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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher
versão impressa ISSN 0874-6885
Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher no.33 Lisboa 2015
ESTUDOS
Convento das Inglesinhas: entrelace de lendas, histórias e arquiteturas
Fernando M. P. Alves1
Professor aposentado do ISEG, ex-UTL, atual UL
RESUMO
Querendo ser fiel à história do Convento das Inglesinhas, mas carecendo de fontes específicas, torna-se difícil relatar a evolução histórica do seu património cultural e arquitetónico. Em tempos idos, este lugar de Lisboa acolheu um convento de religiosas, até se converter, através de várias mudanças sociais, no atual Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). Na sua criação, o ISEG recebeu assim o legado daquele convento. Entretanto, o lugar ficou conhecido popularmente como lugar do Quelhas. Se a memória do lugar aspirasse ficar retida no ato arquitetónico, estes legados, só por si, teriam motivado a pesquisa de alguns aspetos do seu património histórico. Neste processo evolutivo, porém, outros factos quase irreais intervieram, jamais devendo ser tomados por fantasias pessoais. Na criação da sua fama, poucos são os lugares históricos que dispensaram o entrelace da lenda com a realidade. Assim, ao receber o seu legado, o ISEG-Quelhas não escapou ao enlace quase lendário com as religiosas inglesinhas.
Palavras-chave: inglesinhas; convento e instituto; arquitetura e urbanismo.
ABSTRACT
To be faithful to the history of the Convento das Inglesinhas, it is difficult to follow the historic evolution of its cultural and architectural legacies, while lacking specific sources. In old times, this site of Lisbon received a religious convent and, centuries later, through various social changes, such convent became the actual Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). Thus, ISEG inherited a convent charged with history. Meanwhile, the surrounding area became popularly known as Quelhas. If the memory of this place were to be focused exclusively upon the architectural legacy, it would be then sufficient to arouse the research of certain aspects of its historical heritage. In the evolving process, however, other facts almost unreal intervened, which should never been taken for personal phantasies. In the creation of its name, few are the places that would dispense its interlacing of legend with reality. By receiving its legacy, ISEG-Quelhas did not escape its marriage with the legendary religious sisters, the Brigids.
Keywords: British religious sisters; convent and institute; architecture and urbanism.
1. Introdução
Esta é a história de um lugar especial de Lisboa, o qual ficou ligado, logo na sua origem, ao género feminino. Existem trabalhos sobre os mos-teiros e conventos de Lisboa, mas são raros os que abordam o Convento das Inglesinhas. Entretanto, o lugar ganhou popularmente o nome de Quelhas, passando de convento a instituto de ensino.
2. A palavra Quelhas
Comece-se então pelo termo quelhas que, segundo a Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, quer dizer calha, viela, azinhaga, rua estreita. Em dialeto transmontano, quelha é quelho. Em fala regional comum, quelha quer dizer socalco de terra lavradia. Ao longo de séculos, o Quelhas terá sido tudo isto.
Com letra maiúscula, segundo o Ciberdúvidas da língua portuguesa, Quelhas é um apelido corrente em Portugal, oriundo de uma alcunha. Condiz ao plural do nome quelha, que traduz, como se disse, viela, que-lho, azinhaga, rua estreita, calha para líquidos, socalco de terra lavrada.
Em tempos, um transmontano chamado Quelhas terá comprado os terrenos envolventes do atual ISEG, ligando o seu nome ao lugar. Sem saber, este laico terá fechado o longo ciclo religioso desta Colina dos Conventos.
3. Duas visões convergentes
3.1. Da lenda para a realidade
Neste sentido, a história começa antes de o edifício existir, com a vinda de 23 freiras da Ordem da Santa Brígida ou Ordem do Santo Sal-vador de Inglaterra para Portugal. Antes disso, segundo a lenda, três grupos de pessoas, assaz distintos, viviam em três colinas contíguas da Inglaterra: na primeira, o rei e a sua corte; na segunda, os frades da Ordem dos Cartuxos; na terceira, as freiras da Ordem de Santa Brígida. Era o Monte de Sião, que de celestial teria pouco.
Ali refletiam-se as lutas religiosas entre católicos e anglicanos. Na altura, o rei levaria uma vida devassa, que ofendia as freiras reclusas. Sendo mulheres, as irmãs sentiam-se algo ameaçadas. Um dia, elas pediram ao rei uma côngrua, que lhes permitisse partir para onde Deus as chamasse. O rei anuiu, tendo elas viajado pelo Canal da Mancha até à Flandres. Confusas, erraram no meio de conflitos religiosos: pela Flandres, de novo pela Inglaterra, depois pelo Norte de França. Tardou concluírem, porém, que não era por ali que Deus as queria. Aquele vaguear tinha sido uma via- sacra com muitas estações: Flandres, Londres, Flandres, Antuérpia, Malinas e Ruão.
