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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

ESTUDOS

As enfermeiras da Legião Negra: representações da enfermagem na revolução constitucionalista de 1932

Paulo Fernando de Souza Campos1

Professor/pesquisador do curso de Graduação em História e Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas "Sociedade, Cultura, Linguagens" da Universidade de Santo Amaro - UNISA, São Paulo, Brasil

 

RESUMO

Trata-se da análise da representação social da enfermagem/enfermeira brasileira na década de 1920/1930 em relação ao movimento feminino negro em São Paulo. O artigo interpreta os significados da representação da enfermeira padrão em relação ao projeto político e econômico na Era Vargas (1930-1945). Ressalta que a solidez da representação dominante se dissolve com a organização de mulheres identificadas como enfermeiras da Legião Negra durante a Revolução Constitucionalista em 1932.

Palavras-chaves: história; enfermagem; mulheres negras.

 

ABSTRACT

This paper analyses the Brazilian nursing social representation during the 20´s and 30´s, in relation to the black female movement in São Paulo. The article aims to interpret the representation meanings of the standard nurse linked with the political economic system called the Era Vargas (1930-1945). It also pointed out that the strength and dominant representation was dissolved with the women´s organization identified as Black Legion nurses during the Constitutionalist Revolution in 1932.

Keywords: history; nursing; black women.

 

Introdução

Na manhã do dia 14 de julho de 1932, cinco dias após o início do le-vante armado contra o Governo Provisório de Getúlio Vargas no Brasil, o jornal O Cruzeiro anunciava “...em S. Paulo, organizou-se um corpo de combatentes que procurou reunir entre seus voluntários, somente homes de côr...” (Frente negra, 1932, p. 3). A reportagem evidenciava uma das primeiras manifestações negras no bojo de um regime político amalgamada pelas ações ditatoriais de Getúlio Vargas (1882-1954), que governou o Brasil por duas vezes, de 3 de novembro de 1930 a 29 de outubro de 1945 e de 31 de janeiro de 1951 a 24 de agosto de 1954, quando se suicidou. A Revolução de 1930 marcou o fim da República Velha, iniciada com a deposição do presidente Washington Luís e a revogação da constituição de 1889. O objetivo visava o estabelecimento de uma nova ordem constitucional; dissolução do Congresso Nacional; intervenção fe-deral em governos estaduais e alteração do cenário político com a su-pressão da hegemonia das oligarquias dos estados de São Paulo e Minas Gerais, que se alternavam no poder na “política do café com leite” (Mota, 2010; Silva, 1999; Fausto, 1997).

Estudos sobre a Revolução Constitucionalista pouco mencionam a participação dos negros na “guerra cívica”, a organização dos combatentes, suas demandas, negociações, lacuna que se amplia em relação à atuação de mulheres negras, as quais, sintomaticamente, participaram da revolta como “enfermeiras”. O estudo dessas mulheres revela aspectos importantes não somente para o reconhecimento das formas de organização negra no Brasil durante a Era Vargas (1930-1945), mas das representações da enfermagem, especificamente, as decorrentes do Decreto 20.109, de 15 de junho de 1931 (Ministério da Saúde, 1974), que equiparou a formação profissional em um modelo de ensino preconizado como ideal, em destaque no contexto. Mesmo sugerindo a possibilidade de “enfermeiro diplomado”, o texto jurídico definia como modelo para a equiparação do ensino de enfermagem no Brasil um espaço de formação profissional que impedia o ingresso de homens e mulheres negras, cujos critérios de seleção consideravam a enfermagem como apropriada para mulheres brancas, filhas das classes médias urbanas, jovens e formalmente instruídas.

A imagem da “enfermeira padrão” cristalizou a identidade profissional via elitização e branqueamento da enfermagem, na recusa das bases deixadas por homens e mulheres negros – enfermeiros pré-profissionais, cuidadores, curandeiros, cirurgiões, barbeiros, amas-de-leite, mães pretas, parteiras – cujas experiências foram vitais para a manutenção da saúde durante o Brasil Colônia (1500-1822) e Brasil Império (1822-1889), imagens e memórias diametralmente opostas da representação forjada para sua principal personagem, as quais a antropologia médica e a cultura dos cuidados permitem reconhecer (Siles Gonzáles, 1999; Figueiredo, 2002; Souza Campos, 2012).

