SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número50Mais vale uma creche! Mulheres e a luta por equipamentos coletivos durante o Processo SAAL (1974-76) em PortugalAutogestão durante o período revolucionário português: o caso das operárias na fábrica Sogantal (1974-1976) índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.50 Lisboa dez. 2024  Epub 31-Dez-2024

https://doi.org/10.22355/exaequo.2024.50.05 

Dossier

Nos campos, nós as mulheres lutámos muito”: Mulheres rurais e o 25 de Abril

“We women fought hard in the fields”: Rural women and the 25 April Revolution

“Las mujeres luchamos duro en los campos”: Las mujeres rurales y la Revolución del 25 de abril

Rita Calvário* 

Investigadora integrada do DINAMIA’CET-ISCTE e investigadora colaboradora do CES-UC. A sua investigação centra-se nos movimentos sociais agrários, nas transformações rurais e nos sistemas alimentares, tendo em conta a relação entre ecologia, desigualdades, território e política. Atualmente investiga as relações de género na agricultura em Portugal com foco nas mulheres agricultoras e mulheres assalariadas, numa perspetiva histórica e atual.

, Concetualização, análise formal, investigação, metodologia, validação, redação do rascunho original (papel principal), revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-1424-6573

Cecília Honório** 

Doutorada em História e Teoria das Ideias, especialidade de História das Ideias Políticas, professora de História no ensino secundário e investigadora no CHAM-NOVA FCSH, onde colabora na Revista de Ideias e Cultura. Os seus interesses incluem o pensamento político e a história das mulheres, nomeadamente: ideário do liberalismo; populismos, extrema-direita e agenda antifeminista; educação das raparigas; organização das mulheres na luta antifascista no segundo pós-guerra.

, Concetualização, análise formal, investigação, metodologia, validação, redação do rascunho original, revisão e edição (papel principal)
http://orcid.org/0009-0006-6579-8174

*Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território (DINÂMIA’CET), 1649-026 Lisboa, Portugal. Endereço postal: ISCTE - Edifício 4, Gab. B122, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. Endereço eletrónico: rita.calvario@iscte-iul.pt

**CHAM-Centro de Humanidades, NOVA Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (CHAM-NOVA FCSH), 1069-061 Lisboa, Portugal. Endereço postal: Avenida de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa, Portugal. Endereço eletrónico: cecilia.honorio.2@gmail.com


Resumo

A participação das mulheres rurais na Revolução Portuguesa e o impacto desta na sua emancipação permanece um enigma que carece de exploração e aprofundamento histórico. Este artigo examina o papel das mulheres rurais na resistência à ditadura (1950-1974) e durante o período revolucionário (1974-1975), destacando-as como sujeitos sociais, políticos e históricos. A análise visa revelar as suas contribuições e lutas, proporcionando uma compreensão mais abrangente deste período transformador e que foi crucial na trajetória de emancipação das mulheres no mundo rural português.

Palavras-chave: Ação coletiva; relações de género; transformações rurais; Revolução portuguesa

Abstract

The participation of rural women in the Portuguese Revolution and its impact on their emancipation remains an enigma that needs to be explored and deepened historically. This article examines the role of rural women in the resistance to the dictatorship (1950-1974) and during the revolutionary period (1974-1975), highlighting them as social, political and historical subjects. The analysis aims to reveal their contributions and struggles, providing a more comprehensive understanding of this transformative period that was crucial for the emancipation of women in the Portuguese rural world.

Keywords: Collective action; gender relations; rural transformations; Portuguese Revolution

Resumen

La participación de las mujeres rurales en la Revolución Portuguesa y el impacto en su emancipación sigue siendo un enigma que necesita ser explorado y profundizado históricamente. Este artículo examina el papel de las mujeres rurales en la resistencia a la dictadura (1950-1974) y durante el periodo revolucionario (1974-1975), destacándolas como sujetos sociales, políticos e históricos. El análisis pretende revelar sus contribuciones y luchas, proporcionando una comprensión más completa de este período transformador que fue crucial en la emancipación de la mujer en el mundo rural portugués.

Palabras clave: Acción colectiva; relaciones de género; transformaciones rurales; Revolución Portuguesa

1. Introdução

Como participaram as mulheres rurais na Revolução portuguesa? Como contribuiu a Revolução para a sua emancipação?

Este estudo visa inverter a invisibilidade das mulheres rurais na resistência à ditadura (1950-1974) e durante o processo revolucionário (1974-1975), retirando-as do fundo da hierarquia de representações dos atores revolucionários, realçando a sua ação coletiva e o seu significado como sujeitos políticos e históricos.

A recolha que sustenta a análise não pretende ser exaustiva, mas procura revelar gestos, momentos, falas, imagens, lutas que deram corpo e voz às mulheres rurais, como sujeitas de facto, para desfazer não só a sua parca presença nos estudos sobre a Revolução, como a sua imagem de débil participação política, e revelar outras faces - a resistência, a inteligência, a capacidade de organização.

O artigo está dividido em quatro partes. A primeira apresenta uma breve revisão bibliográfica e a metodologia. A segunda e a terceira partes descrevem e analisam, respetivamente, o papel das mulheres rurais nas lutas antes da Revolução, entre 1950 e abril de 1974, e no período pós-Revolução, entre maio de 1974 e 1975. A quarta parte conclui com uma reflexão sobre o contributo das mulheres rurais para a Revolução e o contributo desta para a sua emancipação.

2. Revolução portuguesa e mulheres rurais

A Revolução foi um “levantamento popular vindo de baixo, do âmago da condição social dos que nunca tinham tido voz e entravam tumultuosamente na história.”

Fernando Rosas, Ensaios de Abril (2023, 98)

O “levantamento popular” invadiu, também, o mundo rural. A Sul, a Reforma Agrária permitiu a conquista da cidadania à maioria da população rural que “tomou em mãos o seu próprio destino” (Baptista 2010, 216), experimentando novas formas de organização social e de democracia. A Norte1, o balanço é menos claro, mas também aqui se romperam "com silêncios, medos, repressão" (Paiva 2020, 19), desenvolvendo-se várias lutas camponesas e rurais.

No âmbito dos estudos rurais, a investigação sobre a Revolução foca-se largamente no processo social ou político da Reforma Agrária a Sul (Piçarra 2022). Os estudos existentes, não centrados nas mulheres, indicam que, apesar das mudanças revolucionárias, as suas oportunidades e condições de trabalho registaram poucas melhorias. Isto é atribuído a uma abordagem centrada na família e na comunidade, que resultou na preservação dos papéis tradicionais de género (Bermeo 1986; Fernandes 2006; Godinho 2020). Embora alguns estudos destaquem avanços na conquista de vários direitos para as mulheres rurais a Sul, como o voto nas cooperativas e a participação pública (Vester 1986; Baum 1998), continua a existir uma lacuna notável na compreensão das lutas das mulheres rurais.