Quando retomaram viagem, atracaram no Norte de Espanha, quiçá em terras do atual Convento das Brígidas de Lasarte, mas por pouco tempo. Também lá se sentiram mal, fosse pelo clima brumal fosse pela vida demasiada austera. De novo se puseram ao caminho. Depois de dobrarem o mítico Cabo Finisterra, ao descerem as costas galegas e portuguesas, ao vogarem cada vez mais para sul, sentiram o apelo do Sol. A nortada era-lhes propícia, pelo que cedo avistaram as Ilhas das Berlengas. Nisto, uns navios piratas, vindos das ilhas, barraram-lhes o caminho. Outra versão menos hostil elege aludir a dois navios da armada inglesa. Seja como for, elas sentiram-se em perigo, pelo que se ajoelharam no convés pedindo ajuda a Deus. Parece que foram atendidas, pois Ele fez cair sobre o mar um nevoeiro cerrado, que as ocultou à provável abordagem, chegando salvas à Foz do Tejo.
Fazia tempo que ansiavam por um porto seguro, que as descansasse de tantas agruras. Ao subirem o rio Tejo até ao Mar da Palha, aportando em baía tão bela, elas sentiram que Deus as queria por cá, em Lisboa. O seu enlevo por este mar interior foi tanto que, talvez por isso, o convento restaurado ainda hoje preserve um mirante simbólico, com vistas sobre o Estuário do Tejo. Antes deste novo mirante, feito de cimento armado, houve um velho mirante, feito de madeira, com asnas cruzadas a segurar a cobertura. As suas janelas de vidros coloridos projetavam efeitos caleidoscópicos sobre quem subia as escadas. Através da policromia, as irmãs doroteias (vindas de Itália em 1866, entretanto sucessoras das brígidas) de lá podiam admirar a baía e a colina de uma cidade cheia de vida marí-tima.
3.2. Da realidade para a lenda
No rasto inverso, afinal o que há de vero? Em 1415-1416, o rei católico Henrique V (1386-1422) fundou dois conventos em Inglaterra, para que as duas irmandades louvassem perenemente a Deus: estas duas comunidades deviam viver em laus perennis. O convento masculino pertencia aos silenciosos Cartuxos. O convento feminino chamava-se Mosteiro de Sião, de súplica ao Santo Salvador, que se teria revelado à Madre Santa Brígida, da Suécia. Assim nasceu o nome completo de Mosteiro do Santo Salvador de Sião. Até ao reinado de Henrique VIII (1491-1547), ambos os conventos cumpriram escrupulosamente esta regra religiosa.
Quem era a Madre Santa Brígida da Suécia? Em 1303, Brígida Birgersdotter nascera na Uplândia, com vínculo à aristocracia da casa real. Aos 13 anos, Brígida casou, diz-se que contrariada; mesmo assim, ela acabou por ter oito filhos. Após 28 anos de união, o seu marido morreu. Brígida fez-se então irmã da Ordem Terceira de São Francisco. Aí, ela devotou-se intensamente à vida conventual, mas, na vida secular, permaneceu atenta à sua numerosa prole.
Mais tarde, Brígida acabou por fundar uma nova ordem religiosa, depois do Papa Urbano V (1310-1370) lhe ter mudado as regras propostas. Ao primeiro mosteiro, edificado em Vasteno [Vadstena], seguiram-se outros por toda a Europa. Ao longo da vida, Brígida peregrinou muito por Itália, até pelo Norte de Espanha, tendo calcorreado os caminhos de Santiago de Compostela. Ela escreveu várias obras, narrando as suas visões e profecias. Numa destas, Brígida anteviu o regresso do papado de Avinhão a Roma. No entanto, seja por ele ter volvido a Avinhão, seja por ele ter mudado as regras da sua ordem, ela desgostou-se do Papa Urbano V. Seguiu-se nova profecia — a morte do próprio papa — que se concretizou dois meses depois (1370). Três anos mais tarde, porém, ela morria também num convento da Praça Farnese, em Roma. Em 1391, Bonifácio IX (1356- 1404) canonizou Brígida, que se tornara, entretanto, a santa mais famosa dos países escandinavos. Uma das suas filhas também foi santificada, a Santa Catarina da Suécia. Enfim, com mais duas santas, Catarina de Sena e Teresa Benedita da Cruz, a Santa Brígida é hoje “co-padroeira” da Europa.
Em 1534, Henrique VIII (1491-1547) rompeu com o papado de Roma, criando a igreja anglicana. Ele suprimiu todas as ordens católicas existentes no seu reino, exceto aquelas duas mais próximas, por respeito ao seu criador. Cedo, porém, também as fechou, enviando os irmãos ali moradores para casa dos seus parentes. No entanto, alguns emigraram, buscando os Reinos Católicos de Espanha. Na altura, estes reinos estendiam-se pelo Norte e Sul da Europa e pelas Américas.
Sucedendo a Eduardo VI (1547-1553), Maria I (1553-1558) ascendeu a rainha da Inglaterra e Irlanda. Sendo mulher do católico Filipe II de Es-panha, a também católica Maria logo reabriu os conventos. O seu reinado foi breve, mas cruel. Durante ele, os católicos declararam guerras constantes aos protestantes. Nestas lutas ela ganhou o cognome de Bloody Mary: Maria, a Sanguinária. Não tendo filhos, viu-se forçada, por morte, a entregar a coroa à sua meia-irmã, a anglicana Rainha Isabel (1558-1603). Por sua vez, esta proibiu as ordens católicas, confiscando as rendas daqueles dois conventos que então sustinham 25 frades e 60 freiras, além do pessoal menor.
