1. Introdução
O presente artigo parte da afirmação de Albuquerque (2005) de que a imigração não é um fenômeno assexuado. Silva e Azevedo (2005) apontam que as mulheres migrantes são invisibilizadas como agentes sociais, tanto no que diz respeito aos estudos acadêmicos, quanto socialmente. Este artigo pretende contribuir para preencher esta lacuna, relatando um estudo levado a cabo sobre mulheres imigrantes brasileiras que são mães. A escolha deste objeto baseia-se em estudos que mostram que estas experiências migratórias apresentam características particulares e que precisam de uma compreensão mais aprofundada, quando se trata de mulheres que migraram com filhos/as (Ackers 1998; Perista 1998).
Para Neves et al. (2016), a feminização das migrações resulta de um conjunto de fatores estruturais condicionados pelos papéis de gênero, pela discriminação sexual e pela globalização. Para as autoras, a escolha de migrar, por parte das mulheres, passa principalmente por razões de índole econômica, de reunificação familiar e de constrangimentos culturais. No atual estado de desenvolvimento das relações capitalistas, passa a ser constante a motivação de migração com a promessa de uma vida melhor, por meio de símbolos de consumo (Franken, Coutinho e Ramos 2008).
Deste modo, neste artigo pretende-se compreender: a) os motivos da migração destas mulheres mães; b) as dificuldades enfrentadas; c) as condições de acolhimento experienciadas nos países que as receberam; d) as suas redes de apoio; d) as relações com o país de partida. Ainda que se tenha avançado no conhecimento teórico sobre as especificidades das migrações de mulheres, muitas questões ainda se encontram por responder. A presente investigação procura responder a algumas delas, através da observação das dimensões acima assinaladas.
França (2012) lembra que, no campo das migrações, é importante que não se caia na tentação de apresentar as mulheres migrantes como seres que têm experiências idênticas, independentemente de classe social, raça, etnia ou grau de escolaridade. Neste sentido, sublinhamos que as participantes do nosso estudo possuem perfis heterogêneos no que diz respeito a quase todas essas características. Apesar da heterogeneidade, defendemos a hipótese de que as motivações e as dificuldades na migração são relativamente homogéneas quando se fala de mulheres emigrantes brasileiras que são mães. Deste modo, analisam-se as suas narrativas autobiográficas, suscitadas através da escrita de cartas para as/os suas/seus filhas/os.
Autores como Oliveira, Santos e Lacerda (2020) descrevem o grande potencial das cartas como ferramenta de obtenção de dados. Com tal perspetiva em mente, resolvemos utilizar as cartas para perseguir o objetivo de obter relatos autobiográficos da vivência de migração de mulheres brasileiras que são mães. Através da análise dos seus escritos, obtemos retratos dos países de partida e de chegada, das suas relações sociais, do que deixam e do que levam, do que vivem e do que sentem. Partimos da hipótese de que a mescla de razão e emoção, vertida nas cartas, permite aceder à complexidade das teias da migração e dos processos económicos, sociais, políticos e culturais que as tecem.
2. Os processos migratórios têm gênero: mulheres migrantes
Marques e Góis (2012, 107) chamam a atenção para a feminização das migrações e trazem dez recomendações para se repensar as imigrações e as emigrações em Portugal. Numa destas recomendações, os autores dizem ser urgente repensar a lógica simplista de reunião familiar que se centra no processo de migração laboral masculina, seguida de uma reunificação familiar feminina. Pesquisas mais recentes, como a realizada em Portugal pelo Observatório das Migrações em 2020, mostram que é crescente o número de mulheres que migram por decisão própria e autônoma (Oliveira 2020). Estes dados merecem, no entanto, um olhar mais aprofundado, como o que ensaiamos neste artigo, acerca de algumas dimensões.
Um primeiro aspecto que merece destaque, quando se tenta compreender questões que envolvem migração e gênero, diz respeito ao mercado de trabalho. As mulheres migrantes enfrentam diversas dificuldades para conseguirem inserir-se e raramente mantêm o nível salarial anterior à migração (Ackers 1998; Perista 1998). Por exemplo, Oliveira (2020, 190) mostra que em 2019 os homens estrangeiros desempregados em Portugal eram 7.740 e as mulheres estrangeiras na mesma situação 11.380.