A Norte, a investigação sobre a Revolução é escassa, como é a referência às mulheres (Cabral 1978; Paiva 2023). Os estudos sobre as mulheres na agricultura familiar, englobando períodos históricos longos e sem especificar a Revolução, destacam a feminização do trabalho agrícola (Rodrigo 1986) e o “poder” social das mulheres no âmbito da família (Wall 1994), ao mesmo tempo que sublinham a sua subalternidade dentro de um sistema patriarcal (Cabral 1984). O paralelismo entre a condição social das mulheres nas famílias rurais a Norte e a Sul é evidenciado, em que o homem assume uma posição mais pública e a mulher de recato doméstico e controlo social das relações de vizinhança nas aldeias (Carmo 2007).

A nível dos estudos de género, há poucos trabalhos sobre as mulheres rurais e a Revolução, sendo que elas têm estado ausentes enquanto objeto de estudo e de exploração histórica, tanto a nível empírico como da análise das relações sociais de género (Vaquinhas 2018).

Neste artigo, intitulado “Nos campos, nós as mulheres lutámos muito” (Sampaio 1975, 19), procuramos compreender o contributo das mulheres rurais para a Revolução e a extensão da sua emancipação a partir de uma leitura da sua ação coletiva tendo em consideração a importância de reconhecer a acumulação gradual de fatores das décadas anteriores (Wall e Almeida 2001), em especial das lutas vindas da ditadura.

A análise assenta na documentação das lutas das mulheres rurais enquanto ação coletiva e de emergência no espaço público, através de revisão bibliográfica e, sobretudo, da recolha da imprensa da época. Para o período de 1950-1974, a nossa pesquisa debruça-se sobre os jornais clandestinos Avante!, O Camponês e A Terra, do Partido Comunista Português (PCP). No período de 1974-1975 incluímos, além dos mencionados, então na legalidade, o Diário de Lisboa e a revista Vida Rural, bem como reportagens da RTP e filmes sobre este período. As fontes estão condicionadas pela origem e pelos critérios editoriais. Porventura haverá muitas lutas não registadas, mas retirar da “sombra” estas lutas e estas mulheres é um trabalho que importa realizar.

3. As lutas das mulheres rurais antes da Revolução (1950-1974)

[...] quando a gente via que aquilo eram mesmo ordenados de miséria e que não nos podíamos de maneira nenhuma governar, então tínhamos que nos juntar e lutávamos.

Úrsula Machado (apud Freitas 1974, 10)

A Sul, as mulheres rurais estão na clandestinidade e envolvem-se “na perpetuação de uma memória de luta” e na politização das mulheres através da leitura de jornais e comunicados “nas horas de lazer em grupo” (Godinho 1998, 357). Elas atuam na esfera privada da família e nas redes informais das sociabilidades locais, mas também estão nas lutas coletivas e na esfera pública.

A maioria da população agrícola a Sul era composta por trabalhadores/as eventuais que trabalhavam cerca de metade do ano. Dentro deste grupo estavam as mulheres que trabalhavam sazonalmente na vindima, na apanha da azeitona, na ceifa, na monda do arroz, entre outras tarefas. Elas são especialmente afetadas pelo desemprego e recebem salários mais baixos, cerca de metade do dos homens (Barros 1981). Este grupo mobiliza-se na luta pelo trabalho, o pão e o salário e “durante o fascismo foi um marco constante de resistência” (Baptista 1978, 12).

A forma principal de protesto é a greve. Estas são sucessivas nos campos do Sul entre 1943 e 1962, ano após ano, sobretudo na altura das ceifas, ressaltando-se as importantes greves de 1944-1947 e 1952-1954 (morte de Catarina Eufémia) e a greve geral em maio de 1962, que conquista as 8 horas de trabalho em várias zonas. As greves incluem a formação de piquetes e de comissões que percorrem o território a mobilizar outros para a luta. Tudo isto ocorre num ambiente de violência de Estado que acarreta o risco de espancamento, prisão e até a morte.

O êxodo rural e a introdução do modelo químico-mecânico no final de 1950 alteram as condições sociais nos campos e os/as trabalhadores/as adotam um caderno reivindicativo de Contrato Coletivo de Trabalho (CCT) que inclui: garantia de trabalho; salário mínimo; semana de 6 dias e dias de 8 horas; redução do fosso salarial entre homens e mulheres, de metade para cerca de 70%. O decréscimo das mobilizações após 1962 não altera a forma de protesto: greves, concentrações, manifestações, romarias, homenagens, abaixo-assinados e exposições ao Governo. Estes protestos contam com o envolvimento massivo de mulheres e devem ser sequenciados como património de lutas que preparam a Revolução.

O PCP tem importância nas mobilizações nos campos, mas as lutas são protagonizadas por muitas outras mulheres que não eram militantes. As lutas são uma constante e elas reúnem, avaliam e decidem, elas fazem grupo de pressão sobre outras mulheres, elas são solidárias com eles e entre si, e elas também protestam na rua e enfrentam a dura repressão.

Entre 1950 e abril de 1974, encontramos 127 registos da presença das mulheres rurais, sobretudo em lutas protagonizadas por elas ou em conjunto com os homens, a maioria na década de 1950 (65%). Os distritos de Beja (31%), Santarém (24%) e Évora (17%), seguidos por Setúbal (11%) e Portalegre (10%), são os grandes palcos das lutas delas. Em Beja, destacam-se Pias, Vale de Vargo e Baleizão; em Santarém, Alpiarça e Couço; em Évora, Montemor-o-Novo; em Setúbal, Grândola e Alcácer do Sal; e em Portalegre, Benavila e Avis.

A organização destas mulheres contra a violência e a repressão, a sua participação em manifestações e concentrações, a sua intervenção na “praça de jorna”, no rancho ou na greve, são exemplos que contrariam a sua imagem de subalternidade.