Inseguras no meio de tantas lutas fratricidas, as irmãs saíram, em bloco, da Inglaterra, cruzaram o Canal da Mancha, erraram pela Flandres e pelo Norte de França. Houve relatos, algo exagerados, de que, em cerca de 40 anos, teriam mudado de lugar 70 vezes. Em susto constante, devido à vindicta dos protestantes contra os católicos, as irmãs, com a abadessa e o seu confessor, rogavam a Deus para que Ele lhes mostrasse um lugar tranquilo, um Sião. Uma voz divina — diz a lenda — ciciou-lhes o nome de Espanha. Por isso, as irmãs rumaram à Península Ibérica.
Na realidade, porém, existia o precedente histórico das irmãs flamengas. No dia 3 de julho de 1581, segundo a Soror Catarina do Espírito Santo, dera-se a diáspora destas freiras pela Europa Central, ainda católica. Só um pequeno grupo de freiras, as do Convento de Alkmaar, optaram pela Península Ibérica, porque vassalas de Filipe II. A 5 de fevereiro de 1582, depois de aportarem em Santander e Bilbao, as flamengas chegaram a Lisboa, com atracagem anterior no Porto da Arrábida. Nesta viagem, acompanhava-as um confessor inglês, desde Alkmaar (Honrado, 2014).
Afinal, a viagem das inglesinhas decalcou a viagem das flamengas, ambas em demanda da mesma cidade, Lisboa. Entre as duas fugas passaram-se 12 anos. Para a resolução política dos conflitos no centro da Europa, Filipe II incumbiu o Duque de Alba de repor a ordem na Flandres. Com essa decisão, porém, o rei causou a Revolta Holandesa ou a Guerra dos 80 Anos (1568-1648) (idem).
No dia 4 de maio de 1594, depois de muitas aventuras, as inglesinhas chegaram finalmente a Lisboa, onde ainda regia Filipe II (1527-1598) de Espanha, Filipe I de Portugal. Na Península Ibérica, vigorava então a lei “duas coroas, apenas um rei”. De início, as inglesinhas acolheram-se ao Convento da Esperança. Logo depois, uma senhora nobre, chamada Isabel de Azevedo, cedeu-lhes terrenos e algumas casas, sitas no Mocambo. Durante tempos viveram por ali, logo sagrando uma dessas casas em igreja, onde faziam as suas orações. No princípio, elas foram assistidas por padres ingleses, mas, à morte destes, sucederam-lhes padres irlandeses. A dita igreja estaria situada perto da atual Travessa das Inglesinhas.
4. A Colina dos Conventos
Aos poucos, a colina e os arredores ornamentaram-se de conventos religiosos. Do mirante do Convento das Inglesinhas ainda hoje se avistam cinco conventos na imediação: (1) a Assembleia da República (Mosteiro de São Bento da Saúde), (2) o Hospital de Jesus (Igreja das Mercês ou Igreja da Nossa Senhora de Jesus), (3) o Quartel de Bombeiros (Convento da Esperança), (4) a Academia das Ciências de Lisboa (Convento da Nossa Senhora de Jesus da Ordem Terceira de São Francisco) e o (5) Jardim das Francesinhas (Convento das Francesinhas). Hoje, este jardim representa a anamnese do convento, entretanto demolido. No topo das escadas de acesso existe uma pintura recém restaurada feita sobre azulejo, que retrata a Colina dos Conventos. Traçando a envolvente, é bem visível, à esquerda, o Convento das Inglesinhas e, à direita, o Convento das Francesinhas.
Recém-chegadas, as inglesinhas pediram auxílio ao rei para se instalarem definitivamente por cá. O rei concedeu-lhes um terreno amplo que se estendia desde o Convento da Esperança até ao Convento do Senhor Jesus da Boa Morte, contíguo à Basílica da Estrela (na década de 1980, uma secção do ISEG ainda operava num velho palacete, hoje restaurado, sito na Avenida de Buenos Aires).
Em 1666, com uma crónica análoga, chegou a Lisboa um barco com irmãs francesinhas, que fizeram pedido igual ao rei. A coroa, talvez cansada de dar terrenos, mandou-as falar com as inglesinhas, que lhes cederam um talhão no atual Jardim das Francesinhas. Assim, esta colina povoou-se de ordens religiosas, vindas não só de França e Inglaterra mas também do Sul da Europa. Além daqueles conventos, ressalta ainda o Convento dos Barbadinhos Franceses. Mais perto do rio, os capuchinhos italianos instalaram-se no antigo Mosteiro de Santos-o-Velho.
A descrição da envolvente urbano-religiosa termina com a lista dos conventos nacionais. Na ronda pela colina, localizaram-se seis: (1) o Convento das Albertas, (2) o Convento das Bernardas, (3) o Convento da Porciúncula, (4) o Convento de São João de Deus, (5) o Convento das Trinas do Mocambo e (6) o Convento de São Francisco de Paula.
