O quadragésimo sexto número da ex æquo não tem, excecionalmente, uma temática central, perante a necessidade de dar à estampa textos já aprovados e prontos, mas sem espaço e oportunidade nos números anteriores. Assim, a seleção dos textos e a sua ordenação é da responsabilidade do Conselho Editorial. O conjunto inclui textos que abordam temáticas recorrentes no âmbito da área de Estudos sobre as Mulheres, de Género e Feministas (EMGF), como seja a desconstrução de categorias, nomeadamente, a de “mulher” e a descoberta do passado dos movimentos de mulheres, casos do primeiro e último artigo incluído. A maior parte dos textos, no entanto, aborda fenómenos emergentes, como os efeitos de género da pandemia da COVID-19, que aparecem, pela primeira vez, na ex æquo, incidindo no teletrabalho e nas campanhas políticas.
Nos cinquenta anos de desenvolvimento dos EMGF temos assistido aos mais diversos debates e diversos aspetos da vida têm sido objeto de questionamento sob também diversas tendências teóricas. Temos analisado dificuldades e políticas ditas vocacionadas para as ultrapassar. Temos também tido a oportunidade de, na sequência das lutas travadas, vivenciar novos direitos, no campo profissional, cultural, político, sexual e identitário e, no entanto, todas as conquistas parecem estar sempre em risco de backlash, retaliação, seja no que respeita aos direitos reprodutivos, em face da crescente propagação de ideologias anti-género, seja nos direitos laborais, em face da crescente vulnerabilização de populações inteiras ou da precarização que tão profundamente marca as relações laborais atualmente e atira, especialmente, as mulheres para condições de trabalho e vida desumanas. E, como se não bastasse, sobrevivem (reforçam-se?) todas as formas de violência contra as mulheres, autêntico flagelo em todas as sociedades. Com os artigos e recensões incluídas neste número da ex æquo esperamos contribuir para um maior conhecimento das realidades de desigualdade e discriminação de género vivenciadas sob condições e em contextos diferenciados. A perspetiva intersecional generaliza-se e hoje prestamos especial atenção a grupos que enfrentam condições e desafios com características distintas.
Vejamos, brevemente, em que se consubstancia o contributo de cada um dos artigos deste número.
O primeiro artigo retoma um debate recorrente em torno da categoria ‘mulher’ e propõe uma saída com recurso à filosofia da linguagem comum de inspiração wittgensteiniana. Camila Lobo assina este texto que tem por título “Struggling for ‘Woman’: A Reconciliation with the Ordinary”. Tratando-se de uma questão largamente debatida na literatura, os termos em que aqui é tratada são inovadores para o contexto nacional.
Em “Gender Equality under Siege: Perceptions and satisfaction of telecommuting women workers with the distribution of unpaid work during the Covid-19 lockdown”, Maria Helena Santos, Miriam Rosa, Rita B. Correia e Eduardo Xavier desvelam o impacto da pandemia da COVID-19 no agravamento da sobrecarga com tarefas domésticas de mulheres com crianças pequenas, em regime de teletrabalho, durante o primeiro confinamento. O estudo na origem do artigo auscultou mulheres nesta condição sobre as suas experiências e grau de satisfação com as mesmas.
O contexto pandémico condicionou também a realização da eleição presidencial em Portugal, em 2021, tendo as campanhas sofrido adaptações em face das restrições na mobilidade, contactos face-a-face e a inevitável transferência para os media. Carla Martins, Ana Cabrera e Isabel Ferin Cunha dão conta da análise que fizeram da cobertura conferida às presidenciais nos jornais televisivos da noite dos quatro principais canais televisivos em Portugal, durante o período da campanha eleitoral, tendo como objeto central as duas candidatas mulheres, Ana Gomes e Marisa Matias. Com o seu texto “Entre a pandemia e o populismo: um olhar sobre as candidaturas femininas às eleições presidenciais de 2021 em Portugal” consubstanciam um contributo para uma problemática ainda pouco explorada no âmbito dos Estudos de Comunicação.
