura de excelência da meritocracia. As IES, e em particular as universidades, tendem a ser vistas como um ‘campo organizacional neutro’, fundado de acordo com os princípios do mérito universal e da equidade (White, Carvalho e Riordan 2011; Carvalho, Özkanlı e Machado-Taylor 2012), e as intervenções em prol da igualdade de género podem, inclusive, ser consideradas injustas, por supostamente romperem com os valores meritocráticos (Carvalho e Machado-Taylor 2010). Só recentemente, e principalmente como resultado do apoio financeiro da CE à investigação, algumas IES começaram a conceber e a implementar planos que permitem desenvolver iniciativas/ações integradas para promoção da igualdade de género, incluindo o combate à desigualdade de género nos cargos de gestão intermédia. A primeira universidade em Portugal a estabelecer oficialmente um PIGe foi a Universidade da Beira Interior, em 2011.
Os PIGe visam identificar desigualdades e preconceitos de género, conceber e implementar medidas de correção e estabelecer metas e monitorizar os progressos (EIGE 2016). São, por conseguinte, ferramentas de promoção da igualdade de género que facilitam a autoavaliação das instituições e suportam os processos de mudança institucional. Têm sido patrocinados pela UE essencialmente através dos seus programas de apoio à investigação e inovação (PQ6, PQ7, Horizonte 2020) e tornaram-se um dos principais instrumentos promotores de mudança institucional nas IES, constituindo, no âmbito do Horizonte Europa, um novo critério de elegibilidade para acesso aos fundos comunitários (ERAC 2021). Os PIGe podem abarcar um conjunto alargado de iniciativas destinadas a corrigir, entre outros aspetos, os desequilíbrios de género nos cargos de topo na gestão das IES e/ou que implicam tomada de decisão.
Alguns estudos têm vindo a evidenciar uma fraca taxa de sucesso dos projetos centrados na promoção da igualdade de género (Eriksson-Zetterquist e Renemark 2016), mas o impacte efetivo de medidas como os PIGe não está ainda totalmente apurado. Trata-se de uma área complexa onde a resistência e a dificuldade em incorporar os princípios de igualdade de género nas estruturas das organizações - de forma a que se traduzam em ações e práticas quotidianas - permanecem um desafio (Callerstig 2014; Erikson-Zetterquist e Renemark 2016; Diogo et al. 2021b). Neste sentido, é importante desencadear processos de mudança institucional que conduzam à integração de uma perspetiva de igualdade de género nas organizações de forma sustentada, sistemática, e que envolvam as dimensões formal e informal (Eriksson-Zetterquist e Renemark 2016; Paço e Casaca 2021).
4. Métodos e dados
Para alcançar os propósitos desta investigação, recorre-se ao estudo de caso de um projeto europeu de investigação-ação, financiado pela CE, que visa a implementação de um PIGe numa universidade portuguesa, no período 2018-2022 - o projeto CHANGE. Assim, depois de uma breve caracterização deste projeto, mobilizam-se para discussão alguns dados estatísticos e analisam-se as principais etapas seguidas na IEC com o intuito de melhorar a representatividade das mulheres nos cargos de gestão intermédia. A partir da análise de conteúdo de entrevistas realizadas a atores institucionais chave, identificam-se ainda as principais razões que contribuíram para os resultados obtidos.
4.1 Projeto CHANGE: breve caracterização
Apoiado pela CE ao abrigo do programa de financiamento Horizonte 2020, o projeto CHANGE visa criar e implementar PIGe personalizados em organizações produtoras de investigação. Inspirado nos resultados e experiências de projetos europeus anteriores com objetivos semelhantes, o CHANGE procura estimular e acelerar a mudança institucional através da promoção de ambientes de trabalho igualitários em termos de género.
A abordagem metodológica do CHANGE é baseada numa versão condensada do modelo de Kotter3 sobre como efetuar uma mudança estrutural nas organizações, para uma ciência e investigação mais inclusivas em termos de género (Dahmen-Adkins, Karner e Thaler 2019). O processo de mudança institucional subjacente ao projeto CHANGE compreende as seguintes fases: 1) avaliação comparativa e sensibilização institucional para as questões de género; 2) feedback e planeamento; 3) ação rápida; 4) ação estratégica; 5) sustentabilidade e transferência de conhecimento.