5. Duas obras vizinhas
Nos dois séculos últimos projetaram-se obras de monta para esta zona de Lisboa. De tal maneira elas se integraram bem na malha urbana que os moradores da área cedo as olvidaram. Ressaltam, no século XIX, a abertura da Avenida de Dom Carlos I e, no século XX, a construção da Muralha do Jardim das Francesinhas. Ao fundo daquela nova avenida, que cortou a meio a velha capela onde palestrara o Padre António de Vieira, encontra-se o Poço dos Negros e o Largo da Esperança. Tal como o Barão Haussmann realizou em Paris, também os planeadores da Lisboa de então quiseram rasgar uma avenida em linha reta, que iria do Cais do Tojo ao Largo do Rato. No entanto, ela acabou encurtada diante da atual Assembleia da República, do antigo Mosteiro de São Bento da Saúde. Em tempos, o rio Tejo formava naquele cais um porto interior. Dali, o Padre António Vieira teria abençoado naus que demandavam o Brasil. Infelizmente, os restos daquela capela converteram-se numa oficina de reparação de viaturas do quartel de bombeiros.
Do topo da Basílica da Estrela, uma grande placa tectónica desloca-se, vagarosa mas inexoravelmente, na direção do Poço dos Negros. Pretendeu- se contê-la por meio de uma muralha, apesar de passar pelo Quelhas uma linha de água freática. Em tempos, por detrás dos azulejos, no topo das escadas do Jardim das Francesinhas, terá existido uma fonte. Com a re-tenção dessa água, a muralha cedo se converteu em barragem. Em meados da década de 1990, aquando da abertura de um furo para vazão das águas pluviais, a pressão do jorro de água, a sair do paredão, causou um forte estrondo. O tremor abalou os prédios da Rua de Miguel Lupi, chamando a atenção da Autoridade Nacional de Proteção Civil, assistida pelos Serviços Municipalizados de Lisboa. Apercebendo-se da grandeza das forças da natureza em causa, os engenheiros civis tiveram que reforçar os cálculos da entretanto custosa muralha, hoje recoberta por um jardim. À época, alguns engenheiros do Laboratório Nacional da Engenharia Civil teriam equiparado duas obras como as de maior apuro técnico em Lisboa: a Ponte Vasco da Gama e a encoberta Muralha do Quelhas.
6. Do Convento das Inglesinhas para o Convento de Marvila
Recém-chegadas, as inglesinhas ergueram um convento provisório, a makeshift. Para o efeito, serviram-se das casas existentes na Madragoa, terra de pescadores ovarinos. Hoje, já não existem traços do convento original, perdido num incêndio. O gorado convento provisório fez as inglesinhas procurarem erigir um convento de raiz. Entretanto, viveram fechadas em casas contíguas, cedidas pela fazenda. Apesar da reclusão, as inglesinhas encantavam os homens da época. A sua beleza era feérica, mas de porte distante. Elas atraíam os olhares masculinos por serem altas, loiras, esbeltas, mas o seu recato puritano impedia qualquer enleio.
Entretanto, sucederam-se novos reinados. As “inglesinhas”, já substituídas por irmãs portuguesas, quando olhavam do mirante do convento não gostavam do que viam a seus pés. Nessa época, a Rainha Maria Francisca Isabel de Saboia (1646-1683) fez-se notada por vir a ser mulher de dois irmãos, ambos reis do mesmo país. Foram eles Afonso VI, o Vitorioso (1656-1683), e Pedro II, o Pacífico (1683-1706). Este caso curioso, quiçá único na história mundial, inscreve-se porém na história nacional. Com efeito, a então princesa casara-se (1666-1667) com o rei em exercício, tornando-se por isso rainha, mas cedo rompeu, alegando impotência do marido. Entretanto, a rainha Maria Francisca encontrava-se com o príncipe Pedro, irmão do rei, no atual quartel de bombeiros, então Convento da Esperança. Do mirante do seu convento, as brígidas repudiavam o que viam no convento mais abaixo: para elas, o corrupio das carruagens reais era intolerável.
Apesar do Convento das Inglesinhas ser então relativamente novo (1655), elas pediram ao padre-cura que lhes procurasse outro terreno, onde pudessem construir um novíssimo convento, longe do real escândalo. A razão do melindre acabou por normalizar-se com o casamento de Pedro e Maria Francisca, uma união que durou 15 anos (1668-1683). Naquela altura, como não podiam antever um fim feliz, a intenção delas persistiu.
De 1660 a 1690, ergueu-se o tão desejado Convento de Marvila, mas de que modo? Um dia, o padre trouxe-lhes a notícia de um terreno soberbo, sito a Oriente de Lisboa. As brígidas, já constituídas por irmãs de origem portuguesa, foram ver o terreno e não gostaram. Com aquela rejeição, o padre ficou um pouco aborrecido e, de algum modo, hesitante quanto a continuar a ajudá-las. Para quê preocupar-se tanto com elas? Afinal de contas, tinha sido uma estafa mal-agradecida.
Nas consultas feitas na Torre do Tombo encontraram-se os registos das côngruas pagas às irmãs pelo povo e pela corte. Eles eram legados, esmolas, tenças reais e moios de trigo das “jugadas” do Ribatejo. Naquele tempo, jugada equivalia à área que uma junta de bois podia lavrar durante um dia. Era então corrente os moios de trigo servirem de moeda de troca. O povo inquiria: qual a paga delas para com a Igreja, a cidade, a sociedade?