De algum modo, Priscila Freire dá continuidade ao diálogo em torno das questões associadas à crescente influência do populismo no seu texto sobre “’O problema do ‘gênero’ na política educativa: dos marcos internacionais ao quadro atual do Brasil”. No caso, a autora realça os entraves a uma educação sensível ao género, em face da primazia dada na política pública educativa à perspetiva androcêntrica e pró-mercado capitalista. É de assinalar a originalidade da revisão sistemática feita dos instrumentos de política que servem de pilar ao sistema educativo brasileiro, recorrendo à metodologia “What’s the Problem Represented to be?”, de Carol Bacchi.
Recorrendo também à metodologia proposta por Carol Bacchi, Rodolfo Morrison analisa as limitações do Acordo de União Civil no Chile, ao deixar de fora o reconhecimento de filhos/as de pessoas LGBTIQ+. No seu artigo intitulado “’Se quiere desalentar el matrimonio’. La heteronorma en las discusiones sobre el Acuerdo de Unión Civil en Chile”, o autor analisa as discussões que ocorreram durante o processo de deliberação para a alteração da legislação.
O texto de Morrison insere-se na perspetiva intersecional, expressa também em outros textos, que nos dão conta de problemas que afetam categorias específicas de pessoas. É o caso do texto de Melissa Hichins-Arismendi e Andrea Yupanqui-Concha sobre “Barreras en el acceso a salud sexual y reproductiva: Experiencias de mujeres con discapacidad en el extremo sur de Chile” e o de Marina Porto e Manuela Romo sobre “Influencias familiares y educativas en la infancia y juventud de mujeres altamente creativas”.
Os estudos culturais estão representados pela análise feita por Cora Requena à filmografia de Li Yu no texto que intitulou “La comercialización de los cuerpos en el cine de Li Yu”, e no qual mostra a inevitabilidade dos contrastes entre o olhar sobre a representação dos corpos das mulheres e os corpos masculinos, por efeito das normas patriarcais.
Fechando o conjunto dos artigos selecionados para este número da ex æquo, recuamos no tempo, com o contributo de Charliton José dos Santos Machado e Juliana Aparecida Lemos Lacet, para o enriquecimento da nossa leitura sobre o tratamento dado por alguma comunicação social ao movimento sufragista em Portugal, veiculado no artigo intitulado “Feminismo e republicanismo na imprensa de Portugal: incursão investigativa no jornal A Capital (1910)”. A sua relevância decorre do facto de se centrar num período de transição política, em que as mulheres ganharam maior visibilidade.
Para além dos artigos, alargámos neste número as sugestões de leitura. Temos uma política de chamar a atenção para obras originais e de publicação recente, mas isso não invalida que exceções não sejam abertas, como é o caso da recensão da obra de bell hooks - Não serei eu mulher? - cuja tradução para a língua portuguesa é um marco assinalável, assim como do romance de Bernardine Evaristo - Rapariga, Mulher, Outra. Ambas as obras são de mulheres negras e lésbicas e trazem para a nossa perceção como se traduz a matriz de opressões na vida das mulheres e o seu silenciamento.
Assinam as recensões, por ordem, Lígia Amâncio, Rosa Monteiro, Albertina Jordão, Caynnã de Camargo Santos, Alexandra Oliveira, Ana Cristina Pereira e Sheila Khan, e a lista completa de obras recenseadas é a seguinte:
- A Economia XX. O épico potencial das mulheres, de Linda Scott, 2021.
- Mulheres empresárias e empreendedoras, de Ana Paula Marques, 2021.
- Le care, théories et pratiques, de Helena Hirata, 2021.
- The Gender-Sensitive University. A Contradiction in Terms? Org. de Eileen Drew e Siobhán Canavan, 2021.
- Mulheres da minha ilha, mulheres do meu país. Igualdades que Abril abriu, de Ana Cristina Pereira, 2022.
- Não Serei Eu Mulher? As Mulheres Negras e o Feminismo, de bell hooks, 2018.
- Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo, 2018.
A diversidade de temáticas, contextos e abordagens teóricas irão certamente despertar o interesse de quem tem na ex æquo uma fonte imprescindível de informação e formação. As palavras-chave dos textos científicos que divulgamos continuarão centradas em problemáticas decorrentes da adoção de perspetivas feministas e intersecionais.