A questão do trabalho não pode ser dissociada das funções relativas ao cuidado, mais uma faceta da complexidade da migração feminina. As migrantes, além de encontrarem no novo país barreiras diversas associadas ao cuidado das pessoas que com elas migram, muitas vezes permanecem responsáveis por manter cuidados de pessoas que ficam no país de origem (Perista 1998). As obrigações relativas ao cuidar, somadas à falta de rede de apoio, contribuem para a perda de autonomia, de independência e de capacidade de autodeterminação. Não tendo estas mulheres apoio prático e afetivo da família, são as vizinhas e amigas que acabam por formar uma rede de apoio quase sempre constituída só por mulheres (Ackers 1998). Sher-Censor e Mizrachi-Zinman (2021) evidenciam que a experiência das mães imigrantes é crucialmente afetada pelo processo de adaptação de filhos e filhas. O referido estudo destaca a importância de políticas públicas que sejam ancoradas na escuta destas famílias.
Relativamente a outros obstáculos à inserção social, é vasta a bibliografia sobre o papel da xenofobia e sobre a opressão vivida pelas pessoas que migram. Stolcke (2000) chama a atenção para o fato de que os humanos são xenófobos e tendem a rejeitar o que é diferente. Para esta autora, é importante não perder de vista que o fundamentalismo cultural parte da ideia de que todos os povos têm as suas próprias culturas e que misturá-las necessariamente resulta em conflito. Sendo assim, é necessário salvar a cultura nacional afastando os e as imigrantes. Neves et al. (2016), ao tratarem da migração feminina em Portugal, também apontam a xenofobia como muito presente e central na experiência das imigrantes. Diante destas questões, é impossível não concordar com a premissa de que as imigrantes são expostas a diversos mecanismos de opressão e dominação (França 2012). Destas reflexões nasce outra das hipóteses investigadas neste estudo: as emigrantes brasileiras passam por dificuldades no processo migratório que estão ancoradas na hostilidade ao culturalmente diferente.
3. Escolhas e caminhos metodológicos: narrativas de mães migrantes - silêncios e lágrimas
No que diz respeito às escolhas metodológicas, optámos por utilizar cartas como uma via para obter relatos autobiográficos. Interessava-nos que nessas narrativas as mulheres participantes da pesquisa tivessem como referência de leitores/destinatários/as os/as seus/suas filhos/as. Sendo assim, foi pedido que elas lhes escrevessem uma carta, contando o seu processo de migração. Não foi dada nenhuma instrução no que diz respeito ao conteúdo da carta nem sobre o momento em que seria lida. Ou seja, era possível escrever como se o/a destinatário/a fosse ter acesso à carta nos dias de hoje ou no futuro. O principal compromisso foi deixar que as participantes se sentissem livres para escreverem como quisessem.
As cartas foram escritas entre outubro e dezembro de 2021, período em que o país enfrentava uma pandemia, ao mesmo tempo que lidava com um presidente genocida (Caponi 2021). Assim, não se pode retirar tais narrativas do contexto existente no Brasil no momento da pesquisa.
O Quadro 1 apresenta uma síntese breve de quem são as participantes da pesquisa. Os nomes das mães e das/dos destinatárias/destinatários foram alterados para manter o anonimato das participantes. Nas análises aparecem identificadas com um nome fictício e o país no qual são imigrantes.
Para conseguir encontrar as potenciais participantes foi utilizada a técnica de bola de neve. Todas as participantes emigraram do Brasil e não existiu nenhum filtro prévio relativamente aos países para os quais migraram.
