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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

ESTUDOS

Fora dos cânones: mulheres artistas e escritoras no Portugal de príncipios do século XX

Ana Vicente1 e Filipa Lowndes Vicente2

1Investigadora independente

2Investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

 

RESUMO

Que possibilidades tinham as mulheres portuguesas, em princípios do século XX, de se dedicarem profissionalmente à pintura e à escrita? Pintar e escrever eram práticas femininas aceites e até encorajadas entre as elites, mas existiam fronteiras entre fazê-lo no espaço privado da domesticidade ou no espaço público, expondo ou publicando. Quando o sufragismo e o feminismo eram ideias e práticas que circulavam transnacionalmente, como é que as portuguesas que tinham acesso à escrita, ou à pintura, se posicionavam face a esses debates? Como veremos, nem sempre o acesso à publicação e à exposição se traduzia numa consciência feminista.

Palavras-chave: mulheres; pintura; escrita; exposições; feminismo.

 

ABSTRACT

What possibilities did Portuguese women have, in the early 1900s, of dedicating themselves professionally to painting and writing? Painting and writing were accepted feminine practices, and were even encouraged among the elite, but there was a difference between doing it in the private sphere of domesticity, or in the public space – through exhibitions or publishing. With suffragism and feminism being ideas and practices which circulated trans- nationally, how did the Portuguese women who had access to writing or painting position themselves in those debates? As we shall see, not always did the access to publishing and exhibitions translate into a feminist conscience.

Keywords: women; painting; writing; exhibitions; feminism.

 

Em 1915, Eurico de Seabra dedica um dos capítulos do seu livro Cartas a Mulheres ao “feminismo e ao sufragismo”. Tal como no resto do livro, este capítulo também foi escrito como se se tratasse de uma carta dirigida a uma mulher, onde o autor surgia como conselheiro e confidente. Dirigida à “Boa Ângela”, a sua longa epístola surge como um manifesto antifeminista, uma resposta a uma mulher que se “assustara” ao saber da existência do movimento sufragista que, sobretudo em Inglaterra, nas primeiras décadas do século XX, se fazia sentir de múltiplas formas.

A primeira vaga de feminismo, que ocorreu entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX, caracterizou-se pela procura do acesso à educação, à profissionalização artística e literária, à propriedade e portanto, à independência económica, bem como do acesso à esfera pública e, mais tarde, ao direito de votar e de ser eleita. As crescentes manifestações de um feminismo activista e notório fizeram também aumentar o antifeminismo exposto em jornais, livros ou na força de um senso comum que persistiu historicamente de múltiplas formas (Baltazar, 2011; Vicente, 2009).

Neste artigo procuraremos reflectir sobre as possibilidades e limites à criação artística e literária no Portugal de há cem anos através de alguns estudos de caso e da referência específica às iniciativas que visavam um maior acesso das mulheres à educação e à legislação e às políticas empenhadas na defesa dos seus direitos. Implícita nesta abordagem está uma outra questão: porque é que a proliferação de mulheres nos campos da produção artística e literária durante as primeiras décadas do século XX não tem correspondência na construção dos cânones consolidados posteriormente? Começaremos por analisar alguns casos de mulheres artistas, sobretudo no contexto das exposições da Sociedade Nacional de Belas Artes, para depois elencar algumas das principais escritoras portuguesas deste período tendo em conta o seu envolvimento, como também a sua recusa e questionamento em relação às ideologias feministas que muitos viam como importações estrangeiras. O caso de Eurico de Seabra, quase uma caricatura de um antifeminismo latente, de muitos modos, na esfera pública, dá-nos um pano de fundo para o tipo de resistências mais ou menos evidentes à afirmação das mulheres. Mostra-nos a ambivalência com que uma elite portuguesa atenta aquilo que vinha de fora, apreendia os múltiplos significados dos “feminismos”. Porque é que tantas mulheres com acesso ao espaço público se manifestaram contra o feminismo ou, pelo menos, se mostraram hesitantes em relação aos seus desafios? Porque é que o feminismo que surgiu em Portugal como uma ideologia “estrangeira”, não foi apropriado pela elite intelectual tal como o foram ideias de progresso e de modernidade (veja-se o “modernismo)? O que é que explica que algumas “modas de fora” tenham sido aclamadas como sinal de um país que finalmente se sintonizava com uma Europa onde o século XIX já tinha acabado, e outras “modas”, como aquelas que vinham questionar o estatuto intelectual, jurídico, político e social das mulheres, persistissem em ser percebidas como ameaçadoras, transgressoras, e mesmo perigosas?

