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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher
versão impressa ISSN 0874-6885
Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher no.35 Lisboa jun. 2016
ESTUDOS
Prostituição feminismo e capitalismo no debate legalização vs. incriminação
Inês Ferreira Leite*
*Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, Lisboa, Portugal. inesfleite@fd.ul.pt
RESUMO
O presente estudo analisa sumariamente a evolução histórica e jurídica do exercício da prostituição em Portugal para contextualizar, à luz das argumentações feminista e capitalista, o debate em torno da criminalização do cliente ou da regulamentação da prostituição.
Palavras-chave Feminismo, capitalismo, prostituição, Direito Penal, Estado Social.
ABSTRACT
This study summarises the historic and legal evolution of prostitution in Portugal aiming to give context to the ongoing debate concerning the prohibition or legalization of prostitution. In the study are also analysed some of the more common arguments pro and against the legalization of prostitution in the light of the feminist movement and within a capitalist model of social and economic organization.
Keywords feminism, capitalism, prostitution, criminal law, welfare state.
1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DO EXERCÍCIO DA PROSTITUIÇÃO EM PORTUGAL
O exercício da prostituição não é considerado crime em Portugal. O art.º 169.º do Código Penal (CP) apenas incrimina quem “profissionalmente ou com intenção lucrativa fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição”. Na incriminação do lenocínio não se inclui aquele que se limita a viver dos ganhos da pessoa que se prostitui, ainda que com conhecimento da fonte dos rendimentos, o chamado “rufianismo”. Também não se encontra abrangido pela incriminação do lenocínio o cliente, uma vez que este, ainda que facilite ou favoreça o exercício da prostituição, não atua profissionalmente nem com intenção lucrativa. Existem duas situações em que é punido o cliente da pessoa que se prostitui. No contexto do tráfico de pessoas (art.º 160.º do CP) para fins de exploração sexual, a pessoa que se prostitui é intrinsecamente vítima, ou seja, encontra-se numa situação de sujeição (exploração) face a um agente que, para tal, recorreu a um mecanismo violento ou abusivo. Consequentemente, todo aquele que utilizar os serviços da vítima tendo conhecimento da situação de exploração ou sujeição da pessoa que se prostitui e que é, também, vítima do crime de tráfico de pessoas, estará a praticar um ato ilícito, incindindo a censura no aproveitamento do crime de outrem para benefício próprio com desconsideração dos bens jurídicos da vítima.
É igualmente punido o cliente da prostituição de menores, no art.º 174.º do CP, desde que o agente seja maior e a vítima seja menor entre os 14 e os 18 anos. A razão deste intervalo de idades encontra-se no facto de qualquer ato sexual praticado com ou em menores até aos 13 anos de idade ser sempre crime à luz do art.º 171.º do CP, pelo que se tornaria despicienda a inclusão na incriminação do cliente da prostituição de vítimas com idades inferiores a 14 anos. Num outro estudo sobre a liberdade sexual entendi que, quando se inseria um critério comercial na formação da vontade do menor para a prática de atos sexuais, haveria um abuso, por não ter ocorrido uma manifestação espontânea da vontade deste (Leite, 2003). Quando se trata de menor de 14 anos, o recurso à prostituição deste constitui um verdadeiro abuso sexual, pois a oferta de dinheiro ou de outras vantagens económicas corresponde a uma das formas que considero aptas para viciar ou corromper a vontade do menor, afastando o seu carácter livre e espontâneo. E mesmo quando se trate de menor que tenha entre 14 e 18 anos se poderá manter este fator de corrupção da vontade. Se até na tutela da liberdade sexual dos adultos se pretende garantir uma total liberdade e espontaneidade da formação e manifestação da liberdade sexual, admitindo-se que a interferência de terceiros com móbiles lucrativos seja apta a diminuir ou a eliminar a autonomia da vontade do adulto que se prostitui, maior proteção deverá ser concedida aos menores que, incentivados por razões pecuniárias – que não controlam e de que, naturalmente, não dispõem, – acabam por aceitar a prostituição. Perverso seria aceitar toda uma série de limitações impostas aos menores (e, em geral, aos jovens), que lhes coartam o livre acesso ao mercado de trabalho e à autossustentabilidade e, depois, deixá-los sem proteção quando estas mesmas limitações os conduzissem à “opção” pela prostituição.