Nome | Destinatária/o da carta | País para o qual migrou | Idade da/o filha/o | Tempo de permanência no novo país | Cidadania do país para o qual migrou |
---|---|---|---|---|---|
Amanda -32 anos | Túlio - filho Bernardo - filho |
Portugal | Túlio - 7 anos Bernardo - 4 anos |
3 anos | Não |
Denise - 45 anos | Lívia - filha | Portugal | Lívia - 15 anos | 3 anos | Não |
Fernanda - 38 anos | Júlia - filha | Inglaterra | Júlia - 10 anos | 5 anos | Não |
Graça - 36 anos | Taissa - filha | Emirados Árabes Unidos | Taissa - 10 anos | 7 anos | Não |
Laura - 54 anos | Giovana - filha Daniel - filho |
Portugal | Giovana - 19 anos Daniel - 17 anos |
2 anos | Sim |
Leila - 35 anos | Jorge - filho | Portugal | Jorge - 7 anos Hugo - 4 anos (filho não destinatário da carta nasceu em Portugal) |
6 anos | Não |
Lúcia - 46 anos | Cecília - filha | Inglaterra | Cecília - 9 anos | 6 anos | Não |
Mariana - 45 anos | Serena - filha Yara - filha Liana - filha |
Estados Unidos Emirados Árabes Unidos |
Serena - 22 anos Yara -15 anos Liana - 6 meses |
Ficaram 5 anos nos EUA 6 anos nos Emirados |
Não |
Pillar - 42 anos | Lúcia - filha | Itália | Lúcia - 15 anos | 1 ano | Sim |
Renata - 31 anos | Maria - filha | Emirados Árabes Unidos | Maria - 4 anos | 7 anos | Não |
Rita - 38 anos | Daniela - filha | Portugal | Daniela - 7 anos | 3 anos | Não |
Perante o pedido de escrita da carta, a reação mais comum foi a de questionar o fato de nunca terem pensado em fazê-lo. Disseram que a ideia era ótima e que lamentavam que não tivessem escrito cartas ou diários desde o momento que decidiram migrar. Esse lamento, em alguns casos, veio acompanhado de um autoquestionamento sobre os silêncios acerca do processo de migração, nomeadamente, a falta de abertura ao diálogo com as/os filhas/os sobre o assunto.
A posteriori, depois de quebrarem o silêncio, ainda que não sobre todos os tópicos, muitas das participantes disseram que ficaram emocionadas quando escreveram a carta, tendo mesmo chorado. Elas atribuíram essa reação ao misto de sentimentos que a migração suscita. A escrita fez com que revivessem todo o processo de migração.
A escolha de escrever a carta para que fosse lida no presente ou no futuro também revelou questões importantes. Aqui, chamamos a atenção para o fato de que as participantes que escolheram escrever a carta para que ela fosse lida no futuro muitas vezes situaram essa leitura num momento de ritual de passagem para a/o filha/o. Renata, por exemplo, escolheu escrever a carta para que a filha a lesse quando terminasse o ensino secundário. Outras mulheres disseram que optaram por escrever para serem lidas na idade adulta por acreditarem que neste momento eles/elas serão mais capazes de entender a complexidade de medos e sensações que a migração causou. Uma participante declarou que a carta deveria ser lida quando ela se sentisse “realmente em Portugal”. Ela já mora em Portugal há 2 anos, mas disse que ainda não sente que “chegou” e só quer que os filhos leiam a carta quando ela se sentir “parte do lugar”, o que, segundo ela, é provável que nunca ocorra.
A técnica de análise de conteúdo foi aplicada ao tratamento das cartas. As categorias usadas estão vertidas nos pontos seguintes deste artigo. Nas narrativas de história de vida é fundamental que, após a análise, o protagonismo da narradora seja mantido. Para isso, é importante que as participantes leiam as análises antes que estas sejam publicadas (Yow 2015). Nesta pesquisa todas as participantes tiveram acesso às análises e expressaram as suas opiniões, que foram incorporadas neste documento final.
4. Análise das narrativas
4.1 Vamos fugir para outro lugar: emigrando do Brasil
O porquê da migração, o sair do lar ou o carregar para o outro lado do mundo a casca do caracol - para usar a imagem de Lugones (2020) - são questões que parecem inquietar todas as participantes da pesquisa. Aqui escolhemos trazer o início e o fim da carta de Lúcia, que parece resumir bem tais questões, exprimindo também a esperança por trás dos relatos:
Numa noite você me perguntou por que a gente foi embora. Eu poderia dizer que estávamos indo pra um lugar melhor, mas qual lugar pode ser melhor pra uma criança de 3 anos do que o quarto que ela reconhece, o bairro que a chama pelo nome, do que a casa dos avós perto do mar?
[...]
Talvez seja esse o porquê de termos ido embora. A gente saiu pra aprender.
E uma vez que a gente aprende, questiona, acolhe, entende, experimenta e compartilha, a gente vive!