Na longuíssima carta em que Eurico de Seabra enuncia todos os argumentos possíveis para que as mulheres portuguesas não fossem tocadas por esses ventos de mudança que vinham de fora, a “mulher portuguesa” surge como uma entidade una, homogénea, paradigmática de um ideal que não podia ser contaminado pela “mulher britânica” (Seabra, 1915, p. 141). O texto recorre inúmeras vezes a este confronto de modelos femininos – entre a “pequenina mulher portuguesa, tão simples e tão bela, tão alheia ainda a preocupações de espírito e a estúrdias de política” e a “feminista”, “criatura prática e de visão prática” que lhe dava “uma im-pressão aterrorante de complexidade e dificuldade”.

Para culminar a sua longa carta, Seabra incita as mulheres a escreverem contra o feminismo e a reafirmarem a sua defesa da “mulher clássica”. Muitas mulheres fizeram- no: usando a escrita para contrariar os novos modelos de mulheres, pondo em causa as capacidades criativas das mulheres, ou defendendo aquela categoria de mulher que parecia estar em risco. E isto também demonstra a multiplicidade de lugares onde se situavam as mulheres – mesmo as que escreviam – face a esta coexistência de modelos femininos. As suas posições muitas vezes caracterizam-se por uma ambivalência que nos impede de as colocar com clareza na esfera do feminismo ou na do antifeminismo. É necessário ter em conta que existiam mulheres a escrever ou a pintar, com acesso à publicação e à exposição e por vezes com vidas caracterizadas pela independência e emancipação, que não só recusavam uma identificação com o feminismo, como o condenavam activa e publicamente

 

Educar as mulheres, é preciso!

Uma observação muito repetida por estrangeiros que escreveram sobre Portugal refere- se ao baixo nível de instrução das mulheres, precisamente o primeiro grande tema abordado pelas feministas portuguesas pioneiras. Algumas estatísticas demonstram como muitos dos esforços para melhorar o acesso das mulheres à educação, deram fracos resultados concretos. No I Congresso Feminista e de Educação, realizado em 1924, foram, mais uma vez, os baixos níveis de educação feminina um dos grandes temas em debate.

Em 1888, o Governo foi autorizado pelo Parlamento a criar escolas femininas do ensino secundário, mas a lei só veio a ser regulamentada dois anos depois. A ideia de que a instrução poderia masculinizar as mu-lheres, tornando- as incapazes de desempenharem a sua função primordial de esposas e mães, criava resistências mais ou menos visíveis. Bernardino Machado, por exemplo, temia que os institutos femininos pudessem “cahir em mãos mercenárias, de ir parar a mãos inhabeis. E bradaram: antes não os haver!” O contexto político e legislativo também era muito desfavorável à emancipação das mulheres. O Código Civil português que entrara em vigor em 1867 confirmava o papel de subalternidade do sexo feminino e sobretudo o da mulher casada. Havendo algumas mulheres que se dedicavam às letras, o mesmo Código determinou que “A mulher auctora não pode publicar os seus escriptos sem o consentimento do marido, mas pode recorrer à auctoridade judicial em caso de injusta recusa d'elle.”

Enquanto mulher cosmopolita que beneficiava de um olhar nacional e internacional sobre estas questões, a escritora e académica de origem alemã Carolina Michaëlis de Vasconcelos descreve exemplos de resistências à educação das mulheres:

 

“Quando em 1888 alguns pedagogos esclarecidos trouxeram às câmaras o plano da instituição de liceus femininos, logo se ergueu contra ele grande celeuma, não só em jornais de caricatura, mas também nas colunas de jornais importantes e em discursos de deputados; e com tal êxito agitaram o espantalho da mulher sabichona, ridículo e antipático, que o projecto caiu antes de definitivamente convertido em lei.” (Vasconcellos, 2002, pp. 33-34).

