1. Iberismos, Estudos Ibéricos e Estudos Feministas
Em 1989, num programa cultural da RTP, ainda em plena primeira juventude da democracia portuguesa e na ressaca imediata da entrada de Portugal para a CEE, Natália Correia, rodeada de quatro homens, António Quadros, Boaventura de Sousa Santos, Fernando Rosas e o apresentador Alexandre Manuel, assume, com a veemência que sempre lhe foi reconhecida, uma defesa determinada da ibericidade constitutiva da cultura portuguesa: “Portugal saiu do corpo ibérico e isto é uma realidade que não se pode ofuscar, é uma realidade que pulsa nas funduras da nossa cultura e ignorar isso é aquilo a que eu chamo a mesquinheira portuguesa da hispanofobia.”1 Uma tal defesa, bem o sabemos, não constitui propriamente a posição que, em Portugal, mais simpatias congrega, o que desde logo combina com a iconoclastia insubmissa da autora. Ainda assim, e ciente desse desfavor, Natália Correia optava, estrategicamente, por empregar um termo - ibericidade -, que esquivava outro, mal-afamado - o iberismo -, demasiado conotado com uma defesa da união política entre Portugal e Espanha, o que está longe de compreender toda a densidade e variedade de perspetivas iberistas que se foram afirmando desde a segunda metade do século XIX nos diferentes territórios peninsulares.
Com efeito, a complexidade do iberismo é de tal ordem que Rina (2016) propôs, nesta matéria, uma pluralização do termo, distinguindo diferentes iberismos históricos, agrupados por Matos (2017) e Sardica (2013) em três modelos: 1) um iberismo económico, em torno de uma política económica comum (proposto por Sinibaldo de Más ou Henriques Nogueira no século XIX); 2) um iberismo político, assente na defesa da integração ibérica, seja por via monárquica anexionista, como a proposta por Pío Gullón, seja pela via federalista-republicana dominante em Portugal no século XIX, com especial ênfase em Antero, e no catalanismo de inícios do século XX, com Ribera i Rovira ou Maragall; e 3) um iberismo cultural, em defesa de uma maior aproximação entre Portugal e Espanha, a pretexto da estreita relação histórica e de uma certa identidade cultural resgatada por exegese histórica, posição consagrada por Oliveira Martins.2
O facto de Natália Correia se esquivar ao termo “iberismo” é já revelador da linhagem que melhor lhe assentaria, afastando-se do sentido mais estrito do iberismo político e aproximando-se da primazia de um mais abrangente e fluido iberismo cultural. De facto, como notou Martínez-Gil (2002, 39), a influência de Oliveira Martins foi pregnante e duradoura em toda a Península Ibérica, e ecoa assumidamente na autora. Por outro lado, como demonstrou Matos (2017), os projetos de união política desapareceram quase por inteiro a partir de finais do século XIX, com o incremento da hispanofobia portuguesa no contexto de uma hipotética transferência do ímpeto anexionista castelhano em face da perda das últimas colónias americanas. Reputando uma tal hispanofobia de “síndroma bacoco”, naquele mesmo programa televisivo, Natália Correia assume essa linhagem histórica ao dar ao ensaio que a esta matéria dedica em 1989 o título Somos todos hispanos, retomando uma frase de Garrett. Assim se inscreve na linhagem de um iberismo cultural que, em torno dessa comum e ancestral identidade peninsular a que chamaria ibericidade, conta, além dos citados, com outros nomes, de Menéndez Pelayo a Unamuno, de Pascoaes a Valle-Inclán, de Clarín a Pessoa, de Sardinha a Almada, de Torga a Saramago.
Em comum têm o facto de, pese embora desenvolvendo em alguns casos um pensamento político sistémico em torno de uma proposta federativa, darem primazia à noção de génio peninsular, para empregar ressoantes palavras de Oliveira Martins. Mas em comum têm também todos eles outro facto, que é justamente o serem “eles”: este elenco iberista é inteiramente masculino, como masculino era o entorno do mencionado programa televisivo. Ora a voz feminina que nesse programa se eleva de modo tão assertivo sobre um coro de homens céticos do iberismo por ela proposto, a par de outros elementos capitais dessa sua propensão iberista, vertida não apenas em intervenções públicas, como o apoio e participação, em 1984, no I Simpósio de Escritores Ibéricos, mas também na sua produção ensaística e poética, não nos permite senão considerar Natália Correia, a par apenas de Saramago, como a mais proeminente iberista portuguesa da segunda metade do século XX, facto que não tem sido nem suficiente, nem claramente destacado.