O conceito de representação, amplamente utilizado em ciências humanas, alterou possibilidades de investigação no campo da história da enfermagem. Conforme aponta Roger Chartier, trata-se de construções imagético-discursivas, que visam fins específicos, que não podem ser analisadas como discursos neutros, mas que produzem práticas e legitimam projetos e ressalta “...embora aspirem a universalidade são sempre determinadas pelos interesses de um grupo que as forjam...” (Chartier, 1991, pp. 171-191). Deste modo, conhecer a representação construída para as mulheres negras identificadas como enfermeiras durante a causa constitucionalista torna-se relevante para a ampliação do conhecimento sobre a Revolução de 1932, para o reconhecimento da pluralidade das experiências sociais dos negros no Brasil República e de forma mais significativa para o processo de reinvenção da totalidade histórica da enfermagem brasileira.

Nesse ponto, a construção imagético-discursiva elaborada para a enfermagem nas décadas de 1920/1930 consubstancia a problemática e norteia a presente reflexão, isto é, em que medida a sociedade civil organizada se apropriou do título conferido e legitimado no branqueamento da enfermagem para designar e divulgar a mobilização de mulheres negras, identificadas como enfermeiras durante a Revolução Constitucionalista de 1932? Como a representação atribuída às enfermeiras negras da guerra paulista contribui para o processo de desmontagem do discurso dominante idealizado para a enfermeira padrão? Estariam as mulheres negras resistindo às restrições que as impediam? São questões a que pretendemos propor algumas respostas.

 

Enfermeiras Negras: entre práticas e representações

A historiografia permite considerar que a enfermagem brasileira nas décadas de 1920/1930 representava sua principal personagem pela ima-gem da enfermeira padrão, algo que permanece latente no inconsciente coletivo brasileiro dos mais diferentes grupos sociais, inclusive, entre enfermeiros. Resultado direto da institucionalização do ensino oficial proposto pelo Decreto n. 20.109, de 15 de junho de 1931, o modelo de enfermagem/enfermeira pretendia estabelecer “o monopólio deste amplo mercado de trabalho público que estava se constituindo”, mas ocupado por pessoas não habilitadas ou “supostas enfermeiras”, que trabalhavam em repartições de saúde pública em algumas capitais. A institucionalização do padrão, ao impor como critério de admissão em escolas de enfermagem uma identidade de gênero restritiva, qual seja, mulheres, preferencialmente de “classe social mais alta”, imprimia uma imagem acabada da enfermeira, que se coadunava com a realidade política, social e cultural brasileira em relação às mulheres (Secaf, 2010; Nepomuceno, 2012).

A Reforma Sanitária de 1920, resultante da colaboração do International Health Board, da Fundação Rockefeller com o Departamento Nacional de Saúde Pública – DNSP, chefiado por Carlos Chagas, redimensionou a enfermagem brasileira nos anos 20. Os desdobramentos incluíram a criação de um espaço historicamente reconhecido de formação profissional da enfermagem brasileira, a Escola de Enfermeiras Anna Nery, do DNSP, posteriormente identificada como Escola de Enfermagem Anna Nery. Dirigida pela americana Ethel Parsons, a formação oferecida pretendia resignificar o trabalho da enfermagem no Brasil, avaliado como teórico, com baixo grau de instrução, executado por pessoas caracterizadas como ignorantes e fundado na recusa de experiências anteriores (Porto; Amorin, 2007; Mott; Tsunechiro, 2002).

Os critérios de seleção da principal escola de enfermagem na década de 1920 imprimiam valores característicos de pressupostos teóricos da medicina à época. A eugenia implícita, que diagnosticava negros como degenerados e criminosos natos, justificava a impossibilidade de ingresso de mulheres negras no espaço formador da enfermeira padrão (Moreira, 1999). Ieda Barreira permite avaliar como as representações dominantes influenciaram a formação da identidade profissional da enfermagem brasileira em consonância com as doutrinas da eugenia. De acordo com a autora

 

“várias das candidatas que atenderam aos apelos humanitários e patrióticos dos médicos sanitaristas provinham da classe média- alta da sociedade, muitas delas tendo sido diretamente por eles recrutadas. Não obstante, candidatas oriundas de famílias pobres poderiam ser bem recebidas, mas o mesmo não ocorreria com as candidatas negras” (Barreira, 1997, p. 163).

 

Ao analisar o Relatório Anual do Serviço de Enfermagem encami-nhado por Ethel Parsons ao DNSP, em 1926, Ieda Barreira novamente trata a questão da discriminação racial na seleção de candidatas da Escola de Enfermagem Anna Nery ao citar que “... a política da Escola seria mesmo a de evitar a entrada de alunas negras, para que se pudesse atrair ‘a melhor classe de mulheres para a nova profissão'” (1997, p. 164).