 

Em 1891, a Universidade de Coimbra tinha admitido a primeira mu-lher: Domitila de Carvalho (Carvalho, 2012, p. 69). Noutros países europeus, a situação era muito desigual, mesmo no interior de uma mesma nação. Enquanto em algumas universidades já existia igualdade de género no acesso à frequência universitária, como na Universidade de Londres desde 1878, noutras, como em Oxford ou Cambridge, isto só aconteceu muito mais tarde (1920 para a primeira, 1947 para a segunda). A partir de 1911, as mulheres foram autorizadas a trabalhar na administração pública em Portugal e nesse ano instituiu- se a escolaridade obrigatória para ambos os sexos entre os 7 e os 11 anos. Mas a esperança de que a República levasse a políticas mais favoráveis às mulheres tinha saído gorada. Em 1915, por exemplo, foram aprovadas sucessivamente duas leis eleitorais que excluíam do sufrágio não só as mulheres como todos os analfabetos, os padres e os militares.

Entre as activistas que utilizaram a pena e a voz para explorarem diversos aspectos da condição feminina, sobretudo para a necessidade de facultar instrução às raparigas, encontram- se Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921). A sua obra inclui poesia, contos, ensaios, crítica literária e história, além de extensa colaboração em periódicos. Escrevia regularmente em A Mulher, Illustração Portugueza, Brazil- Portugal, Contemporânea e Diário Popular. O seu livro mais reputado foi uma biografia – Vida do Duque de Palmela D. Pedro de Sousa e Holstein. Casada com o escritor Gonçalves Crespo, vivia num meio intelectual favorável à sua vocação, reunindo em casa, no seu salão literário, escritores como Eça de Queiroz e Camilo Castelo Branco. Dedicou uma grande atenção a questões pedagógicas, incluindo a educação das raparigas, embora aceitasse como ‘naturais' as profundas diferenças marcadas pelo género (Carvalho, 1880; 1886).

 

Mulheres que escrevem: as Eurídices que morrem cedo de mais

Eurídice era a mulher de Orpheu. Morreu cedo demais. Deus deu a Orpheu a possibilidade de voltar a dar vida à sua mulher, mas ao desobedecer às instruções divinas, Eurídice morre uma segunda vez. Pensemos nesta segunda morte mitológica como a segunda morte metafórica de tantas mulheres artistas e escritoras que viveram e criaram plenamente. Que morreram enquanto seres humanos, mas sobretudo foram “apagadas” uma segunda vez pela história, numa dupla morte.

A escrita é, à partida, mais fácil de concretizar do que a pintura. A pintura exige espaço de trabalho, materiais caros, tempos longos, energia física ou roupas adequadas. A escrita pode ser levada a cabo em tempos mais curtos, em qualquer espaço, com um mínimo de materiais e de empenho corporal. Ambas as práticas criativas exigem, no entanto, uma educação. Exigem que se tenha aprendido a pintar ou a escrever, sendo a escrita, naturalmente, uma capacidade muito mais disseminada do que a prática da pintura ou da escultura. Mas na escrita, tal como na pintura, havia uma distinção entre aquela escrita que se mantinha no espaço privado, em diários íntimos ou na correspondência entre familiares ou amigos, e aquela que era feita para ser publicação e para exposição a leitores desconhecidos. Saber escrever não era suficiente. E foi essa passagem para o espaço público – na publicação, na escrita, ou na exposição, em pintura – que muitas vezes não foi ultrapassada pelas mulheres. Ou então foi ultrapassada e foram as análises posteriores da história, da história da literatura ou da história da arte, que não as reconheceram durante muito tempo.

Tal como no resto da Europa, foi no século XIX que nasceu em Portugal uma geração de mulheres com notoriedade pública. Pertenciam sobretudo às elites mas, geralmente, não tinham tido acesso a qualquer tipo de educação formal, antes fruindo de circunstâncias específicas, quase sempre ligadas à condição e empenho familiar. Havia mulheres em Portugal a escrever e a publicar sob diversos formatos, embora a sua quantidade seja mínima quando comparada com o que acontecia no mesmo período no Reino Unido.