2. ALGUNS ASPETOS SOCIOLÓGICOS DO EXERCÍCIO DA PROSTITUIÇÃO EM PORTUGAL
Na base da popular expressão de que a prostituição é a mais velha “profissão” do mundo, existem factos históricos que parcialmente comprovam a sua veracidade. Talvez não seja adequado chamar-lhe de profissão já que os primeiros fenómenos de prostituição surgem no contexto da escravatura, comum na Antiguidade Clássica (sobre a evolução da prostituição em Portugal desde as primeiras invasões bárbaras com destaque para a presença romana, v. Dufour & Pessoa, 1885; também, com menor detalhe, v. Cruz, 1841; D’Azevedo, 1864). Ora, neste contexto, ausente que estava qualquer dimensão de escolha ou autonomia da pessoa que se prostitui, a exploração sexual perde também autonomia, sendo apenas mais um dos aspetos da redução de uma pessoa à condição de escravo (D’Azevedo, 1864). Por outro lado, falar de prostituição nesta época é falar apenas da sujeição sexual da mulher face ao homem e da defesa do direito ao prazer do homem, já que pouca atenção era dada ao prazer da mulher, não dispondo esta, salvo raras exceções, de efetiva liberdade sexual (o bem jurídico tutelado nos crimes sexuais foi, até ao século XX, a honra da mulher virgem e honesta ou, mais precisamente, como esclarecia Santos, a honra do homem, 1925). Estas exceções eram ocupadas pelas cortesãs de alta sociedade ou de luxo que, tendo adquirido alguma riqueza própria, assim conquistavam alguma autonomia, podendo escolher os seus amantes. O exercício da prostituição de luxo – que alguns autores recusam, sequer, a qualificar como prostituição, por não haver uma exposição pública e indiferença face aos clientes (Cruz, 1841) – ou mesmo da que não era de luxo, foi durante muitos séculos um dos escassos espaços de autonomia e liberdade da mulher, que assim poderia gerir a sua vida e escolher os seus parceiros sexuais (por exemplo, sobre a realidade portuguesa, D’Azevedo, 1864). Sem dúvida, esta parca autonomia era obtida à custa de grandes sacrifícios: a perda da honra e da reputação, a exclusão social, e a exposição ao risco de violência ou à doença (D’Azevedo, 1864).
Durante a Idade Média, em Portugal, a prostituição vivia – um pouco como hoje – num limbo de repugnância, resultado da resignação perante a inevitabilidade do fenómeno e da tolerância, tendo em vista o que se supunha serem os benefícios da prostituição para a moderação dos apetites sexuais masculinos (Silva, 2007; Schouten, 2008). Coexistem, assim, em toda a época medieval, duas perspetivas radicalmente distintas sobre a prostituição: uma perspetiva que assume a narrativa oficial de incriminação e perseguição (Cruz, 1841); e uma narrativa mais próxima da realidade semiclandestina, que reconhece a enorme tolerância que lhe era devotada (Dufour & Pessoa, 1885; Schouten, 2008). Um dos pontos de viragem da abordagem sociológica e jurídica da prostituição surge com a criação do Conselho de Saúde Pública do Reino, em 1836 (Dufour & Pessoa, 1885 ). O Conselho solicita a Francisco dos Santos Cruz um estudo sobre a sífilis e o médico acaba por fazer um estudo aprofundado da prostituição como base de trabalho (citado por Cruz, 1841). Neste estudo, Cruz defende, como medida de saúde pública, a regulamentação (uma forma de legalização) do exercício da prostituição em Lisboa, servindo as suas propostas de base às leis e posturas que subsequentemente foram feitas nesse sentido.