Passado tempo, as brígidas voltaram a insistir junto do padre: queriam mesmo um terreno fora dali. Ainda avesso à ideia, o padre acabou por ir procurar outro terreno. Pondo-se a caminho, ele achou outro terreno, talvez não tão bom, mas de que elas vieram finalmente a gostar. Assim nasceu o atual Convento de Marvila, que tem uma planta arquitetónica rara. Em Lisboa, são poucos os edifícios com “planta em U”. O fundador deste convento foi o arcediago da Sé de Lisboa, Fernão Cabral. No entanto, fazendo uma pequena cedência à questão de género, existe no convento outra inscrição que, convertendo-a em termos modernos, diz: “A Dona Isabel Henriques, mulher que foi de Diogo Lopes Torres, fidalgo da Casa de Sua Majestade, mandou fazer esta obra à sua custa no ano de 1690”.
Por lá se procuraram os registos históricos dos dois conventos ― pois que as brígidas “foram autoras de dois exemplares mosteiros”―, mas nada se encontrou. Por mão amiga, apenas foi possível encontrar, na Freguesia de São José, as “Notícias fielmente relatadas dos custosos meios por onde veio a este reino de Portugal a religião brigitana, que se intitula a Ordem de São Salva-dor” (1745).
Aos poucos, as brígidas foram-se mudando do primeiro para o se-gundo convento, até à última irmã. Demorou tempo, porque a ordem tinha crescido com a adoção de jovens freiras portuguesas. Discretas, nunca se lhes conheceu prole que invocasse direitos de herança. Ao que parece, morreram castas, apesar de não ter sido bem esta a situação geral dos conventos lisboetas, mormente a exposta por relatos aquando das Invasões Francesas.
7. A Construção do Convento das Inglesinhas
Depois de um incêndio, começou a nascer o novo Convento das Inglesinhas, crescendo por fases várias: elas chamavam-lhes os “milagrosos aumentos”. Com o decurso do tempo, aos dormitórios, as freiras aditaram igrejas ― talvez umas três, sendo duas de fácil localização. Mais tarde, uma dessas igrejas converteu-se em Aula de Escritório e, depois ainda, em Sala da Biblioteca do Instituto Superior do Comércio. Na fase dos anexos, construíram-se os grandes laboratórios químicos, que formavam alunos no curso dos estudos aduaneiros. Esta grande Aula dos Laboratórios acabou por ser dividida em três salas de aulas menores. Recentemente, aproveitando a vizinhança de edifícios, fundiu-se o convento com a labiríntica estação da antiga Emissora Nacional (EN). Na sua construção, a EN tinha anexado um talhão dos terrenos primitivos do convento.
No átrio do convento sobressai o poço que, sondado pelo seu afluir em túnel no quartel de bombeiros, faria crer que os dois edifícios se interligavam, quiçá para vazão das águas da cisterna. Mas aquela pesquisa mais funda pelo tal canal requeria outros meios, outra equipa, pelo que não foi feita, apenas se aflorou. Estas ligações entre conventos não estavam falhas de lendas. Ainda hoje, quando menos se espera, dizem que em caves, túneis e cisternas se descobrem ossários, que logo se tapam à curiosidade alheia, pela pressa das novas obras.
Até aqui, eis descrito qual o labor do arquiteto, em busca das pré-existências que o inspirem no seu trabalho inicial. A musa tanto pode vir da área limpa a construir como das cercanias já construídas. Paradoxalmente, umas vezes a musa constrói, outras vezes destrói. Ainda se mantém, por exemplo, a célebre rosácea da porta da Sopa dos Pobres, no Convento da Porciúncula, em frente à Assembleia da República: nesse refúgio se enchiam as barrigas vazias dos pobres de Lisboa. Na antiga Sala 36 do Quelhas também houve uma semi-rosácea: embora parecida, ela quase desapareceu pela inserção de um mezanino.
8. Das cinzas do velho nasce o novo
Em 17 de agosto de 1651, a igreja ardeu, como se disse, ficando reduzida a cinzas. Dias depois, durante sete meses, as brígidas acolheram-se no Convento da Esperança. Depois mudaram-se para outras casas dos arredores, “confiscadas pela fazenda”. Em 2 de outubro de 1651, lançou-se a primeira pedra do novo convento. Em 1656, já estava concluído um dormitório, para onde as irmãs regressaram, erguendo-se depois a igreja. Para estas obras, o casal Milícia da Silveira e Rui Correia Lucas fez doações. O convento ficou conhecido pelo nome de Convento das Inglesinhas, pois as suas fundadoras tinham sido religiosas inglesas, já reduzidas, diz-se, a 15 irmãs e três sacerdotes. Para o seu sustento, Filipe II mandou dar-lhes 2$000 diários e 12 moios de trigo por ano, sendo tudo pago pelas lezírias de Santarém. O total dos réditos ascendia a 5000 cruzados. Os reis seguintes doaram “ordinários” comparáveis, mas de valor desigual. Para ministrarem os sacramentos, o convento chamou dois clérigos do hábito de São Pedro. Um deles geria o convento enquanto padre-cura.
O sismo de 1755 causou prejuízos menores ao edifício, logo reparados. A entrada para a igreja e o convento fazia-se por um pátio ornado de árvores, com a fachada lateral voltada para o sul. A igreja era de uma só nave. Além da capela-mor, com imagens de Santa Brígida e de Nossa Se-nhora da Salvação, existiam outras capelas laterais, de prece ao Santo Cristo, à Santa Catarina e à Nossa Senhora do Pópulo.