A imprensa feminina surgia como um espaço para as mulheres exporem a sua opinião e voz, sem constituírem uma ameaça. Maria Ivone Leal identificou 108 títulos de periódicos entre 1807 e 1926, embora alguns com apenas um único número (Leal, 1992; Lopes, 2005). Outras publicações se sucederam. Em 1907, iniciou a publicação A Alma Feminina, que se assumia como feminista e onde a educação continuava a ser o grande ideal. Em 1947, o Estado Novo encerrou compulsivamente o Boletim do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, revista com um impacto substancial no empoderamento das mulheres que se publicava desde 1914 e que, em 1917, se passara a chamar Alma Feminina (Esteves, 2006; Gorjão, 2002; Cova, 2013).

Uma mulher que se destacou em vários tipos de escrita foi Carolina Michaëlis de Vasconcellos. Dedicou- se à filosofia e aos estudos medievais e reflectiu sobre vários temas da cultura portuguesa, tendo publicado em 1914 A Saudade Portuguesa e As Cem Melhores Poesias Líricas da Língua Portuguesa. Em 1911, foi a primeira mulher a ocupar uma cátedra universitária, a de Filologia, na Universidade de Coimbra e no ano seguinte, juntamente com Maria Amália Vaz de Carvalho, foi admitida na Academia de Ciências de Lisboa, as duas primeiras mulheres a serem aí integradas (Correia, 1986). Também ela acreditava que, por via do acesso à educação, as mulheres conseguiriam uma mudança no seu estatuto. Num artigo publicado no jornal O Primeiro de Janeiro em 1902 (tradução de um artigo que já publicara em Berlim) sobre “o movimento feminista em Portugal”, escreveu que a solução estava em “fundar escolas, libertar as futuras gerações femininas da ignorância e da superstição, de preconceitos mesquinhos e de prevenções dogmaticamente incutidas, pregar- lhes o evangelho do trabalho” (Vasconcellos, 2002, 26). “A questão feminista na península hispânica” era para ela “uma simples questão de instrução.” Por sua vez, a pedagoga Alice Pestana (1860- 1929) defendeu: “Eduque-se a mulher – será sempre o mais vehemente dos nossos brados, em meio das desgraças da Pátria.” (Rosa, 1989, p. 9).

Surge então na esfera pública da época um outro nome, o de Ana de Castro Osório (1872-1935). Não terá frequentado um estabelecimento de ensino mas, como era habitual no seu meio socioeconómico, foi instruída em casa, com grande acesso à excelente biblioteca paterna. O poeta Camilo Pessanha declarou-lhe o seu amor, mas ela optou por casar, em 1898, com Francisco Paulino Gomes de Oliveira, também republicano e escritor, residindo em Setúbal. Nesta fase da sua vida, com apoio conjugal, iniciou- se como escritora. Assumiu- se feminista ao defender um estatuto de dignidade e de oportunidade para as mulheres do seu país (Esteves. 2005, pp. 91-98). As suas primeiras publicações dirigiam- se às crianças, tendo sido a primeira pessoa que, em Portugal, se dedicou de uma forma profissional à literatura infantil.

Escrevia assiduamente na imprensa e, através de uma intensa actividade epistolar, que também mantinha com Pessanha, ia criando redes de amizade e intercâmbio cultural e político. Acabou por ser responsável pela publicação do seu Clepsydra. Em 1902, a sua crença no poder da palavra levou-a a fundar o periódico feminista A Sociedade Futura. É também autora de um importante livro, Às Mulheres Portuguesas, publicado em 1905, onde abordou de forma clara e sistemática a condição feminina: ”o processo educativo usado com as raparigas é uma simples deformação progressiva dos caracteres e das individualidades. Se os homens procurassem cuidadosamente criar uma raça de cretinos e de covardes, não lhes dariam uma outra educação do que a que é dada à mulher em geral e à portuguesa em especial.” (Osório, 1905, p. 19).

