1. Introdução
Este artigo tem como objetivo principal identificar e analisar no jornal A Capital: Diário Republicano da Noite os espaços que ocupavam as demandas sociais e políticas preconizadas pelas feministas e pela Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (LRMP) em 1910, ano decisivo de eclosão das lutas sociais decorrentes do triunfo republicano, com a queda da Monarquia Constitucional.
Para tanto, realizamos um levantamento e analisamos as 182 publicações do referido periódico, entre os dias 1 de julho e 31 de dezembro de 1910. Dessas publicações, identificamos que 47 delas traziam notícias relacionadas às questões que envolviam a vida das mulheres nas esferas pública e privada. Entre essas, 17 traziam artigos, notícias e entrevistas relacionadas aos direitos das mulheres na família, trabalho e instrução, com ênfase nos temas de lutas dos movimentos feministas, a exemplo do direito ao divórcio e à educação feminina como mola propulsora da emancipação da mulher.
Nesse cenário histórico investigado, as feministas atuavam para construir uma opinião pública favorável aos direitos das mulheres, seja por iniciativas individuais, seja por entidades associativas, a exemplo da LRMP1, entidade fundada em 1908 que tinha como bandeira principal combater a Monarquia Constitucional e lutar pela República. Assim, a adesão feminista aos ideários republicanos tornava visível a luta pela necessária mudança das condições degradantes em que viviam as mulheres, em regra subjugadas a um papel meramente passivo na sociedade patriarcal (Pires 2012). No bojo desse debate, estava a luta por ampliação de direitos em prol da Lei do Divórcio, da instrução feminina, do trabalho, da administração dos bens, do combate à prostituição e da igualdade de sufrágio político da mulher (Souza 2006).
Em Portugal, a LRMP teve um importante papel na derrubada da Monarquia Constitucional e na luta em prol da instituição do novo regime, que aspirava a justiça social, liberdade e igualdade (Vicente 2007). Sob inspiração do feminismo que já se organizava na Europa, alguns nomes se notabilizaram à frente dessa entidade, entre eles, Ana de Castro Osório (1872-1935), Angelina Vidal (1853-1917), Adelaide Cabete (1867-1935), Maria Veleda (1871-1955) e Carolina Beatriz Ângelo (1878-1911), mulheres que fizeram valer posições públicas e buscaram repercutir ideias na imprensa alternativa e periódica da época, com constantes publicações de artigos, entrevistas e notícias favoráveis ao movimento que integravam (Esteves 2014).
Portanto, na vanguarda dessa luta em prol de direitos civis e políticos, as mais preparadas intelectualmente compreenderam “a necessidade de ‘ocupar’ espaço na imprensa diária e não só nos órgãos das organizações em que começavam a movimentar-se. [...] [A]ssumiram a imprensa como veículo de propaganda eficaz do seu ideário [...] para reivindicar, denunciar, instruir e refutar” (Lousada 2010, 42-3). Não à toa, “expressaram opiniões, sustentaram causas, encabeçaram iniciativas, romperam barreiras” (Pinto 2010, 9).
2. A História Cultural: desafios teóricos e metodológicos
No artigo, fazemos uso da abordagem inscrita nos fundamentos da História Cultural, campo teórico-metodológico que influenciou a abertura da problematização das fontes, ampliando-as e ressignificando-as. No caso da imprensa e, particularmente, do jornal, é importante ressaltarmos que este ainda não era aceito como um documento válido para a pesquisa histórica, quando muito era considerado um documento complementar, pelo menos até fins dos anos de 1970 (Capelato 2014). Porém, a perspectiva do periódico como objeto e fonte ganhou dimensões novas no último quartel do século XX, a partir da ênfase nas questões da cultura escrita (Burke 2005).
Nessa nova perspectiva, importava aos historiadores da cultura compreender como a imprensa teve a capacidade de atingir uma grande parcela da população e influenciar a vida dos seus leitores e não leitores (Firmino 2003), ao atuar principalmente na condição de agente ativo que seleciona, ordena e narra aquilo que se elege como acontecimento publicável e de interesse da sociedade numa dada época (Porpino & Machado 2020).