A ideia do projeto surgiu do reconhecimento da existência de uma lacuna entre as recomendações dos projetos de promoção da igualdade de “género em ciência e investigação” e a sua implementação real, devido à falta de estratégias de ação (Eriksson-Zetterquist e Renemark 2016; Dahmen-Adkins et al. 2019). O CHANGE visa superar essa lacuna e, para isso, combina os conhecimentos científicos existentes sobre igualdade de género com as necessidades das partes interessadas, envolvendo ‘agentes de transferência de conhecimento’ (AT) na implementação de ações (Thaler 2016; Dahmen-Adkins et al. 2019). Os AT são atores-chave em cargos de poder, envolvidos e comprometidos com a igualdade de género na ciência e investigação e que apoiam a implementação dos PIGe nas organizações a que pertencem. Pretende-se, desse modo, assegurar a promoção e a institucionalização sustentável dos PIGe, para além dos quatro anos de duração do projeto. O consórcio do CHANGE é composto por sete instituições de seis países, sendo um deles Portugal.
De acordo com o SHE Figures (European Commission 2021), em matéria de igualdade de género na academia e na investigação, Portugal apresenta resultados que são melhores (ou muito próximos) do que a média da UE em vários indicadores - como, por exemplo, a percentagem de mulheres entre pessoas doutoradas, o rácio de autoria de mulheres ou a taxa de sucesso do financiamento a investigação atribuído a mulheres. No entanto, os desafios em matéria de des/igualdade persistem no país, sendo particularmente evidentes nos desequilíbrios em cargos de poder e decisão.
Em Portugal, o CHANGE decorreu na primeira universidade pública portuguesa a ser liderada por uma mulher. Nesta IEC - não obstante a sua elevada taxa de feminização atual, quer na carreira académica quer na de investigação (42% e 47%, respetivamente, em 2018) - as assimetrias e a desigualdade de género subsistem, nomeadamente nos órgãos e processos de tomada de decisão. Os trabalhos conduzidos no âmbito do projeto CHANGE para fomentar a mudança institucional na IEC e, consequentemente, desenvolver e aí implementar um PIGe, inspiraram-se na abordagem metodológica geral do projeto e nas especificidades que o caracterizam, sobretudo no que concerne ao papel dos AT na implementação de ações.
4.2 Ações para aumentar a participação das mulheres em órgãos de tomada de decisão ao nível intermédio
Na IEC, o problema da sub-representação feminina nos cargos de gestão intermédia foi identificado logo na fase de diagnóstico do projeto CHANGE (fase 1), em 2018, com base numa análise quantitativa da composição por sexo dos órgãos de gestão. A IEC é composta por 20 Unidades Orgânicas (UO) e cada uma delas é gerida por um/a diretor/a. Em 2018, entre as 20 pessoas que lideravam as UO da instituição, apenas uma era do sexo feminino, o que significa que as mulheres representavam somente 5% das pessoas nestes cargos de gestão intermédia (tabela 1).
Órgãos de gestão | Homens | Mulheres | Total |
---|---|---|---|
Direção de Unidades Orgânicas | 19 (95%) | 1 (5%) | 20 |
Comissão Executiva | 50 (64,1%) | 28 (35,9%) | 78 |
Coordenação de Unidades de Investigação | 13 (68,4%) | 6 (31,6%) | 19 |
Assim, uma das conclusões do diagnóstico apontava para a necessidade de aumentar a representatividade das mulheres nos cargos de direção das UO (Carvalho, Breda e Diogo 2018). Verificou-se ainda que o acesso a estes cargos de gestão intermédia ocorre através de um processo formal de seleção, baseado na apresentação de autopropostas dos/as candidatos/as, a que se segue a escolha por parte de um Comité constituído pelo Reitor e quatro outros elementos: dois escolhidos pelo Reitor e dois escolhidos pelo conselho geral do departamento (Carvalho, Breda e Diogo 2018).
