1. Introdução
O assédio sexual enquadra-se num continuum de violência de género que, através da sexualização e objetificação, controlo e vigilância dos seus corpos, limita e condiciona as mulheres no acesso, participação e exercício de direitos na esfera pública (rua, contextos laborais e outros espaços públicos e sociais) (Magalhães 2011; Sottomayor 2015; Simões e Silveirinha 2019). Contribui também para processos de socialização de género que normalizam e contribuem para a (re)produção de violência contra as mulheres (Magalhães 2011; Magalhães et al. 2019).
Em Portugal, no seguimento da Convenção de Istambul1, a 38.ª alteração ao código penal introduziu na Lei n.º 83/2015 o artigo 170º, que definiu a importunação sexual como um crime contra a liberdade sexual. Apesar da importância deste artigo, a sua formulação foi demasiado restritiva, excluindo um amplo espetro de situações mais subtis, menos explícitas e normalizadas (e.g. “piropo”) que afetam as mulheres em espaço público (Simões & Silveirinha 2019). Adicionalmente, à falta de informação sobre o conteúdo e aplicabilidade deste artigo por parte dos dispositivos da segurança e da justiça, junta-se a adesão a normas hegemónicas de género que tendem a desvalorizar o assédio sexual e a desqualificar as suas vítimas, obstaculizando o acolhimento das denúncias e o processamento judicial das mesmas (Ribeiro 2021). Por esse motivo, continua a ser necessário implementar dispositivos de controlo formal e informal capazes de combater o assédio sexual a apoiar as suas vítimas.
Nos últimos anos, algumas organizações (e.g., UMAR, APAV) e projetos de investigação têm procurado analisar a prevalência e expressão de assédio sexual em espaços públicos e contextos sociais (e.g. contexto escolar e universitário) e implementado iniciativas de sensibilização e intervenção comunitária para o combater (e.g., Magalhães et al. 2019). Este artigo pretende oferecer um contributo ao campo de estudos e conhecimento sobre intervenções na área do assédio sexual em Portugal. Os resultados do projeto Sexism Free Night (SFN), referentes à observação de assédio sexual em ambientes de lazer noturno, serão apresentados para ilustrar a forma como estes comportamentos se expressam nesses contextos. Serão também apresentados alguns resultados do processo de capacitação e criação de uma certificação específica a atribuir a estabelecimentos investidos na criação de um lazer noturno mais seguro e igualitário.
2. Assédio sexual e abordagens de intervenção em ambientes de lazer noturno
Nas culturas ocidentais pós-modernas, a noite, enquanto espaço-tempo de lazer e consumo, foi democratizada e “sair à noite” tornou-se uma prática social amplamente valorizada nos estilos de vida urbanos. Este processo fez-se acompanhar da feminização dos ambientes de lazer noturno (ALN) enquanto palcos públicos para a mulher experimentar e expressar novas feminilidades e transcender as suas opressões de género (Bóia, Ferro e Lopes 2015; Rodrigues 2016). No entanto, os ALN reproduzem as desigualdades que encontramos na sociedade em geral, incluindo o assédio e violência sexual (Mellgren, Andersson e Ivert 2018; Pires et al. 2018; Quigg et al. 2020; Tutunges, Sandberg e Pedersen 2020; Vaadal 2020), que tendem a agravar-se pelo uso de práticas sexistas e pela cristalização das relações entre géneros (Rodrigues 2016). A sexualização da participação das mulheres em alguns ALN reforça processos de socialização de género sexistas que contribuem para normalização e generalização do assédio sexual enquanto interação sexualizada aceitável e expectável (Graham et al. 2017; Observatorio Noctambul@s 2017; Pires et al. 2018; Anitha et al. 2021). Por esse motivo, à noite são tolerados comportamentos que noutros contextos sociais diurnos são considerados inaceitáveis e socialmente reprováveis (Observatorio Noctambul@s 2017; Pires et al. 2018). Adicionalmente, em ALN, a conformidade com as normas tradicionais de género reproduz socializações genderizadas e a adesão a mitos da violação que aumentam os processos de vulnerabilização sexual das mulheres que neles participam (Graham et al. 2014; Romero-Sánchez e Megías 2015; Tutunges et al. 2020). Os ALN são assim contextos de intervenção fundamentais para a desnormalização do assédio sexual e de dinâmicas de socialização sexistas (Pires et al. 2018).