Desse modo, buscamos identificar e analisar no jornal A Capital as demandas civis e políticas preconizadas pelas feministas e a LRMP, partindo da premissa de que, através da leitura de notícias de caráter informativo e opinativo, nos é possível perceber como as mulheres envolvidas nessa associação pensavam suas ações em prol do sufrágio feminino, assim como o sentido que atribuíam à sua condição de cidadãs, numa sociedade tradicionalista que ainda as tratava com inferioridade perante as leis (Castro 2010).
O jornal A Capital: Diário Republicano da Noite foi fundado por Manuel Guimarães e circulou em Lisboa a partir de 1 de julho de 1910, três meses antes do advento da República, tendo as suas atividades sido interrompidas em 28 de maio de 1926, nos sobressaltos autoritários e censuras impostas pelo regime político que tanto preconizou2. O periódico, que se afirmava como partidário do pensamento político republicano, pautava diariamente propagandas e notícias de caráter informativo e opinativo contrárias à Monarquia Constitucional e à Igreja Católica.
É importante destacar que, naquele contexto, Portugal possuía apenas 37% de população urbana, parcos avanços na organização industrial e uma taxa de 75% de analfabetismo, em sua grande maioria mulheres (Cova 2007). Portanto, nas suas publicações diárias, o jornal A Capital tornava-se porta-voz do clamor por mudanças advindas das classes médias urbanas, entre elas, as mulheres, que, através das manifestações feministas e das ações da LRMP, lutavam “a favor da educação e instrução das mulheres nos princípios democráticos e da revisão das leis que tocam aos seus direitos” (Silva 2013, 19).
3. A pesquisa no jornal A Capital: Diário Republicano da Noite
A pesquisa no jornal A Capital seguiu o que recomenda Saviani (2004), para quem as fontes históricas não são em si fontes da história. Na acepção desse autor, o material levantado na pesquisa só se constitui como fonte ao trabalho do historiador quando este formula seu problema de pesquisa, apontando, assim, as delimitações daquilo que busca como respostas. Seguindo essa perspectiva, ao nos debruçarmos na leitura do jornal A Capital, em 1910, problematizamos: “Que espaços ocupavam as demandas sociais e políticas do feminismo e da LRMP nas páginas do referido periódico?”
Nessa tarefa, acompanhamos a postura epistemológica sugerida pelo paradigma indiciário defendido por Ginzburg (1989), por entendermos que o referido modelo se justifica pelo tipo de aproximação que se faz do objeto de estudo, seguindo pegadas, rastros e indícios do cenário investigado, tendo como desafio maior compreender o passado vivenciado pelos movimentos sufragistas e feministas nos espaços das lutas republicanas deflagradas em Portugal na primeira década do século XX (Vasconcelos, Fialho & Machado 2018).
Cumpre destacar que, desde os primeiros números publicados pelo jornal por nós pesquisado, questões relacionadas ao papel da mulher na sociedade são evidenciadas como relevantes ao debate da conjuntura da época. Na publicação de 7 de julho de 1910, o periódico, na coluna “Pela República”, já trazia assuntos mais diretamente ligados a causas e demandas do feminismo: “A educação da creança”3, reportando-se a um artigo de autoria da feminista Ana de Castro Osório e outras autoras, publicado na revista da LRMP; na coluna “Estudos úteis”, na página 3, reportagem sobre o ensino universitário das mulheres inglesas; notícia sobre criação do Jornal da Mulher; “Notas sobre a Inglaterra”, com o tema “As mulheres reunem em congresso” (A Capital, 7 de julho de 1910, 2-3). Em relação a esta última notícia, o jornal exaltava o crescimento das lutas das mulheres inglesas por educação, trabalho e reconhecimento do sufrágio universal, dando destaque e visibilidade aos debates que mobilizavam tais causas na Europa:
