1. Introdução
Há uma relação estreita entre linguagem e colonialidade que se observa desde os primeiros relatos de colonizadores portugueses no Brasil, como é o célebre caso de Pero de Magalhães Gândavo ao descrever a fonética do tupi: “não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente” (2008, 65). Entretanto, a presença de uma mentalidade excludente e autoritária atravessa os séculos e chega ao mundo contemporâneo com contundentes reverberações. Frantz Fanon, por exemplo, que se dedicou longamente à relação entre língua e submissão colonial, afirma que “existe na linguagem uma extraordinária potência” (2008, 34).
Neste artigo, mostramos como pretensos defensores da língua e dos bons costumes utilizam normas linguísticas para cercear identidades destoantes do que prescreve a hegemonia. Assim, analisamos criticamente a reação conservadora no YouTube ao discurso de posse da acadêmica Heloísa Teixeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). Ao utilizar o vocábulo “outres” em sua fala, a renomada intelectual e ativista chama atenção ao item lexical, convidando-nos a repensarmos o binarismo da linguagem, inclusive nos círculos acadêmicos. Em resposta ao seu discurso, dezenas de comentários surgiram, criticando o uso de linguagem não binária, também chamada linguagem neutra, no discurso da acadêmica. Esses comentários, além de ignorarem o conteúdo do discurso, tentam deslegitimar a trajetória intelectual de Teixeira por conta do “desvio” de uma norma que, em teoria, deve ser impositiva num contexto solene.
Tendo isso em mente, nossa análise almeja demonstrar que a reação conservadora ao uso de “outres” é, na verdade, uma perpetuação do legado colonial que se inscreveu no Brasil como mentalidade coletiva. Lilia Schwarcz (2019) argumenta que o autoritarismo brasileiro se infiltrou como discurso em nossas práticas sociais, cerceando as conquistas históricas de grupos marginalizados. É o caso da população LGBTQIA+, cujos avanços em direitos civis são constantemente limitados por reações conservadoras de vários tipos. No que se refere à linguagem não binária (doravante LNB), os setores conservadores da sociedade brasileira, muitas vezes alinhados às pautas da extrema-direita, fazem da pretensa “defesa” da língua uma justificativa para atacarem a diversidade.
Neste artigo, oferecemos uma base teórica do contexto geral em que se insere o problema e do referencial sobre o qual nos apoiamos. Antes de analisarmos os comentários no vídeo, passamos a uma breve discussão sobre pesquisas anteriores que são relevantes para a nossa análise. Em seguida, apresentamos um levantamento dos diferentes comentários feitos no YouTube da ABL, organizando-os por categorias. Por fim, tecemos algumas considerações sobre a reencenação de uma mentalidade colonial por meio desses ataques.
2. Língua e colonialidade
Com a chegada europeia às Américas no século XVI, o sistema cultural eurocristão do Ocidente passou a se articular como retórica dominante. Consequentemente, a conexão entre língua e colonialidade tem uma relação próxima com a expansão colonial. Por isso, argumentamos que a retórica contrária à LNB se alicerça nos mesmos pressupostos que deram forma à empreitada colonial da Idade Moderna. Assim, essa discussão tão contemporânea se inscreve num terreno amplo de reflexões pós-coloniais e decoloniais, uma vez que, na raiz da questão, está um modus operandi similar ao que tem ocorrido no Brasil há cinco séculos. Afinal, como ressaltam Gabriel Nascimento (2019) e, antes dele, Fanon (2008) e Lélia Gonzalez (1984), é preciso pensar o papel da linguagem em relação às questões simbólicas da colonialidade. O que está em jogo, portanto, é um imaginário “civilizatório” que se desdobra em ataques infundados à LNB.
Ao fazermos alusão à ideia de colonialidade como chave interpretativa do corpus, encontramos nosso alicerce na tradição do pensamento decolonial latino-americano. Partindo de Aníbal Quijano (1992), o marcador social da raça foi um dos elementos fundadores do processo colonial nas Américas, junto ao qual se desenvolveu um processo de colonialidade do saber. Assim, as epistemologias afroindígenas foram empurradas para a categoria de saberes "primitivos" num contexto em que a língua se tornou um elemento crucial da expansão do imperialismo europeu. No caso do Brasil, o português lusitano tornou-se, gradativamente, norma única em um país com milhares de idiomas, um processo cujo resultado sentimos até hoje nos africanismos identificados como “erro de português” (Gonzalez 1984). Isso abre margem para pensarmos na própria ideia de norma padrão como justificativa para a exclusão de grupos sociais afastados das posições de poder.