O tema não estava distante das pessoas, tampouco, da formação profissional oferecida pela Escola de Enfermagem Anna Nery no início da década de 1930. O artigo publicado por uma de suas alunas na coluna “Página de Estudante” do primeiro periódico nacional da enfermagem, Annaes de Enfermagem, e intitulado “A Eugenia”, assim caracterizava as relações entre brancos e negros:

 

“As classes cultas da sociedade brasileira começam a inquietar-se principalmente diante da ruína física, mental e moral que tende caracterizar a época atual em nosso país, e já compreendem a necessidade imperiosa de medidas capazes de conduzir-nos a uma regeneração progressiva. A leitura dos trabalhos publicados a respeito por Belizário Penna e Monteiro Lobato, e especialmente pelo Dr. Renato Kehl, presidente da comissão Central de Eugenia, são verdadeiramente impressionantes, incitando todos os brasileiros de boa vontade a lutar contra a degenerescência da raça que, se não for contida em sua marcha avassaladora, acarretará certamente a decadência da nacionalidade (...) evidentemente não há solução para os males sociais fora das leis da Biologia! Devemos enfrentar corajosamente todas as dificuldades e vencer a grande batalha que se impõe para o aperfeiçoamento eugênico do nosso povo! (...) É isso que nos induz a pensar na conveniência urgente de reforçarmos as legiões defensoras da Eugenia do Brasil (...). Sem eugenia nada teremos realizado em proveito do Brasil de amanhã.” (Lopes, 1934, p. 8).

 

Fontes e estudos sobre a história da enfermagem no Brasil desvelam impactos do segregacionismo costumeiro característico da cultura e sociedade brasileira na formação profissional da enfermagem na década de 1920/1930. As restrições do modelo utilizado para a equiparação do ensino de enfermagem no Brasil impediam acessos, limitavam o exercício profissional, dificultavam a formação de contingentes correspondentes com as demandas sociais e políticas voltadas para a saúde pública, problemas que se acentuavam em estados do interior, distantes das grandes capitais. Contudo, a realidade política e social no contexto impunha urgência à ampliação dos serviços de assistência à saúde em todo o território nacional, bem como qualificação de mão de obra existente, seguida pelo aumento de leitos hospitalares. O governo de Getúlio Vargas (1930-1945) pautava o desenvolvimento da sociedade brasileira em critérios diametralmente opostos à elitização requerida pela enfermagem padrão, pois fundado na segurança social e na inclusão das massas no mundo do trabalho. Politicamente, o assistencialismo de Vargas pretendia “... estabelecer o controle o mais eficiente possível sobre os pobres e a classe trabalhadora do país para usá-los como uma base essencialmente passiva de apoio político” (Andrews, 1998, p. 284).

De modo singular, o período evoca movimentos sociais de grande repercussão. No contexto, a valorização do nacionalismo, patriotismo e a ideologia do front interno ampliavam consideravelmente o número de vagas para os serviços públicos de assistência à saúde como trabalho formal, mantido pelo governo federal, cujos desdobramentos incluíam parcela significativa de mulheres oriundas de classes médias e pobres, acentuadamente, no âmbito da enfermagem (Simili, 2008).

A necessidade explícita de profissionais no campo da saúde coadunava-se com a política varguista, que encontrava na enfermagem um escoadouro natural para ampliar os espaços de atuação feminina no trabalho, algo necessário para o desenvolvimento da economia em expansão, que exigia homens e mulheres fortes, sadios, inclusive, capazes de adensar o exército nacional com as mesmas qualidades, sobretudo, em caso de guerra. No rol das transformações, Getúlio Vargas propiciou uma mudança radical na representação da mulher, pois além de inaugurar o primeiro-damismo, valorizou a presença do gênero feminino em espaços públicos e sociais de trabalho (Lopes, 2002). Na enfermagem, a capacidade de absorção de pessoas tornava a propaganda política exequível, além de incluir o contingente feminino na esfera do trabalho urbano. Mesmo que a mobilização em torno da guerra tenha ocorrido internamente, Roney Cytrynowicz reitera que os pressupostos da ideologia do front se alinhavam aos “ideais do Estado Novo e não conectadas efetivamente à guerra na Europa” (2002, p. 18). Todavia, a possibilidade da guerra referendava estrategicamente a ampliação da formação em enfermagem como garantia de cuidados tanto para os soldados, quanto para os civis. O ideal patriótico agregado à profissão institucionalizava a atuação da mulher (Mecone, 2009; Bernardes et al, 2005).