Os resultados do diagnóstico foram apresentados e discutidos com a equipa de AT, que foi simultaneamente instigada a ser mais proactiva no aumento da representatividade das mulheres nos cargos de gestão intermédia nas eleições seguintes. Desta forma, sem alterar os regulamentos, procurou-se estabelecer contactos e desenvolver ações informais com o objetivo de facilitar a identificação de mulheres com competências para desempenhar esses cargos e de fomentar o seu empoderamento pessoal, incentivando-as a candidatarem-se (fase 2).
Ao mesmo tempo, a equipa do projeto CHANGE desenhou e implementou várias ações rápidas e estratégicas que visaram sensibilizar a equipa de AT e a comunidade académica para a temática da des/igualdade de género, reforçando o seu envolvimento e compromisso neste domínio (fases 3 e 4). Além de estimular o envolvimento do pessoal docente e de investigação nas ações de sensibilização para a igualdade de género, procurou-se mobilizar a direção de cada UO, bem como a coordenação das várias unidades de investigação da IEC. A dinamização das ações quer da equipa do projeto, quer dos AT - tanto de cariz formal, como informal - ambicionava trazer a problemática da desigualdade de género para dentro da IEC, colocando-a na agenda institucional e tornando-a mais visível. Em concreto, além de várias reuniões e conversas com membros da IEC, em contextos formais e informais, a equipa do CHANGE organizou um workshop sobre estereótipos de género e diversidade, desenhado especificamente para académicos/as com responsabilidades de gestão e coordenadores/as de unidades de investigação. Esta iniciativa foi desenvolvida com o apoio ativo da equipa reitoral, especialmente no que concerne à sua divulgação junto do público-alvo e da comunidade académica. Foram ainda desenvolvidas brown bag sessions - reuniões periódicas com um carácter informal destinadas a divulgar o projeto e a debater os seus resultados -, foi criada e divulgada uma newsletter onde, entre outros aspetos, se destacava a equipa do projeto (investigadores/as e AT) e, numa base informal, foram mantidos diversos contactos e parcerias com grupos internos chave da IEC.
Na IEC, dois ATs estiveram envolvidos no projeto CHANGE deste o seu início: o Reitor e uma Vice-Reitora. Procurou-se, com o envolvimento destes atores-chave, facilitar a aceitação institucional dos objetivos do CHANGE e a identificação precoce de outros/as potenciais apoiantes e aliados/as. Os AT deram a conhecer o projeto a outros membros da comunidade académica e a temática da igualdade de género foi incluída no programa eleitoral do Reitor, em 2018. Além disso, vários atores chave foram convidados a integrar um grupo de acompanhamento e monitorização do projeto CHANGE (o Sounding Board) criado em 2018. De forma complementar, em diferentes momentos do projeto, foram convidados para participar em entrevistas alguns atores organizacionais importantes, com o intuito de discutir e procurar soluções que permitissem ultrapassar possíveis obstáculos/barreiras à implementação do PIGe. Os esforços desenvolvidos e as ações conduzidas no âmbito do projeto visaram, no essencial, estimular o envolvimento de pessoas chave, aumentando a sua consciencialização e comprometimento com a temática do género. Desta forma, além de tentar reduzir a resistência pessoal e institucional à adoção e implementação do PIGe na IEC, procurou-se, simultaneamente, sensibilizar para a necessidade de criar um ambiente de trabalho mais equitativo do ponto de vista do género, nomeadamente através do aumento da representatividade das mulheres em cargos de decisão intermédia.
5. Resultados e discussão
No final de 2019 - cerca de um ano após o início da implementação do CHANGE - os dados já mostravam melhorias significativas, com um aumento do número de mulheres em cargos de gestão intermédia. A proporção de mulheres como diretoras de UO passou de 5% para 20% (Carvalho et al. 2020). No final de 2020, o número de mulheres nestes cargos mantinha-se nos 20% e, embora permaneçam em minoria, os progressos são notáveis, especialmente se se considerar que estas melhorias ocorreram sem alterar o quadro regulamentar da instituição. Também o número de TA aumentou, com mais um Vice-Reitor da IEC a juntar-se à equipa.