Em 8 de maio de 1834, na sequência das chamadas lutas liberais, um decreto régio extinguiu as ordens religiosas em Portugal. Até à sua morte, porém, as freiras permaneceram nos conventos habitados. Em Marvila, elas mantiveram-se até 1874. Não se consentia, porém, que mais freiras professassem. Por morte da última irmã, os conventos desertos eram entregues, um a um, ao Estado. Por vezes, este vendia-os a um laico qualquer. Assim se procedeu em todo o país. Nas vésperas da Revolução Republicana, as freiras professas seriam já poucas.
9. Os milagrosos aumentos
Ao longo dos tempos, é difícil perceber-se a evolução dos “milagrosos aumentos” do Convento das Inglesinhas. Gonzaga Pereira (1927) desenhou a entrada do convento, voltada para a Rua do Quelhas, no livro Monumentos sacros de Lisboa em 1883. Pereira também esboçou a Igreja do Santo Salvador de Sião, então integrada no Convento das Inglesinhas. Atualizando os arcaísmos, ele situou a igreja “dentro de um pátio, guarnecido de arvoredo sombrio, e o seu alçado lateral olha com frente para o lado sul”.
Quanto à igreja, Pereira (1927, pp. 233-234) descreveu-a assim:
“A sua planta é muito pequena; podem caber 200 fiéis ao santo serviço da Igreja Romana, e o seu alçado visto da rua é conforme a cópia junta a esta coleção de memórias, o qual foi copiado em ponto de vista observado do natural, para recreio da mocidade estudiosa na posteridade”.
Quanto ao autor do projeto, lamentou-se do seguinte modo:
“Não descobrimos quem foi o arquiteto desta obra; alguns atribuem que serão desenho de [João Nunes] Tinoco [c. 1610-1689], arquiteto desses tempos; a planta da sua igreja é muito sofrível; o convento deve ser primoroso pela sua grandeza; não está ao nosso alcance desenvolver esse problema, por ser proibida a entrada a pessoa alguma”. (idem, 235)
Comparando a imagem do livro de Pereira (1927) e a maqueta existente no Museu da Cidade, sito no Campo Grande, vê-se que o número de pisos é concordante em ambas as fontes: eles seriam então em número de dois. Com efeito, ainda hoje é visível, em pelo menos um cunhal do edifício, a marcação bem vincada dos dois pisos e do arranque da cornija no cunhal, junto do coroamento do edifício. É visível o acréscimo de um 3.º piso, ao qual, pela admissão de processos construtivos diferentes da anterior, se dispensou a marcação do cunhal. Pela mesma razão se introduziu na estrutura, ao nível do pavimento do 2.º piso, travamento com tirantes de ferro, para evitar que as paredes dos pisos inferiores abaulassem.
Pelo amplo terreno adjacente, uma análise da planta recomendaria uma expansão horizontal. Ao invés, a expansão fez-se em altura. Só na atualidade o instituto se alargou pelo Jardim das Francesinhas. Nesta transição longa, não foi possível encontrar todos os projetos de alterações, mas apenas os relativos ao período de 28 anos [1878-1906]. De qualquer forma, os projetos de expansão permitem o estudo da evolução volumétrica do edifício, embora só revelem as alterações feitas antes da 1.ª Re-pública. As alterações detetadas ocorreram quando aí operou o Colégio Jesus Maria José, regido pela Associação de Santa Doroteia. Antes, a gestão deste colégio esteve a cargo dos Jesuítas, que tinham adquirido o convento em 1864, por meio de testas-de-ferro, a fim de resistirem à onda anticlerical. Enfim, estes projetos confirmam a hipótese da presença inicial de apenas dois pisos.
Através dos projetos de expansão é possível ver, pois, qual teria sido a volumetria inicial do convento e quais os acrescentos que, por várias vezes, lhe foram afetados. Em resumo, os vários projetos de expansão foram realizando os seguintes “milagrosos aumentos”:
- • Elevação de um piso em parte do edifício (1878);
• Alteação de um piso no restante corpo e justaposição a esse corpo de um terraço com pavimento funcionando como 3.º piso (1883);
• Interiorização da capela velha, pela incorporação de uma ala do lado exterior, a qual servia de sacristia, no 1.º piso, e de dormitório do colégio, no 2.º piso (1889);
• Criação de uma capela nova sobre o corpo já dantes ampliado da capela velha e de uma estrutura metálica em arcadas no exterior; já no tempo da 1.ª República, esta capela viria a ser convertida em outras funções (1904);
• Criação de um anexo exterior para copa e refeitório do Colégio Jesus Maria José (1906); pela primeira vez, o edifício não cresceu em altura.
Se houve mais projetos, perdeu-se-lhes o rasto. Também não admira, se atendermos ao facto de que tal período coincidiu com a entrega do convento ao Estado. Até 1913, o velho edifício da Rua do Quelhas abrigou o Museu da Revolução Republicana, inaugurado por Afonso Costa e todo o Governo Provisório. Este museu foi inicialmente dirigido por António Grainha (1862-1925) e, à sua morte, pelo escritor Aquilino Ribeiro (1885-1963). Até há bem pouco tempo, a antiga Sala 31 era conhecida pela Sala do Museu. Poucos saberiam, porém, que o museu em causa fora o Museu da Maçonaria Republicana. Acredita-se que parte deste espólio (regalia) esteja hoje a salvo no Museu da Cidade.