O feminismo tem se agitado na Inglaterra por fórma extraordinária, ora por uma fórma irreverente e perturbadora […] muitas conferentes expõem perante o publico de mulheres, onde ha poucos homens, todas as questões que interessam a actividade feminina: a cooperação das mulheres nas administrações municipaes, o direito de voto, a assistencia publica, a lucta contra a mortalidade infantil e contra a tuberculose […] o ensino technico das raparigas. (A Capital, 7 de julho de 1910, 3)
Em 12 de julho, A Capital publicaria em destaque de primeira página uma longa matéria intitulada “Abolição das desegualdades”, discorrendo sobre os avanços na legislação francesa a partir da aprovação de 40 novas leis e decretos, entre os quais o que dava ênfase ao “Contrato de trabalho: o salario das mulheres”. Sobre essa mudança e outras conquistas, assim noticiava:
A Lei de 13 de julho de 1907 foi a que mais profundamente mudou os princípios jurídicos admitidos nas relações dos dois sexos. É certo que nos últimos anos o feminismo alcançou apreciaveis victorias, com as leis do livre salario da mulher casada e sobre o eleitorado e a elegibilidade da mulher nos conselhos da família. (A Capital, 12 de julho de 1910, 1)
A notícia chamava a atenção para mudanças na legislação na França. Dava certamente a compreender as condições e conquistas que separavam Portugal, país de tradição monárquica, das nações que à época já se destacavam na evolução dos direitos das mulheres, no campo das mudanças jurídicas e políticas. Dessa forma, o periódico informava e também opinava sobre tais conquistas, atribuindo seu alcance às lutas e às vitórias do feminismo.
No dia 14 de julho, o jornal trazia um pequeno informe na segunda página, “Liga Republicana das Mulheres Portuguezas”, em que a entidade convocava as sócias à regularização das cotas financeiras. Nesse mesmo dia, na terceira página publicava matéria informativa sobre “O voto das mulheres na Inglaterra”, dando destaque à capacidade de mobilização das sufragistas e aos primeiros debates na Câmara dos Comuns sobre projeto de lei que visava estender o voto às mulheres (A Capital, 14 de julho de 1910, 2-3).
No dia 26 de julho, publicava a matéria “O Movimento Suffragista encontra poderoso adversario”, que ressaltava a derrota das sufragistas no parlamento britânico e a reação dos conservadores através de um Manifesto Antissufragista, que, entre outras questões, se propunha a uma firme oposição ao que consideravam “agitação feminista eleitoral” (A Capital, 26 de julho de 1910, 3).
Em primeiro de agosto, o jornal divulgava uma mensagem elogiosa da Direção e Comissão de Propaganda da LRMP a Magalhães Lima, destacando os serviços do renomado republicano, em particular, por seu apoio às causas feministas. De acordo com A Capital, a mensagem havia sido aprovada e assinada em reunião da entidade por suas principais lideranças, entre elas, Ana de Castro Osório, Maria Veleda, Georgina de Figueiredo e Ana Maria Gonçalves Dias (A Capital, 1 de agosto de 1910, 3). Essa manifestação evidenciava o quanto a entidade estava comprometida, engajada e presente nas fileiras militantes do republicanismo e no enfrentamento à Monarquia Constitucional do país.