Em se tratando da linguagem não binária no Brasil, a extrema-direita, sobretudo após a ascensão do bolsonarismo, tem cooptado tal debate a fim de promover um pânico moral (Borba 2019) e desviar a atenção de projetos de poder mais abrangentes e de consequências graves, tal como o envolvimento da milícia no governo federal, como tragicamente ilustrado pelo assassinato de Marielle Franco. Assim, para a população em geral, o desejo de defesa da norma linguística se infiltra no senso comum como reprodução de um projeto de poder dedicado a eleger “ameaças” à “pureza” linguística da nação. Ademais, em perspectiva transnacional, críticas ao uso da LNB se tornam recorrentes não apenas em português, como também em muitos outros idiomas e outros contextos, inclusive na Europa atual, visto que a mentalidade colonial ainda está enraizada nas antigas metrópoles. Quando reproduzido por pessoas que em geral desconhecem o funcionamento de uma língua, esse mesmo desejo faz com que a binariedade de gênero seja alçada ao posto de tesouro nacional a ser “protegido”. Tudo isso se desdobra numa linguagem bélica de “ameaças” a serem exterminadas por quem, supostamente, zela pela moral.
Historicamente, os momentos de crise do capital tendem a abrir espaço para ideias extremas que conduzem grupos autoritários a elegerem, de maneira falaciosa, responsáveis pela situação em que se encontram. Com a ascensão do bolsonarismo no Brasil, as minorias sexuais passaram a ocupar esse lugar junto com demais setores perseguidos pela extrema-direita, como feministas, intelectuais de esquerda e praticantes de religiões de matriz africana. Nesse sentido, João Cezar de Castro Rocha (2021), ao analisar o que intitula como “Brasil pós-político”, afirma que a retórica do ódio ganhou vulto no país a partir de 2019. Analisando a ascensão de figuras caras à extrema-direita, como Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho, Rocha argumenta que, para que possa existir, o bolsonarismo necessita de uma linguagem bélica ultranacionalista baseada em teorias da conspiração, como a hipotética “ideologia de gênero” e os supostos riscos da LNB.
Para Maldonado-Torres (2007), o princípio racional do Ocidente, ilustrado pela máxima cartesiana “Penso, logo existo“, exclui da categoria de Ser a vasta maioria dos povos, crenças e saberes. Essa ideia está diretamente ligada à discussão da não binariedade, uma vez que a própria noção dicotômica de gênero masculino ou feminino é um princípio que não se aplica a muitos dos povos originários das Américas. Estevão Fernandes, por exemplo, no livro Existe Índio Gay? (2017), demonstra como as sexualidades foram colonizadas durante o período de invasão espanhola e portuguesa nas Américas. A compreensão de gênero dos primeiros colonizadores europeus partia de uma premissa religiosa que não condizia com as múltiplas formas indígenas de estar no mundo. Fernandes reconta o caso de Tibira, um indígena assassinado por tropas francesas por performar gênero de uma forma “inadequada“ e “pecaminosa“ diante do padrão eurocristão.
Tibira não foi apenas assassinado, mas trucidado por um tiro de canhão. Seu corpo foi explodido em diversas partes e aniquilado, assim como muitos dos casos atuais de crimes de ódio contra mulheres trans. Em 2022, 65% dos assassinatos de transexuais e travestis no Brasil se deu com requinte de crueldade (Benevides 2023). Essa conexão do século XVI com o XXI aponta para o desejo de não apenas interromper a existência de quem destoe da norma, mas exterminá-la ao ponto de reduzir a cinzas quaisquer vestígios desse corpo outrificado. Trata-se de um fenômeno análogo ao que simbolicamente ocorre na reação conservadora contra a LNB porque quem se opõe a ela, na maioria dos casos, não se contenta em apenas não a utilizar, mas faz questão de combatê-la como um mal a ser extirpado. Assim sendo, a aversão que hoje aumenta contra a LNB tem uma raiz de, pelo menos, cinco séculos no Brasil e ecoa um projeto que se apropria da “moral” e dos “bons costumes” para delimitar o que é “correto” ou “natural”. Como postulam Ursula Brevilheri, Fabio Lanza e May Sartorelli (2022, 4) a LNB proporciona uma “ruptura com estruturas da cisnormatividade, ou seja, um literal rompimento com o sistema moderno colonialmente construído”.