A mudança institucional e os avanços em matéria de igualdade de género são questões complexas que decorrem geralmente da conjugação de vários fatores. Assim, para averiguar o contributo do projeto CHANGE para os resultados obtidos e para melhorar o conhecimento disponível nesta área, procurou-se identificar as razões que estiveram na origem dos avanços registados através da análise de conteúdo de entrevistas semiestruturadas, realizadas a diretores/as de UO da IEC (departamentos e unidades de investigação), entre julho e novembro de 2019. Foram entrevistadas presencialmente 65% das pessoas nesses cargos (das quais 23% eram mulheres e 77% eram homens).
A análise das entrevistas evidencia que a desigualdade de género não era encarada como um problema na IEC (Jordão et al. 2020) mas, embora os/as entrevistados/as considerassem que não existia desigualdade nas UO a que estavam afetos/as, reconheciam a existência de desequilíbrios de género nos seus órgãos de gestão. Vários fatores, em conjunto, podem ajudar a explicar o recente aumento das mulheres nos cargos de gestão intermédia na IEC, de acordo com as pessoas entrevistadas (Jordão et al. 2020):
Uma crescente consciencialização sobre igualdade de género, fomentada por fatores externos à organização e por conversas e contactos informais dentro da IEC.
A sensibilidade de algumas das pessoas entrevistadas para as temáticas da diversidade e da igualdade de género - entre outros aspetos, houve entrevistados/as a mencionar que já tinham, a título pessoal, abordado e procurado encorajar colegas do sexo feminino a candidatarem-se a lugares de gestão intermédia.
O surgimento de novas dinâmicas favoráveis à promoção da igualdade de género (impulsionadas pelo projeto CHANGE), sobretudo em ambientes pautados pela informalidade - os/as entrevistados/as reconheciam que a ideia de incentivar as mulheres a candidatarem-se a posições que implicavam a tomada de decisão, por exemplo, surgiu e desenvolveu-se na IEC a partir de ‘conversas informais’ e/ou ‘conversas de corredor’, evidenciando assim a relevância das estruturas informais na criação de culturas institucionais mais igualitárias (Eriksson-Zetterquist e Renemark 2016). Esse encorajamento tende a ser percecionado pelas pessoas entrevistadas como um dos fatores essenciais para corrigir os desequilíbrios de género existentes nos órgãos de gestão intermédia.
Cingindo a análise ao ponto de vista das entrevistadas, há ainda a acrescentar que o apoio e o suporte familiar constituem também um fator importante que impacta nas carreiras e influencia a participação e envolvimento das mulheres em cargos de gestão - em linha com as principais conclusões de Cubillo e Brown (2003). A este propósito, uma das entrevistadas referia o seguinte: “eu só consegui chegar ao cargo de direção […] porque tive um marido em casa que sempre me apoiou e estimulou” (entrevistada 1). Ao mesmo tempo, no ambiente profissional, o encorajamento e o incentivo por parte de outras mulheres, sobretudo em cargos de nível hierárquico superior, parecem também ser relevantes. Uma das entrevistadas, refletindo sobre a sua experiência na academia, partilhou que: “[u]ma das pessoas que mais me encorajou a fazer a agregação e que sempre que eu ia reunir com ela, por outros assuntos, me entusiasmava, me pressionava, foi a […] na altura Vice-Reitora” (entrevistada 1). Este exemplo evidencia que, também nesta IEC, os role models são importantes para incentivar e encorajar as mulheres a participar nos processos e órgãos de tomada de decisão. Outra das entrevistadas mencionava que “os homens não têm de se estar sempre a provar” (entrevistada 2), remetendo para a ideia de que o esforço individual que é exigido às mulheres tende a ser superior àquele que é normalmente exigido aos homens.
Em termos gerais, a implementação do projeto CHANGE e a perceção do envolvimento da equipa reitoral na questão da igualdade de género parecem igualmente ser aspetos relevantes na ótica dos/as entrevistados/as. A introdução desta temática no programa eleitoral do Reitor, o envolvimento dos AT no projeto CHANGE e/ou o uso de linguagem sensível ao género em algumas das comunicações enviadas a partir do gabinete do Reitor foram aspetos explicitamente mencionados pelos/as entrevistados/as - o que, em nosso entender, evidencia a importância de projetos como o CHANGE, e também o papel dos AT enquanto agentes catalisadores da mudança nas práticas institucionais relacionadas com a promoção da igualdade de género (tal como sugerem estudos anteriores - Thaler 2016; Thaler et al. 2017). De salientar que o aumento da consciencialização e da sensibilização para a temática do género, bem como o surgimento de dinâmicas informais em prol da igualdade de género de que os/as entrevistados/as deram conta, resultaram, em larga medida, dos esforços empreendidos nas várias fases do projeto CHANGE.