Cruz identifica três categorias de prostitutas: as prostitutas de luxo, que vivem em boas casas e são frequentadas apenas pelas classes mais abastadas de Lisboa; as prostitutas comuns, de rendimentos medianos ou baixos, que vivem em casas modestas, geralmente sozinhas, ou em casas de passe, e que têm uma frequência mais abrangente; e as prostitutas de rua, que designa como a “porção mais miseravel e desprezivel desta gente, aquella, que de ordinario não he frequentada em Lisboa, senão pelos soldados, marujos, criados de servir; ellas so habitão as ruas da cidade mais retiradas, e immundas, e as lojas das mais nojentas casas” (Cruz, 1841). O autor refere ainda uma outra classe de prostitutas, que designa de “clandestinas”, e que seriam as mulheres que, tendo uma atividade lícita de fachada – criadas, engomadeiras, costureiras –, se dedicariam também à prostituição de modo mais reservado (Cruz, 1841; D’Azevedo, 1864; Pais, 1983). Notoriamente ausente do estudo de Cruz (e de vários outros estudos da época) encontra-se qualquer referência à condição de liberdade ou de autonomia das mulheres prostitutas. Em melhor posição veio a encontrar-se Tovar de Lemos, que dirigiu, durante as décadas de 20, 30 e 40, o Serviço de Inspecção de Toleradas do Dispensário de Higiene Social de Lisboa. Tovar de Lemos produziu vários relatórios estatísticos sobre a prostituição registada em Lisboa, indicando como causas da prostituição a sedução, o abandono e a ostracização social, e a pobreza (1908). Contudo, nem mesmo este autor escapa ao preconceito moral e biológico, afirmando a certa altura que “as filhas das classes pobres, em geral, nascem taradas” (1908).
O estudo de Cruz é precursor dos regulamentos sobre o exercício da atividade da prostituição e da chamada “fase da tolerância” (Guinote, 2015). Entre o final do século XIX e meados do século XX, convivem duas conceções sobre a natureza da prostituição e inicia-se o confronto entre duas perspetivas sociais sobre o tratamento jurídico da prostituição. Existem duas perceções distintas, por vezes cumulativas: a perceção que atribui toda a responsabilidade da prostituição à devassidão da mulher libertina que se prostitui (Cruz, 1841; Lúcio, 1887); e a perceção que aponta como causas principais da prostituição a pobreza e a exclusão social (Lemos, 1908), sem se livrar, porém, de um profundo juízo moral de censura sobre a libertinagem que incide quase exclusivamente sobre a mulher e é muitas vezes desculpabilizador do comportamento do homem (D’Azevedo, 1864; Gião, 1891; criticamente, Silva, 2007), apontado como o verdadeiro sexo frágil. No que concerne à solução para a prostituição, a época de tolerância, utilidade e isolamento, correspondente ao final do século XIX, muito motivada por razões médicas e de saúde pública (Cruz, 1841; D’Azevedo, 1864); alertando para as “metáforas” da saúde e realçando a finalidade de isolamento da imoralidade para não contaminação da restante sociedade (v. Silva, 2007), e que nunca se livrou de uma profunda censura e repugnância moral em torno da prostituição, vai progressivamente originar um movimento antagónico que propugna a total eliminação e repressão da atividade (Silva, 2007; Guinote, 2015).
Em 1926, realiza-se o primeiro Congresso Abolicionista Português, organizado pela Liga Abolicionista Portuguesa em colaboração com o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (Alves, 2009), tendo o seu Presidente apresentado uma tese em que defendia a proibição da prostituição, intitulada “Abolição do Registo Policial das Meretrizes” (Brazão, 1926). A contestação ao modelo da tolerância e regulamentação não é inédita. Já em 1895, no Congresso Católico Internacional de Lisboa, José de Saldanha Oliveira e Sousa havia proferido um apaixonado discurso a favor da proibição da prostituição, intitulado “A escravatura branca” (Sousa, 1896). Com o Estado Novo, vai ganhando força a perspetiva que encontra na prostituta uma chaga social – e não o resultado das desigualdades –, uma força perversa que coloca em causa a moralidade do regime, perspetiva que vai culminar com a proibição de 1962 (Alves, 2009). A nova legislação abolicionista de 1962 incrimina, para além das condutas que se integram no conceito de lenocínio, e que já eram alvo de censura penal, todos os que intervenham, com fins lucrativos, na prostituição, o que permitia punir o cliente e a própria pessoa que se prostitui (Silva, 2007) e encher as prisões de mulheres que, de repente, ficaram sem sustento e sem alternativas (Guinote, 2015).