No mês de outubro, foram divulgadas pelo jornal três notícias acerca das lutas feministas. A primeira, no dia 7, em uma matéria com destaque de primeira página, se referia às bases de um novo programa de governo, que, entre outras questões, lançava como prioridade “Criar o suffragio universal”, reivindicação do feminismo e da LRMP, ao debate político na transição da forma de governo (A Capital, 7 de outubro de 1910, 1). Em 25 do mesmo mês, o periódico trazia como notícia “As mulheres francezas reclamam o voto para as mulheres portuguezas”, dando destaque à capacidade de articulação do feminismo português com outras organizações da Europa em prol do sufrágio feminino, bem como sinalizando as expectativas colocadas nesse debate com a ascensão republicana (A Capital, 25 de outubro de 1910, 3). Por fim, o empenho de pautar o feminismo era coroado com a notícia publicada no dia 27: “Movimento Feminista: A Liga Republicana de Mulheres Portuguezas entrega uma representação ao governo”. Além de evidenciar esse momento histórico da referida audiência, salientava a aliança do jornal A Capital com as sócias daquela entidade:
Uma comissão constituida de socias da Liga Republicana de Mulheres Portuguezas foi hoje pela 1 hora da tarde entregar ao presidente do governo provisorio uma larga representação de reivindicações feministas que áquella colectividade se afiguram de imediato interesse para a mulher individualmente e para a sociedade. A referida representação foi hontem largamente apreciada em assembléa geral da Liga que approvou, sob proposta da Sra. D. Maria Velleda, um voto de agradecimento à Capital, por este jornal ter se prestado a franquear as suas columnas à propaganda da Liga. (A Capital, 27 de outubro de 1910, 3)
Logo nos primeiros dias do mês de novembro, o jornal trazia ao debate público uma das mais relevantes bandeiras liberais da República e defendida pela LRMP: trata-se da Lei do Divórcio, que se assentava na proposta da legislação de fazer valer como fim de uma relação conjugal por mútuo consentimento. Na prática, a proposta republicana acabava também com os efeitos civis do casamento religioso católico, sustentado como inquestionável pelo poder monárquico. No dia 3, apontava opinião favorável ao publicar matéria com o título “O que é a Lei do Divorcio que deverá ser promulgada amanhã? - acaba-se a immoralidade em que o Estado persistia para agradar á Egreja” (A Capital, 3 de novembro de 1910, 1).
Já no dia 5, o periódico publica artigo de Cunha e Costa intitulado “O Divorcio”. Nele, assim se posicionava o autor: “Esta transformação do direito privado, que o ministerio está elaborando, dá à joven Republica uma base indestructivel de justiça, de humanidade e sympathia” (A Capital, 5 de novembro de 1910, 1).
No dia 6, o periódico voltaria a dar destaque em primeira página ao tema do sufrágio feminino, com matéria intitulada “Reproducção d´um cartaz ultimamente afixado nas ruas de Paris - PARTI FÉMINISTE - La solidarité des Femmes”, com a seguinte informação: “A proposito diremos que no dia 11 do corrente, se realiza no Salão da Societé Savante um comicio de homenagem á Republica Portugueza, organisado pelos grupos feministas” (A Capital, 6 de novembro de 1910, 1).
A reprodução do cartaz revelava, além das articulações entre as feministas francesas e portuguesas, uma agenda comum de comemorações e homenagens pela ascensão da República, numa crença antecipada na concessão do voto às mulheres em Portugal.
Ainda no dia 25 de novembro, o jornal A Capital trazia mais duas notícias: “O voto das mulheres” e “O assalto das suffragistas”. Ambas se reportavam às informações das lutas das suffragettes britânicas em prol da causa do voto e às pressões que estas intensificavam diariamente nas ruas de Londres, com passeatas e mobilizações de enfrentamento. Mais uma vez, o jornal explorava vozes e ecos desses movimentos na Europa, dando a conhecer o alto nível de esclarecimento e a capacidade de luta organizada dos grupos feministas na Inglaterra (A Capital, 25 de novembro de 1910, 3).
4. Esperanças e desencantos do feminismo nas páginas do jornal A Capital
O mês de dezembro é marcado por muitas iniciativas da LRMP em fazer valer suas reivindicações e aspirações junto ao governo provisório republicano que tanto a entidade defendeu desde sua fundação. No conjunto dessas reivindicações, inclusive com apoio internacional, estava a concessão do voto às mulheres, que passava a ser a causa principal mais urgente e, portanto, de grande repercussão pública na imprensa de Portugal. Assim, no dia 4, em uma matéria intitulada “Liga Republicana das Mulheres Portuguezas”, o jornal reproduzia informação da entidade sobre atividades culturais promovidas em prol das suas sócias (A Capital, 4 de dezembro de 1910, 3).
Já no dia 5, a matéria “Liga Republicana das Mulheres Portuguezas - conferência do Sr. Borges Grainha: o papel da mulher nos modernos colegios femininos e na assistência infantil” dava ênfase ao debate relacionado às questões educacionais, considerando que, naquele contexto, as desigualdades na instrução pública entre homens e mulheres em Portugal eram bastantes expressivas, e o artigo 1.º do Estatuto da Liga tratava justamente da educação como tema indispensável à emancipação da mulher (A Capital, 5 de dezembro de 1910, 2).
