Está imersa no orgulho da sua experiência, na posse de um saber novo acerca do qual não pode prever ou imaginar o efeito que terá nela nos meses seguintes. O futuro de uma aprendizagem é imprevisível.
Annie Ernaux, Memória de rapariga (2023, 80)
A preparação deste dossier temático assentou originalmente no encontro das experiências humanas e culturais das coordenadoras. Este foi, claramente, o motivo que nos inspirou a propor à direção da revista ex æquo uma questão que a todas nós diz respeito, isto é, o que representa e significa fazermos parte de um património de memórias e de narrativas que, não sendo diretamente nossas, foram sendo absorvidas como histórias dentro de uma História maior: aquela que nos foi ensinada em primeiro lugar no espaço familiar e, em segundo lugar, num enquadramento mais institucional e formal, a escola, o estar em sociedade e viver em comunidade. Esta interrogação encaminhou-nos para o conceito de pós-memória que, numa linguagem mais acessível e simples, se define na intenção de criticamente pensar os nossos legados e patrimónios mais subjetivos a partir de uma multiplicidade de opções: literária, ensaística, poética, visual, musical, cinematográfica e documental (Kaplan 2013; Cammaert 2023 Vilar 2023).
Como herdeiras de uma determinada historicidade marcada por contextos, circunstâncias e modificações sociais, políticas, económicas e culturais ao longo do tempo, somos portadoras de emoções, reflexões e ações que nos exigem um compromisso, uma responsabilidade e uma prática de cidadania. Neste sentido, revela-se urgente falar, sentir e partilhar com outros/as os silêncios, as ausências e os esquecimentos de memórias tão pertinentes e relevantes para sopesarmos e compreendermos as nossas existências e as de tantas outras pessoas ao nosso lado (Khan 2021; Pimenta 2022), e que, com elevada recorrência, vão sendo sonegadas e ostracizadas pelas memórias oficiais. Queremos com este trabalho traduzir com vozes de mulheres o que é a pós-memória, a sua diversidade, complexidade e riqueza em termos de experiências, de lugares e de formas de dialogar, sentir, confrontar aquilo que não foi vivido como memória pessoal, mas que, pela interação quotidiana, doméstica e constante, foi sendo validada como nossa. Estas herdeiras da pós-memória, importa realçar, não são apenas meras recetoras e observadoras desta transmissão de memórias. Elas apresentam-se e querem ser agentes ativas de reinterpretação, tradução, criação e construção de novas, desafiadoras e desobedientes linguagens e visões no seu exercício de escuta, de pensamento e de compreensão entre passado e presente, que não são meras propostas de incursão sem rumo por espaços humanos e pelas suas narrativas. Pelo contrário, estas sugestões consistem numa atenção teórica e metodológica sobre um tempo pretérito amplo que abrange o tempo do pós-Holocausto, da experiência da escravatura, das ditaduras, das marcas e feridas da gramática colonial e imperial, da descolonização, dos processos migratórios pós-coloniais, do dever de pós-memória nas novas gerações afrodescendentes, afroamericanas, latino-americanas, sem perder de vista outras pós-memórias não menos importantes (Seligmann-Silva 2008; Araújo 2019; Santamarina 2019). Acima de tudo, há uma amplitude temporal na qual o retorno ativo e estimulante ao passado está muito ancorado aos desafios e interrogações do seu momento presente e, por essa via, apresentam dois níveis da experiência que são pelo afã da pós-memória constituídos como canais dialogantes1 e estruturantes de uma gramática humana mais inclusiva e reparadora.
A pós-memória no feminino ergue-se para colmatar espaços ainda por preencher, por mapear e dignificar sob múltiplos ângulos e abordagens - feminista, antropológica, histórica, económica, pós-colonial, decolonial - de modo a edificar um caminho de autoridade de memória e de reparação histórica no cânone de um mundo demasiada e hegemonicamente masculino (Hirsch & Smith 2002; Mitroiu 2018; Basile & González 2020; Piçarra, Pereira & Barreiros 2021). Estas intenções reparativas não são recentes (Morrison 1993; Schraut e Paletschek 2008; Leggott & Woods 2014; Leggott 2015; Butler 2017; Davis 2019; Roy 2020). A conquista de um terreno de pensamento das mulheres na e da pós-memória mereceu, desde logo, uma atenção que se estruturou nos seus primórdios como proposta no estudo das memórias não-vividas, ou de segunda geração, ancoradas às experiências, vivências, perceções e emoções resultantes do cenário profundamente marcado pelo Holocausto e pelos tempos de reconstrução dos/as sobreviventes e das suas famílias. A memória do Holocausto é, hoje, um património de carácter universal, pela sua extensa latitude humana e pelo impacto inegável na reconstituição das narrativas de identidade e de vida quer locais, nacionais, quer globais. Porém, as camadas interiores e menos visíveis do pós-Holocausto mereceram, entre outras, uma pergunta que de alguma maneira forneceu o húmus e as sementes para o importante salto que sustenta um paradigma, em construção, mas já suficientemente sólido; a pergunta veio da voz de um sobrevivente do Holocausto, o escritor húngaro Imre Kertész: “A quem pertence Auschwitz?” (apudRibeiro 2010, 14). A resposta foi claramente o ponto de partida para a criação desse dever de memória que Primo Levi (2011), também ele um sobrevivente dos campos da morte, traduziu nos seus trabalhos como uma espécie de responsabilidade cívica e moral, viagem etnográfica e exame histórico em torno da máquina horrorífica da barbárie humana que foram os campos de extermínio nazis.