Na última década, têm vindo a ser implementadas intervenções que procuram prevenir e responder a situações de assédio e violência sexual em ALN (Gunby, Carline e Taylor 2017; Powers e Leili 2018; Noctambul@s 2017). Se inicialmente o alvo das campanhas de sensibilização e educação eram as mulheres, reproduzindo uma cultura de culpabilização da vítima, mais recentemente o panótico tem-se voltado para os agressores e para os/as bystanders (Pires et al. 2018). Um/a bystander é alguém que observa a situação e, por esse motivo, poderá ter um papel quer no agravamento (por ignorar, desvalorizar ou incentivar a dinâmica) quer na prevenção ou interrupção da interação sexista (Magalhães et al. 2019). Nesse sentido, os/as bystanders podem ser agentes preventivos fundamentais.
A intervenção com observadores/as [bystanders] prevê uma mudança de filosofia metodológica, trabalhando com os/as observadores/as para serem consciencializados/as para a promoção da igualdade de género e adquirirem ferramentas que lhes permitam agir de acordo com a situação e contexto. (Magalhães et al. 2019, 7)
A integração de metodologias de intervenção bystander em ações de formação de staff de ALN tem-se mostrado eficaz na desconstrução de mitos da violação e no aumento da iniciativa para intervir em caso de assédio ou violência sexual nestes contextos (Powers e Leili 2018; Quigg et al. 2021).
3. Projeto Sexism Free Night (SFN)
O projeto SFN2 - Prevenção de violência sexual e promoção de uma noite não sexista (POISE-03-4437-FSE-000127) foi promovido pela Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa e financiado pelo Programa Operacional de Inclusão Social e Emprego (PO ISE), Portugal 2020 e Fundo Social Europeu. Este projeto foi implementado entre junho de 2018 e agosto de 2019 e desenvolveu a maior parte as suas atividades no Porto. Para além das abordagens de intervenção bystander referidas anteriormente, o design do projeto baseou-se em dois outros modelos de intervenção em ALN:
as abordagens de formação para a dispensação responsável de álcool3 (Saltz e Stanghetta 1997; Stockwell 2001; OEDT 2012), por intervirem ao nível do atendimento e implementarem “um amplo conjunto de estratégias que visam a criação de ambientes de consumo de álcool que, antes de mais, reduzem o risco de pessoas alcoolizadas se ferirem a si ou a outras pessoas” (Saltz 1989, 169);
os modelos de certificação Noite Segura (Leclercq et al. 2012) que, através de metodologias participativas, propõem uma “abordagem baseada no setting” (Fletcher et al. 2011) com o objetivo de promover ALN mais seguros.
Estes modelos consideram aspetos físicos e sociais do estabelecimento na negociação das condições de segurança e bem-estar dos/as clientes (por exemplo, promoção de bebidas alcoólicas, crowding) (Hughes et al. 2011; Buvik e Rossow 2015). Neste sentido, este projeto adotou uma perspetiva multicomponente que incluiu várias atividades, nomeadamente:
a administração de um questionário online para caracterizar os ALN no que respeita à ocorrência de situações de assédio e violência sexual;
implementação de um modelo de certificação que envolveu: o diálogo com gerentes/empresários/as do setor do lazer noturno; ações de capacitação baseadas em abordagens bystander para o staff dos estabelecimentos aderentes; e a elaboração de um “Protocolo de atuação para a prevenção e atuação em casos de assédio e violência sexual em ambientes de lazer noturno” (Pires e Carvalho 2019a);
a produção de um “Manual de Recomendações para a publicidade não-sexista de bebidas alcoólicas” (Pires e Carvalho 2019b);
a implementação de uma campanha para a desnormalização da violência sexual e desconstrução de mitos de violação associados a ALN;
o design metodológico e a construção de parceria com a UMAR e com a Associação Plano i, que deu origem à intervenção em proximidade Ponto Lilás4, implementada na Queima das Fitas do Porto em 2019.