É, pois, chegado o momento de esclarecer o título deste texto. Se aludo a uma Jangada de Fedra para referir o iberismo de Natália Correia, é, desde logo, para estabelecer o que me parece ser um produtivo vínculo com a posição iberista do autor d’A jangada de pedra, que em vários pontos se aproxima, como assinalarei, das perspetivas que nesta matéria a autora apresenta, ao mesmo tempo que aproveito, a título não tão secundário quanto poderia parecer, para sublinhar a intempestividade e a carga dramática que das suas palavras e do seu tom, como do mito clássico, se desprendem, e que ainda hoje reclamam por se fazerem ouvir em meio dum persistente coro de homens. Precisamente, esta subversão do título do icónico romance iberista de Saramago é ainda um modo de dar ênfase à injusta desproporcionalidade da atenção que ao iberismo de Natália Correia tem sido dada.3 Ao pretender impor sobre o P de Pedra uma pequeníssima rasura gráfica, apenas a suficiente para o transformar no F de Fedra, sublinho também o F dum Feminino que não podemos não ter em conta, já que guarda, como mencionarei, subtil relação com o iberismo de Natália Correia, aspeto que nem a crítica nataliana, nem a crítica iberista contemplaram.
Esta minha rasura do título saramaguiano responde, assim, a essoutra rasura a que a própria autora tem sido geralmente votada no âmbito da matéria iberística, tão mais surpreendente quanto os últimos anos têm assistido à consolidação de uma área científica, os Estudos Ibéricos, que se tem afirmado como campo propício à confrontação dos cânones nacionais, fazendo justamente a crítica, a partir da influência no seu corpo teórico quer da literatura comparada, quer dos cultural studies, quer ainda das leituras inter e polissistémicas, da parcialidade dos discursos históricos tradicionais, procurando lançar luz, de um mais abrangente ponto de vista ibérico, sobre fenómenos e agentes culturais habitualmente subalternizados. Ora, recentemente, um dos mais destacados especialistas nesta área, Pérez Isasi (2021), alertou que, opondo-se embora aos tradicionais cânones nacionais, os Estudos Ibéricos correm o risco de sedimentarem o seu próprio cânone, o qual é esmagadoramente masculino, como vimos, padecendo, portanto, dos mesmos vícios que pretendem vencer. Constatando esta lacuna, Leslie Harkema (2019) apresentou uma proposta feminista para os Estudos Ibéricos,4 atendendo justamente ao potencial crítico do corpo teórico acima mencionado, para cuja urgência a relativa e injusta subalternização de Natália Correia no corpus dos próprios Estudos Ibéricos se faz argumento capital.
É pois a este repto, e contra uma notória masculinização do iberismo, que este texto responde, mais ainda quando o caso de Natália Correia nos permite evocar a efetiva existência de uma tradição iberista feminina e feminista, que compõe uma outra linhagem, de que a autora também participa, e que passa por Emilia Pardo Bazán - a única mulher realmente integrada no cânone dos Estudos Ibéricos -, mas também por Carmen de Burgos, Ana de Castro Osório ou Alice Pestana. Avancemos, pois, sumariamente, algumas das características centrais ao iberismo da autora, agora talvez ainda mais sugestivamente vertido numa feminina ibericidade, atendendo, por um lado, ao que nela assume um teor predominantemente cultural, mas não apenas, já que denota também uma posição geopolítica, como assinalarei, e, por outro lado, ao que nos interstícios dessa ibericidade insinua um discurso feminista, se considerarmos o que no seu postulado iberista extravasa a produção ensaística e toca a sua obra poética.