Entre outros/as autores/as muito próximos/as da alma destes contextos, destaca-se o trabalho de Marianne Hirsch, para quem o conceito de pós-memória “descreve a relação da segunda geração com experiências marcantes, muitas vezes traumáticas, que são anteriores ao seu nascimento, mas que, não obstante, lhes foram transmitidas de modo tão profundo que parecem constituir memórias em si mesmas”2 (Hirsch 2008, 103)3. A força estruturante desta definição atravessou não apenas contextos geopolíticos e históricos diversos, como catalisou para o espaço do pensamento académico uma miríade de estudos e projetos de investigação em busca de respostas que outras experiências globalmente importantes viram poder ser mapeadas, criticamente analisadas e legitimadas à luz deste quadro paradigmático que a pós-memória abre (Medeiros 2021). Importa, deste modo, realçar que as posições teóricas em torno do termo pós-memória nem sempre são unânimes. No entanto, é essa componente da oposição, do contraditório em potência e do debate crítico que a pós-memória almeja instigar entre pares (Sarlo 2012). Marianne Hirsch e Valerie Smith mostraram em 2002, num dossiê especial sobre “Gender and Cultural Memory”, a importância de haver mais esforços para se desenvolverem estudos e teorias sobre a memória sob uma perspectiva feminista. Como as próprias referem, “o género é uma dimensão inescapável das relações de poder diferenciais, e a memória cultural é sempre sobre a distribuição do poder e reivindicações contestadas de poder” (2002, 64).
Neste sentido, este dossier temático pretende dar continuidade a esses esforços de diálogo entre género e pós-memória que surgiram há duas décadas. Temas como os legados das lógicas de colonialidade ocidental nos contextos pós-coloniais europeus mostram como os horizontes são ricos em número e, principalmente, na sua diversidade humana e ontológica. Ocorrem-nos, como exemplos, o neocolonialismo; o patriarcado estrutural; o racismo sistémico (Alves e Maeso 2021; Maeso 2021; Maeso, Alves, e Fernandes 2021); a reparação histórica nos países africanos e latino-americanos colonizados (Can e Chaves 2022; Magdelaine-Andrianjafitrimo 2022; Silva 2022) e, sobretudo, as lutas cívicas e os ativismos de género das comunidades indígenas (Labrea, Kiekow, e Dornelles 2019; Lamartine e Silva 2022; Roldão, Pereira, e Varela 2023); os processos de restituição cultural e de reconhecimento moral das atrocidades cometidas nos vários genocídios, regimes ditatoriais e totalitaristas (Machado e Granja 2021).
Em tempos mais recentes, vários são os cenários nos quais a pós-memória como gesto performativo, mapeador de ausências e criador de diálogos vem manifestando a sua força, o seu vigor e capacidade interativa (Rendeiro 2022; Ribeiro e Rodrigues 2022; Sousa 2022). Sem procurar criar hegemonias na autoridade de pensar e de reinterpretar as memórias coletiva, comunitária, familiar e individual, o sujeito da pós-memória transporta consigo a capacidade ou mérito interdisciplinar, convocando para os seus esforços e objetivos uma multi-epistemologia de saberes e de contributos oriundos das mais variadas áreas: desde as artes plásticas, artes visuais, artes performativas, passando pela literatura, o cinema, o documentário, o teatro, a música, e desaguando, por ora, numa gradual conquista da arena pública por um ativismo concentrado num dever de memória, de reparação histórica (Hall 2018) e de restituição cultural (Sousa, Khan e Pereira 2022, 11-22).
O apelo a um encontro de vozes femininas da pós-memória resultou nos artigos aqui compilados e publicados. Por último, é importante salientar que este número temático tem como sentido mais soberano o compreender, mapear e escutar o lugar do feminino na gramática humana e analisar o incomensurável universo de experiências, vozes, narrativas e percursos de quem luta, critica e cuida de futuros sustentáveis baseados no diálogo em equilíbrio entre passado e presente.