4. Método
A componente de investigação do projeto integrou a recolha de dados de natureza quantitativa e qualitativa. Num primeiro momento, foi administrado um questionário online para recolher dados que permitissem aceder a representações sobre a ocorrência de situações de assédio e violência sexual em ALN. O questionário esteve disponível para preenchimento entre 10 de setembro e 30 de novembro de 2018, tendo sido disseminado através das redes sociais associadas ao projeto SFN e do apoio de múltiplos parceiros. Durante o período de implementação foram recolhidas 557 respostas, tendo 11 sido eliminadas devido ao número de valores omissos (N=546).
O questionário foi adaptado a partir do instrumento original desenvolvido pelo Observatorio Noctambul@s da Fundación Salud y Comunidad. As questões sobre violência sexual listavam um conjunto de comportamentos de assédio sexual e violação, organizadas em torno de 7 tópicos principais: frequência de ALN; consumo de substâncias psicoativas (SPA); observação de assédio sexual em ALN (bystanders); vitimação sexual em ALN; agressão sexual em ALN; perceção sobre a relação entre o consumo de SPA e violência sexual; e dados sociodemográficos. No presente artigo serão apresentados os resultados referentes à observação de assédio sexual em ALN. O tratamento e análise de dados foram realizados com o apoio do software IBM SPSS Statistics. Depois de constatado o pressuposto de não normalidade dos dados através do teste de Kolmogorov-Smirnov, optou-se pelo recurso a estatística não paramétrica (Mann-Whitney).
Neste artigo são também apresentados dados recolhidos no âmbito da implementação da certificação SFN no Porto. Esta atividade foi desenhada tendo em conta uma extensa revisão bibliográfica e também os dados recolhidos pelo questionário online implementado no âmbito do projeto. A adesão à certificação foi avaliada em função do número de estabelecimentos aderentes, as suas características e comprometimento com os temas do projeto. As ações de formação foram avaliadas em função de dimensões de processo e perceção de impacto: participação (nº de formandos/as, perfil profissional, partilha de experiências), satisfação com a formação, perceção de conhecimento adquirido, perceção de impacto da formação nas práticas profissionais, perceção de impacto da certificação. A participação, o perfil de formando/a, a satisfação com a formação e a perceção do conhecimento adquirido foram avaliadas através de um questionário aplicado no final das ações de formação. A perceção de impacto da formação e da certificação foi auscultada através de entrevistas telefónicas com 6 formandos/as, 3 meses após as ações de formação.
5. Resultados
• Questionário online
No que diz respeito ao perfil sociodemográfico das/os respondentes ao questionário online, 76,4% das pessoas identificaram-se como mulher, 23,3% como homem e 0,4% com outra identidade de género. A média de idades foi de 29,6 anos (17-62 anos, DP=8,5), 95,1% das/os respondentes é portuguesa e a maior parte da amostra referiu que a sua orientação sexual é heterossexual (79,6%).
Em termos de padrões de frequência de ALN, a maioria das respostas concentra-se na frequência entre 1 vez por semana e 1 vez por mês (65%) - refere sair à noite “pelo menos 1 vez por semana” (29,7%), “pelo menos 1 vez por mês” (35,3%) e “entre 1 vez por mês e uma vez a cada 3 meses” (24,2%).
Para analisar o assédio sexual a partir da observação dos/as respondentes (bystanders) foi utilizada uma escala Likert de 1 (Nunca) a 5 (Sempre) para avaliar a frequência dos seguintes comportamentos: “Comentários sexuais incómodos”, “Insistência face a um não”, “Encurralamento”, “Toques não consentidos” e “Roços/encostos”. A direção de cada comportamento foi analisada em função de 4 opções: “homens para mulheres”, “mulheres para homens”, “homens para homens” e “mulheres para mulheres”. No sentido de facilitar a análise, agrupou-se a resposta de Likert 4 e 5 numa única categoria (“Frequência elevada”), mantendo-se as restantes respostas (alguma frequência - Likert 3; baixa frequência - Likert 2; e nunca - Likert 1).