Desde 1962 que o exercício da prostituição vive na clandestinidade em Portugal, embora, em 1982, se tenha descriminalizado a conduta da prostituta e do cliente. A prostituta não é punida, mas qualquer pessoa que contribua para o exercício da prostituição – mal ou bem, com boas ou más intenções –, organizando o trabalho, fornecendo um local, angariando ou controlando clientes (desde que, pelo menos a partir de 2001, tenha intenção lucrativa ou atue profissionalmente), fica sujeita à pena. Esta forma de abolicionismo não tem, contudo, surtido qualquer efeito útil na eliminação efetiva da prostituição. A prostituição manteve-se ativa nas décadas de 60 e 70, apesar dos esforços moralizadores do Estado Novo (Alves, 2009), tendo vindo até a florescer, de acordo com alguns estudos, através do fenómeno das casas de alterne (Guinote, 2015). Nas décadas de 80 e 90, a prostituição de rua estava principalmente associada à toxicodependência (Costa, 1983), mas estudos mais recentes apontam para uma maior diversidade de razões para este tipo de prostituição (Santos, 2007).
O desenvolvimento de redes nacionais e internacionais de tráfico de mulheres para exploração sexual veio alterar radicalmente o quadro da prostituição em Portugal. O tráfico corresponde a um verdadeiro negócio internacional, altamente organizado, cujo modus operandi segue uma linha de exploração da pessoa traficada através da coação, do engano, da subtração de elementos de identificação, entre outras (Alberto, 2012). Assim, por exemplo, a presença de mulheres migrantes na prostituição de rua registou um aumento, sendo que estas mulheres – quando comparadas com as nacionais nas mesmas condições – manifestam idades mais jovens, atuam de modo transitório (é comum estarem pouco tempo em cada cidade ou país, sendo regularmente “transferidas”) e revelam em maior número indícios de controlo ou coação (Santos, 2007). Por outro lado, os novos métodos de angariação de clientes – através das novas tecnologias – trouxeram, aparentemente, uma maior flexibilidade para o exercício da prostituição (Alberto, 2012), embora tornem também muito mais difícil a compreensão mais imediata e visível do seu contexto.
3. O DEBATE INCRIMINAÇÃO VS. LEGALIZAÇÃO
À LUZ DAS NARRATIVAS FEMINISTA E CAPITALISTA
A necessidade de combater o tráfico de pessoas para exploração sexual coloca o legislador e decisor político nacional num dilema no que concerne às melhores respostas para a atividade da prostituição. Uma vez que a prostituição se confunde com o tráfico de pessoas, a regulamentação da prostituição pode ser percebida como tolerância face ao tráfico e consequente desrespeito pelas obrigações internacionais de criminalização. Por outro lado, optar pela regulamentação (legalização) da prostituição apenas se torna uma solução admissível (válida, à luz do direito interno e internacional) quando permita, pelo menos, manter os atuais índices de eficácia no combate ao tráfico e a todas as fontes de exploração das pessoas que se prostituem.
Em contrapartida, a clandestinidade é madrinha da corrupção e do abuso, pelo que o legislador, ao remeter certas atividades – e correspondentes grupos sociais – para a clandestinidade, é devedor de uma séria ponderação e fundamentação. Para as prostitutas, a clandestinidade é ainda hoje, como já o era nos tempos da Lisboa boémia da transição para o século XIX (Pais, 1983) e durante o Estado Novo (Alves, 2009), fonte, per se, de tratamento abusivo e arbitrário por parte das autoridades (Silva, 2007). Por outro lado, além dos casos óbvios em que se justifica a incriminação, existem outras esferas em que a prostituição assume a natureza de uma violência imposta à pessoa que se prostitui. Não basta garantir que a pessoa que se prostitui não integra uma rede de tráfico de pessoas ou uma associação marginal de organização, sob a forma de exploração, da prostituição para que se possa concluir pela liberdade no exercício desta. Como notam alguns estudos, e sabendo que a maioria destes casos dizem respeito à prostituição feminina, em certos contextos, a prostituição é uma extensão da violência doméstica e do abuso. Algumas das mulheres que se prostituem são, efetivamente, vítimas de violência doméstica, sendo por vezes coagidas à prostituição, tendo o companheiro – que, nestes casos pode ser qualificado como proxeneta ou chulo e estará abrangido pela incriminação do lenocínio – um forte controlo sobre os rendimentos da atividade (Santos, 2007).