No que diz respeito à maneira como o gênero é imposto a partir de categorias binárias, María Lugones (2014) explora o conceito de colonialidade do gênero ao argumentar a favor da necessidade de um feminismo decolonial na América Latina. Lugones postula que “a missão civilizatória usou a dicotomia hierárquica de gênero como avaliação, mesmo que o objetivo do juízo normativo não fosse alcançar a generização dicotomizada dos/as colonizados/as. Tornar os/as colonizados/as em seres humanos não era uma meta colonial” (2014, 938). Essa ideia é reforçada por Rodrigo Borba e Tommaso Milani (2019) que, ao discorrer sobre o olhar colonial, apontam que as metáforas usadas para indígenas mostravam essas pessoas como menos do que humanas. Assim, com o desdobramento da empreitada colonial ao longo dos séculos, a ideia original de corpos ”impuros” pela ausência de fé se converteu no discurso eugenista dos ”perversos” e ”anormais”, patologizando, como ensina Foucault (2015), sexualidades não normativas no contexto da sociedade burguesa. Em outras palavras, os corpos confinados à categoria de pecaminosos em 1500 foram pouco a pouco sendo associados à degeneração pseudocientífica própria do século XIX.
Desse modo, a relação entre fé e ciência como retóricas autoritárias do projeto colonial europeu encontra correspondente na lúcida síntese de Walter Mignolo (2017, 5): “no século XVIII, o ‘sangue’ como marcador de raça/racismo foi transferido para a pele, e a teologia foi deslocada pela filosofia secular e pelas ciências”. É assim que se definem os dois momentos de violência colonial do Ocidente, ou seja, a expansão marítima europeia dos séculos XV e XVI impôs-se pela religião, sendo seguida pelo imperialismo neocolonial dos séculos XIX e XX, cuja base foi a missão “civilizatória” do homem branco. Nossa hipótese, portanto, é que o que hoje se observa é uma reencenação colonial desses mesmos princípios, uma vez que o ataque à ocorrência de “outres” no discurso de Heloísa Teixeira faz uso recorrente de um léxico patologizante próprio da retórica ocidental da “degeneração” e da “vergonha”.
Logo, ao nos referirmos à “degeneração”, almejamos demonstrar que as premissas higienistas da “civilização” se transformaram em linguagem social no Brasil. Assim como a catequese do século XVI ou a violência eugenista do século XIX, os comentários feitos contra o discurso de Heloísa Teixeira no YouTube revelam como pouco mudou em relação à mentalidade colonial do Brasil. O fato de que os ataques ao discurso da acadêmica se dão em resposta ao uso de apenas um termo não binário ao longo de todo o discurso é particularmente representativo do estado em que essa discussão se encontra, uma vez que um vocábulo foi suficiente para ofuscar todo o resto de sua fala na vasta maioria dos comentários ao vídeo da ABL. Os estudos discutidos na próxima seção abordam reações à inclusividade, focando principalmente o ambiente virtual.
3. Reações à inclusividade
Os povos colonizados, como nos lembra Nascimento (2019, cap. 4), “conhecem - e bem - o jogo da identidade e diferença”. Os ataques à LNB sublinham a “hierarquia das sexualidades” (Oliveira, Sarmento e Mendonça 2014, 59), em que a heterossexualidade e o binarismo são considerados a norma e o que difere disso é desviante. Cristiane Soares e Gláucia Silva (2024) observam que em várias línguas românicas - nomeadamente, francês, italiano, português e espanhol - práticas que promovem inclusividade são recebidas frequentemente com resistência e hostilidade. Atilio Butturi Junior, Nathalia Camozatto e Bianca da Silva (2022, 324) observam que “a problematização da linguagem neutra no Brasil [...] parte de estratégias de normalização que cindem as modalidades de vida entre aquelas mais saudáveis e morais, por um lado, e as demais, lançadas à precarização e ao questionamento de sua validade”.