Em 1907, iniciou- se na Maçonaria. Nesse ano, também, criou o efémero Grupo Português de Estudos Feministas. Em 1909, com outras distintas feministas, fundou a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, a que presidiu. Pretendiam profundas reformas, incluindo o direito ao voto (embora com restrições), o qual, aliás, foi prometido por diversos dirigentes republicanos antes do 5 de outubro, mas que não foi concedido. Em 1911, Ana de Castro Osório acompanhou o marido, nomeado cônsul em S. Paulo, onde continuou a escrever. Regressada do Brasil em 1914, após a morte do marido, retomou a sua intensa actividade como escritora.

Quando em 1916 o governo decidiu entrar na Primeira Grande Guerra, Ana de Castro Osório tornou-se uma entusiasta e enérgica apoiante dos combatentes e do esforço de guerra em geral. No pós- guerra e justificando o seu afastamento do regime com os sucessivos desaires políticos que este sofria, aproximou-se do pensamento nacionalista, que aliás tinha sido adoptado com extremo entusiasmo pelos seus dois filhos (Vicente, 2010). Em 1923, esteve cinco meses em diversos locais do Brasil, fazendo conferências que vieram a ser reunidas no livro A Grande Aliança – a minha propaganda no Brasil (Vicente, 1998).

A escritora e filantropa Mécia Mouzinho de Albuquerque (1870-1961), entre outras atividades de beneficência, auxiliou os presos políticos nos primeiros tempos da implantação da República. Estreou-se nas letras em 1914 com poesia e em 1918 publicou o conto A Sonâmbula, que conheceu uma edição em língua espanhola. Foi delegada em Portugal da Société des Gens de Lettres de Paris. Acolheu a chegada do Estado Novo, não se associando a quaisquer actividades tendo em vista a promoção das mulheres. Uma outra escritora que se notabilizou nesta época foi Virgínia de Castro e Almeida (1874-1945), que foi também produtora de cinema. Autora de numerosos títulos de literatura infantil, dedicou- se ainda à tradução para português de obras literatura universal. Em 1913, escreveu: “Pobres mulheres da minha terra! Gatas borralheiras com o cérebro vazio (…) animais de carga ou reprodução, rodeadas de filhos que não sabem criar nem educar.” (Guimarães, 1989, p. 18). A sua contemporânea, Branca de Gonta Colaço (1880-1945), também se iniciou como poetisa em 1907 com o livro Marinas. Foi assídua colaboradora de vários jornais e periódicos, assim como dramaturga.

Dois nomes fulcrais de escritoras de excepção foram Florbela Espanca (1894-1930) e Irene Lisboa (1892-1958). Espanca foi autorizada a frequentar o Liceu Masculino André de Gouveia em Évora, o que era caso raro para uma rapariga, e desde cedo mostrou interesse pela leitura e pela escrita. Distinguiu- se como poeta, especializando- se no soneto. Foi em 1916 que iniciou a sua assídua colaboração poética na revista Modas & Bordados. Com um casamento falhado, foi perseguida pela desilusão, pela tristeza e pela frustração e expôs estes sentimentos com uma voz forte de afirmação individual, que espantou pelo seu erotismo. A sua primeira recolha de poemas saiu em 1919, Livro de Mágoas, e em 1923 publicou Livro de Sóror Saudade. Suicidou-se e só após a sua morte foi conhecida a maior parte da sua obra. Segundo Monica Rector, apesar de Florbela Espanca ter sido influenciada pelo simbolismo e ter “características sentimentais do Romantismo”, a sua preocupação com a escrita colocá-la-ía entre os modernistas (Rector, 1999, p. 192).

Irene Lisboa, professora primária, tem uma extensa obra, iniciada em 1926, que abarcou a poesia, conto, crónica e novela, dirigiu uma publicação, Educação Feminista, fundada em 1913. Em tempos recentes, tem sido objecto de estudos críticos e Rector considera que “se Florbela Espanca empalma como estandarte de sua trajetória o grito de liberdade, Irene Lisboa ergue o da solidão” (Rector, 1999, p. 203; Morão, 1989; Magalhães, 1995).