A pessoa que se prostitui, ainda que não esteja integrada em qualquer rede ou máfia tendente à sua exploração, encontra-se sujeita aos seguintes riscos e efeitos adversos: vê vedada qualquer forma de organização lícita da atividade da prostituição, podendo apenas exercê-la sozinha, por sua exclusiva conta e risco; encontra-se fora do sistema, sem reconhecimento oficial da atividade que exerce e alvo de um forte estigma de censura e discriminação; encontra-se sujeita a atividades arbitrárias por parte das polícias, pois, embora a sua atividade não seja ilícita, corresponde ao núcleo aglutinador de diversas atividades ilícitas e punidas (lenocínio, tráfico de pessoas, tráfico/ consumo de estupefacientes), o que surge como pretexto para atividades policiais de detenção e identificação (Silva, 2007); encontra-se em perigo de sujeição a organizações criminosas que se dedicam à exploração da prostituição ou ao tráfico de pessoas; encontra-se em risco de associação a outras formas de criminalidade; encontra-se exposta a diversas fontes e formas de violência (social, doméstica, policial, física ou psicológica por partes dos clientes), sendo menos provável que, por força do estigma e da potencial exclusão social, peça a ajuda ou recorra às autoridades (face à perceção de ilegalidade da mulher prostituta, v. Magalhães, 2006).
O debate incriminação vs. legalização tem-se centrado em duas linhas dicotómicas de argumentação: uma linha feminista mais paternalista vs. uma linha feminista liberal; uma linha capitalista liberal vs. a linha do Estado social. Para quem defende a incriminação, trata-se acima de tudo de dar um passo além face à atual legislação, prevendo-se também a incriminação do cliente (mas nunca da pessoa que se prostitui); para quem defende a descriminalização, há quem sustente o vazio legal (descriminalização do lenocínio sem exploração, ou seja, eliminação do n.º 1 do art.º 169.º do CP), e há quem defenda a efetiva regulamentação da atividade. Importa ainda esclarecer que, na minha perspetiva, existem obstáculos constitucionais a certos aspetos destas duas correntes. No que respeita à incriminação do cliente, a mesma seria inconstitucional sempre que se demonstrasse que a pessoa que se prostitui é adulto maior e que fez uma opção consciente, livre e informada pelo exercício da prostituição, por violação do princípio da proporcionalidade (necessidade e fundamento da aplicação da pena ao cliente), constante do n.º 2 do art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) (Leite, 2011).
No que respeita às opções de descriminalização e regulamentação, penso ser importante tecer uns breves esclarecimentos prévios. Mesmo no atual contexto legal, nos casos de lenocínio que cabem no n.º 1 do art.º 169.º (não há qualquer abuso, coação, violência, …) em que está em jogo a exploração económica por terceiro do exercício da prostituição, não se deve prescindir de uma efetiva exploração da pessoa que se prostitui. Veja-se que a “exploração” é sempre eticamente censurável, estando incluídos no próprio significado da palavra os conceitos de “tirar proveito de”, “especular com” e “abusar”. Aliás, o Estado português censura e procura restringir o ato de “explorar” em quase todos os setores da atividade, estabelecendo valores mínimos para a retribuição laboral – evitando a “exploração da mão-de-obra” – e valores máximos para o ganho do capital (juro) – evitando a “exploração das necessidades económicas”. Pelo que, tratando-se o exercício da prostituição, de uma atividade económica que se prende com uma das esferas mais sensíveis da intimidade humana e que mais consequências pode ter ao nível do saudável desenvolvimento da personalidade e de uma plena integração na sociedade, não será absurdo que o Estado tenha o dever de promover – ativa e positivamente – a garantia de que a decisão de se prostituir é tomada livremente e com toda a autonomia.