No gráfico 1 encontra-se organizada a distribuição de frequências por opções. A análise das frequências permite verificar uma maior prevalência de observação de comportamentos de assédio quando a direção é de “homens para mulheres”. As restantes distribuições variam de acordo com o comportamento e a opção em análise.
Este gráfico apresenta os comportamentos observados, a direção do comportamento (“homem para mulher”, “mulher para mulher”, “homem para homem”, “mulher para mulher”). O género do/a agressor/a; é representado por um asterisco (*) e o género da pessoa assediada por dois asteriscos (**).
Verificaram-se diferenças de género nas opções de “homens para mulheres” e “homens para homens”. O género feminino reporta níveis significativamente mais elevados dos seguintes comportamentos observados: “comentários sexuais incómodos” (Mdn homens=223,21; Mdn mulheres=287,51) (U=20219,5, Z= -4,315, p>0,001, r= -0,18); “insistência face a um não” (Mdn mulheres=291,73; Mdn homens=209,37) (U=26061,5, Z= -5,407, p=0, r= -0,23); “Encurralamento” (Mdn mulheres=288,97; Mdn homens=218,42) (U=19611, Z= -4,599, p=0, r= 0,20); “Toques não consentidos” (Mdn mulheres=292,7); Mdn homens=206,17) (U=18056, Z= -5,697, p=0, r=0,24); e “Roçar-se/Encostar-se” (Mdn mulheres=289,77; Mdn homens=215,81) (U=19279,5, Z= -4,875, p=0, r=0,21). O género masculino reporta níveis estatisticamente mais significativos de “Comentários sexuais incómodos” no que se refere à opção “de homens para homens” (Mdn mulheres=263,55; Mdn homens=301,88) (U=22748,5, Z= -2,513, p=0,012, r= -0,11). As magnitudes de efeito das diferenças observadas são reduzidas (Cohen 1988).
• Certificação SFN - processo e perceção de impacto
O processo de implementação da certificação SFN baseou-se em 4 fases: 1) recrutamento e envolvimento de representantes de estabelecimentos de lazer noturno no Porto; 2) implementação de ações de formação para o staff dos estabelecimentos aderentes; 3) disponibilização dos materiais da campanha nos estabelecimentos aderentes; 4) elaboração do Protocolo de atuação para a prevenção de assédio e violência sexual em ambientes de lazer noturno. Os espaços aderentes que passaram pelas várias etapas receberam, no seminário final do projeto, o dístico SFN para colocarem nos seus estabelecimentos.
O recrutamento dos estabelecimentos beneficiou da articulação com a Movida5 da Câmara Municipal do Porto (área do município responsável pela regulamentação dos estabelecimentos e zonas de lazer noturno a cidade) e com Associação de Bares e Discotecas da Movida. Estas duas organizações divulgaram esta iniciativa junto dos estabelecimentos que fazem parte da zona da Movida e, numa fase inicial, recebemos 21 emails de representantes de estabelecimentos a solicitar informação ou a manifestar o seu interesse em aderir ao projeto. Na reunião inicial compareceram 14 pessoas, 2 representantes da Movida e 12 profissionais em representação de 10 estabelecimentos. Importa referir que os gerentes/empresários que participaram eram maioritariamente homens (n=10), demonstrando, em pequena escala, o predomínio da liderança masculina neste setor. Todos os/as representantes de estabelecimentos confirmaram a sua disponibilidade para participar no projeto, dando início a um processo de comunicação conjunta e individualizada para avançar para as fases seguintes.
Na segunda fase foram implementadas as ações de formação para o staff dos estabelecimentos aderentes. Um dos critérios para a atribuição da certificação era a participação de, pelo menos, 50% do staff do estabelecimento na formação. O planeamento do currículo da formação baseou-se em metodologias de intervenção bystander e focou-se em 4 tópicos: definição de assédio e violência sexual e legislação portuguesa, critérios para a promoção de ALN livres de sexismo, estratégias para a deteção e interrupção de situações de assédio sexual, apoio a vítimas de violência sexual. A dinamização das sessões incluiu componentes expositivas e participativas. Nesta fase, apenas 76 dos 10 estabelecimentos presentes na 1.ª reunião avançaram com o processo de certificação. A este nível, importa referir que 2 dos estabelecimentos aderentes já eram conhecidos no Porto por promoverem ambientes igualitários e os restantes estabelecimentos eram reconhecidos pela qualidade e profissionalismo do seu atendimento.