A 4 junho de 1950, em Alpiarça, as mulheres organizadas numa praça de jorna feminina, reivindicam melhores jornas e são atacadas pela GNR, provocando um morto e vários feridos. No dia 6 de junho, 1.000 pessoas vão ao funeral em protesto. As trabalhadoras mantêm as reivindicações e conquistam-nas (S.n. 1950, 1-2). Em 1952, em Samora Correia, as trabalhadoras unem-se na praça de jorna e exigem a “jorna a 26$00 [...] não se deixando intimidar pelas forças da GNR.” Ao fim de dois dias, conseguem a jorna pretendida e exigem o pagamento do dia de trabalho perdido (S.n. 1952, 2). Em 1952, em Almeirim, as mulheres manifestam-se a favor da praça de jorna que os patrões não querem (S.n. 1952, 2). Em 1956, em Samora Correia, 300 mulheres foram à praça de jorna lutar por jornas de 36$00, contra os 20$00 que lhes queriam pagar. Após espancamento da população, as mulheres fizeram praça noutro local e conseguiram a jorna exigida (S.n. 1956, 2). Em 1962, no Couço, as mulheres conseguem, após várias concentrações na praça de jorna, conquistar as 8 horas de trabalho e as jornas de 30$00 e 35$00 (S.n. 1962, 3).

As mulheres organizam-se nos ranchos e mobilizam outras mulheres. A 16 de fevereiro de 1954, em Vale de Vargo, cinco ranchos de 200 trabalhadoras no total fazem greve e exigem um aumento de jorna de 10$00 para 15$00. As comissões de cada rancho fundem-se numa só e percorrem a freguesia a falar com as outras mulheres. Os agrários chamam a GNR que as ataca na estrada, espanca-as, insulta-as e convoca 5 mulheres para interrogatório. Estas, acompanhadas por outras 50 mulheres, recusam-se a entrar no posto. A GNR responde com tiros e a população revolta-se, acudindo com paus e pedras. A polícia fecha-se dentro do posto e pede reforços. No dia seguinte, as trabalhadoras são chamadas ao posto e são interrogadas. Cerca de 1.000 pessoas dirigem-se ao posto em protesto e conseguem libertar as trabalhadoras. Durante dois meses a aldeia fica em isolamento e sob forte vigilância policial. A três das trabalhadoras, o tribunal de Serpa aplica uma pena de prisão de 18 dias e multa de 150$00. Reúnem-se dois abaixo-assinados a pedir a anulação da pena. As trabalhadoras, entretanto, não desistiram das suas reivindicações, fizeram uma greve de 8 dias e foram trabalhar por 14$00 e 15$00 (S.n. 1954, 3; S.n. 1954a, 1-2) Em 1957, em Bencatel, 600 camponesas fizeram greve na apanha da azeitona ao exigir 12$00 a partir da terceira semana de trabalho. Elas formaram piquetes de mulheres que, pelas ruas da localidade, tinham a missão de impedir outras de receberem 10$00, tendo mesmo formado um cordão humano na estrada para impedir as camionetas com trabalhadoras de passar. Elas ganharam a luta e outros ranchos seguiram o exemplo, mesmo quando o patrão respondeu à exigência de 12$00 com um: “Só 12 tiros!” (S.n. 1957, 1).

As mulheres participam em concentrações e manifestações a exigir trabalho e pão. No final de 1952, em Vale de Vargo, eles e elas concentram-se frente à Câmara Municipal, Junta de Freguesia e GNR a exigir trabalho e, perante as ameaças, gritam: “Queremos trabalho ou pão! Não queremos pancada!” (S.n. 1953, 1). Em fevereiro de 1965, após as cheias que assolaram o Ribatejo, as mulheres da Golegã desfilaram nas ruas a gritar “Temos fome!”, tendo assaltado o celeiro da terra, a loja e distribuído o seu recheio pelos famintos (S.n. 1966, 2).

Elas lutam contra a arbitrariedade das prisões e a violência. A 5 de março de 1954, em Pias, a prisão de 7 jovens levou 1.500 pessoas, “entre as quais muitas mulheres, [que] se juntaram e percorreram as ruas” a exigir a libertação dos jovens frente ao posto da GNR, que disparou sobre o povo, tendo sido declarado estado de sítio (S.n. 1954b, 2).

Elas protagonizaram lutas de caráter explicitamente político. É o caso das celebrações do 1º de maio e do dia 8 de março, as romarias de homenagem a companheiras assassinadas pelo regime ou os protestos contra a burla eleitoral nas eleições presidenciais de 8 de junho de 1958. A 23 de junho de 1958, no Couço, cerca de 6 mil trabalhadores e trabalhadoras fizeram greve. No dia 24 organizam-se em grupos e vão em várias direções a juntar ranchos à greve. A greve durou mais de oito dias e levou à prisão de mais de 60 pessoas, a declaração de estado de sítio por terrorismo por mais de três meses e a proibição do trabalho por um mês (S.n. 1958, 2).

A grande greve de 1962 inicia-se no 1º de maio, um dia típico de luta em várias zonas. No Alentejo litoral, 50 mil trabalhadores e trabalhadoras fazem greve e manifestações neste dia, incluindo os ranchos do Algarve e das Beiras. Conquistam as 8 horas e jornas de 28$00 a 30$00 para homens e 22$00 a 25$00 para mulheres. Ocorrem várias prisões, episódios de violência, protestos do povo e as “mulheres chegaram a meter-se à frente dos carros”. A luta alastra-se ao Alto e Baixo Alentejo, Ribatejo, Lisboa e mesmo às Beiras e Trás-os-Montes na luta pelas 8 horas, abrangendo um total de 200 mil trabalhadores e trabalhadoras (S.n. 1962a, 1-2).

A 8 de março de 1973, em Alpiarça, dá-se uma greve geral dinamizada pelas trabalhadoras agrícolas e as costureiras, com a solidariedade dos trabalhadores da construção civil (S.n. 1973, 1). Conta Maria Gabriela, uma trabalhadora,

As mulheres organizaram-se, paralisaram o trabalho e intentaram fazer uma romagem à campa da camarada Maria Albertina [morta na clandestinidade] [...]. Quando de manhã passámos pelo cemitério já ele estava fechado, a PIDE era muita. A guarda a cavalo veio de todos os lados, do Ribatejo, de Santarém, da Chamusca. […] Esta provocação da PIDE aconteceu não só em 8 de março, mas também nas eleições quando a Oposição Democrática decidiu não ir às urnas. Também no 1º de maio tentámos organizar uma homenagem, desta vez levando ramos de flores. (Ardatovski 1975, 16-17)

A Norte, as lutas e a presença das mulheres é mais pontual e difusa, mas elas também estão lá. No período em causa, considerámos 21 registos (incluímos os do setor do leite onde eram maioritárias, mesmo que as notícias não as especifiquem). As mulheres apoiam abaixo-assinados ou exposições ao Governo, estão na rua e em conflito aberto com as autoridades. Elas lutam contra a apropriação dos baldios, da água e das terras arrendadas ou em foros e contra taxas e encargos impostos pelo Governo, contra os monopólios e contra os Grémios. Elas lutam por salários. Também elas são reprimidas, espancadas, presas e assassinadas.

