Num período de novas e profundas desigualdades acentuadas pelo contexto pandémico, em particular para quem não tem alternativa a abandonar o seu país ou região de origem, urge dotar os governos, a sociedade civil e, sobretudo, as pessoas, de ferramentas para fazer face às dificuldades que daí advêm.
Assente num modelo de aprendizagem intercultural, o programa de mestrado europeu MFamily (Erasmus Mundus in Social Work with Families and Children) surgiu em 2013 como resposta aos (novos) desafios colocados às famílias em contextos de marginalização e vulnerabilidade em geografias diversas. Ao longo de 14 capítulos organizados em três secções, a presente obra, publicada em 2021 pela Mundos Sociais1, reúne os resultados de investigações de natureza fundamentalmente qualitativa, conduzidas por estudantes2 do referido programa de mestrado no âmbito das suas dissertações.
A primeira e mais extensa secção do livro (Families, Immigration, and Gender Contexts) convoca o/a leitor/a a refletir sobre conceitos como sensibilidade cultural, aculturação, adaptação e conformidade no exercício da parentalidade pelas famílias imigrantes, oferecendo ainda uma reflexão sobre relações de género e a “genderização” da pobreza. Organiza-se em seis capítulos, que integram investigações conduzidas no norte da Europa (Noruega e Suécia), passando por Portugal e visitando ainda o continente africano (Uganda). Resulta da investigação nos países nórdicos a identificação de obstáculos e ambivalências na relação entre as famílias imigrantes e os países de acolhimento no que respeita às estratégias e práticas parentais. Com efeito, os resultados sugerem a presença de definições paradoxais do que constitui o “superior interesse da criança”, com a adoção de estratégias de aculturação por parte dos países de acolhimento assentes na homogeneidade (assimilacionistas), que podem falhar em ir ao encontro das necessidades específicas das famílias imigrantes. São, neste âmbito, levantadas importantes questões sobre a pertinência da adoção de estratégias de negociação e compreensão mútua, assentes numa lógica de integração. Esta é, com efeito, entendida como a estratégia mais equilibrada de aculturação (e.g. Berry 1997), por pressupor um compromisso entre a manutenção da cultura de origem das pessoas imigrantes e a adoção de práticas e costumes da sociedade de acolhimento. Este conjunto de capítulos aponta, assim, pistas relevantes para a redução dos índices de stress nos grupos em processo de aculturação, por via da abertura de quem os acolhe para a inclusão de culturas diversas, em oposição à exclusiva imposição dos seus costumes. Nos dois últimos capítulos da primeira secção é explorada a forma como a imigração e os programas para a capacitação económica de mulheres oriundas de países com culturas marcadamente patriarcais (Nepal e Uganda) afetam as relações de género. Os resultados reforçam a centralidade da independência económica das mulheres e da adoção de valores culturais democráticos enquanto fatores que atenuam as desigualdades entre mulheres e homens, oferecendo importantes contributos para a atuação junto destas populações.
A segunda parte do livro (Children and Youth in School and Care Contexts) integra, ao longo de quatro capítulos, investigação em torno da temática das crianças e jovens em contextos institucionais, desde a escola às instituições de acolhimento e reabilitação. Da leitura desta secção perpassa, desde logo, uma dicotomia que tem vindo a ocupar de forma progressiva o debate público, que resulta da comparação entre ensino tradicional e ensino “não-tradicional”. Num contexto em que as potencialidades de novas configurações escolares e educativas se encontram já amplamente documentadas, incluindo em Portugal (com protagonistas como António Sampaio da Nóvoa e José Pacheco, fundador da quase quinquagenária e diferenciada Escola da Ponte), o estudo sobre as experiências de estudantes no Uganda vem evidenciar potenciais benefícios da implementação de abordagens mais centradas na promoção da autonomia e resiliência dos/as estudantes. Do discurso direto de crianças em modelos educativos distintos resultam questões que merecem uma reflexão por parte de decisores/as políticos/as e instituições educativas à escala global, a partir de vivências como aquelas que a seguir se transcrevem3: “para sermos bons/boas alunos/as temos de trabalhar muito, não cometer erros [...] e nunca perturbar os/as professores/as” (aluno no modelo de ensino tradicional) ou “se errarmos todas as respostas, aprendemos com os nossos erros e corrigimo-los, para conhecermos a matéria” (aluno no modelo de ensino “não-tradicional”) (p. 101). Noutro capítulo, a partir de uma experiência numa escola primária na Noruega, destaca-se a importância das práticas colaborativas no seio de equipas multidisciplinares em contexto escolar (e.g. professores/as, enfermeiros/as, assistentes sociais) na promoção de uma educação e aprendizagem inclusivas. Os capítulos finais exploram as perspetivas de crianças e jovens com experiências de vida adversas, que em algum momento determinaram o acolhimento institucional (na Nigéria, Portugal e Uganda). É destacada a importância dos serviços de acolhimento e reabilitação destas crianças e jovens na construção de um projeto de vida em que há, por parte das próprias, esperança e aspirações relativamente a uma trajetória bem-sucedida. Para isso, importa que as interações com cuidadores/as, mães, pais e outros/as que possam ter a guarda direta durante a infância, assentem no reconhecimento da singularidade de cada criança e na importância de estas serem ouvidas.