2. O iberismo cultural de Natália Correia
Afastando-se de qualquer intuito de uma união política, sublinha Natália Correia, a propósito do ensaio Somos todos hispanos, que “o meu texto pretende convidar a uma reflexão sobre as matrizes da cultura portuguesa”, reclamando “que Portugal assuma as suas raízes ibéricas, ou as matrizes ibéricas da sua cultura”. Visando assim, como justamente sintetiza Maria Fernanda de Abreu no texto da badana à segunda edição do ensaio, em 2003, “repensar a profunda ibericidade cultural”, e assumindo este a feição de uma exegese histórico-cultural, Natália Correia interroga aquilo a que Eduardo Lourenço chamava “a doença infantil do nosso nacionalismo” (Molina 1990, 104), ou seja, nas palavras da autora, “o terror do perigo espanhol” (Correia 1988, 11), que repudia por datado, colocando a tónica no que considera ser a tríplice matriz cultural portuguesa, a saber: a maritimidade, a mediterraneidade e a continentalidade. Fazendo-o, condena, por entendê-la parcelar, a “ênfase no Portugal atlântico” oriunda de um “voluntarismo histórico que, movido pela mística nacionalista dos Descobrimentos”, atrofia “as proporções da mediterraneidade e da continentalidade nas quais se afundam as raízes da nossa identidade original”, postulando uma mais completa compreensão dessa identidade que incluiria a “nossa integração natural na Península cultural” (ibidem, 10) e, portanto, a matriz ibérica da cultura portuguesa.
Descobrindo as fontes ibéricas de alguns mitos portugueses, desde a paixão de Pedro e Inês como símbolo de um frustrado desejo de união ibérica às profecias castelhanas do Encoberto logo sebastianizado em Portugal, mas também associando a saudade portuguesa à soledad castelhana, Quixote e Camões como signos complementares, ou destacando o prolongamento de Gil Vicente em Calderón de la Barca, exalta Natália Correia, em particular, a literatura como depósito primacial, ou, nas suas palavras, como o “espelho” das “genuínas disposições culturais” portuguesas, ensaiando uma aproximação ao modo como nela “vemos reflectido o caminho a seguir, traçado pelo contacto harmonioso das três dimensões da cultura portuguesa” (ibidem, 10-11).
Se Saramago (1990, 3) afirmava que “Não iríamos muito longe se não começássemos por conhecer a fundo […] o solar literário ibérico”, Natália Correia (1988, 8) concretiza um tal ensejo perscrutando a história literária portuguesa em busca “de testemunhos sobre a apelação das nossas raízes ibero-mediterrâneas, continentais”. Conduz-nos pelo ruralismo e interioridade presentes nas cantigas de amigo e pela mediterraneidade da mística amorosa do provençalismo, concomitantes ao pendor marítimo também presente no trovadorismo galaico-português; recorda o modelo mediterrânico-latino d’Os Lusíadas, onde a “maritimidade” surge agigantada, diz, mas travada pelo apego à terra personificado no Velho do Restelo; insiste no que diz ser a bifurcação da exaltação do mar e da “defesa das prerrogativas da terra” (ibidem, 9) em Garcia de Resende ou Gil Vicente, ou ainda na denúncia de quantos abandonaram a terra por Sá de Miranda. Evoca também a “paridade dos elementos telúrico e marítimo na obra do fundador do nosso Romantismo” (idem), referindo-se a Garrett, que à maritimidade de Camões contrapõe a interioridade antiépica das Viagens na minha terra. Sublinhando a rusticidade de Júlio Dinis, o panteísmo de Pascoaes, o ruralismo vernáculo de Aquilino, a ibericidade telúrica a par do fascínio do mar em Torga, ou, na constelação pessoana, o contraponto rústico de Caeiro e o apelo bucólico de Reis ao atlantismo da Mensagem ou da Ode marítima de Campos, conclui que “Esta contraposição mar-terra reproduz-se na literatura portuguesa num contínuo”, configurando-se como “atestações desanimadoras para os exclusivistas do determinismo atlântico”, já que
ao fazer sobressair os formantes mediterrâneo e de interioridade obscurecidos pelo empolgamento da maritimidade e que culturalmente a precedem, logo se avivam as cores mediterrâneas e continentais que partilhamos com a Espanha na vivência historicamente diferenciada do património comum da ibericidade. (ibidem, 8)