No convento funcionou sucessivamente o Instituto Superior do Comércio, o Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, o Instituto Superior de Economia e, finalmente, o Instituto Superior de Economia e Gestão. Para o Instituto Superior do Comércio chegou a haver um projeto belíssimo de remodelação, do qual foi possível encontrar cópia do alçado principal a erguer na então Rua João das Regras (em 1902, esquina do Caminho Novo junto ao Convento das Francesinhas). Para a época, era um projeto monumental, embora de dimensão equiparável ao da antiga Emissora Nacional. Nesse tempo, aquele espaço alojaria um comum lavadouro público, entretanto removido para a esquina sudeste do cruzamento em causa.
Assim, antes da renovação moderna do arquiteto Gonçalo Byrne (1941-…), eis alguns dos espaços e objetos que já mereciam destaque:
- • O salão nobre de reuniões dos professores;
• O poço e a cisterna do claustro do convento;
• Uma meia dúzia de estelas, ainda hoje dispersas pelo jardim;
• O acrescento sucessivo de mais um piso, sendo ainda hoje parcialmente visíveis as sobreposições por via das fenestrações a diversos níveis;
• No 3.º piso, embora tivesse sido biblioteca, subsistia a memória da capela edificada, através das cruzes existentes nas janelas;
• O acréscimo de mais um piso revelado pelo claustro do Convento das Inglesinhas quer em termos de materiais quer em termos estruturais (arcadas e janelas);
• Uma ampliação com refeitório e sobreposição da ampliação: ao bloco do início do século foi sobreposto um corpo novo, a histórica Sala de Ribeiro Santos, nome do aluno assassinado pela Polícia Internacional de Defesa do Estado;
• Uma pietà, memória das igrejas antigas, encravada numa galeria a dar para o claustro. Esta galeria foi reaberta recentemente, dando assim passagem para o antigo edifício da Emissora Nacional. A pietà foi removida para um lugar de maior realce;
• A ampliação de 1904 fez: uma escadaria para entrada nobre; uma arcada com estrutura de ferro, sustentando a ampliação da varanda interior; uma nova capela sobre a capela velha, posteriormente convertida em Aula de Escritório e depois em Sala da Biblioteca; por fim, um teto liso, pintado em trompe-l'œil.
10. Intervenção coeva
A transição do projeto atribuído ao arquiteto Nunes Tinoco, num extremo, para o projeto do arquiteto Gonçalo Byrne, no outro extremo, trouxe consigo uma mutação do passado para o presente. Sem hesitações, Byrne rompeu com o passado. Como contraste (diriam as inglesinhas, as a foil), poderia perguntar-se: qual teria sido o projeto de um arquiteto que acatasse as pré-existências?
Byrne procurou cumprir o desígnio de servir o próximo, projetando e edificando “contentores de vida”. Que melhor contentor de vida, indagar- se-ia então, que uma escola? Entre os materiais, Byrne preferiu o vidro: segundo ele, o vidro tem uma qualidade única. Com efeito, o vidro pode ser tão claro como a água e tão opaco como uma pedra. Em entrevista dada à empresa Saint-Gobain Glass Portugal, Byrne afirmou que o vidro era um dos materiais clássicos da arquitetura que maior evolução tecnológica tinha sofrido nos últimos tempos. Em nota breve, dir-se-ia: chez Saint-Gobain, noblesse oblige. Hoje, fabrica-se vidro transparente, se visto de dentro para fora, e opaco, se visto de fora para dentro. À maneira de Corbusier (1887-1965), os edifícios de Byrne têm janelas de vidro rasgadas de cunhal a cunhal. Diferentes de Corbusier, os caminhos pedonais, antes inexistentes, surgiram espraiados numa placa alteada de circulação.
Em boa hora, Byrne demoliu os edifícios abarracados da Direção-Geral da Saúde. Nesses terrenos, ele projetou os edifícios Francesinhas I e Francesinhas II. Por debaixo destes, enterrou garagens amplas, concedendo espaço generoso ao parqueamento de automóveis. Lá dentro, porém, acumularam-se vários aparelhos de ar condicionado, que no verão sobreaquecem o ambiente já de si aquecido pelos motores dos automóveis. Tal facto agrava o problema típico da aplicação do vidro nos edifícios. A este propósito, poder-se-ia dizer que “Byrne preferiu o Carrier) ao Cardim”: o arquiteto Byrne preferiu o ar condicionado Carrier ao arrepio das lições de Economia de Energia do seu colega arquiteto Rui Cardim. Mesmo aceitando as virtudes do vidro moderno, as permutas entre o frio e o calor dentro dos edifícios ainda hoje são pouco conseguidas.