No dia 7, porém, a disputa pela concessão do voto às mulheres reacende o debate político no país, com uma entrevista na primeira página do jornal: “Mme Madeleine Pelletier4 e o sr. dr. Theophilo Braga: a ilustre feminista defende a concessão do voto à ‘elite’ feminina intellectual e affirma serem essas as intenções do chefe do governo provisorio”. A presença da ilustre feminista francesa em Portugal para uma agenda de atividades políticas, conferências e reuniões com a LRMP e com o chefe do governo provisório era parte de uma ação organizada internacional de “pressão” sobre o novo regime. Vejamos o que dizia a expoente feminista francesa:
Ha Republicas e ha… Republicas […] Republicas que possuem um ideal, um caminho traçado, o qual enchem de luz e por ele enveredam; e Republicas que, atraiçoando o espírito que as creou, desfazem, hoje, o que fizeram hontem, cercando-se d’um ambiente em que só falta a coroa e a legião inepta das fardas e das grã-cruzes para serem ... monarchias. Ora, a portugueza, está no primeiro caso…. (A Capital, 7 de dezembro de 1910, 1)
Essa provocação comparativa dos “republicanismos” avançados e retrógrados, traçada na entrevista da expoente francesa, dava-se, ao mesmo tempo, como um reconhecimento e também como um alerta ao novo regime que se instalara em Portugal. Ou seja, a República portuguesa, que se propunha moderna, deveria seguir um caminho traçado de luzes e, portanto, não poderia desconhecer as demandas do feminismo sufragista em prol da concessão do voto às mulheres, mesmo que dada apenas a uma pequena “elite” feminina intelectual. A entrevista de Madeleine Pelletier publicada em A Capital reforçava a tática política da própria LRMP em fazer “gestões diplomáticas” junto ao governo provisório através de uma proposta mais moderada de reivindicação sobre o sufrágio feminino.
Esse debate segue no dia seguinte nas páginas do jornal. Mais uma vez, em notícia de primeira página, o periódico publica um artigo de opinião crítica, assinado por Ana de Castro Osório, intitulado “Avante pelo feminismo - Ser feminista é justo! - A obra de emancipação feminina deve ser a obra da mulher”. Nele, a intelectual feminista e líder da LRMP discorria sobre as desigualdades históricas que pesavam sobre os ombros das mulheres e, como tal, ela defendia a necessidade do urgente reconhecimento do feminismo e das suas ações em Portugal:
A mulher só não ligaria importancia à questão feminista, se em Portugal a sua existencia se mantivesse n´um desafogo tão completo, n´uma atmosphera tão alta e tão culta, que só respirasse o incenso do respeito, do amor e da consideração com que fosse escalada e servida […]. A mulher em Portugal, seja qual for a classe a que pertença, não é feliz, não se sente bem comsigo, nem com os outros. Comsigo porque se reconhece inferior, com os outros porque são os primeiros a sanccionar essa inferioridade, a contraria todas as suas aspirações para se superiorisar, e são depois os primeiros a ridicularisa-las. Porque tudo soffre e não tem o direito de sobre cousa alguma reclamar, deve a mulher do povo ser feminista. (A Capital, 8 de dezembro de 1910, 1)
Em tom de crítica, mas também de desabafo político, o artigo de Ana de Castro Osório lançava luz sobre a necessidade de as mulheres portuguesas emprestarem seu apoio e fortalecerem a causa feminista no país naquele momento histórico de mudanças no regime político. Em seu entender, independentemente da classe social, todas as mulheres sofriam do mesmo desrespeito e desigualdade. A feminista finalizava o artigo com uma cobrança contundente e, sobretudo, um alerta ao regime republicano que tanto haviam preconizado: “A Republica portugueza deve-nos o cumprimento das promessas solemnemente feitas na hora da lucta. Se as não cumprir, a nossa voz não será abafada, nem pelo gargalhar de zombaria, nem esmorecera com o desprezo dos homens” (A Capital, 8 de dezembro de 1910, 1).