O interesse político na promoção do campo e divulgação dos resultados sociais da enfermagem, por exaltar qualidades como ordem, disciplina, vigilância e promover o trabalho feminino, encontrava ressonância com ideais de inclusão promovidos e usados por Getúlio Vargas (Tota, 2000). O apelo direto às massas mobilizava multidões em todo o território nacional, cujas representações estabeleciam ressonância com a profissionalização do cuidado. Todavia, para os alcances propostos, era necessário ultrapassar os limites impostos pela lógica definidora da enfermagem, oriunda do modelo de equiparação à formação profissional, que legitimava sua principal personagem como “enfermeira padrão” (Barreira, 1997).

A política de Getúlio Vargas encontrava na formação profissional e profissionalizante possibilidades de absorção de contingentes significativos de trabalhadores e tornava factível a campanha varguista, pois recrutaria mão-de-obra, promoveria assistência à saúde das populações como vetores para o desenvolvimento da sociedade brasileira, concomitantemente, levaria à ascensão social grupos anteriormente desprezados pela política oligárquica. Não era incomum os negros elogiarem Getúlio Vargas. Ambos defendiam o projeto político nacionalista e o governo varguista foi, provavelmente, o que mais demonstrou sensibilidade em relação ao problema do negro na conjuntura.

 

Outras Bandeirantes: as mulheres da Legião Negra

Em São Paulo, a tentativa de invasão da redação de um jornal do Governo e de inutilizar o trabalho em curso resultou na morte de quatro jovens insurgentes conhecidos como Miragaia, Marcondes, Dráuzio e Camargo. O evento formalizou a organização do batalhão de voluntários MMDC2 , que culminou na Revolução Constitucionalista de 1932, movimento armado considerado a guerra paulista contra o Governo Federal. O conflito eclodiu com a radicalização do processo de instauração da democracia e contra o poder das oligarquias agrárias, tornando-se o maior conflito armado já concretizado em “solo Brasilis”. A máxima impunha que a luta não era contra o Brasil, mas pelo bem da Nação. São Paulo empreendia uma luta sangrenta, cuja atitude “refletia o sentimento de superioridade do Estado de São Paulo, locomotiva que estaria arrastando ‘vagões vazios' dos demais estados a Federação” como destaca Petrônio José Domingues, afirmando que no período se esquecia provisoriamente as doutrinas científicas, que classificavam os negros como seres inferiores, para incluí-los como parte integrante da “raça privilegiada dos paulistas” (Domingues, 2003, p. 199).

O livro “1932 Imagens de uma Revolução” (Villa, 2007) apresenta entre civis e militares anônimos “enfermeiras da Legião Negra que atuaram principalmente nas frentes norte e sul”. As enfermeiras que compunham a Legião Negra não se coadunavam com a imagem da “enfermeira padrão”, portanto, como considerar a organização das mulheres negras no contexto de legitimidade institucional da enfermagem brasileira? Mesmo que os jornais usassem a expressão “as enfermeiras” de modo universalista ou que os textos fossem escritos na emoção dos acontecimentos como considerar a representação da enfermagem durante a Revolução de 1932? Seria essa uma resposta dos negros paulistas para a oficialidade da formação e identidade profissional da enfermagem brasileira?

A matéria publicada no jornal A Gazeta nos dias que se seguiram ao início da guerra permite considerar que os negros não estavam desatentos dos significados da enfermagem, da importância de suas ações para a ma-nutenção dos batalhões durante os confrontos, bem como da mística que sempre envolveu o cuidar de pessoas, vale dizer, sabiam da importância da enfermagem:

 

“Ontem, às últimas horas do dia, deixou o seu acantonamento da Chácara Carvalho mais um batalhão. Alguns milhares de pessoas, entre palmas e vivas, saudaram os negros que marcharam para a frente, cheios de entusiasmo. À frente deles, em passo militar, conscientes da grandeza da sua missão, seguiam as enfermeiras. Assim tem sido em cada batalhão dos negros. Eles seguem e com eles as mulheres enfermeiras” (Legião Negra, 1932, p. 3).