Perante o exposto, pode afirmar-se que o aumento da representatividade das mulheres nos cargos de decisão intermédia na IEC decorre, pelo menos parcialmente, das ações formais e informais desenvolvidas no âmbito do projeto CHANGE. O recurso a uma abordagem metodológica de mudança institucional inspirada no modelo de Kotter, em concomitância com o envolvimento de atores chave institucionais (como os AT e outros stakeholders com cargos de poder), contribuiu para aumentar a representatividade das mulheres nestes cargos, num curto espaço de tempo e sem necessidade de proceder a alterações no quadro regulamentar da IEC.
De qualquer forma, apesar dos bons resultados alcançados na IEC e de se ter atingido aquilo que alguns estudos designam como ‘massa crítica’ de mulheres - que implica a existência de, no mínimo, três mulheres nos cargos de direção para que as suas ideias e vozes sejam ouvidas e para mudar as dinâmicas instituídas (Konrad, Kramer e Erkut 2008) - importa relembrar que, mesmo quando este número é alcançado, “a representação das mulheres no topo é frágil e requer uma ação positiva persistente” (Burkinshaw 2015, 5)4. Além disso, o aumento do número de mulheres não constitui o fim último das medidas de igualdade de género e, por si só, pode não ser suficientemente transformativo (Morley 2014). Assim, e à luz da abordagem patriarcal (Le Feuvre 1999), importa questionar o potencial de transformação destas mudanças nas estruturas de poder dominantes e procurar aferir a sua sustentabilidade, uma vez que, em grande parte, elas foram alimentadas por redes informais das quais as mulheres ainda tendem a estar ausentes, dado o número reduzido de mulheres em cargos de poder e de decisão intermédia na IEC até 2019. Estas são questões que merecem reflexão mais profunda em investigações futuras.
6. Conclusão
Nas IES da UE as mulheres continuam sub-representadas nos cargos de liderança e de tomada de decisão (European Commission 2019a, 2021). Não obstante o apoio da CE, nomeadamente através do financiamento de projetos que visam implementar PIGe, os progressos em matéria de igualdade de género têm-se revelado lentos, difíceis e complexos. Este estudo apresentou e procurou refletir sobre as ações desenvolvidas numa universidade portuguesa, no âmbito de um projeto de investigação-ação financiado pelo H2020 que visa a implementação de um PIGe, para aumentar a presença de mulheres em órgãos de gestão intermédia. No período 2018-2020, a taxa de representação feminina nesses órgãos passou de 5% para 20%. Com base na análise de entrevistas realizadas a diretores/as de UO, foi possível identificar vários fatores que contribuíram para os resultados alcançados e concluir que o projeto CHANGE teve um papel preponderante nesses resultados. As ações adotadas, baseadas numa abordagem metodológica de mudança institucional que assumia o envolvimento de atores chave institucionais desde o início do CHANGE e o desenvolvimento de ações formais e informais, permitiram aumentar a representação feminina nos cargos de gestão intermédia na IEC, num curto espaço de tempo e sem necessidade de efetuar alterações nos seus regulamentos internos.
Este estudo não permite apurar o potencial de transformação das mudanças ocorridas nas estruturas de poder dominantes nem a sustentabilidade e/ou o impacte dos resultados alcançados. Além disso, ao focar apenas a representatividade das mulheres nos cargos de gestão intermédia, também não aborda as mudanças espoletadas noutros cargos/posições da IEC. Estas são, em nosso entender, algumas das limitações desta investigação, as quais pretendemos ultrapassar em trabalhos futuros. Ainda assim, os resultados evidenciam que, em matéria de igualdade de género, os projetos que visam a implementação de PIGe nas universidades têm potencial para aumentar a representatividade das mulheres nos cargos e órgãos de decisão das IES, estimulando, por via da combinação de mecanismos formais e informais, práticas quotidianas transformadoras mais inclusivas e igualitárias.