Visto que 2 dos estabelecimentos tinham equipas com cerca de 20 profissionais, foi necessário implementar uma ação de formação específica em cada um destes locais, e uma terceira para o staff dos restantes estabelecimentos. As ações de formação duraram 3h30 e ocorreram num horário ajustado a estes/as profissionais (a partir das 15-16:30h). No total, participaram nestas ações de formação 46 profissionais, com diferentes funções: bartender/ bar-back (n=20), gerente (n=7), segurança/ porteiro (n=3), atendimento à mesa (n=4), programador (n=2), outros7 (n=10).
A análise dos dados recolhidos através do questionário de avaliação revelou que os/as formandos/as se mostraram satisfeitos/as com a formação e reportaram ter aumentado o seu conhecimento sobre todos os temas abordados.
Autoavaliação do conhecimento 1 (Nenhum conhecimento) - 5 (Elevado conhecimento) |
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Antes da formação | Depois da formação | |
Definição de assédio e violência sexual e legislação portuguesa | 4 | 4,6 |
Critérios para a promoção de ALN livres de sexismo | 4,1 | 4,6 |
Estratégias para a deteção e interrupção de situações de assédio sexual | 3,8 | 4,7 |
Apoio a vítimas de violência sexual | 3,9 | 4,7 |
Durante a formação muitos/as profissionais referiram que o assédio sexual é comum em ALN e que dificulta o exercício da sua atividade porque eles/as próprios/as são alvo dessas abordagens sexualizadas. Referiram que são os/as homens quem mais assedia, mas que também há muitas mulheres que o fazem. Apontaram que, por estarem numa situação de atendimento, era mais difícil gerir o assédio, quer porque os/as clientes sentiam mais poder, quer porque tinham menos possibilidade de reação. No entanto, fazem uso de algumas estratégias para lidar com estas situações, como chamarem um/a colega para os/as substituir ou o/a próprio/a colega reparar na situação e vir prestar apoio. Quando questionados/as acerca da deteção de situações de assédio sexual entre os/as seus clientes, referiram que conseguiam distinguir interações de sedução de interações de assédio e partilharam alguns exemplos de situações concretas e de estratégias que utilizaram para as interromper. Por exemplo, uma das participantes referiu que, sempre que identificava uma situação mais desafiadora, comunicava com colegas que se encontravam em diferentes localizações do estabelecimento para que estivessem atentos/as. Referiram que a embriaguez ou os estados alterados de consciência dos/as clientes dificultam a deteção de situações de assédio sexual. Mencionaram também a necessidade de aprender a lidar com situações de violência no namoro, porque muitos casais se desentendiam e eram agressivos/as, sendo difícil ter uma comunicação clara ou intervir, principalmente se estivessem alcoolizados/as. Dois seguranças assumiram que tinham mais dificuldade em lidar com mulheres com comportamentos de importunação ou agressivos do que com homens com os mesmos comportamentos porque ao agir receavam serem vistos como agressores. Adicionalmente, durante as sessões surgiram alguns mitos da violação que culpabilizavam a vítima (mulher), atribuindo-lhe responsabilidade pelo seu comportamento. Estas partilhas permitiram discussões de grupo e facilitaram a desconstrução de mitos.
Após um período de 3 meses, a equipa entrevistou por telefone 6 formandos/as (escolhidos/as aleatoriamente) auscultando a sua perceção sobre o impacto da ação de formação nas suas práticas profissionais. Foram referidas 3 dimensões principais: maior atenção a situações de assédio, mais diálogo entre os membros do staff do estabelecimento em que trabalham e maior disponibilidade para intervirem.