No setor do leite elas protestam contra o monopólio da comercialização entregue à Federação dos Grémios da Lavoura e os preços baixos. A 23 de janeiro de 1959, mais de 300 leiteiras da cidade do Porto e arredores concentram-se e protestam contra os monopólios da distribuição do leite e gritam “Abaixo os Grémios!”. Elas são espancadas pela polícia e a PIDE, que fere uma e prende nove. A 8 de fevereiro, as leiteiras e os pequenos produtores apedrejam o Presidente do Grémio que tem de fugir. A 23 de fevereiro fazem nova concentração e organizam uma comissão para expor as suas reivindicações ao Ministro do Interior (S.n. 1959, 3). A partir de meados de 1960, o conflito em torno do preço do leite atinge a região de Vouga (S.n. 1966a, 1) e de Entre Douro e Minho (S.n. 1966b, 3). Em 1972, os produtores de leite de Aveiro recusam-se a entregar o leite nos postos de recolha da Federação dos Grémios da Lavoura e fazem a entrega nas salas de ordenha criadas pela sua cooperativa. A GNR é chamada ao local e tem de sair devido aos protestos (S.n. 1972, 3). Pouco depois conseguem vitória com despacho do Ministro a dar prioridade à recolha de leite nas cooperativas e uniões de cooperativas (S.n. 1972a, 4).

Elas estão nos mercados e protestam. Em 1970, as vendedeiras do mercado de Viseu entregam um abaixo-assinado e cerca de 40 entram em greve contra o aumento da taxa de ocupação de 5$00/mês para 5$00/dia/m2. A luta delas foi vitoriosa (S.n. 1970, 5). Em 1972, as vendedeiras do mercado de Aveiro recusam-se a ter balanças e 75% delas faz greve (S.n. 1972b, 1) contra este encargo extra e a “ideia de que o aumento do custo de vida era devido ao sector produtivo” (Paiva 2020, 21).

Elas participam na luta contra a apropriação dos seus meios de vida, como sejam os baldios, a água ou as terras que cultivam. Em 1961, homens e mulheres do Carregal e Quintela da Lapa (Sernancelhe, Viseu), concentram-se e expulsam trabalhadores a mando dos Serviços Florestais que se encontram a cavar os seus baldios (S.n. 1961, 4). Mais tarde, entre 1970 e 1973, a população de Talhadas, Albergaria das Cabras e Cabreiros, no distrito de Aveiro, fazem abaixo-assinados, exposições, são multados por apascentar o gado nos baldios, reúnem com os Serviços Florestais e protestam frente ao tribunal contra as multas. A maioria da população era “sobretudo mulheres que eram as pessoas mais ativas e determinantes” (Paiva 2020, 60). Em relação à terra de cultivo, elas também estão na frente das lutas dos pequenos camponeses, foreiros e rendeiros a quem o Estado ou os proprietários querem roubar as terras.

Elas também fazem greve onde são assalariadas. Em 1961, as descarregadoras de sal na Figueira da Foz conseguem, conjuntamente com os homens, um aumento de salário de 40$00 para 50$00 para homens e de 20$00 para 25$00 para mulheres (S.n. 1961a, 3).

Elas recusam pagar as quotas abusivas dos Grémios e são alvo da solidariedade popular. Em 1972, em Viseu, uma mulher foi detida por falta de pagamento de quotas ao Grémio, tendo o povo “tentado impedir a sua prisão e só a GNR, de armas aperradas, conseguiu arrancar do lugar a mulher, mantendo-a presa vários dias” (S.n. 1972, 3).

No entanto, a Norte, conforme refere Vasco Paiva, em entrevista às autoras,

Até ao 25 de abril não há um grande destaque de mulheres à frente das lutas. Participavam mas não tinham funções de liderança. [...] Com o 25 de abril tudo muda, tudo se despoletou. E as mulheres passaram a ter muito mais intervenção também. (Abril 18, 2024)

4. As lutas das mulheres rurais depois da Revolução (1974-75)

Que a Reforma Agrária tem de ser feita por todos, homens e mulheres, que eles não são mais que a gente.

“Exemplo revolucionário dos trabalhadores alentejanos.” Avante! nº 64 (19 de junho de 1975, 7)

Logo após o 25 de abril, os trabalhadores assalariados nos campos do Sul organizam-se em sindicatos de trabalhadores agrícolas (STA) e avançam para a negociação de convenções e CCT com os patrões, que estão organizados nas Associações Livres de Agricultores. Retomam-se as reivindicações anteriores, com ligeiras melhorias. A diferença está agora na sua conquista, incluindo o aumento salarial das mulheres, mas sem que se elimine o fosso salarial entre eles e elas.

Evocando que já em 1973 tinham feito greve com a reivindicação de jorna de “pelo menos 3/4 do dos homens, por trabalho igual a descavar a vinha” (S.n. 1973a, 1), sem o conseguirem, Maria Gabriela explica:

Já depois do 25 de Abril conseguimos então os – dos homens, 105$00. Nessa altura deram o que pedimos sem repressão, sem greve, porque - já se sabe como é… - todos já eram democratas. No nosso contrato de trabalho que saiu agora em março já está estipulado salário igual para trabalho igual. (Ardatovski 1975, 16-17)

No entanto, a conquista do trabalho e do salário nem sempre foi fácil. A assinatura dos CCT ao longo de 1974 (Beja, Évora e Portalegre) e início de 1975 (Santarém) dá-se após a realização de greves e manifestações, requerendo, nalguns casos, a intervenção do Ministério do Trabalho e do MFA. Nestas mobilizações, o papel das trabalhadoras é decisivo. Em setembro de 1974, na Chamusca, foi a intervenção das mulheres que assegurou a assinatura do CCT. A 16 de setembro, as mulheres “não só aderiram imediatamente à greve como assumiram nela uma posição de corajosa vigilância. [...] sem a adesão das mulheres a greve não poderia ter vingado” (S.n. 1974, 4). Elas integraram os piquetes e derrotaram as tentativas de furar a greve, colocando-se em frente aos carros que transportavam mão-de-obra de substituição, impedindo o acesso às vinhas.