Nós fomos embora pra viver. (Lúcia, Inglaterra)
O trecho abaixo, escrito por Pillar, a única das respondentes que saiu do Brasil já com o presidente Jair Bolsonaro no poder, revela, quase que didaticamente, o que ocorreu no país, e mostra a importância do contexto do país de partida para a decisão de migração:
O país tinha muitos problemas, mas a gente tentava melhorar as coisas. Desde que o Bozo [presidente Bolsonaro] virou presidente, tudo piorou. As escolas não querem mais aceitar matrícula de quem precisa de adaptação, como você. As crianças e jovens com deficiência não tiveram nenhuma atenção na pandemia. Muitos adultos perderam seus empregos e estão passando mais necessidades. Muita gente morreu porque o governo só pensou em dinheiro, falou muita mentira e não deu a vacina antes para as pessoas. (Pillar, Itália)
Ainda que muitas cartas não fizessem referência direta ao momento político, econômico e social do país, quem as redigiu atribuiu a saída do Brasil a questões como a violência urbana e as desigualdades sociais, que estão intimamente relacionadas com o contexto. A análise de trechos sobre tais questões deixa a pista de que, muitas vezes, não é o novo país que atrai, mas sim o Brasil que, com seus problemas estruturais, repele estas mulheres.
No que concerne à violência urbana, foi possível perceber que é um fator para a saída, e o desejo de sair é ainda mais forte quando se percebe que a violência pode atingir os filhos e, principalmente, as filhas. Essa questão já havia aparecido na literatura, que aponta o bem-estar dos/as filhos/as como a maior causa da migração feminina (Sher-Censor e Mizrachi-Zinman, 2021). Salienta-se que as mães de meninas se referiram, também, ao medo da violência de gênero e de crimes como estupro e assédio sexual:
Sendo você mulher, não tenho coragem de morar no Brasil. Lá existem crimes contra mulheres que você nem imagina. (Fernanda, Inglaterra)
As narrativas são muito próximas das apresentadas por Santos, Novaes e Chaves (2018), que abordaram a relação migração-maternidade com o foco em mulheres angolanas que imigraram para o Brasil. Assim como no estudo mencionado, as participantes da presente pesquisa demonstraram que veem na migração uma possibilidade de serem responsáveis por proporcionar um futuro melhor para as/os filhas/os. No relato a seguir é possível observar estas questões e perceber que, mesmo antes do nascimento, a criança já influenciou a decisão de emigrar do Brasil:
Tudo começou quando você ainda estava na minha barriga. A preocupação sobre como seria criar um filho em um país com tantos problemas sociais nos fez buscar um ‘cantinho’ melhor. (Leila, Portugal)
Ainda que estudos como o de Oliveira (2020) mostrem que as migrações femininas estão em processo de serem mais autônomas e motivadas por questões relacionadas com o trabalho e o estudo das próprias mulheres, as narrativas apresentadas nas cartas das participantes deste estudo muitas vezes se aproximam-se do que constatou Perista (1998) acerca das oportunidades profissionais e/ou de estudo para o companheiro no novo país:
E ali decidimos tentar, pois para o seu pai que era lutador de MMA seria a melhor oportunidade de trabalho, realização pessoal e familiar. [...] de ter um salário digno, saúde, de poder respirar financeiramente! (Mariana, Emirados Árabes)
Viemos porque o seu pai teve uma ótima oportunidade de estudar aqui. (Fernanda, Inglaterra)
É importante observar que a promessa de melhores condições financeiras por meio de um emprego, na maioria dos casos para o marido, é tão apelativa que, por vezes, fez com que as mulheres saíssem do Brasil sem saber nada sobre o país para onde iriam.
4.2 Pois bem cheguei: será que posso chamar de lar?
Nos relatos, foi possível perceber que, antes de contarem aos/às filhos/as sobre a emigração, as mães tinham muito receio de que a notícia não fosse bem recebida. Ao relatarem esse medo, é interessante notar que elas acabam por enumerar várias pessoas e lugares de que, em sua opinião, os/as filhos/as sentiriam saudades:
Quando te contei da mudança para a Itália alguns meses antes da viagem, meu maior medo era que você não gostasse ou não quisesse vir. Iria te tirar os finais de semana alternados com seu pai; o convívio com a Rosa, nossa empregada que cuidou de você com tanto amor por 7 anos; com seus tios, primos, a vovó que está tão velhinha. Sairíamos da nossa casa, na qual você morou por 12 anos. Você iria, mais uma vez, ter que mudar de escola. Já era a quarta… (Pillar, Itália)
Fiz uma lista, você sentiria falta do gato, das avós, da casa em que morávamos. De tudo. Hoje sei que eu sinto mais falta dessas coisas do que você. (Lúcia, Inglaterra)
Fazer esse “inventário” de tudo o que ficaria para trás parece ser importante para as participantes da pesquisa que, muitas vezes, ao longo das cartas, demonstram que elas próprias sentem falta dessas pessoas e lugares. Ou seja, o que no início dos relatos aparece como potenciais motivos para que os/as filhos/as pudessem ser resistentes à mudança, acaba sendo uma expressão das saudades e medos da própria mulher migrante.