O fato é, no entanto, que até mesmo formas binárias podem ser questionadas, como aconteceu com a escolha de Dilma Rousseff, que exerceu a presidência do Brasil entre 2011 e 2016, de ser chamada “presidenta” em vez de “presidente”. Leilane Stauffer (2019, 21) argumenta que a flexão da palavra no feminino teria sido “a marcação política de Dilma Rousseff em negar a política cristalizada no Brasil” e, através da análise de seis matérias disponibilizadas em veículos de imprensa diferentes entre 2011 e 2016, mostra que houve uma tentativa de se deslegitimar e silenciar a expressão “presidenta”, que salientava o fato de que uma mulher e não um homem ocupava o cargo político mais elevado do país.
A deslegitimação da não binariedade vai, como mencionado, muito além da linguagem. Voltando a atenção ao ambiente virtual, Manoela Gonçalves e Bianca Guizzo (2021) analisaram comentários em dois canais do YouTube de pessoas não binárias e destacaram a falta de compromisso com os direitos de pessoas que escapam de normas estabelecidas pelos padrões coloniais. A análise de Gonçalves e Guizzo (2021) revela alguns padrões nos comentários negativos nos dois canais. Um deles é a equiparação entre gênero e sexo biológico, apontada anteriormente por Judith Butler (2004), e a consequente patologização da não binariedade: se o gênero é determinado biologicamente, as pessoas não binárias são doentes. Gonçalves e Guizzo identificam ainda a caracterização da não binariedade como ficção científica, o que aproxima as pessoas não binárias da monstruosidade. O imaginário de “monstros”, a propósito, está na raiz da dominação colonial, que busca desumanizar sujeitos em regiões a serem invadidas. No prefácio ao clássico Os condenados da terra, de Frantz Fanon, Sartre (1968, 17) afirma que “o europeu só pode fazer-se homem fabricando escravos e monstros”, ou seja, paralelamente à escravização de povos não-brancos, a retórica da monstruosidade fundamenta a linguagem colonial do Ocidente. Como ressaltam Butturi Junior, Camozzato e Silva (2022, 343), uma das táticas do bolsonarismo (e, por extensão, da extrema-direita em geral, tanto no Brasil como no mundo) é insistir que a infância deve ser protegida da “monstruosidade moral representada pelas comunidades gênero dissidentes e feministas”. E continuam:
É justamente no interior destes dispositivos que aparecerá a discussão sobre a linguagem neutra e as estratégias de sua desqualificação, sustentada quando a decadência dos costumes é relacionada aos homossexuais e às feministas, quando o neoconservadorismo elege a família como vértice com as estratégias neoliberais, quando emerge, no Brasil, uma série de práticas e discursos que têm como mote a racialização das pessoas gênero-dissidentes, nos limites da morte. (326)
A moralidade e a necessidade de proteção de crianças está presente no debate sobre o uso da LNB, tal como discutimos em texto anterior (Chagas, Soares e Silva 2024). A “moralidade do idioma” é destacada também por Mara Glozman (2022), que ressalta que parte da população vê a LNB como deturpação de normas representativas de marcas sociais. Para Glozman, portanto, é preciso desfazer a visão normativa e moral da variação linguística.
O olhar moral sobre questões de gênero é reproduzido até mesmo por crianças, como demonstra Gabrielle Pedra (2019), que analisou questões relacionadas a gênero em quatro vídeos produzidos por crianças. Dois dos vídeos discutem a chamada “ideologia de gênero” e reproduzem o discurso predominantemente religioso que entende o gênero como algo “natural” e diz que não se nasce homem ou mulher, mas “Deus os fez e as fez”, e “Deus nunca erra” (Pedra 2019, 155). Volta-se, portanto, à equiparação entre gênero e sexo biológico. Como ressalta Pedra, esses vídeos revelam falta de empatia por parte das crianças que os realizaram. Por outro lado, os outros dois vídeos discutidos por Pedra desconstroem a ideia de brinquedos para menino e para menina, e revelam o entendimento infantil sobre questões de gêneros como construções.