O abandono das terras e o boicote económico dos agrários, que se agravam no final de 1974, atingem em especial as mulheres com despedimentos, recusa em dar trabalho, abandono da produção para os animais, perseguição política, ou incumprimento das CCT. Mas elas unem esforços, denunciam os abusos e enfrentam os patrões.

Em dezembro de 1974, em Montemor-o-Novo, as trabalhadoras recusam o trabalho porque o agrário não quis pagar o estabelecido na convenção e apelam às companheiras na apanha da azeitona para não aceitarem trabalhar por menos (S.n. 1974a, 6). No início de 1975, em Pedrogão do Alentejo, a mulher de um trabalhador despedido enfrenta o agrário que lhe aponta uma pistola, mas foge à sua resposta de “Dispara se fores homem!” (S.n. 1975a, 3). Em 1975, em Pias, as trabalhadoras, quando são pressionadas a trabalharem a ritmo de empreitada, convidam o “fascista a trabalhar ao seu lado”, e este foge (S.n. 1975b, 6). Nestes relatos o que podemos observar é a profunda alteração da relação de forças entre trabalhadoras e patrões, em que a liberdade ganha à repressão.

Embora a mão-de-obra seja maioritariamente masculina, o desemprego recai sobretudo sobre as mulheres. No início de 1975, o STA do distrito de Beja declara: “É o desemprego em massa, que nunca como este ano atingiu tal intensidade, e que se traduz [...] em cerca de 4.000 homens e 10.000 mulheres sem trabalho” (S.n. 1975c, 2). No entanto, elas são secundarizadas nas colocações de trabalhadores pelos STA. No distrito de Beja, os números são claros: são colocados 476 homens e 4 mulheres como efetivos e 805 homens e 81 mulheres como eventuais (S.n. 1975d, 2). Além disso, elas não estão nos cargos de direção dos STA, conforme revela um estudo realizado pela Comissão da Condição Feminina, no início de 1975, sobre mulheres e sindicalismo. Segundo a jornalista que noticia o facto, “não é, assim, de admirar que elas tenham sido tão prejudicadas nas convenções coletivas de trabalho já ‘em liberdade’” (Louro 1975, 7).

É perante o desemprego que se dá a “toma” de terras como forma de garantir o emprego e o salário (Baptista 2010). De novo, é o grupo dos eventuais que assume protagonismo, em particular as mulheres, que têm um “papel de elevada combatividade e, por vezes, até de índole claramente radical. Não raros foram os casos em que, na verdade, a atitude por elas assumida pesou significativamente no avanço para as ocupações e na concretização destas” (Barros 1981, 75). A Cooperativa Agrícola de Casebres, em Alcácer do Sal, é um caso em que as mulheres lideraram parte da ocupação de terras, porque “os homens [...] eram poucos e a gente é que tomou a atitude toda” (S.n. 1975e).

Se trabalhar nos campos foi “o verdadeiro início da reforma agrária”, esta nova ordem social foi tecida “no quadro dos valores tradicionais” no que diz respeito às mulheres (Baptista 2010, 132). Se no início as mulheres entraram nas novas unidades coletivas de produção (UCP) massivamente, num crescimento superior ao dos homens (+272%, enquanto o destes foi de 210%), inclusive como trabalhadoras permanentes (+616%) (COCRA 1982), no quadro da crise, as UCP priorizaram a garantia de trabalho para os “cabeças de casal”, lançando as mulheres para o grupo dos eventuais. Além disso, manteve-se a divisão sexual do trabalho, as mulheres recebiam menos 30% do que os homens e estavam geralmente excluídas das direções (Ferreira e Piçarra 2024). Segundo Bermeo (1986, 112-113; itálico nosso),

A Revolução pouco alterou as oportunidades de trabalho das mulheres. [...] As mulheres estavam limitadas ao trabalho temporário, em parte porque lhes cabiam as responsabilidades de cozinhar, limpar e criar os filhos. [...] As mulheres reconheciam que estavam a ser tratadas de forma diferente, mas tinham uma justificação económica pronta para explicar a sua situação. A desigualdade entre os sexos era justificada como um meio de promover a igualdade entre as famílias.

Há certamente que considerar os diferentes momentos e sobressaltos da Reforma Agrária (Piçarra 2022). A queda do V Governo provisório, a 6 de setembro de 1975, e, sobretudo, o golpe do 25 de novembro de 1975 trazem uma reconfiguração na relação de forças nos campos do Sul. Se há, numa primeira fase, uma perspetiva de expansão da Reforma Agrária, ela nunca se concretiza e entra rapidamente numa fase defensiva. É preciso saber ler a atitude das mulheres rurais neste contexto, o qual constrange o seu campo de possibilidades. Se “quanto à diferença salarial das mulheres não houve contestação” (Godinho 2020, 31), pelo menos visível e organizada, isso não quer dizer que ela não tenha existido dentro das UCP ou noutros espaços.

Existem casos de “cooperativas nas quais as mulheres recebem os mesmos salários e ocupam as mesmas posições que os homens” (Vester 1986, 504-505), o que parece dever-se ao peso da sua força de trabalho ou da ideologia política. Se os STA e as UCP não pugnaram pela alteração da divisão sexual do trabalho e pela igualdade salarial, também noutros casos e sob influência de outras orientações à esquerda, esta questão era alvo de debates e disputas acesas (veja-se os casos descritos por Pisani [1978], sobre Torre Bela, e por Salvador [1977], sobre a Cooperativa de Barcouço). O contexto social era profundamente machista. A descrição da experiência de Jochen Bustorff (1986, 71) na cooperativa Estrela Vermelha, em Santiago do Cacém, revela bem o espírito da época, mas também o humor delas sobre a invisibilidade do seu trabalho. Bustorff relata que, ao lavar a sua roupa junto das mulheres, os homens lhe gritam ao passar: “Ficava-te bem mas era uma saia”, ao que as mulher respondem “Tu, uma saia?! Tu também sujas a roupa?!”

No filme A Lei da Terra (1977), o relato de uma trabalhadora é revelador da consciência que as mulheres tinham sobre o valor do seu trabalho:

O trabalho das mulheres aqui no Alentejo é tal e qual como o dos homens. Ou ainda pior, porque as mulheres têm que trabalhar todo o dia juntamente com os homens e depois vão para casa e têm que tratar das coisas de casa, têm de tratar dos filhos e os homens disso não fazem, estão descansados. [...] Eles talvez não gostem que a gente diga isto, mas tenho que dizer. Os nossos trabalhos são tão puxados como os deles, porque estamos sempre trabalhando ao lado deles.