A matriz cultural ibérica, desenha-a, assim, Natália Correia, em torno de uma fulcral conceção pluralista, para cuja compreensão se lhe afigura urgente “desenvolver o conhecimento mútuo e as relações entre as nacionalidades da Península”. As palavras que proferiu no I Simpósio de Escritores Ibéricos, afirmando taxativamente que “Não é virando as costas que as nações se tornam diferentes umas das outras. Não à diferenciação pela cobardia!” (González Velasco 2023), antecipam claramente aqueloutras de Saramago (1986, 25): “é um pobre orgulho, este, que actua por medo de confrontação com o outro”. Não é por acaso que A jangada de pedra ensaia uma salvífica solidariedade intraibérica entre portugueses, castelhanos, galegos, catalães e bascos, uma empresa de mútuo conhecimento que não oblitera as diferenças constitutivas das distintas identidades peninsulares. Recorde-se que Saramago afirmaria, neste marco, que, “Quando pensamos em Espanha pensamos em Castela, e Castela já não tem o significado histórico que teve”, e que, “Quando a Espanha reconhece, no seu seio, o direito à diferença, quando a Espanha olha para si própria como Catalunha, Galiza, etc., não há perigo de que Portugal seja atraído […] para integrações desse género” (Saramago 1986, 24), exaltando a “constelação socio-histórico-cultural poliforme” (Saramago 1990, 6-7) da Península. Na mesma linha, Natália Correia (1988, 29-33) distinguiria duas Espanhas: aquela a que chama “Absolutista”, protagonizada pelo centralismo de Castela, perfilada na política dos Reis Católicos e no despotismo de Carlos V, e uma outra, a que chama “Espanha das Espanhas”, que radica na preservação da pluralidade das identidades culturais que, tendo raízes comuns, oriundas de diversas fontes culturais, não deixam de se diferenciar e complementar.
Portanto, a defesa da ibericidade por Natália Correia é necessariamente uma defesa da diversidade cultural ibérica, contra qualquer ideia de unicismo, destacando as “forças que se contrapõem na dualidade hispânica: absolutismo e pluralidade. Ou seja: a Espanha absolutista […] [e a] Espanha das Espanhas” (ibidem, 30), confirmando, com efeito, o impulso anticentralista que permeou boa parte dos iberismos históricos e que encontrara já em Oliveira Martins um defensor (Matos 2017). Dessa Espanha das Espanhas se faria exemplar, precisamente, Portugal, como aquele que foi, no seu entender, “o único país que realizou essa realidade da cultura ibérica […] a Espanha das diferenças”, ao defender a independência contra o absolutismo castelhano - que não contra Espanha - e ao conjugar, nessa defesa da diferença, continentalidade, mediterraneidade e atlantismo:
enquanto as outras nações hispânicas acabam por ceder ao imperativo da Espanha Absoluta, o tenaz Estado peninsular da orla atlântica, dotado de mais robusto alento autonomista, é o país que realiza o objectivo da dinâmica da pluralidade ibérica na perseverança da sua independência. Portugal é, nesta íntegra protagonização dos desígnios últimos da componente autonomista da Península, o grande intérprete da Espanha das Espanhas, […] a consequência lógica da vertente pluralista da ibericidade. (Correia 1988, 31)
Esta clara diferenciação da Espanha castelhana daqueloutra plural Espanha das Espanhas extravasa o campo ensaístico e encontra materialização num poema de 1973, de um dos seus mais emblemáticos livros, O anjo do ocidente à entrada do ferro, título onde a autora reflete sobre o rumo de uma cultura europeia em cuja história encontra uma deslumbrante riqueza, mas presentemente dirigida, no seu entender de modo erróneo, ao economicismo tecnocrata. Trata-se o dito poema de “Terra filosofal” (Correia 2007, 395-397), e nele podemos ler:
porque sem ser mar Castela
é por sua sede abscôndita
quanto mais seca e de pedra
o mar que a secura sonha […]
Castela é uma procissão
atravessada numa guerra
Quisera fugir à morte
a terra que é um galopar […]
com seus membros espantados
estão os moinhos de vento
Novelas agoniadas
contando da terra escrava
séculos de sangue coalhado
em campos de Calatrava
Carregada como um revólver
das balas do seu vazio
queda-se Castela na imóvel
miséria do casario […]
Mas quando o sol armorial
com um certo brasão a pedra doura
é pedra filosofal
mais Castela e duradoira
a terra que no seu grito
extremo acha a esguia forma
de um cavaleiro esquisito
que vem completar sua opera omnia
Neste poema, a autora dota Castela de uma errónea propensão supremacista de lastro sanguinário, que não dilui por inteiro, contudo, a pluralidade da raiz ibérica, representada por uma sede do mar. Esta é signo, afinal, da incompletude castelhana em busca da integridade plural oferecida pela Espanha das Espanhas, a partir da qual se afirma o artístico ideal quixotesco, essa “esguia forma de um cavaleiro esquisito” vencendo “moinhos de vento”, ou seja, transgredindo falsas barreiras em busca de uma integridade historicamente gorada, mas artisticamente projetada como a obra-prima que vence a “guerra”, as “novelas agoniadas”, o “vazio” e a “miséria” de uma história negativamente polarizada em equívocos desentendimentos, que um iberismo propriamente cultural, prefigurado literariamente, retomando a raiz pluralista, transcende.