A partir do momento em que o Estado recusa regulamentar o exercício da prostituição, optando por incriminar as condutas relacionadas com o aproveitamento de terceiros, está a qualificá-la como algo de indesejável, que deve ser eliminado da sociedade. Porém, a censura da prostituição, como atividade consciente e voluntária de alguém livre e maior de idade, não encontra reflexos fortes na nossa sociedade e não é certo que a incriminação promova uma maior proteção ou segurança das pessoas que se prostituem. Ao envolver o exercício da prostituição numa “redoma de clandestinidade”, incriminando todas as esferas de contacto com a mesma, o Direito promove um efeito de “contaminação de ilicitude” que, embora aparente deixar de fora a própria pessoa que se prostitui, acaba por se estender a esta, marcando-a com os seus efeitos de exclusão da sociedade (Lavaud – Legendre, 2009; Silva, 2007), relegando-a para as faixas criminógenas da população. Deste modo, a pessoa que se prostitui mais facilmente se identificará com as “franjas da sociedade” e mais dificilmente se identificará como um ser humano plenamente digno. Para além disso, quer a ausência da regulamentação, quer o efeito de contaminação irão, em contrapartida, deixar o espaço do exercício da prostituição livre para a intervenção de agentes ou de associações criminosas, o que vem aumentar os fatores de risco para as pessoas que se prostituem. Fatores de riscos estes que estão, precisamente, sociologicamente associados à “exploração” profissional ou com fins lucrativos da prostituição de outrem que entendo estar incriminada no n.º 1 do art.º169.º do CP.
Na minha perspetiva, o Estado tem apenas duas opções: ou regulamenta, alterando o paradigma da incriminação do lenocínio para um paradigma de proteção da pessoa que se prostitui (concentrando-se na fiscalização dos operadores que lucram com a prostituição) ou mantém as incriminações tal como estão (admitindo-se a interpretação restritiva aqui sugerida). Tratar o exercício da prostituição como um espaço completamente livre de Direito não é uma opção viável ante o dever de proteção da liberdade sexual das pessoas que se prostituem, a qual está sociologicamente em risco de uma forma substancial sempre que exista uma intervenção organizada e economicista por parte de terceiros (Leite, 2011).
E qual o papel dos discursos feminista e capitalista neste debate?
O discurso feminista apresenta duas variantes. Existe uma tendência feminista, talvez mais paternalista, que é abolicionista e defende atualmente a incriminação do cliente (sobre as abordagens feministas da prostituição, v. Scoular, 2004; Tavares, 2012). Já no texto A Escravatura branca lê-se o seguinte:
Pode dizer-se que a mulher foi o primeiro ser humano, que conheceu a escravidão, e pôde acrescentar-se que foi escrava ainda antes de haver escravatura. (…) Uma escravidão, que dura centenares de anos, torna-se um habito, e a hereditariedade e a educação fazem que as duas partes interessadas considerem a escravatura da mulher como uma cousa natural. (…) Toda a opressão tem por ponto de partida a dependência económica, em que o opprimido se encontra com relação ao opressor. É o que se tem dado com respeito à mulher (…) (Sousa, 1896, pp. 8-9).
Encontram-se neste texto os alicerces do atual discurso feminista (exemplarmente, v. Jeffries, 2008): a centenar dependência económica e social da mulher face ao homem não permite que se fale de livre opção pela prostituição; a desigualdade da mulher no acesso ao mercado de trabalho e na remuneração salarial reforça, ainda atualmente, a tendencial desigualdade e dependência da mulher, pelo que esta não é verdadeiramente livre de optar pela prostituição, por falta de alternativas; uma mulher sozinha com filhos para criar – e são, ainda hoje, as mulheres quem mais fica sozinha com filhos para criar – dificilmente encontra alternativas viáveis à prostituição (à época, este argumento era demolidor, pois associava-se ao estigma social e ostracismo que visava qualquer mulher solteira que engravidasse); a prostituição, como uso da supremacia económica masculina sobre a integridade sexual da mulher, não pode ser vista de outro modo salvo como opressão masculina.