Se para as mulheres rurais não se atingiu a garantia de emprego e a igualdade salarial, e muito menos se rompeu com a divisão sexual do trabalho dentro e fora de casa, outras mudanças ocorreram: a toma da palavra, a toma das terras, a participação na cooperativa, a resistência feita manifestação, o envolvimento nos comícios, a liberdade feita cidadania.

É certo que elas estão pouco representadas nas direções dos STA, das UCP ou das Ligas de Pequenos e Médios Agricultores (LPMA), mas não estão totalmente ausentes. Numa comissão pró-STA no Ribatejo, elas estão representadas numa relação de 5 para 12 (Silva 1974, 10-11). Na comissão pró-LPMA de Évora, estão 2 mulheres e 4 homens (S.n. 1974b, 4). Para a direção provisória do STA do Algarve são eleitas 2 mulheres (S.n. 1975f, 3). O STA de Benavente deu 2 dos seus 9 lugares executivos às trabalhadoras (Louro 1975, 7). A delegação do STA no Couço tem 4 homens e 3 mulheres (S.n. 1975g, 5). Na UCP Germano Vidigal, em Montemor-o-Novo, existe uma comissão com 9 trabalhadores, 7 homens e 2 mulheres (S.n. 1975h, 4). Na UCP Pedro Soares, ocupada por homens e mulheres, em Montemor-o-Novo, a comissão de trabalhadores tem 4 homens e 2 mulheres (S.n. 1975i, 4). Na Herdade do Zambujal, em Palmela, na comissão de gestão coletiva, em 13 membros está uma mulher trabalhadora rural (Silva 1975, 10-11).

Nas ruas, várias reportagens atestam a sua presença. Na greve e nos protestos de 17 de setembro de 1975, convocados pelo PCP, que junta centenas de milhares de trabalhadores agrícolas nas cidades de Beja, Évora e Portalegre, Faro e Portimão, relata uma jornalista:

Sobressaía do caudal de gente uma forte presença de mulheres. Com os lenços negros contornando o rosto, os chapéus enfeitados de penas e flores, vestidas de trajes coloridos, as camponesas mostraram-se, como sempre, as componentes mais entusiastas da multidão que percorreu as ruas da cidade. (Féria 1975, 5)

É também na toma da palavra que elas se anunciam no espaço público. Na reunião da população rural na Casa do Povo de Casal de Ovelhas, no Ribatejo, as mulheres intervêm (S.n. 1974c, 13). As mulheres participam ativamente em reunião para instalação de cooperativa nos baldios Costas e Vale de Lameiras recuperados pelo povo (Féria 1975a, 9). No I Encontro Unitário de trabalhadores das herdades coletivas do distrito de Évora, fala a delegada sindical de Mora (S.n. 1975j, 8).

A Norte, as lutas são sobretudo as que já vinham de trás e é também na rua e na toma da palavra que as mulheres sobressaem. No cineteatro de Estarreja, centenas de produtores de leite, onde elas são fundamentais, reuniram-se para denunciar as condições de exploração da Federação dos Grémios, dando voz a gente que subia “pela primeira vez a uma tribuna”:

Somos a gente trabalhadora mais desgraçada do mundo - gritou uma mulher. Não temos hora de sono nem de trabalho. Alimentamos o País. Não fazemos contas a nada. Ninguém olha por nós e toda a gente, sobretudo aqueles do Grémio e da Federação, espezinham-nos miseravelmente. (S.n. 1974d, 1, 24)

Em novembro de 1974, as camponesas da Gafanha (Aveiro) protestam contra os preços da expropriação de terras, devido à construção de uma ponte sobre a Ria da Costa Nova. São elas que reclamam, porque são elas que cuidam da terra e criam o gado, enquanto os maridos se dedicam a outras atividades (S.n. 1974e, 10). Em outubro de 1975, elas participam em manifestações pela extinção dos foros em Condeixa-a-Nova (S.n. 1975l, 1).

Em assembleias de trabalhadores agrícolas e que são, nalguns casos, precursoras da formação de STA a Norte, elas estão presentes. É o caso, em 1975, dos plenários da Comissão de Trabalhadores da Quinta da Aveleda, Penafiel, formada após o despedimento de uma viúva de 61 anos (S.n. 1975m, 3), e do plenário de trabalhadores em Braga para discutir formação do sindicato, em que participaram “[q]uase duas centenas de pessoas, incluindo muitas mulheres” (S.n. 1975n, 3).

5. Conclusão

Na Revolução portuguesa, o poder popular não se construiu sem elas e em particular as mulheres rurais, que falaram, enfrentaram, boicotaram, empurraram os homens, exerceram formas de poder, ocuparam as ruas e as terras. Esta participação fez-se ainda na trajetória de um percurso longo de resistência à ditadura em que elas foram centrais.

As estruturas organizativas, também subordinadas ao realismo político da crise e do boicote dos patrões, não lutaram pela igualdade salarial ou pela mudança dos papéis de género nas relações sociais. Com efeito, mesmo à esquerda, dominou a visão das mulheres como “companheiras na luta”, “na luta lado a lado dos homens” ou como “trabalhadoras, mães e cidadãs” - não se aboliram representações sociais de subalternidade e dominação, nem se tocou nos temas do direito ao corpo e à sexualidade.

No entanto, a pesquisa em curso releva que, se a estrutura patriarcal das relações intrafamiliares e de trabalho não mudou com a “Grândola”, ela não deixou de ser abanada por novos papéis assumidos pelas mulheres rurais em diversas dimensões do espaço público. Nas cooperativas, nos comícios, na ocupação de terras, nas manifestações e noutras formas de protesto, elas estiveram presentes, tomaram a palavra, organizaram-se. E, quando isoladas pela emigração ou pela saída dos homens para outros trabalhos, elas foram protagonistas, por esforço próprio ou por pressão do partido. Foram partícipes e, mais do que isso, foram sujeitos, reconhecendo-se que a sociabilidade partidária contribuiu, pelos esforços nos planos da participação e da representação, para o seu estatuto de cidadania.