3. O substrato geopolítico do iberismo de Natália Correia
A afirmação desta matriz ibérica da cultura portuguesa, ganhando contornos de verdadeira hermenêutica literária, e assumindo sem dúvida uma posição que se estabelece primeiramente num plano cultural, não nos deve fazer ignorar, no entanto, o seu substrato geopolítico, patente no modo como configura uma defesa do pluralismo contra todo o cego centralismo e absolutismo que assinalaram os nacionalismos ditatoriais peninsulares. Um tal substrato é, aliás, compósito aos iberismos históricos, como nota Rina (2007), ao destacar como, mesmo no contexto dos iberismos culturais do século XIX, a aproximação ibérica se afirma em torno do binómio decadência/regeneração, no marco da situação semiperiférica e descolonial da Península na nova ordem mundial, como aliás facilmente se observa em dois textos de outras duas autoras iberistas: Ana de Castro Osório evoca, em “As qualidades colonizadoras dos povos ibéricos”, conjunto de artigos publicado em vários números da espanhola Revista de la Raza, em 1924 e 1925, a comum herança colonial luso-espanhola como fator determinante de um também comum projeto regenerativo (Ezama Gil 2013); e Pardo Bazán lê, em páginas de La España Moderna, Mariana Alcoforado em clave antifrancesa (Mochila 2022).
Confirmando a tese de Matos (2017) segundo a qual é imprescindível integrar a leitura do iberismo na relação com outras geografias em face das quais se constitui, e obedecendo ainda afinal ao princípio de umbral de Hobsbawm - que permeou, como notaram Sáez Delgado e Pérez Isasi (2018, 19), parte substancial dos discursos iberistas -, segundo o qual nações mais pequenas e economicamente mais frágeis encontram em alianças comuns um modo de competir na ordem global, o iberismo de Natália Correia inscreve-se outrossim numa certa suspicácia em relação à integração europeia de Portugal, afirmando a ibericidade, justamente, como “uma exigência da nossa integração na Europa […] em íntima solidariedade cultural” (Correia 1988, 11), questionando mesmo, no mencionado debate televisivo5, Boaventura de Sousa Santos, que alude a um perigo de absorção de Portugal pelo mercado espanhol:
Eu pergunto-lhe, senhor doutor, se não tem medo de outro tipo de absorções. Porquê só Espanha? Não receia por exemplo que, com a circulação livre de grandes capitais, se imponham estes aqui à custa da barateza da mão-de obra nacional e, então sim, sejamos uma colónia desses grandes capitais? […] Só lhe mete medo o papão espanhol?