Estou mais atento e também de alguma forma sinto mais que devo agir em determinadas situações com as minhas colegas, com as pessoas e também quando se metem comigo. (E38)
Agora falamos mais disso, e os próprios seguranças e todos nós colocamos esse chip. (E4)
Sou mais ativa e menos tolerante quando me estão a assediar… chamo logo a atenção do cliente ou chamo algum colega para me ajudar, mas de uma forma que o cliente perceba que está a ser abusador. (E6)
Após o término da formação, a equipa disponibilizou os materiais de sensibilização produzidos no âmbito do projeto9 aos estabelecimentos, de forma a torná-los acessíveis aos/às seus/suas clientes.10 O projeto dinamizou uma 2.ª reunião com os responsáveis pelos estabelecimentos aderentes para definir os pontos essenciais a contemplar no protocolo de atuação em casos de assédio e violência sexual em ALN (Pires e Carvalho 2019a). O projeto organizou um seminário final onde dois destes representantes participaram na qualidade de oradores, aproveitando-se este momento público para atribuir as certificações. Nas entrevistas telefónicas, as pessoas entrevistadas referiram que a sinalética ainda não era reconhecida pelos/as seus/suas clientes, sugerindo um maior investimento na sua divulgação.
Sinceramente não sei se as pessoas a vêm. Nós temos aí outras e se calhar fica meia escondida, mas também acho que não é a existência do sinal que muda o ambiente, é a própria casa e somos nós que cá trabalhamos e o que aceitamos que cá aconteça ou não. (E1)
Uma ou duas perguntaram porque viram as notícias e depois deram os parabéns por sermos um espaço livre de sexismo. (E3)
Ainda é cedo para dizer, mas a partir do momento que tens um símbolo a deixar claro que não vais compactuar com essas atitudes as pessoas percebem que se calhar não é aí o sítio. (E5)
6. Discussão dos resultados
Os dados analisados demonstram que os comportamentos de assédio sexual são bastante prevalecentes em ALN, sendo reportados tanto pelos/as seus/suas frequentadores/as como pelos/as profissionais que exercem a sua atividade profissional nestes contextos. A análise dos dados do questionário online corrobora a normalização e generalização do assédio sexual que nestes contextos, à semelhança do que acontece noutros contextos na esfera pública, afeta de forma desproporcional as mulheres e é principalmente perpetrada por homens. De acordo com alguns estudos, o facto de a experiência de assédio sexual ser entendida por muitas mulheres como normal e expectável na sua vivência de ALN (Observatorio Noctambul@s 2017; Pires et al. 2018) não significa que a tolerem, que a considerem aceitável e que não lhes provoque emoções negativas (Graham et al. 2017; Mellgren et al. 2018). A gestão de situações de assédio sexual deixa as frequentadoras de ALN desconfortáveis e ansiosas e limita a sua liberdade de movimento e expressão nesses contextos (Graham et al. 2017). Por outro lado, o assédio sexual por parte de mulheres também pode indiciar que, ao entrarem nestes contextos, a construção de novas feminilidades pode implicar a adesão a normas e comportamentos de referência, nomeadamente o consumo excessivo e comportamentos de assédio sexual.
Pelo descrito, os ALN são contextos estratégicos para a prevenção e desnormalização do assédio sexual (Pires et al. 2018). Prevenir os excessos em estabelecimentos licenciados que comercializam bebidas alcoólicas é um desafio complexo e multifacetado (OEDT 2012; Graham et al. 2014). Neste projeto, tivemos uma modesta adesão de ALN, e os estabelecimentos que aderiram à certificação SFN foram aqueles que já são conhecidos por criarem ambientes diferenciados e, em alguns casos, comprometidos com princípios de igualdade. De qualquer forma, consideramos que o projeto contribuiu para a visibilização do assédio sexual em ALN e também para reforçar as normas de segurança e as práticas igualitárias dos estabelecimentos aderentes. O envolvimento e comprometimento prévio da gerência dos estabelecimentos aderentes facilitaram a aceitação, motivação e reconhecimento da importância da ação por parte dos/as formandos/as. Contribuíram também para aumentar o potencial de eficácia do projeto, porque a sua intervenção se focou no serviço no seu todo e não apenas nas práticas de atendimento do staff, como sugerem outros estudos (Saltz e Stanghetta 1997; Buvik e Rossow 2017). Os/as profissionais envolvidos/as nestas ações de formação avaliaram esta iniciativa de forma positiva, reportando o aumento dos seus conhecimentos. Nas entrevistas feitas posteriormente, também indicaram que o assédio sexual era mais discutido em equipa e que, em geral, estavam mais atentos/as, empoderados/as e dispunham de mais estratégias para intervir.