Referências bibliográficas

Ardatovski, Vadim. 1975. “Nos campos de Alpiarça.” Vida Rural, agosto 9. [ Links ]

Baptista, Fernando Oliveira. 1978. Portugal 1975 - Os campos. Porto: Edições Afrontamento. [ Links ]

Baptista, Fernando Oliveira. 2010. Alentejo: A questão da terra. Castro Verde: 100Luz. [ Links ]

Barros, Afonso. 1981. A reforma agrária em Portugal. Das ocupações de terras à formação das novas unidades de produção. Oeiras: Instituto Gulbenkian de Ciência. [ Links ]

Baum, Michael. 1998. “Autogestão e cultura política: o impacto da reforma agrária no Alentejo vinte anos depois.” Análise Social 33(148): 709-740. DOI: https://doi.org/10.31447/AS00032573.1998148.03Links ]

Bermeo, Nancy. 1986. The Revolution within the Revolution: Workers’ Control in Rural Portugal. Princeton, NJ: Princeton University Press. [ Links ]

Bustorff, Jochen. 1986. Diário no Alentejo. Porto: Afrontamento. [ Links ]

Cabral, João de Pina. 1984. “As mulheres, a maternidade e a posse da terra no Alto Minho.” Análise Social 20(80): 97-112. [ Links ]

Cabral, Manuel Villaverde. 1978. “Agrarian structures and recent rural movements in Portugal.” The Journal of Peasant Studies 5(4): 411-445. DOI: https://doi.org/10.1080/03066157808438056Links ]

Carmo, Renato Miguel do. 2007. “Género e espaço rural: O caso de uma aldeia alentejana.” Sociologia, Problemas e Práticas 54: 75-100. [ Links ]

Comissão Organizadora da Conferência da Reforma Agrária (COCRA). 1982. 6ª Conferência da Reforma Agrária. Évora, Maio 29-30. [ Links ]

Féria, Lourdes. 1975. “No Alentejo em luta. Povo que trabalha sabe o que quer.” Diário de Lisboa, setembro 18. [ Links ]

Féria, Lourdes. 1975a. “Trabalhadores contra o boicote à cooperativa da Comenda.” Diário de Lisboa, julho 30. [ Links ]

Fernandes, Margarida. 2006. Terra de Catarina: do latifúndio à reforma agrária, ocupação de terras e relações sociais em Baleizão. Lisboa: Celta. [ Links ]

Ferreira, Ana Sofia, e Constantino Piçarra. 2024. “Mulheres do Sul entre a ditadura e a transição para a democracia: 1974-1977.” Comunicação apresentada no Congresso Internacional 50 anos 25 de Abril, Lisboa, maio 4. [ Links ]

Freitas, Gina. 1975. “A força ignorada das companheiras que ficaram na sombra.” Diário de Lisboa, dezembro 4. [ Links ]

Godinho, Paula. 1998. “Memórias da resistência rural no sul - Couço (1958-1962).” Tese de doutoramento. Lisboa: NOVA FCSH. [ Links ]

Godinho, Paula. 2020. “Brechas de esperança.” In Os usos políticos do passado: debates contemporâneos, organizado por Franck Ribard, 13-44. Brasil: Sertão Cult. [ Links ]

Grupo Zero. 1977. A Lei da Terra. Filme documentário. [ Links ]

Louro, Regina. 1975. “Mulheres. Presentes no trabalho ausentes no sindicato.” Diário de Lisboa, abril 30. [ Links ]

Paiva, Vasco. 2020. O despertar das montanhas. Coimbra: Lápis de Memórias. [ Links ]

Paiva, Vasco. 2023. O desbravar dos caminhos. Coimbra: Lápis de Memórias. [ Links ]

Piçarra, Constantino. 2022. “Revolução e Contrarrevolução nos Campos de Portugal. Análise Histórica das Políticas Agrárias, 1975-1977.” Tese de doutoramento. Lisboa: NOVA FCSH. [ Links ]

Pisani, Francis. 1978. Torre Bela: Todos temos direito a ter uma vida. Tradução de Aura Amaral e F. Pereira Marques. Coimbra: Centelha. [ Links ]

Rodrigo, Isabel. 1986. “Feminização da agricultura.” Análise Social 22(92/93): 643-652. [ Links ]

Rosas, Fernando. 2023. Ensaios de Abril. Lisboa: Tinta-da-China. [ Links ]

S.n. 1950. “Greves e manifestações em Alpiarça.” Avante! nº 150, agosto. [ Links ]

S.n. 1952. “Os camponeses lutam contra o desemprego.” Avante! nº 170, agosto. [ Links ]

S.n. 1953. “Concentrações, marchas da fome e protestos. Milhares de camponeses lutam vitoriosamente por pão ou trabalho.” Avante! nº 175, fevereiro. [ Links ]

S.n. 1954. “A repressão fascista não impedirá novas vitórias dos camponeses alentejanos.” Avante! nº 186, março. [ Links ]

S.n. 1954a. “Os camponeses e camponesas alentejanos exigem pão, paz e liberdade e resistem vitoriosamente a ofensiva da fome e o terror fascistas! As forças da GNR metralham o povo e matam uma camponesa!” Avante! nº 187, maio. [ Links ]

S.n. 1954b. “Os camponeses e camponesas alentejanos lutam.” Avante! nº 187, maio. [ Links ]

S.n. 1956. “Por melhores jornas lutas os camponeses no Ribatejo!” Avante nº 216, julho. [ Links ]

S.n. 1957. “Mais de 600 camponesas fizeram greve.” Avante! nº 228, fevereiro. [ Links ]

S.n. 1958. “Um grupo de camponesas relata o que foi a greve no Couço.” Avante! nº 267, novembro. [ Links ]

S.n. 1959. “As leiteiras do Porto contra os monopólios.” Avante! nº 272, fevereiro. [ Links ]

S.n. 1961. “Os lobos continuam a uivar.” Avante! nº 296, janeiro. [ Links ]

S.n. 1961a. “Duas greves.” Avante! nº 297, fevereiro. [ Links ]

S.n. 1962. “Prossegue a luta dos operários agrícolas em defesa das 8 horas e por maiores jornas.” Avante! nº 320, agosto. [ Links ]

S.n. 1962a. “Grandiosa luta do operariado agrícola. As 8 horas são conquistadas no Alentejo!” Avante! nº 318, junho. [ Links ]

S.n. 1966. “Temos fome! gritaram as mulheres da Golegã e foram buscar o comer onde o havia.” Avante! nº 366, maio. [ Links ]

S.n. 1966a. “Basta de roubalheiras.” A Terra n.º 12, maio. [ Links ]

S.n. 1966b. “Roubados são também os produtores de Viana do Castelo.” A Terra nº 14, setembro. [ Links ]

S.n. 1970. “Greve das vendedeiras no mercado de Viseu.” Avante! nº 415, abril. [ Links ]