O artigo de Osório, contudo, também já deixava nas entrelinhas um desencanto precoce com o regime republicano que se instalara, particularmente com a atenção dada pelos expoentes do governo provisório à justa e pretendida emancipação das mulheres em Portugal. E, no caso específico do sufrágio feminino, a intelectual identificava que as resistências masculinas permaneciam, dadas as tentativas de amainar a relevância desse debate na sociedade, por isso enfatizava no título: “A obra de emancipação feminina deve ser a obra da mulher” (A Capital, 8 de dezembro de 1910, 1).
No dia 19 de dezembro, A Capital dava abertura e opinava de forma favorável ao tema do sufrágio feminino, com notícia sobre a LRMP, apontando para as conferências que seriam realizadas pela entidade na sua agenda de luta em prol dessa causa: “Ganhando dia a dia terreno a ideia feminista, a Liga das Mulheres Republicanas vai promover uma serie de conferencias de propaganda para que seja dado voto ás mulheres na nova lei eleitoral que o governo provisorio vai promulgar” (A Capital, 19 de dezembro de 1910, 2).
Em 20 de dezembro, em nome da LRMP, mais uma vez Ana de Castro Osório assume o protagonismo do debate público em artigo intitulado “As mulheres perante a urna - Não pode ser ridiculo para a Republica-governo o que a Republica-propaganda sempre applaudiu e votou”. O tema, por si só, já era forte e incisivo, haja vista que a intelectual feminista questionava as bases históricas de coerência do próprio Partido Republicano e do governo provisório, caso não desse amparo político à causa do sufrágio feminino:
E como a monarchia não tinha interesse em educar e preparar o povo para a Republica, seguia-se que assim se ficaria eternamente, se não fosse o raciocinio que por nossa vez formulavamos, todos os que faziamos a propaganda revolucionaria para a implantação da Republica. Como não podemos educar e preparar o povo para a sua autonomia, embaraçados pelo regimen monarchico, tratemos de sacudir este primeiro, e depois, desembaraçadamente, faremos a educação republicana sob o influxo da propria republica triumphante. […] Os republicanos, tendo reconhecido a existencia partidaria da Liga, não podem negar depois as suas reivindicações. O que o Partido Republicano Portuguez pensava na oposição deve consagral-o a Republica triumphante; por isso confiamos [...] que, na reforma da lei eleitoral, à mulher ha de ser dado o voto nas modestas condições em que a Liga o reclamou. […] Temos, pois, confiança nos homens que nos governam por mandato imperativo da nação. (A Capital, 20 de dezembro de 1910, 1)
Ana de Castro Osório lançava, assim, as principais ponderações e críticas, resgatando legados de lutas comuns e chegando, inclusive, a afirmar que, em possível infortúnio dessa causa na Reforma Eleitoral vindoura, promovida pelo governo provisório, a LRMP avançaria posteriormente para espaços de debate público e reivindicações na Assembleia Nacional Constituinte da República que se formaria no ano seguinte.