O presente número abre com o artigo de Sheila Khan, intitulado “O compromisso da pós-memória no feminino: Uma ecologia de saberes”. Nele a autora aborda as contradições inerentes às experiências históricas, sociais e culturais decorrentes do processo de descolonização e de democratização da sociedade portuguesa através de uma lente tanto crítica como pessoal. Esta última é resultado da identificação da autora como “filha de duas vitórias, palavras que curiosamente se escrevem no feminino: a independência moçambicana e a democracia portuguesa”. Equipada de uma experiência particular que a situa como recipiente de uma pós-memória feminina, Khan tenta compreender de que modo a afasia pós-colonial é abordada em trabalhos de pós-memória. Para tal, apoia-se na obra criativa de escritoras afrodescendentes que têm revolucionado e abalado a experiência literária em Portugal, pondo em causa as narrativas de excecionalidade do ex-império colonial. Por outro lado, Khan expande o foco a outras realidades e sujeitos da pós-memória feminina, ao dar destaque às visões e narrativas das “filhas” da pós-memória portuguesa branca de experiência africana e da descolonização portuguesa.
Centrando-se na análise de “Eu empresto-te a Mariá” (2020), de Luísa Semedo, e Um Fado Atlântico (2022), de Manuella Bezerra de Melo, Margarida Rendeiro apresenta-nos um artigo focado na desconstrução do imaginário europeu pós-colonial que glorifica a sua multiculturalidade. Tendo por base uma leitura interseccional, decolonial e anticapitalista, Rendeiro demonstra como o conto de Semedo e o romance de Melo questionam o pensamento classista e patriarcal subjacente ao poder neocolonial, nas sociedades europeias capitalistas, sobre o Outro que é, no caso, a mulher imigrante, sujeito subalterno em sociedades estruturalmente patriarcais. As narrativas aqui em causa elaboram uma representação humanizada das vivências de mulheres imigrantes, desconstruindo o mito pós-colonial capitalista sobre integração. Elas são ainda representações de resistência, configurando-se como representações de pós-memória da subalternidade, que é perpetuada através de várias formas de opressão num mundo estruturado pela desigualdade.
Lisa Nalbone oferece-nos um artigo em que apresenta uma articulação da pós-memória no romance Música de ópera, da escritora espanhola Soledad Puértolas. Sendo este um romance que incide sobre os anos da Guerra Civil Espanhola, Nalbone mostra como três gerações de mulheres lidam com os efeitos dos anos turbulentos dessa guerra, apoiando-se na teórica responsável pelos estudos da pós-memória, Marianne Hirsch. A autora mostra-nos como este romance abre uma nova fase no trabalho literário de Puértolas, que anteriormente se caracterizava pela supressão da memória e a ausência de articulação dos traumas do passado. Em Música de ópera, pelo contrário, e como analisa Nalbone, o legado do passado comemora-se através da articulação da pós-memória, ao integrar experiências intergeracionais centradas no feminino.
Dando um salto para o continente americano, Orquídea Moreira Ribeiro analisa o papel da pós-memória e da escrita reparativa em obras das escritoras afro-americanas Harriet Jacobs, Zora Neale Hurston, Gayl Jones e Toni Morrison. Fazendo uma leitura que abarca os séculos XIX e XX, Ribeiro questiona e expõe as memórias traumáticas de tempos passados veiculadas nos textos das quatro escritoras enunciadas. Na sua leitura crítica, a obra criativa destas escritoras revela personagens que carregam o fardo das memórias traumáticas e a vontade de partilhar pós-memórias. Na sua busca de quebrar o silenciamento, Ribeiro demonstra como estas narrativas fazem isso mesmo, trazendo a sua voz pessoal para o espaço público, ao mesmo tempo permitindo uma leitura reparadora do trauma causado por eventos históricos, trauma este que perdura ao longo de gerações de mulheres afro-americanas. Neste sentido, a palavra artística serve como uma ferramenta de empoderamento intergeracional deste grupo de mulheres.
Numa abordagem não já de obras literárias, Sílvio Marcus de Souza Correa enriquece este dossier ao focar o seu interesse na análise do filme documental O silêncio das palavras, de Michäel Sztanke e Gaël Faye (2022). Correa transporta-nos agora para o continente africano no contexto da guerra civil do Ruanda. Por meio da análise das vozes de três mulheres, protagonistas no documentário, o autor analisa como estas vozes femininas funcionam como um arquivo. Correa discute o dever de memória sobre os crimes cometidos contra mulheres em contexto de guerra civil e o silêncio em torno de crimes conexos ao genocídio. Apoiando-se no trabalho sobre o antissemitismo e autoritarismo do filósofo e teórico alemão Theodor Adorno, entre outros, Correa apela, na sua análise, à necessidade de se dar voz ao horror dos crimes cometidos contra os mais vulneráveis, neste caso, as mulheres. O documentário constitui-se não apenas como uma ferramenta de reparação, mas também como um arquivo de pós-memória para aqueles/as que tiveram a fortuna de não viver o horror da guerra.