Nos quatro capítulos que compõem a terceira e última parte da publicação (Children and Welfare Policy Contexts), transfere-se o foco para as políticas e legislação internacionais que privilegiam o bem-estar na infância. Os primeiros capítulos sublinham a importância da transposição de diretrizes políticas centradas no “superior interesse da criança” para as práticas de profissionais de serviço social, como forma de assegurar o bem-estar (e o futuro) das crianças que se encontram em situação de vulnerabilidade. Depois, analisam-se os desafios dos processos de aprendizagem e transferência de políticas entre geografias distantes não apenas a nível territorial, mas também institucional (Noruega e Bolívia). A investigação realizada sugere que as condições institucionais podem “sabotar” estes processos, pelo que, em determinados contextos, a prioridade deverá residir na promoção do desenvolvimento político interno, embora nunca perdendo de vista as boas práticas de países com quadros legais mais robustos. Os dois últimos textos da publicação remetem para a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) da Organização das Nações Unidas (ONU). No primeiro, explora-se a aplicação do artigo 22.º, que prevê uma proteção especial às crianças refugiadas, a ser assegurada pelo Estado e pelas organizações competentes. As conclusões da análise realizada no campo de refugiados/as de Nakivale (Uganda) convocam um importante debate sobre a forma como as organizações internacionais e os governos têm vindo a garantir o cumprimento dessa proteção, atendendo às necessidades específicas das crianças refugiadas e assegurando (ou não, como a autora verificou em Nakivale) direitos básicos como a saúde e a educação. O último capítulo remete para o artigo 12.º da CDC, que estabelece o direito das crianças a exprimirem livremente a sua opinião relativamente a questões consigo relacionadas, e a verem essa opinião ser tomada em consideração. A participação na tomada de decisão de crianças com experiências de vida únicas é reconhecida como uma importante ferramenta de promoção do seu próprio bem-estar, e de melhoria da assistência a outras crianças com experiências análogas.
Entre as múltiplas virtudes desta publicação encontra-se, num primeiro momento, a de se coligir em formato de livro os resultados de investigações realizadas no âmbito de dissertações de mestrado. Assim, enquanto é assegurada a divulgação do trabalho realizado no âmbito do programa Erasmus Mundus MFamily, garante-se que o trabalho desenvolvido pelos/as estudantes ultrapassa as fronteiras dos repositórios das universidades. Além disso, garante-se o cumprimento desse propósito com manifesta qualidade científica e contemporaneidade, acrescentando à literatura existente pela abrangência geográfica e temática, com um quadro teórico de referência sólido, o que atesta a probabilidade de permanência no conjunto de bibliografia a recomendar sobre a temática. Por fim, há a destacar a relevância da publicação no domínio das práticas profissionais e políticas públicas, assumindo-se como uma ferramenta útil para decisores/as políticos/as, profissionais e ativistas que trabalham com famílias, crianças e jovens em diferentes contextos globais. Ao abordar tópicos tão atuais como a (i)migração, a diversidade cultural, as relações de género e o desenvolvimento dos Estados de bem-estar à escala global, a presente obra oferece importantes reflexões sobre as políticas e práticas que visam melhorar as condições de vida de famílias, crianças e jovens em todo o mundo.
No contexto atual de múltiplos conflitos, vulnerabilidades e mobilidades de natureza diversa à escala global, o livro Families, Children and Youth in Global Contexts constitui uma (cada vez mais) urgente reflexão sobre território, identidade(s), heterogeneidade cultural e o direito à diferença, com o olhar global que estes fenómenos convocam.