A linha feminista mais paternalista – se bem que partindo de pressupostos corretos – apresenta algumas limitações: exclui de modo dogmático que a prostituição possa ser uma opção livre da mulher (recorrendo a uma visão estereotipada da prostituta, v. Silva, 2007; Schouten, 2008); exclui do discurso a prostituição masculina. Estas duas falhas são importantes e fragilizam a defesa da restante argumentação. O que parece inevitável concluir – face aos vários estudos empíricos e sociológicos sobre prostituição – é que, apesar de haver, principalmente no contexto do tráfico, um grande número de pessoas que se prostituem em situação de exploração, existem também pessoas que se prostituem livremente, ou seja, como resultado de uma verdadeira escolha. Ao negar esta realidade, o feminismo apenas encontra duas vias de racionalização: ou entende que a prostituição é um mal e uma indignidade, pelo que nunca pode ser o exercício de uma liberdade; ou reduz a prostituição ao domínio masculino sobre a mulher e exclui definitivamente a prostituição masculina do seu discurso. A primeira via é a seguida pelo nosso Tribunal Constitucional quando relaciona a dignidade da pessoa humana com a incriminação do lenocínio. A segunda via é seguida por alguns estudos feministas sobre a prostituição que, reconhecendo, e bem, as condições sociais de exclusão que motivam, em muitos casos, a opção pela prostituição, reduzem este conflito à desigualdade de género, eliminando qualquer referência à prostituição masculina (admitindo esta falha nos estudos feministas, v. Jeffries, 2008).
Contra esta linha feminista surge por vezes uma argumentação capitalista liberal pró legalização, que assenta nos seguintes pressupostos: nega o peso da história e da cultura na desigualdade de género, pretendendo tratar de modo neutro e absolutamente igualitário o homem e a mulher que se prostituem; abstrai-se das condições sociais, da pobreza ou da exclusão social para qualificar certa opção como livre escolha; assenta a defesa da descriminalização num pressuposto dogmático de liberdade e responsabilidade individual, invocando o direito à livre escolha da profissão por parte de quem explora profissionalmente a prostituição de outrem; e apela à descriminalização (e potencial regulação, pelo menos no âmbito fiscal) realçando a contribuição fiscal que se poderia obter através dos lucros, atualmente ilícitos, da prostituição. Esta argumentação capitalista linear apresenta também falhas e contradições. Desde logo, não é possível avaliar uma forma de relacionamento social que maioritariamente envolve os dois sexos (homem e mulher) e a sexualidade sem considerar as tradições socioculturais, o papel da mulher e do homem face à sexualidade e a desigualdade de género. De modo semelhante, não é possível avaliar a medida de liberdade da pessoa que se prostitui sem ponderar a existência de alternativas viáveis de sobrevivência. Ora, num contexto social de impedimento ou exclusão das mulheres do mercado de trabalho (ou, ainda atualmente, se pensarmos nas mulheres que foram excluídas do ensino, têm baixas qualificações e apenas terão acesso a empregos de muito baixos salários), de estigma e exclusão social das mulheres não casadas que tenham filhos (atualmente, não será tanto o estigma mas a pobreza e a exclusão social relativa, já que uma mulher solteira de baixas qualificações com filhos e sem um forte suporte familiar dificilmente consegue manter um trabalho bem remunerado, sendo certo que são mais as mulheres que ficam com o encargo dos filhos e que estão mais expostas ao abandono familiar), não se pode seriamente falar de liberdade ou de escolha pela prostituição.
Contra esta linha capitalista liberal, há uma linha moderada, dentro da social-democracia, que reconhece que sem Estado social não há liberdade. Esta perspetiva dá a devida relevância aos condicionamentos económicos, sociais e culturais (sobre estes, com especial interesse, v. Maggie O’Neill, 2001), partindo de níveis distintos de liberdade (Leite, 2011): uma liberdade mais estrita, como mera determinação do sentido da vontade, resultado da ausência de fatores imediatos de coação (engano, abuso, violência, ameaças); e uma liberdade mais ampla ou compreensiva, que integra a liberdade de construção do sentido da vontade e pressupõe a existência de alternativas igualmente viáveis para a realização da personalidade. Ora, para que haja liberdade na dimensão mais compreensiva, não basta a ausência de fatores imediatos de coação ou abuso, é necessário que o exercício da prostituição não corresponda ao desfecho inevitável de um percurso de vida socialmente condicionado e culturalmente esperado (neste ponto, dou parcialmente razão à perspetiva do EWL 1 quando define a prostituição como um fenómeno social, mais do que uma opção individual). Porém, noto que é precisamente em países onde existe um bom modelo de Estado social que as soluções abolicionistas têm ganhado mais adeptos (Suécia, Noruega, Islândia), o que pode ser relevador do caráter ideológico destas opções.