Vários estudos têm vindo a reforçar que a capacitação de staff de ALN através de abordagens bystander é eficaz em ALN (Powers e Leili 2018; Quigg et al. 2021) e, por esse motivo, seria relevante dar continuidade a esta iniciativa ou incluir a prevenção de assédio sexual na formação a profissionais de atendimento ou segurança em ALN. As perceções de segurança em ALN podem ser um critério valorizado pelos/as clientes (Johnson et al. 2016) e, desta forma, um fator de competitividade que pode motivar os estabelecimentos de lazer noturno a aderir a este tipo de iniciativas.
No que diz respeito à implementação da certificação, os/as profissionais entrevistados/as referiram que esta ainda era pouco visível e reconhecida. Neste sentido, seria importante dar continuidade a esta atividade, de forma a aumentar a rede de estabelecimentos aderentes, bem como a própria visibilidade da sinalética e seu reconhecimento pelos/as frequentadores/as de ALN.
Importa também referir que a suspensão do lazer noturno devido à pandemia Covid-19 comprometeu a continuidade do trabalho implementado pelo projeto. Um cenário de crise generalizada pode dificultar o contacto e adesão de ALN a este tipo de iniciativas. No entanto, esta paragem obrigatória pode também ser uma oportunidade para repensar a própria reabertura e o próprio conceito do estabelecimento. De acordo com o gerente do estabelecimento Maus Hábitos,
[...] devíamos estar a discutir não só quando abrimos, mas como vamos abrir, aproveitar esta oportunidade para acabar com o sexismo - essa coisa horrível das ladies night, por exemplo - e a discriminação, ter boa comida em vez da tosta mista ranhosa. E entendermos que temos uma responsabilidade muito grande, por vendermos álcool: a noite é onde se revelam os demónios.11
7. Conclusão
Os resultados deste projeto demonstram que o assédio sexual é observado e reconhecido por quem participa e trabalha em ALN, corroborando o papel estratégico que os/as bystanders podem desempenhar na prevenção e desnormalização destes comportamentos. O modelo de certificação SFN mostrou ser uma abordagem relevante e passível de ser implementada noutros contextos. No entanto, o período de tempo em que o projeto foi implementado (14 meses) não foi suficiente para investir na visibilização da certificação, tornando-a perfeitamente reconhecida por quem sai à noite. O projeto criou um processo que deveria ser continuado, quer através de um apoio financeiro mais prolongado, quer pelo envolvimento ativo no município que, em estreita articulação com organizações da sociedade civil e representantes do setor do lazer noturno, implementasse protocolos de colaboração para a promoção de ALN mais seguros e igualitários.
Este artigo oferece um contributo para a investigação na área do assédio sexual e para o mapeamento de práticas interventivas que atuam para dissuadir ou prevenir. No entanto, da implementação do projeto surgiu a necessidade de se investigar a interseção entre as normas de género e as normas sociais sobre o uso de substâncias psicoativas e a prevalência de assédio sexual entre pessoas transgénero e com identidades de género não-binárias.
Finalmente, é importante referir que, apesar dos inúmeros benefícios em relação à investigação mais tradicional realizada presencialmente, os questionários online apresentam algumas limitações que devem ser consideradas. Os dados não podem ser generalizados porque dependem de uma amostragem não-probabilística e, por esse motivo, representam apenas a amostra de pessoas que tem acesso à Internet, teve contacto com o instrumento e se disponibilizou a participar (Faleiros et al. 2016; Barratt et al. 2017). Outra limitação prendeu-se com a impossibilidade de se avaliar o impacto do projeto, principalmente devido à duração do mesmo e aos recursos da equipa (humanos e financeiros). Nesse sentido, a avaliação baseou-se na perceção dos/as participantes, que é um indicador, mas não uma garantia de eficácia.