Aludindo à possibilidade de que a Europa se converta, no século XX, no que representou, em termos de bloqueio económico para Portugal, a Inglaterra no século XIX, Natália Correia, reiterando sempre que “a nossa imposição tem de ser de tipo cultural”, dado o atraso industrial e capitalista do país, personifica uma atitude cética em relação ao posicionamento de Portugal no marco ocidental que procura no iberismo uma estratégia de fortalecimento, afinal, geopolítico, e que surgira já, logo após a revolução democrática de 1974, no Manifesto da Liga Iberista Portuguesa, publicado em Lisboa em 1976. Um tal ceticismo justifica também, em boa medida, o iberismo de Saramago, que publica A jangada de pedra precisamente em 1986, ano da entrada conjunta de Portugal e de Espanha para a CEE, atendendo a que, em marco europeu, “A Península foi sempre vista como qualquer coisa de apendicular” (Saramago 1986, 24).6
Cabe ainda assinalar que esta dimensão geopolítica do iberismo nataliano tem outra importante faceta no modo como a autora se relaciona com os Estados Unidos, estudado por Onésimo Teotónio Almeida (2010) e por Ângela de Almeida (2018). Com efeito, como ficou já claro, o ceticismo do europeísmo dirige-se, em Natália Correia, sobretudo a uma potencial subjugação económica, inscrevendo-se, portanto, numa mais abrangente suspicácia do liberalismo capitalista, que se estende, naturalmente, aos Estados Unidos. Se Saramago (1990, 8) exaltaria as línguas peninsulares, na sua diversidade, como emblema da resistência ao inglês como “língua do império económico”, Natália Correia, em crónica de 25 de Novembro de 1974, assumia uma explícita “colocação geopolítica” na defesa de “um País democrático e insubmisso a qualquer tentativa de ingerência emanada de Washington”, reclamando o “universalismo” como horizonte de Portugal e a “aproximação dos países socialistas e do Terceiro Mundo” (Correia 2015, 472-474). A propósito de um encontro com o líder socialista Norman Thomas, em 1950, acusa, ecoando as palavras daquele, a “massa alienada pela abundância com que o reformismo capitalista a subjugou” (Correia 2018, 59), repudiando também o racismo, a descartabilidade do indivíduo, a marginalização dos imigrantes e a discriminação das mulheres.
Um tal sentimento não se extinguiu com o passar dos anos. Num voo entre Nova Iorque e a Califórnia, em 1983, escreve: “Esta sociedade está pior do que nunca. Em relação há trinta anos, quando cá estive e me horrorizei o suficiente para escrever o Descobri que era europeia, tem a mais (ou a menos) o computador, que é o prolongamento da sua imbecilidade” (Correia 2018, 237). Descobri que era europeia, justamente, sintetiza o seu ceticismo face ao modelo de vida norte-americano e, mais ainda, revela o seu posicionamento geopolítico, já que, afirmando não acreditar “na pureza das intenções dos países empenhados em defender os interesses de outras nações”, sugere um modelo próximo do que viria a ser a União Europeia: “A Europa devia reunir-se numa cooperação económica. Era talvez o caminho mais longo para a solução das suas dificuldades, mas o processo seguro da sua independência” (ibidem, 112).
É caso para dizer que, em face dos Estados Unidos, Natália Correia é europeia, como em face da Europa é ibérica. Da primazia dessa matriz ibérica é exemplar a sua exaltação em emblemática solução poética, no poema “Errância móvel” (Correia 2007, 221-222), como contraponto da “América”:
Um sabor a pasta de dentes
Foi eu ter ido à América.
Não gostar de cachorros quentes
É o meu modo de ser ibérica.
Ora, para reconhecer esse modo de ser ibérica, importa, como afirma, atacar
descomplexadamente as ideias infectadas de hispanofobia. Rectifique-se a crítica histórica expurgando-a do terror do perigo espanhol. Não empolemos o que nos separa em detrimento do muito que nos aproxima. […] Não seja a legítima afirmação da nossa identidade face à Espanha uma declaração de guerra às afinidades que devem ser congregadas num projecto amplexivo. (Correia 1988, 11)
Este projeto amplexivo tem um alcance ainda mais vasto, já que a autora propõe algo que se assemelha à noção de transibericidade cunhada por Saramago, conceito superador do iberismo tradicional que engloba os países de luso e hispanófonos da América e da África (Sáez Delgado 2020). Com efeito, se A jangada de pedra propunha um movimento não apenas centrípeto, com os vários protagonistas das várias identidades peninsulares cruzando-se no coração da Península, mas também centrífugo, com uma insularidade móvel que se afasta da Europa para sulcar o Atlântico e posicionar-se entre a América e a África, também Natália Correia propunha formar, como destacou já Santos (2010, 253-253), uma comunidade “euro-afro-americana” de cultura ibérica, de assumido interesse geopolítico, já que, como diz,
Numa sociedade internacional em que a dinâmica dos comunitarismos atrai os povos para agrupamentos determinados por afinidades culturais, a previsão de 645 milhões de falantes do português e do castelhano para o início do século XXI, constituindo uma das maiores comunidades linguísticas e culturais do Mundo, introduz toda a lógica numa constelação ibérica euro-afro-americana. (Correia 1988, 11)
A insularidade móvel proposta por Saramago assenta, com efeito, a Natália Correia, ela própria insular de nascença e alcance, ao enveredar por um iberismo que é simultaneamente a defesa da especificidade ibérica na relação com a Europa e a mobilidade da própria ibericidade para incluir estreitos vínculos com a África e a América. Em Somos todos hispanos, a autora defende a criação de um “projecto pluricontinental que englobaria, pelo lado da lusofonia, Portugal, o Brasil e os países africanos de fala oficial portuguesa e, pelo outro ramo da cultura ibérica, a Espanha e as Américas hispanófonas”, sempre sublinhando o modo como “essa comunidade hispânica pluricontinental” visava, na sua ótica, e fundamentalmente, um “relacionamento cultural” no seio do qual Portugal assumiria papel destacado, já que “daria simultaneamente satisfação ao centrifugismo atlântico e ao centripetismo da peninsularidade pela contiguidade telúrica e mediterrânica com a Espanha” (Correia 1988, 11), confirmando outrossim a primazia que ao pluralismo oferece o iberismo de Natália Correia.