Casada com António Ferro, Fernanda de Castro (1900- 1994) afirmou- se como poetisa, ficcionista, dramaturga e autora de literatura infantil, a partir de 1919. Pode exemplificar um fenómeno global muito comum, o de casais de escritores, artistas ou intelectuais. Ao mesmo tempo, ilustram as contradições e negociações implícitas nestas relações onde ambos os membros de um casal, heterossexual ou homossexual, se dedicam à escrita ou às artes. Modernos de modos distintos, quer Almada quer António Ferro, casaram com mulheres- criadoras, mas a especificidade de cada caso também revela a tendência, historicamente explicável, para uma hegemonia do elemento masculino do casal (Chadwick & Courtivron, 1993; Vicente, F., 2012a).

Entre os livros charneira sobre mulheres que foram publicados durante este período, refiram- se as obras de Teresa Leitão de Barros e de Maria Lamas, que não são apenas mulheres escritoras mas mulheres que escrevem sobre mulheres. Em 1924, a primeira publica, em dois volumes, Escritoras de Portugal: Génio Feminino Revelado na Literatura Portuguesa. Tal como Virginia Woolf manifestava nesse mesmo período a sua necessidade de conhecer um “passado” de escrita feminino, Teresa Leitão de Barros enuncia que pretende

 

“começar a desenrolar o fio do engenho feminino que atravessa toda a história da nossa Literatura e que, quando não tivesse razões para ser um motivo de orgulho, seria pelo menos um grito de vida, a atestar que o génio feminino português, que acaso ainda virá a entrar na sua era de esplendor, começou a existir em era já remota e possui tradições de relativa superioridade.” (Barros, 1924).

 

Nesta fase, a crítica feminista ainda não interrogava os paradigmas de conhecimento que excluíram as mulheres, centrando- se sobretudo na busca de uma genealogia feminina da escrita. Na procura deste “génio feminino português”, procurava-se também um sentido, e uma historicidade, à sua própria experiência de mulheres que escreviam.

Maria Lamas (1893-1983) foi uma destacada activista política na oposição ao Estado Novo, escritora e jornalista. Frequentou um colégio religioso em Torres Novas, iniciando a sua carreira em 1923 com um livro de poesia, Humildes. Foi directora da revista Modas & Bordados a partir de 1930. Suplemento do jornal republicano O Século, esta revista iniciada em 1912, aliava os temas tradicionalmente femininos a uma busca da afirmação e valorização das mulheres. A mais destacada obra de Maria Lamas, As Mulheres do meu país, publicada em 1948, resulta de uma extensa viagem em que fez um levantamento escrito e fotográfico da condição das mulheres portuguesas em todas as zonas do país. (Fiadeiro, 2003).

 

Mulheres artistas nas exposições de belas-artes:

os nomes que permaneceram nos catálogos

Uma das formas de estudar as práticas artísticas das mulheres durante este período é o de analisar os catálogos da exposição anual que tinha lugar na Sociedade Nacional de Belas Artes3. Em 1906, o número de mulheres artistas a expor foi especialmente significativo (SNBA, Sexta Exposição, 1906). Na mais prestigiada secção de pintura a óleo, em 57 artistas, encontravam- se 20 mulheres, um número surpreendente e que não se voltaria a repetir tão cedo em exposições nacionais. Quase todas são discípulas de pintores portugueses homens com algumas excepções: Irene de Sousa Mello e Alvim estudara em Viena com Franz Zimmermann, enquanto Julia Xavier Vouga Ribeiro da Silva era aluna de Lucília Aranha no Porto e Julia Herminia da Conceição Xavier Ferreira Pinto surgia como discípula de Conceição Silva mas também de Josefa Greno, em Lisboa.

Quase dez anos depois, em 1915, a iniciativa já ia na sua 12.ª edição e em todas elas é de notar a quantidade significativa de mulheres participantes (SNBA, Décima Segunda Exposição, 1915). Esta quantidade de pintoras a expor reflecte não somente o seu número crescente (ou em muito menor número, de escultoras), mas em especial o daquelas que saíam do espaço doméstico para se exporem perante a elite cultural e inte-lectual que frequentava estes lugares. Na pintura a óleo, a principal categoria da exposição, surgem 16 mulheres em 78 artistas, um número significativo de nomes que contrasta com a sua invisibilidade na história da arte que se dedicou a este período. Hoje, já com os cânones deste período instituídos, reconhecemos os nomes dos professores, mas, com excepção de Mily Possoz, não os das suas alunas (Ferreira, 2010). Branca Assis, por exemplo, é discípula de Carlos Reis; Zoé Batalha Reis é discípula de Malhoa e Salgado; Fanny Munro, de Silva Porto; e Isabel Maria Ribeiro e Beatriz Rollin Santos surgem como discípulas de Conceição Silva.