Segundo uns, o edifício das Francesinhas I teria sido desenhado, embora sob o traço geral do arquiteto sénior, por uma equipa de projeto júnior, daí decorrendo fraquezas técnicas. Segundo outros, o projeto estava feito para o polo universitário da Tapada da Ajuda, para onde antes estaria decidido o ISEG. Os não-arquitetos são sempre mais sensíveis às fraquezas funcionais do que às estéticas. Daí que só os aspetos funcionais tivessem sido corrigidos na transição do projeto das Francesinhas I para o das Francesinhas II.
Posto à prova o edifício Francesinhas I, logo ressaltou a questão da “pequenez” das salas, das escadas e dos corredores. O pé-direito das salas de aulas era baixo, com caixas-de-ar pequenas para um número elevado de alunos. Os espaços estreitos nas escadas de acesso aos vários pisos geravam apertos nos fluxos de circulação de pessoas. Os corredores eram também estreitos. O pavimento era feito de material polido, escorregadio quando molhado. As janelas, ao abrirem para dentro, partiam os estores. Nas salas, não havia nem roupeiros para as gabardinas nem bengaleiros para os guarda-chuvas dos professores; só os alunos dispunham de cabides, mas em série. Por tudo isto se impôs maior rigor no projeto das Francesinhas II. No entanto, para não elevar a cércea do segundo edifício em relação ao primeiro, a volumetria manteve-se baixa.
Desde a origem, o edifício que mais atraiu as atenções gerais foi sempre o da Biblioteca Francisco Pereira de Moura. No seu interior ressalta o canal vertical de luz natural. Fazendo cedência ao traço moderno da arquitetura, a biblioteca exibe um ângulo demasiado bicudo, que desagrada pela agressividade. Este ângulo provoca um duplo efeito: de cunha, se visto do terreno, mas de tesoura, se visto do edifício. Quanto ao resto, a biblioteca resolve bem o declive existente no canto noroeste do terreno. Com efeito, o desnível era tal que levou à colagem de escadas externas, à maneira das escadas dos Maias ou dos Astecas. Por ironia nossa, elas ganharam o cognome de Escadas dos Incas. Embora íngremes, estas escadas ligam bem o declive da muralha e a forma edificada. Elas têm posto à prova a resistência física dos seus utentes, sobretudo do pessoal mais velho com excesso de peso. Após a execução do projeto, conta-se que Gonçalo Byrne visitou a obra, para ver como ela funcionava. Byrne teria ficado admirado pelo uso tão corrente daquelas escadas. Para ele, as escadas eram para ser apenas um anfiteatro ao ar livre.
Embora arrojado, o projeto ficou aquém pela não realização daquilo que tinha de melhor: a ligação entre o velho convento remoçado e as grandes massas dos três novos edifícios. Na maquete do projeto, tinham-se projetado dois níveis de alvéolos sobrepostos, a lembrar icónicos jardins suspensos. A obra ficou omissa destes. Em linha, eram dois conjuntos de gabinetes que cingiam o declive, cravados à esquerda e à direita da biblioteca, a meia altura, fazendo melhor ligação entre os desníveis do velho e do novo. Esta obra truncada faz crer, assim, que ainda não acabaram as operações estéticas no local.
11. Conclusão
Em 1346, Santa Brígida fundou a Ordem do Santo Salvador na Suécia. Nos séculos XVI e XVII, as lutas religiosas fecharam muitos conventos, inclusive o original na própria Suécia. As suas irmãs procuraram refúgio na Polónia e no Sul da Europa, porque ainda católicas. Em 1594, as brígidas chegaram a Lisboa, vindas de Inglaterra, em fuga àquelas lutas religiosas. Após breve passagem pelo Convento da Esperança, as inglesinhas instalaram-se no Mocambo. Após incêndio do mosteiro provisório, voltaram a instalar-se no Convento da Esperança, enquanto construíam o definitivo Convento das Inglesinhas. Mais tarde, por ação da abadessa madre Brígida de Santo António, as sucessoras portuguesas mudaram-se para outro convento, o então recém-construído Convento de Marvila. Por três séculos, as ordens religiosas perduraram em Portugal. Em 1834, por força das lutas liberais, um decreto régio suprimiu todas as ordens religiosas, tendo algumas delas abandonado o país. Em 1902, o Convento das Inglesinhas deixou de ser considerado um convento estrangeiro. Depois disso, o convento acolheu vários institutos de ensino, o último denomi-nado ISEG, então parte da UTL, hoje parte da Universidade de Lisboa.
Referências bibliográficas
Honrado, A. (2014). As Flamengas da Ordem das Clarissas. Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, nova série, n.º 44, disponível em:http://novaserie.revista.triplov.com/numero_44/alexandre_honrado/index.html. [ Links ]
História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa: Na Qual se Dá Notícia da Fundação e Fundadores de Instituições Religiosas, Igrejas, Capelas e Irmandades desta Cidade; com Biografias, Descrição de Ornatos e Imagens e Indicações acerca dos Seminários e Noviciados Estabelecidos em Lisboa (1972/1950), Tomo II. (1950). Lisboa: Imprensa da Câmara Municipal de Lisboa, Oficinas da Gráfica Santelmo.
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Pereira, L. G., & da Silva, A. V. (1927). Monumentos Sacros de Lisboa em 1833. Cap. V, pp. 232-235. Lisboa: Biblioteca Nacional. [ Links ]
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Notas
1Economista, arquiteto e doutor em Gestão.