Katie Slemp, Martha Black e Giulia Cortiana (2020) analisam a incorporação da LNB em espanhol nas plataformas Twitter e YouTube e os comentários sobre o tema, comparando-os às posições oficiais da Real Academia Española (RAE) e da Academia Argentina de Letras (AAL). Os comentários foram classificados como positivos, negativos e neutros. Observou-se uma reação geralmente positiva na plataforma YouTube (76% dos comentários), o que contrasta com a posição prescritivista da RAE e da AAL. A plataforma Twitter, por outro lado, apresentava 45% de reações negativas (e 39% positivas). Verificou-se, além da falta de compreensão sobre mudança linguística e sobre sistemas linguísticos em geral, a discriminação persistente contra a comunidade LGBTQIA+.
Enquanto a RAE considera que o masculino genérico é a única forma correta de fazer referência a grupos mistos (RAE s.d.), a Academia Brasileira de Letras não se posicionou sobre o tema da LNB/linguagem neutra. As reações ao discurso de Heloísa Teixeira cobram tal posicionamento, como vemos a seguir.
4. A linguagem da “vergonha”, da “destruição” e da “safadeza”: análise dos comentários
O vídeo da posse de Heloísa Teixeira na cadeira 30 da Academia Brasileira de Letras (ABL), publicado no canal do YouTube da ABL no dia 28 de julho de 2023, gerou 80 comentários até o dia 1/11/2023. Todos eles foram postados à época da publicação do vídeo e manifestavam, na sua maioria, críticas ao uso da palavra “outres”, usada por Teixeira ao final de sua fala. Em seu discurso, a intelectual destaca, dentre outros pontos, sua filiação aos Estudos Feministas e de Gênero e sua postura enquanto acadêmica que sempre vinculou a pesquisa ao ativismo político. Particularmente relevante para nossa análise são as reflexões da acadêmica sobre o conceito e o papel da língua como instituição social e que tem, desse modo, uma responsabilidade social e democrática: “A língua é, principalmente, a raiz onde se atuam as discriminações, o controle de minorias, etnias e territórios. Dessa forma, os usos da língua podem ser o espaço de pertença, de exclusão, de separação e até da eliminação do outro” (ABL 2023, 34:31). Teixeira termina seu discurso dizendo que “sentados junto comigo nessa cadeira de número 30 estarão os sonhos e as propostas de muitos outros, outras e outres dessa cidade, infelizmente, ainda partida” (ABL 2023, 35:00). Ao mencionar o pronome “outres”, portanto, Teixeira revela uma escolha explícita e consciente de usar a língua e a cadeira 30 da Academia como espaços de inclusão. Essa postura, já anunciada em seu discurso e que tem lhe servido de base em toda sua trajetória profissional, não deveria causar espanto ou estranhamento: ao usar “outres”, Teixeira renova o compromisso assumido há décadas com a multidão de pessoas marginalizadas que sempre foram foco de seus estudos e de sua dedicação profissional. “O que me move e o terreno onde trabalho e sonho são as culturas emergentes, mulheres, negros, periferias, direitos humanos e o poder excludente das instituições”, declara ela em seu discurso (ABL 2023, 32:54).
O “outres” usado por Teixeira está, sem dúvidas, carregado de posicionamentos claramente assumidos e abertamente declarados e que poderiam gerar profundos debates e profícuas discussões. Os comentários que acompanham o vídeo, no entanto, são na maioria breves, repetitivos, vazios de qualquer argumentação teórica e surpreendem, esses sim, por não trazerem à discussão outras passagens do discurso de Teixeira com traços políticos e ideológicos mais marcados. Esse excesso de atenção a apenas uma palavra em um discurso com mais de trinta minutos indica como a reação contrária à LNB se baseia, de fato, num imaginário “civilizatório”, dado que todo o conteúdo de sua fala foi ofuscado por uma suposta “ameaça” à pureza linguística.
Para fins de análise, os comentários postados foram, num primeiro momento, categorizados como positivos (que emitem cumprimentos e opiniões elogiosas sobre Heloísa Teixeira e seu discurso), neutros (que não emitem juízo de valor nem contêm marcas linguísticas - como exclamações, letras em caixa alta ou ironia -- que pudessem evidenciar um posicionamento contrário ou a favor) ou negativos (que claramente evidenciam críticas, acusações ou comentários depreciativos através do emprego de linguagem e marcas linguísticas). Nesta análise nos detemos apenas nos comentários neutros e negativos.