 

A Legião Negra era composta por associados ou dissidentes da Frente Negra Brasileira – FNB, fundada em 1931. A união política e social das associações promovia a elevação moral, intelectual e profissional de homens e mulheres negros, prestava assistência, proteção e defesa social, jurídica e econômica à “gente negra”. Como permite considerar a historiografia, a FNB não anulou a proposta paulista da luta contra o Governo Federal porque vislumbravam na política populista de Getúlio Vargas possibilidades de ascensão e inclusão social, ao mesmo tempo em que temiam a repetição da presença negra na Guerra do Paraguai (1864- 1870), na qual foram postos na linha de frente em campos de batalha (Domingues, 2003).

Na Revolução de 1932 não havia convocação obrigatória de reservistas e os batalhões eram criados por categorias específicas como universitários, empregados do comércio, operários, desportistas, professores, arquidiocesanos, no caso dos Irmãos Maristas, ou étnicos como os destacamentos dos espanhóis, alemães, sírio-libaneses, portugueses, ingleses, italianos, negros e índios. Registos fotográficos apresentam símbolos consagrados do cuidado e permitem observar a indumentária que caracterizavam as mulheres negras como enfermeiras, em específico, a braçadeira branca com uma cruz bordada ao centro. O uniforme das “mulheres enfermeiras” da Legião Negra era composto por sapatos fechados com cadarços, meias que cobriam as pernas, saias retas abaixo dos joelhos, camisa de mangas longas com colarinho e bolsões. Na cintura, ajustado a um cinto, carregavam um cantil. Usavam chapéus de abas largas, iguais aos usados pelos homens, além do distintivo no braço direito, símbolo que indicava a função da enfermagem no conjunto das estratégias de guerra (Revolução Constitucionalista de 1932, 2010, p. 3).

Os registos indicam os alcances da campanha paulista de 32 na construção da imagem de São Paulo. As mulheres negras enfermeiras fo-ram retratadas em cerimônias públicas de juramento usando uniformes com símbolos universais do cuidado e indicam a participação da Cruz Vermelha Brasileira na organização das voluntárias da Legião Negra. Ainda que superficial ou insuficiente, o treino recebido por essas “mulheres enfermeiras” desvela a dimensão político-social do cuidado como estratégia fundamental na guerra, de defesa e proteção.

 

“As mulheres de cor dão um belo exemplo de civismo e patriotismo. Lá estão elas, formando os batalhões de enfermeiras. Seguem para a frente e animam, com seu exemplo os valentes homens de sua raça. Sem vaidades, naturalmente, com dedicação, cumprem, heroínas devotadas à grande causa, o sagrado dever que é defender São Paulo e o Brasil das garras da ditadura nefasta” (Legião negra, 1932, p. 3).

 

Os batalhões da Legião Negra eram identificados como Legionários, Pérolas Negras, membros de uma pequena elite como Guaraná Santana, Gastão Goulart, Arlindo Ribeiro, Vicente Ferreira, Cunha Glória, entre outros como o “...tenente Henrique. Escuro na cor, mas branco na coragem!”, frase que trazia implícita o segregacionismo costumeiro. De acordo com Marco Antonio Villa, “o número de soldados negros e mulatos que lutaram nas forças constitucionalistas foi várias vezes superior àquele alistado na Legião Negra” indicando que “o chefe do Estado Maior, coronel Euclydes Figueiredo era um coronel negro” como “Palimércio de Rezende, que exerceu por alguns dias a chefia da Secretaria da Justiça após a Revolução de 1930”. Para o autor, “não é possível afirmar que coube à Legião Negra tarefas militares mais arriscadas do que aos outros regimentos das forças constitucionalistas ou de que tenham recebido tratamento discriminatório” (Villa, 2007) Para Petrônio José Domingues, “a luta pela constitucionalização do país, pela efetiva autonomia diante do regime federativo e a própria mística de superioridade de São Paulo frente aos demais estados contagiaram a população ‘bandeirante', unindo diversos setores sociais e grupos étnicos” (Domingues, 2003, p. 230). Seja como for, os autores reiteram a perspectiva da anulação de práticas intolerantes impostas aos negros durante a Revolução Constitucionalista dec 1932, ainda que momentaneamente ou discursivamente:

 

“A ‘Legião Negra' está dando um exemplo comovente ao Estado de São Paulo. Ao primeiro apelo dos seus dirigentes todos correram para defender a terra bem amada, a terra do trabalho, a terra que não escolhe a ninguém para abrir os seus braços de concórdia brasileira e universal a sociedade bandeirante (...) deve guardar eternamente no coração a lembrança da raça negra (...) aqui estão para tudo que seja luta e sacrifício (...) somos neste instante um dos maiores soldados desta cruzada. Venceremos” (Frente Negra Brasileira, 1932, p. 3).