4. O substrato feminista do iberismo de Natália Correia
Desde essa sua insularidade iberista em face da tal mesquinheira da hispanofobia, agudizada pela sua insularidade feminina no próprio cânone de um iberismo cartografado no masculino, Natália Correia reclama para si mesma, sugestivamente, o papel de cantora profética de uma ibericidade matricial, ela que, numa entrevista de 1989, afirmava a “força” da “mulher ibérica” e a si própria como “uma intérprete” do “feminino da cultura” (Correia 1989, 5). É, pois, natural vê-la como “A Feiticeira Cotovia” (2007, 184-185) que dá título a um seu poema com forte sentença iberista, de ênfase novamente pluralista, ao afirmar que
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É ignorar que houve Aljubarrota
Porque Aljubarrota é ignorar
Ser múltiplo e idêntico
É, com efeito, no transvase poético do seu iberismo que o seu substrato feminista se faz notar.7 Um tal substrato, que encontra no conceito de mátria o centro focal, conforme demonstrou Nascimento (2016), a partir da simbologia do Espírito Santo arraigada no culto religioso açoriano, oferecida em clave feminina, que serve à crítica do Estado Novo e que “deriva das mesmas raízes comunitárias e feministas que investiram a mulher da superioridade que desfruta nos Açores” (Correia 2005, 181), tem na verdade fundo ibérico, ao endereçar a influência pentecostal que Isabel de Aragão exerceu no arquipélago.
Assim, não apenas a pregnância da posição iberista de Natália Correia é tal que se dissemina poeticamente, como tem uma concomitância feminista, aspetos até à data não sublinhados pela crítica. Não é, pois, por acaso que o seu longo poema, de mote espanhol e feição lorquiana, “Manolo Sánchez de Sevilla”, surge no emblemático título Mátria, no não menos emblemático ano de 1968. Antes, em Cântico do país emerso, de 1961, a pretexto do sequestro do navio Santa Maria por Henrique Galvão em dissídio contra o Estado Novo, Natália Correia (2007, 199-217) cantava, em “Memória da minha comunhão poética com a saga do cavaleiro da Nossa Senhora da Liberdade”, causa antifascista apresentada em clave peninsular, já que esse “país emerso” não era apenas Portugal, mas a ânsia da “Liberdade dos povos ibéricos”, contra cujo “Mostrengo” - Salazar, mas também Franco8 -, se batiza a operação dos exilados ibéricos com o sugestivo nome “DULCINEIA”, que a autora grafa em maiúsculas, fazendo também português o feminino ideal quixotesco de uma Castela, ou seja de uma Ibéria, perdida e sonhada:
Enquanto que subitamente todos os portos
Se enchiam de mulheres biologicamente
Convocadas pelo clarim de uma madrugada
Que faltava no mundo, uma madrugada
Espécie de púbis que faltava em seus corpos
Enquanto que todos os cais se vestiam da gala
Fremente das indormidas sensações, galhardetes
Flâmulas pendões da síntese nervosa febril
Bariolada de vestidos cosidos cingidos
Para serem rasgados ventres baldios
Pedindo os arados ardentes da pirataria
E a semente dos cravos sangrentos das violações…
Mulheres que emigraram de si mesmas como andorinhas
Filtradas de sal genesíaco, glaciários,
Cristalizadas em formas incolores hialinas
Quando acabou a Primavera violenta dos corsários…
E eu de repente em todas elas achada
Fugida a todos os maridos Eu
Todas as filhas que envergonham os pais
Todas as rainhas de reinos introvertidos
Todas as prostitutas de sub-reptícios cais
Eu poliedro de todas elas
Coágulo de crisálidas pretas
Asiáticas ninfas amarelas
Europeias imaturamente brancas
Americanas larvadamente fulvas
[…]
[Tudo o] que dos seus sonhos faz uma jangada
Os cerca de névoa e nasce uma ilha