Quando analisados cronologicamente, começando pelos comentários mais antigos, percebe-se que, a partir da postagem nove, apenas comentários neutros ou negativos associados ao uso da palavra “outres” são registrados. A única exceção seria uma breve nota (“Nelida Pinon [sic] ainda vive”) na postagem de número 63, potencialmente positiva. Mesmo esta, no entanto, poderia ser uma crítica negativa, uma vez que pode sugerir que Teixeira não é digna de ocupar a cadeira que anteriormente pertencia a Nélida Piñon.
Dentre os nove comentários classificados como neutros, sete limitam-se a repetir a mesma pergunta ou pedido, sem tecer outros comentários a respeito da questão: “Qual a posição oficial da ABL sobre a linguagem neutra?” (cinco); “Gostaria de solicitar um posicionamento da ABL [...]. Poderiam emitir uma nota oficial?”; “Também me interesso em saber o posicionamento da ABL em relação à linguagem neutra. Então?”. Outros dois limitam-se a questionar “Outres?”. Embora o simples pedido de posicionamento denote estranhamento ou a denúncia de que houve um desvio da norma, como fica claro no uso de aspas (“outres”), a falta de palavras que denunciem algum juízo de valor ou ironia fez-nos considerar que não havia subsídios suficientes para classificar esses comentários como negativos. É possível que algumas pessoas estivessem realmente interessadas em saber o posicionamento da ABL e estivessem fazendo pedidos genuínos de esclarecimento.
Os comentários depreciativos, que caracterizam a maioria das ocorrências (N=62), foram classificados em quatro subgrupos, sendo importante notar que a maioria das postagens pode ser enquadrada em mais de um subgrupo: 1. comentários que exigem posicionamento ou nota oficial da ABL sobre o uso da linguagem neutra (N=51); 2. postagens que justificam esse pedido por reconhecerem a Academia como defensora da língua portuguesa (N=15); 3. comentários que classificam o uso de “outres” (ou de LNB em geral) como desvio linguístico e/ou moral (N=36); 4. ataques pessoais a Heloísa Teixeira (N=6). Comentários com conteúdos diversos que não totalizaram cinco ou mais registros não foram colocados em grupos específicos.
Dos 80 comentários postados, a maioria (N=51) questiona sobre o posicionamento ou exige uma nota oficial da ABL sobre o uso da linguagem neutra, também referida nos comentários como “pronome neutro”, “dialeto não binário”, “ideologia de linguagem neutra”, “linguagem ideológica” ou “pronome supostamente neutro”. Os exemplos (1) a (3) ilustram esse tipo de comentário.
(1) OUTRES existe na língua portuguesa? Qual a opinião da ABL sobre a linguagem neutra? Queremos um posicionamento definitivo dessa instituição sobre isso.
(2) A postura da Heloísa sobre 'linguagem neutra' corresponde a [sic] mesma da ABL sobre o tema? Quando sai a nota oficial da ABL?
(3) A casa de machado [sic], que tinha como amor a lingua [sic], precisa se esclarecer [sic].
Embora a maioria dos comentários desse grupo permita inferir que o posicionamento exigido e esperado seja de repúdio ao uso de “outres”, apenas os exemplos (4) a (7) o declaram diretamente.
(4) Faz-se urgente uma nota de repúdio da ABL contra a ‘linguagem neutra’.
(5) É de suma importância que a ABL se manifeste contrário [sic] ao pronome supostamente neutro.
(6) Outres, que vergonha!
(7) Outres, ABL? Vergonha! Vergonha! Vergonha!
Uma última postagem chama atenção ao condenar a Academia por “coroar a D. Heloísa usando TODES”, palavra nunca utilizada por Teixeira em seu discurso. Comentários repetidos, breves e o equívoco do último (“TODES”) fazem-nos pensar que algumas pessoas não viram o vídeo, pelo menos não na íntegra, engajando na discussão simplesmente por se oporem ao uso da LNB e aproveitando a ocasião para registrar seu descontentamento, abjeção ou “vergonha”. A tendência de nomear como vexatórias as identidades destoantes da norma imposta é, mais uma vez, um recurso discursivo de natureza colonial. No livro Devassos no Paraíso (2018), João Silvério Trevisan oferece um panorama sobre a homossexualidade brasileira desde os tempos coloniais e argumenta que o discurso dominante da “moral” marginaliza populações LGBTQIA+ desde a chegada portuguesa. Assim, o tratamento da LNB como uma ameaça aos “bons costumes” e uma monstruosidade moral (Butturi Junior, Camozzato e Silva 2022) ressoa com o discurso cristão de salvação do pecado, bem como com a missão “civilizatória” justificada por tais discursos entre os séculos XVI e XX.