S.n. 1972. “Contra o parasitismo dos Grémios resistência crescente dos camponeses.” Avante! nº 440, abril. [ Links ]

S.n. 1972a. “Vitoriosos os camponeses de Aveiro.” Avante! nº 443, julho. [ Links ]

S.n. 1972b. “Luta vitoriosa dos produtores de leite de Aveiro.” A Terra nº 24, maio. [ Links ]

S.n. 1973. “O Dia Internacional da Mulher.” Avante! nº 453, maio. [ Links ]

S.n. 1973a. “Camponesas de Alpiarça, uma semana de greve.” Avante! nº 458, outubro. [ Links ]

S.n. 1974. "Greve vitoriosa dos assalariados rurais da Chamusca.” Avante! n.º 19, setembro 20. [ Links ]

S.n. 1974a. “Trabalhadoras de Montemor apelam à unidade e à luta.” O Camponês, dezembro 24. [ Links ]

S.n. 1974b. "A Liga dos pequenos agricultores arranca no distrito de Évora.” Diário de Lisboa, outubro 3. [ Links ]

S.n. 1974c. "Trabalhadores rurais contam: Desemprego e Miséria em Casal das Ovelhas.” Diário de Lisboa, julho 12. [ Links ]

S.n. 1974d. "Para a formação das populações rurais." Diário de Lisboa, maio 30. [ Links ]

S.n. 1974e. “Camponeses da Gafanha descontentes com expropriações a baixo preço.” Avante! nº 27, novembro 08. [ Links ]

S.n. 1975. “Exemplo revolucionário dos trabalhadores alentejanos.” Avante! nº 64, junho 19. [ Links ]

S.n. 1975a. “Fascista com pistola.” O Camponês, janeiro 21. [ Links ]

S.n. 1975b. “A luta das trabalhadoras continua.” O Camponês, julho 31. [ Links ]

S.n. 1975c. ”Declaração de Beja.” O Camponês, fevereiro 05. [ Links ]

S.n. 1975d. “Trabalhadores distribuídos pela Comissão Distrital de Colocação.” O Camponês, janeiro 21. [ Links ]

S.n. 1975e. “Isto é que é uma cooperativa.” RTP, julho 16. Vídeo, 36 min, 38 sec. Disponível em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/isto-e-que-e-uma-cooperativa/Links ]

S.n. 1975f. “Algarve. Trabalhadores agrícolas na batalha da produção.” O Camponês, junho 10. [ Links ]

S.n. 1975g. “Couço: Decisão e entusiasmo.” Avante! nº 78, setembro 25. [ Links ]

S.n. 1975h. “Na Herdade Coletiva Germano Vidigal em Montemor.” O Camponês, julho 31. [ Links ]

S.n. 1975i. “Na Herdade do Chaminé com os trabalhadores.” O Camponês, junho 10. [ Links ]

S.n. 1975j. “A batalha da Reforma Agrária.” Avante! nº 77, setembro 18. [ Links ]

S.n. 1975l. “Ninguém pagará foros! A manifestação de Condeixa.” A Terra nº 30, outubro 24. [ Links ]

S.n. 1975m. “Camponeses em movimento,” A Terra nº 20, maio. [ Links ]

S.n. 1975n. “Em formação o sindicato dos trabalhadores rurais de Braga.” A Terra nº 25, julho. [ Links ]

Salvador, José. 1977. Camponeses de Barcouço: não vamos morrer agarrados à enxada. Coimbra: Centelha. [ Links ]

Sampaio, Maria Teresa. 1975. “Mouchão do Inglês (Alpiarça). Mais uma cooperativa de trabalhadores rurais ou o avanço da Reforma Agrária.” Vida Rural, junho 14. [ Links ]

Silva, Armando Pereira. 1974. "A terra que lhes é negada. Escravatura na lezíria ribatejana." Diário de Lisboa, junho 14. [ Links ]

Silva, Josué. 1975. “O Zambujal não cede à reacção.” Diário de Lisboa, junho 30. [ Links ]

Vaquinhas, Irene. 2018. “Memória e História das mulheres e de Gênero: uma reflexão a partir do caso português.” In Memória coletiva, memória individual e história cultural, organizado por Rosangela Patriota e Alcides Freire Ramos, 98-129. São Paulo: Verona. [ Links ]

Vester, Michael. 1986. “A Reforma Agrária Portuguesa como processo social.” Revista Crítica de Ciências Sociais 18: 19-20. [ Links ]

Wall, Karin. 1994. “Peasant Stem Families in Northwestern Portugal: Life Transitions and Changing Family Dynamics.” Journal of Family History 19(3): 237-259. DOI: 10.1177/036319909401900303 [ Links ]

Wall, Karin, e Ana Nunes de Almeida. 2001. “Família e quotidiano: Movimentos e sinais de mudança." In O País em revolução, organizado por José Maria Brandão de Brito, 277-307. Lisboa: Círculo de Leitores. [ Links ]

Como citar este artigo:

[Segundo a norma Chicago]:

Calvário, Rita, e Cecília Honório. 2024. “’Nos campos, nós as mulheres lutámos muito’: Mulheres rurais e o 25 de Abril.” ex ӕquo 50: 57-73. DOI: https://doi.org/10.22355/exaequo.2024.50.05

[Segundo a norma APA adaptada]:

Calvário, Rita, e Honório, Cecília (2024). ’Nos campos, nós as mulheres lutámos muito’: Mulheres rurais e o 25 de Abril. ex ӕquo, 50, 57-73. DOI: https://doi.org/10.22355/exaequo.2024.50.05

Financiamento Este trabalho foi financiado pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, inicialmente pelo projecto 2021.03735.CEECIND/CP1698/CT0002 e, numa segunda fase, pelo projeto 2022.08333.CEECIND.

1O Sul, onde assume relevo a grande propriedade, inclui o Alentejo, parte do Ribatejo e as manchas da grande propriedade na Beira Baixa, enquanto o Norte, entendido como englobando as zonas com predomínio da agricultura familiar, inclui o Algarve e Centro e Norte do país (Baptista 2010).

Recebido: 27 de Março de 2024; Aceito: 12 de Julho de 2024

Conflito de interesses

Inexistência de interesses conflituantes.

Creative Commons License Este é um artigo de Acesso Livre distribuído nos termos da licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs (https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/), que permite a reprodução e distribuição não comercial da obra, em qualquer suporte, desde que a obra original não seja alterada ou transformada de qualquer forma, e que a obra seja devidamente citada. Para reutilização comercial, por favor contactar: apem1991@gmail.com