Outro ponto a sublinhar é a clara percepção de que as participantes, por vezes, se descrevem como pessoas completamente diferentes no início do processo de migração e, depois, passado um tempo de estadia no novo país. Essa autodescrição, como uma pessoa em constante mudança por causa da migração, lembra a pergunta feita por Alvarenga (2005): Quantas mulheres podem habitar uma mulher enquanto esta se desloca no território da imigração? A mulher que chegou no novo país foi retratada, quase sempre, como mais fraca e desprotegida do que a atual. A atual parece mesmo corresponder a várias mulheres, capaz de realizar múltiplas tarefas, conforme aponta Alvarenga (2005, 8).
Cheguei nos Emirados tão menina, tão inocente, faixa branca de vida. (Renata, Emirados Árabes)
Isso não quero te contar assim por carta, um dia vamos conversar. Mas quando cheguei, tinha medo de tudo. E principalmente tinha medo de falar. Seu pai falava, por mim. Hoje não é assim. Conheço o que posso falar. (Fernanda, Inglaterra)
A enumeração de muitas e, por vezes, contraditórias emoções envolvidas no primeiro contato com o novo país foram um ponto comum nas cartas. Esta enumeração traz a questão da mistura de sensações que estas mulheres experimentaram quando emigraram do Brasil. A utilização de letras maiúsculas foi recorrente nesta parte das narrativas, o que sublinha a importância de todos estes sentimentos:
No começo foi uma mistura de sentimentos: MEDO, ALEGRIA, TRISTEZA, SAUDADE, ANSIEDADE, ETC… (Graça, Emirados Árabes)
Eu me sentia um pouco insegura para lidar com todas essas questões. Havia uma insegurança dentro de mim típica de uma imigrante que receava ser vista como uma intrusa. (Amanda, Portugal)
Este último relato apresenta o medo de ser considerada uma intrusa. Lendo o resto desta carta e as das outras participantes, fica claro que este medo inicial muitas vezes se concretiza. A falta de um sentido de pertencimento, por parte das imigrantes, é amplamente denunciada:
Por mais que a vida cotidiana aqui ofereça segurança, acesso aos serviços públicos, qualidade de vida… Eu sinto quase que uma sensação de alívio quando penso na volta. É muito difícil pertencer a esse lugar, sentir-se convidada a compartilhar a vida com as pessoas portuguesas. Na sua escola você também tem a experiência de ser estrangeira, desde sempre. (Rita, Portugal)
Um dos pontos centrais desse sentimento de não pertencimento diz respeito à falta de pessoas com as quais elas se identifiquem. Neste ponto, percebe-se que as mães têm especial preocupação com as/os filhas/os, desejando que com elas/es tudo seja diferente. As mães escreveram que querem que eles e elas se sintam parte do novo país, e possam escolher lá ficar, sentindo-se em casa.
4.3 Sinto saudades dos que ficaram: preocupação de não poder cuidar
Desde a narrativa do momento do embarque no Brasil, as mulheres mencionam nos seus relatos as pessoas que ficaram no país. Ao falar dessas pessoas, principalmente mães e familiares idosos/as, as mulheres revelam sentimentos negativos relativamente ao sofrimento que elas acreditam que causaram noutras pessoas:
[...] deixei sua vó aos prantos no aeroporto, e com uma mochila nas costas e com o coração apertado, voei. (Renata, Emirados Árabes)
Sem dúvida, o sentimento mais relatado nas cartas é a saudade. A falta que as mulheres disseram sentir, principalmente de amigos/as e familiares, é o que mais as liga ao Brasil. Por vezes, a distância das pessoas queridas foi relatada inclusive como motivo para retornar:
Nada mais vai ser o mesmo, minha filha. Estar entre dois países é estar sempre com saudades de algum lugar. (Lúcia, Inglaterra)
Ficar longe da família, não ter a convivência com os primos, tios e familiares bem como a falta de suporte familiar me fez pensar em voltar. (Leila, Portugal)
As saudades e os sentimentos negativos são ampliados nos relatos de momentos nos quais pessoas queridas ficaram doentes no Brasil. Em tais trechos é possível notar a questão levantada por Perista (1998) de que as mulheres que migram são cobradas não só pelo cuidado daqueles que migram com elas, como também pelo cuidado com quem fica no país de origem.