As 15 postagens que compõem o segundo subgrupo se caracterizam por atribuir à Academia o papel de defensora, de “guardiã da língua”, criticando a ABL (“não respeita sua missão”; “está debochando da história da casa? Da história dos fundadores?”) ao permitir o uso do pronome neutro. A ABL é acusada também de não ter amor ou respeito pela língua portuguesa, e alguns comentários pedem que “não destruam a casa de Machado”, afirmando que a “casa de Machado merece respeito”. A omissão por parte da ABL é classificada ainda como “falta [de] seriedade”, “ofensa à sua história” (da ABL), uma prática que estaria ligada a algum tipo de militância (“Machado não fundou uma casa de militância”) ou prostituição (“Ou a ABL defende a língua portuguesa, ou ela se prostitui por respeito humano”), o que “envergonha sua história”. Além da recorrência de princípios “civilizatórios”, como “respeito” e “vergonha”, fica muito evidente nesse grupo de comentários que a ABL é vista como órgão que deve defender a língua a qualquer custo, e por “defender a língua” entende-se não permitir que nenhuma transgressão da norma ocorra. Fica evidente também a ideia de língua como um sistema rígido e estanque, um conjunto de regras que se limita ao seu funcionamento interno, a regras intrínsecas que estão totalmente desvinculadas de quaisquer fatores externos, incluindo as necessidades de quem a usa. Mais uma vez, seria interessante ver ao lado dessas postagens qualquer argumento que fizesse menção às colocações feitas por Teixeira, que classifica a língua como um construto social em seu discurso. Afinal, conforme a hipótese de Foucault (1996, 10), “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Ao utilizar LNB em seu discurso, Teixeira evidencia, mesmo que involuntariamente, a importância da LNB como uma questão em disputa do nosso tempo.
Também é curioso observar a escolha de palavras que permitem estabelecer uma relação entre desvio linguístico e algum tipo de desvio moral. Nos 36 comentários do subgrupo 3, o uso de “outres” é rotulado como “desrespeito” e “desprezo” pela língua, “falta de zelo com o idioma", “linguagem ideológica”, “escárnio com a língua”, “desvio” ou tentativa de “destruição” e “desmantelamento” da língua portuguesa (“as letras não valem mais nada”). Nesse grupo ainda, a palavra “vergonha” é a que aparece com mais frequência. Utilizada 13 vezes (em 10 comentários), a palavra “vergonha” (ou vocábulos dela derivados, como “envergonhando”) é acompanhada de outras que são igualmente usadas na tentativa de imprimir ao uso da LNB um caráter de desvio tanto linguístico quanto moral (“inadmissível”, “equívoco”, “deboche”, “vilipêndio”, “patético”, “malfadado”), dando a essa linguagem, e por extensão às pessoas que a utilizam ou são por ela representadas, uma índole igualmente libertina ou patológica (“safadeza”, “tenebroso”, “aberração”, “bizarrice”, “degenerados” “hediondo”, “maligno”). Borba e Milani (2019) propõem a noção de intertextos coloniais para nomear conexões linguístico-visuais entre o arquivo colonial e a representação de corpos outrificados. Tal conceito nos ajuda a entender como, nos comentários sob análise, tenta-se deslegitimar a LNB tratando-a como uma “devassidão” à “moralidade” e à “salvação”, de modo a reencenar discursos europeus sobre povos africanos e ameríndios. Vale lembrar que, desde o século XIX, quando o discurso médico desenvolve a noção moderna de homossexualidade, o questionamento da índole tem sido uma ferramenta poderosa para perseguir os “pequenos perversos” (Foucault 2015, 48). Repete-se nesses comentários a patologização da não binariedade e a discriminação contra a comunidade LGBTQIA+ verificadas em estudos anteriores (Slemp, Black e Cortiana 2020; Gonçalves e Guizzo 2021; Brevilheri, Lanza e Sartorelli 2022). O “perigo”, que parece ser reforçado na utilização de algumas palavras e expressões, fica também evidente nos comentários de cunho nacionalista ou religioso, como os exemplificados nos itens (6) a (9).