Em 28 de dezembro, já em evidente contraposição aos movimentos de recuo do governo provisório em relação aos direitos das mulheres, Ana de Castro Osório, mais uma vez, recorreu ao jornal A Capital para divulgar um artigo com o seguinte título:
A questão feminista: A Republica portugueza promulgará muitas leis que utilisem á colectividade… não, porém que confiram direitos ás mulheres, que sejam, para ellas, libertadoras, pois que terá de attender aos interesses dos seus eleitores, os quaes são, em geral, antagonicos com os d’ellas. (A Capital, 28 de dezembro de 1910, 1)
No artigo, a feminista se referia ao modesto aceno do governo provisório republicano com a criação de 15 lugares na Junta de Crédito Público, visando, assim, atender às demandas de trabalho das mulheres, com idades entre 18 e 25 anos, na estrutura do serviço público nacional. Ana de Castro Osório também tocava, de forma irônica e sarcástica, na reação masculina a essa iniciativa governamental:
Apesar da modéstia d’este presente de Natal, que a Republica, por sua conveniencia, deu ás mulheres portuguezas, houve logo uma commissão dos sem-trabalho, de empregados masculinos, que foram protestar junto ao sr. Ministro das Finanças, segundo lemos nos jornaes. Porque o homem, na sua intelligente e justissima noção de direito… do costume, entende que só elle precisa comer e viver. Para as mulheres o caminho largo na prostituição das ruas, a escravidão e a miséria de trabalhos que elle de todo rejeita. Não ha duvida que a solidariedade humana é admiravel nos seus intuitos generosos, especialmente quando se trata da egualdade social dos sexos. A creação dos logares na Junta de Credito Publico não preenche nenhuma das aspirações feministas [...]. Se a mulher fosse independente pelo seu trabalho, a estatistica não accusaria tamanha degradação moral traduzida por essa palavra que até nos faz calafrios, que se chama a Prostituição, legalisada ou não legalisada. (A Capital, 28 de dezembro de 1910, 1)
O artigo, para além de uma provocação irônica ao governo provisório, dados os desencantos da LRMP com seus rumos políticos em relação aos direitos das mulheres, trazia como pano de fundo uma reflexão crítica e social das desigualdades entre os sexos, que, segundo a feminista, advinha historicamente do machismo, presente também nas ideologias socialistas e anarquistas, quando se trata das relações de trabalho.
Pela profunda dimensão crítica deste artigo, o jornal A Capital teve que, em 31 de dezembro de 1910, facultar espaço para um direito de resposta política em segunda página, com o título “Questão Feminista: Os anarchistas não consideram a mulher um ser inferior, afirma o sr. Ventura Roymão, rebatendo uma affirmativa em sentido contrario da srª D. Anna de Castro Osório”:
Os anarchistas não consideram a mulher como a fêmea, o ser inferior que desprezam ou a concorrente no trabalho que afastam ferozmente porque os prejudica. Não, minha senhora, V. Ex.ª foi profundamente injusta quando tal disse. (A Capital, 31 de dezembro de 1910, 2)
O ano de 1910 terminava com a queda da Monarquia Constitucional em Portugal e, consequentemente, com a ascensão da República, tão almejada pelas camadas médias urbanas, luta em que estiveram presentes homens e mulheres de uma geração de intelectuais que reivindicavam mudanças profundas na ordem civil e política. No caso das feministas e da LRMP, entretanto, o ano terminava com a notória desilusão para com os rumos tomados pelo governo republicano provisório em relação à sua própria agenda e demandas, como identificamos nas últimas notícias publicadas em 1910 nas páginas do periódico A Capital. A luta, contudo, continuaria, com vista à conquista da cidadania civil e política para as mulheres.
5. Conclusão
Na análise desenvolvida no periódico A Capital: Diário Republicano da Noite na segunda metade do ano de 1910, evidenciamos as alianças, os conflitos e as desilusões das expoentes do feminismo português com a agenda política republicana, principalmente em relação ao debate do sufrágio feminino. Em suas páginas, sobressaem as notícias com entrevistas, informações e artigos de opinião sobre o sufrágio feminino no contexto de organização, mobilização e triunfo republicano, em grande parte relacionadas diretamente aos debates promovidos pela LRMP, entidade de abrangência nacional com capacidade associativa de intervenção social e política.
Merece destaque a figura de Ana de Castro Osório, intelectual engajada na defesa das demandas feministas, sobretudo do trabalho, da educação e do sufrágio feminino. Não à toa, são dela os principais artigos publicados no periódico, geralmente sobre temas que têm como finalidade se posicionar e defender a formação cívica e a intervenção feminista na sociedade política da época, chamando a atenção dos republicanos e do governo provisório para os desafios dessa grande causa que visava, sobretudo, superar a situação histórica de inferioridade das mulheres portuguesas.
Portanto, a partir das notícias, com informações e opiniões, das entrevistas e dos artigos levantados e aqui analisados, é possível entrever que, no período analisado, o jornal A Capital foi um importante espaço de divulgação das demandas feministas em prol da obtenção de direitos civis e políticos, dando, assim, voz às aspirações incentivadas pelos ideais republicanos.