No mesmo sentido, foram relatados casos de pessoas que ficaram no Brasil e estavam muito doentes ou até mesmo morreram. Nesses casos, as participantes narraram a sensação de impotência e até mesmo de culpa por não poderem cuidar do/a parente:
[...] mamãe está escrevendo essa carta no chão da sala com baby Luna de 6 meses brincando no chão, aflita pois sua Tia Mariza em tratamento de câncer desde agosto de 2021 acabou de passar mal e chegou ao hospital agora, orando para ela se recuperar e quando lermos essa carta ela já tenha vencido o câncer. (Mariana, Emirados Árabes)
Mas como a vida não é um conto de fadas, aconteceu uma fatalidade, perdemos LEANDRO [...] Então começamos a repensar a possibilidade se realmente vale a pena continuar aqui longe de amigos e família, mas por enquanto estamos aqui. (Graça, Emirados Árabes)
No último depoimento fica claro que a questão de problemas de saúde de parentes que ficaram no Brasil pode ser uma das razões para que tais mulheres pensem em retornar. Os relatos deram conta de que não se trata só de uma vontade de estar perto dos familiares que passam por problemas de saúde, mas também de uma sensação de que tudo seria diferente se elas estivessem no Brasil, cuidando dos/as familiares doentes.
Numa das cartas a questão do não poder cuidar tomou uma proporção tão grande que foi central no relato. Essa participante migrou primeiro sem a filha, que só se juntou a ela um ano depois. A carta trouxe muitas reflexões sobre essa escolha, e a participante relatou que perdeu momentos fundamentais, como a primeira menstruação da menina. Mesmo que temporariamente, esta mulher vivenciou os problemas da maternidade transnacional e o seu relato é um convite para pensar as questões psicológicas que podem aparecer em tal processo. Na literatura, a maternidade transnacional é referida como sendo envolvida em muito sofrimento (Martínez 2020).
A decisão de vir antes de você foi sábia, porém dolorosa. Jamais imaginei que passaríamos 1 ano separadas. Mas eu falhei. (Denise, Portugal)
A paternidade transnacional também aparece referida com tom de sofrimento nas cartas de mulheres que migraram sem os pais de seus filhos e filhas:
Eu tinha total compreensão do impacto dessa mudança. E sofria por antecipação pelas dores que você sentiria. Lembro quando faltavam poucos dias para a viagem e a sua ficha caiu que você ficaria muito tempo sem ver seu pai. Um ano é algo abstrato para sua cabeça que adora pensamento concreto. Eu só pude te abraçar e garantir que você poderia falar com ele por vídeo todos os dias. (Pillar, Itália)
No relato apresentado, fica claro o papel da tecnologia, conforme salienta Martinez (2020). Chamadas de vídeo foram citadas em diversas cartas como importantes ferramentas para aproximar não só os pais que não migraram, como também outras pessoas da família que ficaram no Brasil.
4.4 Me sinto muito sozinha como mãe: a maternidade no novo país
Um dos pontos mais relevantes relatados nas cartas é o sentimento de solidão. Os depoimentos aproximam-se muito do que foi apontado por Hall (2006): as formas de comportamento culturalmente moldadas levam os indivíduos a manterem relações mais íntimas com os membros do seu próprio grupo. Assim, muitas cartas trazem relatos de aproximação com outros imigrantes e dificuldade de relacionamento com os nativos do novo país.