(6) Respeitem a nação brasileira!
(7) A nossa nova imortal, Heloísa Teixeira, cometeu um pecado mortal contra a língua portuguesa ao utilizar-se da linguagem neutra no seu pronunciamento.
(8) Vocês continuarão a permitir que a língua portuguesa, o nosso maior patrimônio cultural, aquilo que é a base da nossa definição como brasileiros, continue a ser vilipendiado desse jeito?
(9) A academia, portanto, se põem no [sic] lado hediondo do novo movimento identitário com todos seus elementos facistas [sic] e ideologicamente segregadores bem no seio da nossa cultura. A [sic] academia parece interessar estar do lado maligno da história e de cuidar de destruir nosso patrimônio que é a língua portuguesa e sua cultura. [...] Que Deus abençoe a Academia de Machado de Assis e proteja-a da tradição de destruição patrimonial brasileira.
A retórica do ódio a que já fizemos referência (Rocha 2021) aparece com maior concretude nesse grupo de comentários, visto que o léxico ufanista, associado à abordagem normativa sobre a língua, faz da LNB uma “ameaça”. É o que vemos nas menções à “pátria”, ao “patrimônio” e ao “povo”, noções em geral recorrentes no imaginário da extrema-direita.
Por fim, os seis comentários que compõem o subgrupo de ataques pessoais a Heloísa Teixeira se caracterizam por criticar seu suposto desconhecimento ou desrespeito das regras da língua portuguesa (“Uma imortal que não sabe a própria língua!”; “A nova ocupante da ABL não respeita a própria língua materna”; “Para todos que não conheciam sua obra ou antepassado, infelizmente, a conhecerão pelo desprezo da língua em momento solene”) e por ridicularizarem ou ofenderem Teixeira (“Acredito que ela estava um pouco ‘alta’”; “Essa senhora está senil e incapaz!”; “Isso [Teixeira] vai envelhecer podre”).
O uso de “outres”, portanto, põe abaixo a trajetória de lutas, aprendizados e conquistas de Teixeira. Não importa quem ela seja ou que título tenha: o emprego da LNB a insere instantaneamente no grupo de pessoas delinquentes e degeneradas que, no discurso de ódio e no plano de extermínio do outro, merecem ser desmoralizadas e ridicularizadas. O etarismo praticado contra Teixeira, assim como os comentários que questionam sua capacidade mental ou intelectual, são exemplos da violência que quem “defende a ordem e a moral” se dispõe a praticar em nome de uma pureza linguística e do “saneamento” dos corpos e da sociedade brasileira.
5. Comentários finais
Em qualquer contexto de investida colonial de um discurso dominante, o uso de estratégias que subvertam o padrão exige coragem. A ousadia maior de Teixeira, no entanto, não está em simplesmente usar um pronome neutro, o que por si só já seria alvo de críticas por vários setores da sociedade brasileira. Seu maior “crime” está em fazê-lo na Academia Brasileira de Letras e como uma imortal dessa instituição que, como já mencionamos anteriormente, é vista como tendo “um dos deveres [...] o de defesa da língua portuguesa”. Em tais postagens, observa-se, portanto, o intuito de denunciar essas duas “inimigas” - da nação, da língua portuguesa e dos bons costumes - presentes nesta cerimônia de posse: Heloísa Teixeira e a linguagem não binária. Fica declarado, assim, o confronto contra um mal que deve ser denunciado, combatido, e, preferencialmente, eliminado. A mensagem clara que essas postagens veiculam é que o uso de uma linguagem “degenerada”, de pessoas “incultas” e “transgressoras”, não cabe na Academia ou na sociedade brasileira como um todo. Discursos como esses devem ser repudiados, e pessoas e instituições que os utilizam ou defendem devem ser desacreditadas. Essa é a consequência contemporânea de uma lógica colonial oriunda da Idade Moderna que, com o passar dos séculos, é reinventada pelos grupos no poder a fim de manter rígida as hierarquias sociais. Por esse motivo, pesquisas que nos ajudem a compreender esse tipo de investida autoritária contra a LNB são cada vez mais necessárias.