 

Em 1932, a FNB contabilizava 15 mil sócios na capital, além de filiados nas mais de 60 delegações distribuídas no interior de São Paulo. A experiência das mulheres negras enfermeiras, publicadas em jornais da cidade de São Paulo, durante a Revolução Constitucionalista de 1932 desmonta a imagem social da enfermeira padrão, cuja apropriação social caracterizava e qualificava a profissional de modo restritivo. Ao assumirem seus lugares junto aos combatentes como enfermeiras, essas mulheres criaram e recriaram formas inusitadas de resistência aos imperativos raciais que lograram excluí-las de suas práticas seculares: o cuidado.

A organização das mulheres negras como corpo de enfermeiras referendam estudos acerca da presença negra na enfermagem brasileira, pois evidenciam uma articulação desta população no campo da assistência tanto cultural, quanto política. Assim, a apropriação do título conferido ao profissional do cuidado para designar e divulgar a mobilização de mulheres negras durante a Revolução Constitucionalista de 1932, identificadas como enfermeiras, pode ser considerado como um processo histórico de desmontagem do discurso dominante, racista e intolerante que as excluíam da enfermagem?

 

Considerações Finais

A história da enfermagem permite considerar o cuidar/cuidado como movimento social, portanto, historicamente, prescinde da formação profissional. Assim reconhecida, resulta da função social do cuidar/cuidado, em seus múltiplos contextos e em seus próprios termos. No caso específico, o presente artigo pretendeu destacar a presença de mulheres negras enfermeiras na Revolução Constituinte de 1932 como significativo do ponto de vista da organização do movimento negro em São Paulo e ao mesmo tempo como resistência aos imperativos que as excluíam da formação profissional em enfermagem, pois conhecedoras das recusas, organizadas politicamente.

Evidências históricas como a existência de negros na primeira escola de enfermagem do Brasil, qual seja, Escola de Enfermeiros e Enfermeiras Alfredo Pinto, fundada em 1890, na cidade do Rio de Janeiro; das tentativas negadas de ingresso de mulheres negras na Escola de Enfermagem Anna Nery, na passagem da década de 1920 para 1930; das recusas de práticas seculares de cura e cuidado exercidas durante os anos da escravidão, entre outros vestígios, reiteram que a história não é movida por atos oficiais, mas pela força das experiências humanas, neste caso, na luta contra o segregacionismo que as impediam de exercer o que também sabiam fazer: cuidar (Campos, 2012).

As mulheres negras, enfermeiras da Legião Negra, permitem consi-derar a organização feminina no amâgo do movimento negro de maior relevo no Brasil à época, a FNB, como recusa à representação dominante construída pela imagem social da enfermagem, a enfermeira padrão. Mesmo no campo das possibilidades, a solidez pretendida dissolveu-se diante da organização de mulheres negras denominadas e divulgadas pela imprensa paulistana como “enfermeiras” durante a Revolução Constitucionalista de 1932. As negras superaram o discurso dominante que as excluíam da enfermagem para tornar público as bases deixadas pelo exercício secular de suas ancestrais africanas, escravizadas, alforriadas ou livres, que atuaram na arte do cuidar/cuidado no Brasil, influenciando-a (Souza Campos, 2008).

Dissonante, o estudo permite considerar que a representação oficializada pelo modelo anglo-americano de ensino da enfermagem apresentava-se contrária às propostas políticas de Getúlio Vargas, tampouco, se coadunava com a política de boa vizinhança estabelecida entre o Brasil e os Estados Unidos, a qual levou à criação do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP e da maior escola da América-Latina nos anos de 1940, a Escola de Enfermagem da Faculdade de Medicina da Uni¬ver-sidade de São Paulo. A representação da enfermeira padrão ampliava distâncias entre as necessidades existentes e o inexpressivo contingente profissional, não obstante, sua divulgação servia como rutura para conquistas e novas atuações do feminino.

 

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Notas

1Doutor em História (UNESP, Assis) com pesquisa de Pós-Doutorado (EE/USP/ FAPESP).

2A cada uma das letras do acrónimo MMDC corresponde a inicial do nome de cada um dos quatro jovens insurgentes assassinados (Miragaia, Marcondes, Dráuzio, Carvalho).