A literatura sobre mulheres migrantes é praticamente consensual no que diz respeito ao impacto que a migração tem nas suas carreiras (Ackers 1998; Perista 1998; Oliveira 2020). As participantes da pesquisa não fugiram a esse padrão. Quase todas as cartas apresentam narrativas de dificuldades de inserção no mercado de trabalho que podem ser atribuídas principalmente a três motivos intimamente ligados e articulados: xenofobia, machismo e falta de redes de cuidados para as crianças. A discussão sobre a questão do cuidado também é recorrente em outros estudos focados em mães imigrantes (Perista 1998; Cunha e Atalaia 2019). O que o presente estudo revela de inédito é a forma como estas mulheres escolheram contar aos seus filhos e às suas filhas sobre o impacto do cuidado nas suas carreiras profissionais.
Nunca se sinta culpada, minha querida. Deixei muita coisa profissional para depois. Preciso cuidar de você e aqui não temos apoio. Mas nunca se culpe. (Fernanda, Inglaterra)
Aqui destacamos a carta escrita por Pillar, que tem uma filha com deficiência. Esta carta contém um ponto de vista muito importante no que diz respeito à rede de apoio quando se fala de pessoas com deficiência. Ainda que ela pudesse contar no Brasil com algum apoio, Pillar ressalta que procurou com a migração uma maior segurança no que diz respeito aos cuidados que a filha irá receber quando ela morrer. O medo de morrer e não ter quem cuide de seus filhos ou suas filhas com deficiência é muito presente nas mães de tais pessoas e já foi relatado na literatura (Alves 2016; Faria 2020).
Viemos porque meu maior medo era pensar em envelhecer e não saber como você ficará quando eu não estiver mais aqui. Viemos para um país que respeita as pessoas idosas. (Pillar, Itália)
No seu conjunto, as cartas apresentam relatos de mulheres que sentem falta de poder contar com outras pessoas para dividir as atribuições de cuidado dos/as seus/suas filhos/as. Cabe, contudo, observar que também foram escritos relatos sobre a criação de redes de apoio no novo país, sem a família, mas com amigos/as, na totalidade de casos, outros/as migrantes, também brasileiros/as. Tal como apontado por Ackers (1998), também se nota nas cartas uma maior referência a amigas mulheres, como pontos centrais nessa nova rede de cuidados que se formou.
4.5 Por ora vamos ficando: vivências positivas no novo país
A incerteza de saber se estão a fazer bem ao ficar no novo país foi recorrente nas cartas. Soma-se a essa insegurança a dúvida de saber se as/os filhas/os gostam do novo lugar. Algumas relataram que, por medo de uma resposta negativa, nem sequer perguntam, mas outras escreveram as respostas positivas que receberam com um tom de alívio e confiança de que estão no caminho certo. Mais uma vez, é possível constatar o que a literatura aponta relativamente à importância da adaptação do/a filho/a para a relação das mães com o novo país (Sher-Censor e Mizrachi-Zinman 2021).
Quando eu te perguntei essa semana se você gostava mais de morar aqui ou no Brasil, e você respondeu rápido aqui, meu coração ficou tão aliviado. E quando te perguntei a razão da resposta e você disse que era porque aqui não tem baratas (que você tem paúra) nem políticos malvados como o Bozo, eu tive certeza de estar no caminho certo. (Pillar, Itália)
Se a falta da família é um dos pontos mais sensíveis apresentados nas cartas, temos que destacar que um dos aspectos mais positivos são as amizades construídas no novo país:
Viver nos Emirados nos deu tantas experiências mãe e filha, fizemos tantas viagens, conhecemos amigos que chamamos de família. (Renata, Emirados Árabes)
A vivência cultural mais rica e diversa foi muito citada pelas participantes no estudo. Essa questão está muito presente nas cartas das mulheres que migraram para a Europa. Não podemos deixar de notar, assim, que existe nos relatos, ainda que de forma sub-reptícia, uma supervalorização da cultura dos países do Norte epistêmico. Essa valorização tem íntima relação com o epistemicídio de alguns saberes e a hierarquização dos conhecimentos e culturas, conforme alertam as epistemologias do Sul (Santos 2018). Outra relação que pode ser estabelecida, no que diz respeito a essa valorização da cultura europeia, parte da visão trazida por Segato (2012, 110), de que o colonizador se coloca como solução do problema que criou. Transpondo para a questão aqui discutida, o colonizador europeu tira aos colonizados a possibilidade de ter a sua cultura valorizada e, depois, no caso por meio da migração, “devolve” às/aos colonizadas/os o “acesso à verdadeira cultura”, que, não por acaso, é a cultura europeia.