O dever de lembrar impõe uma dimensão coletiva para que a Shoah não se repita. É neste sentido que Mónica Gama apresenta uma análise da obra O que os cegos estão sonhando?, de Noemi Jaffe (2012), inserida na literatura testemunhal, composta por um diário de uma sobrevivente da Shoah, o relato da filha e um ensaio da neta da sobrevivente. O artigo analisa a forma como estas narrativas são encadeadas numa linhagem feminina e matriarcal, defendendo a ligação familiar para fazer perdurar uma memória coletiva e histórica.
Viviane Almeida, Renata Flaiban Zanete e Lurdes Macedo analisam os processos de aproximação e de diálogo entre gerações e a construção de um compromisso de pós-memória a partir do trabalho de Catarina Alves, antropóloga e cineasta, que vem pela sua lente, nomeadamente com os documentários Viagem aos Makonde de Moçambique (2019) e Margot (2022), reparar muitos dos silêncios e algum desconhecimento em torno da obra de Margot Dias, etnóloga autodidata e precursora em Portugal da utilização do registo fílmico em pesquisas de campo. Duas gerações de antropólogas que cruzam energias complementares, a do testemunho e a da testemunha, para, a partir de uma clarividência a dois, constituir o papel da pós-memória como espaço de um ato ativo e interativo.
Ainda no plano das artes, mas à luz da teoria da pós-memória e das representações sobre o feminicídio, Gabriela Traple Wieczorek discute as práticas artísticas feministas de Panmela Castro, Elina Chauvet e Jamie Black, realizadas em espaços públicos ou em projetos participativos. O corpus analisado afigura-se como capítulos diferentes de uma mesma história de resistência contra as violências de género. Os trabalhos artísticos analisados inserem-se numa dinâmica de atos de transferência de uma memória traumática e reivindicam, simultaneamente, um espaço para essa memória no contexto cultural e político dos respetivos países.
A fechar o leque de artigos deste número dedicado às pós-memórias no feminino, Alleid Ribeiro Machado apresenta-nos um contributo em que analisa a questão da senescência no conto “A velha” (2020), de Teolinda Gersão. Partindo de estudos centrados na narrativa portuguesa, tais como os de Miguel Real, Annabela Rita e Carlos Reis, entre outros, a autora reflete sobre o envelhecimento e a condição feminina na contemporaneidade, um tema ainda pouco explorado, tanto a nível da ficção como da crítica literária académica. “A velha” é, deste modo, uma narrativa que dialoga com problemáticas relacionadas com a vulnerabilidade das mulheres, inclusive de mulheres idosas. De acordo com Alleid Machado, a protagonista do conto configura-se como um emblema de resistência feminina, revelando-se o conto como uma proposta irónica de Gersão.
Este número da revista inclui ainda duas recensões críticas sobre livros escritos por mulheres e cujos textos reforçam e reverberam a relevância da responsabilidade da pós-memória no feminino. Sandra Sousa analisa, entre um tom pessoal e académico, a obra de Sarah Ladipo Manyika Between Starshine and Clay: Conversations from the African Diaspora (2022), na qual as múltiplas cartografias identitárias, assim como as narrativas de vozes reais, servem de guias para uma compreensão mais plena e contextualizada do valor da diáspora e da sua relação com antepassados, também eles faróis para outras experiências humanas. Nesse sentido, a pós-memória é um exercício, no minucioso olhar de Sandra Sousa, um mapa para percebermos o impulso temporal, espacial e telúrico cujo elemento unificador é, sem dúvida, o alcance de uma continuidade existencial e humana, claramente sustentada nesta pulsão que a pós-memória oferece, estrutura e desafia. Finalmente, Vítor de Sousa oferece uma análise cuidada do mais recente romance de Isabela Figueiredo, Um cão no meio do caminho (2023), uma obra onde não há rodapés ficcionais, nem disfarces literários para abordar, com a transparência a que nos habituou a escritora, as várias camadas da solidão, do exílio pátrio e das múltiplas vulnerabilidades que a Revolução dos Cravos e que o nome liberdade não solucionaram; com rigor, as memórias coletivas daqueles/as que lembram e vivem o Portugal pós-25 de Abril, vozes com rostos específicos, ainda esperam, com ousadia e coragem, uma espécie de acolhimento, uma escuta compreensiva e reparadora.