Neste poema, a autora não apenas se identifica com uma ânsia revolucionária ibérica, que visa a ordem primeva suspensa pelos cruéis desígnios da história - “Não sou daqui”, diz, porque “A minha pátria não é esta Bússola quebrada”, mas a outra “entressonhada” (sonhada, precisamente, em conjunto, mas também em segredo), que sugestivamente se faz uma “jangada” que inventa uma “ilha”, 28 anos antes de Saramago -, como associa uma tal ânsia a uma sublevação propriamente feminina, que visa retomar essa Ibéria perdida, uma Ibéria que transcende, não por acaso, e de acordo com a sua defesa do pluralismo como horizonte cultural, o próprio território peninsular, convocando a essa causa mulheres asiáticas, europeias, e americanas, conformando, mais do que um topos, uma utopia de cunho matricial e matriarcal.
Esta sublevação faz-se, precisamente, na desobediência feminina, concretizando a “utopia libertária” da mátria fulcral ao seu feminismo (Nascimento 2016, 21), como preconiza nos ensaios “O cativeiro de Afrodite”, “O purgatório dos poetas” e “A reintegração de Eros” que em 1965 serviram de prefácio à censurada Antologia de poesia erótica e satírica, nos quais propugnava a libertação sexual feminina em rutura com o cativeiro de “uma moral onde à feminilidade sempre coube observar a regra de uma discrição apetecida pelo idealismo patriarcal” (Correia 1999, 11). O apelo afrodisíaco patente no poema inscreve-se, assim, num amplo projeto político em torno da liberdade do corpo feminino e da vivência erótica contra as convenções repressoras.
Este apelo tem como horizonte um novo paradigma cultural alicerçado justamente no conceito de “matrismo”, contra as “racionalidades masculinas” que estiveram na base, na conceção da autora, da opressão reinante, e que na Península Ibérica cobravam à época particular incidência, com as suas ditaduras nacionalistas e centralistas, contra o que propõe retomar o pluralismo determinante ao seu iberismo. Este novo paradigma está marcado, por isso mesmo, por uma pura liberdade erótica, que surge na cosmovisão nataliana sob signo feminino, um feminino categórico que se não esgota no género biológico, mas que deseja extensível a toda a sociedade. Essa afirmação da libertação sexual feminina como “via luminosa do amor sem culpa, dentro do qual a fulguração carnal da mulher retoma o brilho mágico primordial” (Correia 1999, 31) seria, assim, a verdadeira consumação do modelo preconizado pelo seu conceito pluralista da Espanha das Espanhas, cruzando, por via do valor do erótico, matrismo e iberismo, formas ambas da sua utopia libertária em busca dessa ordem mágica primordial.
Não é, pois, por acaso, que a proposta de uma salvífica “liberdade afrodisíaca de cunho matriarcal” (ibidem, 22) encontra nesta passagem poética iberista uma das suas mais expressivas realizações: as mulheres que este poema cantam são inaugurais (“convocadas pelo clarim de uma madrugada”, “filtradas de sal genesíaca”), intempestivas (uma “síntese nervosa febril”), desejantes e corpóreas (“espécie de púbis que faltava em seus corpos”), revoltosas (“para serem rasgados ventres baldios”), insubmissas (“Mulheres que emigraram de si mesmas”, “filhas que envergonham os pais”, “rainhas de reinos introvertidos”, “prostitutas de sub-reptícios cais”). São, numa palavra, Fedra dona do seu desejo, traidora, acossada, criminosa e arredia, condição de que Natália Correia se reclama porta-voz, “poliedro de todas”, intérprete, como ela própria se dizia, do feminino da cultura da mulher ibérica, que, liderando a revolta, devolvesse a liberdade e a pluralidade congénitas a uma cultura ibérica que surge, afinal, como transversal utopia humana.