Mas também navegamos por países que você apontava no mapa, descobrimos culturas, pontes, temperos, praias de pedra, praias de concha, quadros renascentistas e edifícios modernos. (Lúcia, Inglaterra)
Aqui você vai ter acesso a cultura de verdade. (Fernanda, Inglaterra)
A aprendizagem de uma nova língua foi igualmente apontada como um ponto positivo. Destaca-se que, também neste ponto, algumas narrativas mostram que a migração trouxe convivência com outras culturas e línguas, não só as do novo país:
Havia um tímido desejo de fazer o doutorado fora do Brasil, o que poderia trazer uma vivência rica e proporcionar ao mesmo tempo a fluência em uma língua estrangeira (inglês ou francês) e inclusive deixar essa herança para vocês: fluência em outro idioma, algo que nunca tive e sempre desejei. (Amanda, Portugal)
Vi você ser alfabetizada em Inglês, aprender a agradecer em Polonês, a contar em Árabe e cantar em Romani. (Lúcia, Inglaterra)
Achamos lindo você aprender o português de Portugal e ter a oportunidade de estudar em uma escola pública. (Leila, Portugal)
O último trecho chama a atenção para a visão de que em Portugal é possível estudar em escolas públicas e no Brasil não. Embora este impedimento não seja real, o que a participante parece ter querido pontuar é a qualidade que ela acredita que a educação pública portuguesa tem, em comparação com a brasileira. Várias cartas apresentam considerações sobre a educação no novo país, sempre trazendo aspectos positivos:
A educação de qualidade podemos considerar que você tinha: estudava numa das melhores escolas do país, sem dúvida alguma. Mas estamos a falar da educação conteudista e de “alta performance”, destinada basicamente ao êxito no vestibular/Enem. Eu queria mais para si no sentido de uma evolução pessoal, na qual você fosse submetida a um cenário diferente, com colegas de realidades que fossem distintas da sua. (Denise, Portugal)
Ainda no que diz respeito à educação, é importante frisar que não só de experiências positivas foram construídos os relatos. Também foram apontadas barreiras, na sua maioria linguísticas e burocráticas, para a inserção no sistema formal de educação do novo país. Aqui trazemos o relato da carta da Pillar, que salientou ter enfrentado muitas dificuldades para conseguir toda a documentação que permitiria que a filha tivesse o suporte necessário para estudar. Noutro excerto da carta a mesma mãe relata: “A gente tem aprendido na prática que a Itália também tem defeitos, como a burocracia que ainda não deixou você ir para a escola.”
5. Considerações finais
A narrativa em forma de carta mostrou-se muito frutífera analiticamente e permitiu não só conhecer os motivos e obstáculos do processo de migração das mulheres, mas também observar os aspectos do seu percurso que as participantes desejam que sejam conhecidas por seus filhos e suas filhas. Este é, talvez, o maior contributo deste texto. Futuros estudos podem partir do que aqui apontamos como motivações e dificuldades da migração, tendo em conta que apresentamos o retrato que estas mulheres escolheram mostrar. Dispor destes relatos endereçados é muito relevante, uma vez que é clara a centralidade dos/as filhos/as nos processos de migração feminina.
No que diz respeito à hipótese de que as migrantes brasileiras passam por dificuldades no processo migratório, dificuldades essas que estão ancoradas na hostilidade ao culturalmente diferente, é possível identificá-la em alguns relatos. No entanto, se quisermos sintetizar em dois aspectos centrais as dificuldades por elas percebidas, diríamos que são: (1) a entrada e permanência no mercado de trabalho no novo país; (2) as dificuldades para a construção de redes sociais de apoio. Os dois aspectos estão interligados e remetem-nos para o conceito de desfiliação de Castel (1994). O autor ampara-se exatamente nestes dois eixos - trabalho e redes sociais - para caracterizar pessoas que sofrem processos de desfiliação, sendo remetidas para as margens da sociedade. Novas pesquisas podem valer-se dessa relação teórica para aprofundar a discussão que aqui iniciamos.
Já a hipótese de que as motivações e as dificuldades na migração são relativamente homogêneas quando se fala de mulheres migrantes brasileiras que são mães foi plenamente verificada nas cartas analisadas. A centralidade dos/as filhos/as parece ser o ponto que une as narrativas, e faz com que, apesar das heterogeneidades geográficas e sociais, as motivações e dificuldades apresentem semelhanças e persistências transnacionais.