Ao contrário do que acontecera em Londres ou Paris até finais do século XIX, em Lisboa ou no Porto, as mulheres podiam frequentar as escolas de Belas- Artes. Os catálogos anuais das exposições dos alunos aprovados nos diversos anos revelam um número substancial de mulheres estudantes embora quase sempre surjam como alunas “voluntários” em vez de “ordinárias”, distinção que deixa de existir já no século XX (Catálogo da exposição dos trabalhos dos alunos da Escola de Bellas Artes de Lisboa: 1897; 1899; 1906). No entanto, ao analisar os catálogos deste período verificamos que a vasta maioria a expor tivera formação em ateliês de artistas e não nas academias de Belas-Artes existentes em Lisboa e no Porto, algo que é facilmente compreensível se tivermos em conta os constrangimentos sociais que afectavam a mobilidade das mulheres e o usufruto que podiam fazer do espaço público. Nos ateliês de artistas, espaços pequenos, identificados, e mesmo caseiros, não transgrediam tantas barreiras. Neste período, emerge também um novo dado, visível nos catálogos destas exposições: o fenómeno crescente de pintoras que se dedicavam ao ensino de outras mulheres em ateliês específicos. Em 1915, por exemplo, Emilia Santos Braga aparece não como expositora mas como mestre de Maria Eduarda Castello Branco e de Philomena A. M. de Freitas.

 

Crítica de arte: a “Graça” e a “suavidade” femininas

Outra forma de estudar o lugar ocupado pelas mulheres artistas é analisar os modos como a crítica de arte identificava e descrevia as suas obras. O género da artista surgia, muitas vezes, como um factor determinante nas abordagens de quem escrevia sobre arte, mesmo que de um modo não assumido ou não consciente. Em contextos históricos onde ser mulher e artista era uma excepção, a forma como as suas obras eram percebidas também era marcada por distinções de género. Analisemos o caso de Aurélia de Sousa (Oliveira, 2006), pintora que marcou a transição do século XIX para o século XX e que foi alvo de uma homenagem póstuma logo em 1936 (Exposição, 1936).

O texto desse catálogo é exemplificativo da forma como a crítica observava a arte produzida por mulheres. Na introdução, Júlio Brandão reconhece como a “eminente pintora” “estava quase esquecida”, uma frase muito comum, ainda recentemente, em catálogos de mulheres artistas do século XX: algumas vezes com a consciência de que o género feminino da artista possa ter sido um factor determinante neste “esquecimento”, outras vezes sem qualquer tipo de referência à sua identidade sexual. Ou seja, o esquecimento surge como um acaso ou uma inevitabilidade e não como um processo onde a identidade sexual, num contexto de profundas desigualdades no acesso de homens e mulheres à educação, criação e espaço público, se constitui num factor determinante.

No entanto, na apreciação à obra da artista, Brandão já recorre a uma diferenciação de género muito comum na crítica de arte da primeira metade do século XX – o observador que olhasse para as telas de Aurélia de Sousa sem conhecer a sua autoria pensaria tratar- se de um “inconfundível e extraordinário pintor” de “cunho vigoroso e individual”. Nada na sua pintura remetia para a “fragilidade feminina” feita de “graça e suavidade” que caracterizaria as obras de pintoras mulheres. Mas para que não se pudesse depreender nestas suas palavras uma “masculinização” da pintora – e não somente da sua obra –, Brandão insiste em acrescentar um esclarecimento: “Não quer isto dizer que a artista fosse alguma figura hirta e seca, do tipo de certas velhas sufragistas inglesas, que os caricaturistas tomaram à sua conta.” A arte praticada por mulheres podia e devia ser “masculina”. Era isso que distinguia as “melhores” da vasta maioria de mulheres artistas. Mas as mulheres que praticavam a arte deviam manter intacta a sua feminilidade. Aí, longe de ser um elogio, a masculinização era negativa e perniciosa, aquela que as “sufragistas inglesas” – na sua reivindicação do acesso a percursos, valores e direitos masculinos – simbolizavam de modo mais veemente.

Aurélia de Sousa sabia pintar como um homem “vigoroso” e “individual” mas era, ela própria, “delicada e débil” e de uma “grande ternura pelas flores”. Nesta ambivalência entre o feminino e o masculino, o autor parece querer separar as águas entre aquilo que deveria permanecer feminino – a identidade da pintora – e aquilo que podia apropriar- se de valores masculinos da distinção e originalidade artística – a identidade da obra pictórica. As críticas de arte desta época ao trabalho de mulheres artistas estão repletas desta dualidade hesitante, entre uma arte feminina, que era considerada menor, amadora, não- original e uma arte das, raras, mulheres que, ultrapassando os limites do seu sexo, eram capazes de masculinizar a sua obra. O difícil, como a crítica também demonstrava, era pintar como um homem sem deixar de ser uma mulher.

A maior parte das 260 obras da artista que foram expostas em 1936 provinham de casas particulares da cidade do Porto, sendo raros os quadros oriundos de colecções públicas ou museus. Nesta invisibilidade que a exposição vem temporariamente transformar, o caso da Aurélia de Sousa exemplifica a história de muitas mulheres artistas contemporâneas. As suas obras permaneceram nos espaços privados de famílias cultural e economicamente privilegiadas que, por vezes, herdavam estes bens mas nem sempre preservavam as memórias e narrativas dos seus contextos de produção. Ao terem sido menos compradas, menos restauradas, menos coleccionadas, menos estudadas e reconhecidas enquanto nomes relevantes de movimentos artísticos, as obras femininas tenderam a permanecer nos espaços privados, enquanto os nomes das pintoras e a descrição das telas expostas se manteve nos catálogos seus contemporâneos sem ser apropriado pela história da arte enquanto construção, posterior, que selecciona, escolhe, enuncia quem deve – quem merece – pertencer aos cânones. A crítica feminista, nos seus cruzamentos com a historiografia da arte desde os anos 1970, veio interpelar os modos como a identidade sexual era indissociável dos modos de discriminação presentes em todos os outros contextos culturais, sociais e políticos.

Nas últimas décadas, a inclusão de abordagens feministas na historiografia em geral, e especificamente na história da arte e na literatura levou à identificação de múltiplos casos de mulheres artistas e escritoras. Nos muitos caminhos teóricos empreendidos desde os anos 1970 – quando os cânones instituídos, masculinos, começaram a ser criticados e as mulheres foram “descobertas” enquanto agentes de criatividade e conhecimento - , a crítica feminista já foi muito para além de uma mera identificação de nomes. Identificar não chega. É preciso questionar os porquês destas ausências, invisibilidades ou a forma como a identidade sexual marcou o percurso e percepção de mulheres artistas e escritoras, quer no momento histórico em que viveram, quer nos períodos posteriores, em que foi feita a reflexão sobre o passado.

 

Referências bibliográficas

Baltazar, I. (2011). Vozes antifeministas na 1ª República. Ecos de oposição ao feminismo. Mulheres na 1ª República. Percursos, conquistas e derrotas (pp. 47-77). Lisboa: Edições Colibri.         [ Links ]

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Notas

3Para saber mais sobre a identidade e percursos das mulheres artistas que participaram nas exposições de arte organizadas pela Sociedade Nacional de Belas Artes durante a I República veja-se o estudo de Sandra Leandro (Leandro, 2011).

 

 

In Memoriam

Ana Vicente (1943- 2015) foi uma referência do feminismo em Portugal nas últimas décadas e uma colaboradora activa de Faces de Eva.

O artigo aqui publicado, escrito em parceria com a filha, Filipa Vicente, será, provavelmente, um dos últimos, senão o último, em que ela testemunha o seu labor e empenho na reflexão sobre o passado para compreender e explicar o presente e inspirar estratégias e projectos de futuro que contemplem a plena igualdade de direitos.