Existem feminismos mais liberais que aceitam que a prostituição possa ser uma verdadeira opção de mulheres e homens e que têm apoiado as iniciativas dos trabalhadores sexuais (Tavares, 2012). Para estas linhas feministas, a descriminalização da prostituição não implica a negação das condições socioculturais de domínio masculino nem da desigualdade de género. Também não implica um “prémio aos traficantes de pessoas”, já que os defensores da via legalizadora aceitam que existem diferenças entre tráfico de pessoas (que deve ser crime) e a prostituição. Se para alguns feminismos a prostituição (da mulher) é fruto da sua condição de submissão e sujeição perpétua aos apetites e dominação masculinos, para outros feminismos, é na identificação da prostituição como um comportamento desviante que se encontra o domínio masculino, revelado pela necessidade de controlo e fiscalização da sexualidade da mulher (Silva, 2007). Exemplo da categorização da mulher rebelde como prostituta como forma de controlo da sexualidade feminina encontra-se na figura mítica de Safo. Não podendo ignorar o conteúdo erótico dos poemas de Safo ou as alusões aos seus romances ou aventuras sexuais, o patriarcado moralizador encontra uma solução, classificando a poetisa como cortesã (por exemplo, em Cruz, 1841; D’Azevedo, 1864) ou, numa outra variante, como dona de uma casa de prostitutas (Costa Santos, n. d.). Reduzir Safo à qualidade de cortesã permite alcançar dois objetivos fundamentais (DeJean, 1989): relativiza o valor histórico e artístico de Safo; e torna irrelevante a sua audácia ou liberdade sexual, pois, tratando-se de uma prostituta, as aventuras de Safo foram menos o exercício de uma autonomia e liberdade – impensáveis, para uma mulher – e mais a submissão à satisfação do homem. A prostituta – enquanto devassa que seduz o homem – representa uma ameaça constante à ordem natural da sociedade, na qual ao homem pertenceriam a rua e a liberdade, e à mulher a casa e a maternidade. Por exemplo, no texto A escravatura feminina (n.d.), de Maria O’Neill (mulher e feminista) – no qual a autora procura alertar para os perigos da educação libertina e ausente de deveres que era dada aos homens, em contraste com a educação dada às mulheres – encontramos, apesar da boa intenção, uma perspetiva moralizadora sobre o papel da mulher na sociedade, surgindo a prostituição como negação do equilíbrio e da ordem natural social.
Embora não existam, em Portugal, estudos abrangentes ou inquéritos sobre as preferências das pessoas que se prostituem, existem indícios de que estas veem de modo negativo o estatuto de clandestinidade (real ou imaginado) (Magalhães, 2006) e que muitas se mostram favoráveis a soluções de legalização (Leite, 2015). Em qualquer caso, esta preferência pela legalização dependerá do tipo de regulamentação e da garantia de anonimato, que parece ser um fator crucial para muitas das pessoas que exercem a prostituição (Santos, 2007). Sendo certo que não pode ser aceite a perspetiva feminista ou moralizadora que encontra em toda a pessoa que se prostitui uma vítima, existem duas nuances nesta questão que devem ser ponderadas. Por um lado, verifica-se uma certa resistência à caracterização como vítima por parte da pessoa que se prostitui, mesmo quando, objetivamente, se encontra numa situação de exploração. Esta reação – sendo por vezes descrita como desdém (Alves, 2009) – é explicada em alguns estudos como resultado da fraca perceção da exploração (Prostitution in the Netherlands in 2014), mas pode também dever-se a uma reação à generalização do estatuto de vítima, com a correspondente eliminação dogmática, desconsideradora da individualidade de cada pessoa que se prostitui. Se, por um lado, é importante manter critérios objetivos (que não se limitem ao consentimento) para delimitar o conceito de “vítima de prostituição”, por outro lado, a redução de toda e cada pessoa que se prostitui à categoria de vítima pode ser contraproducente, por promover a dessensibilização social face à verdadeira vitimização social e à dissociação por parte de efetivas vítimas.
Há uma reflexão incontornável no debate sobre a prostituição que traz o feminismo para o centro da discussão: não podemos falar de paridade no exercício da prostituição. Infelizmente, a discussão sobre a prostituição é ainda e principalmente uma discussão sobre a igualdade de género. Quando comparamos a vivência da pessoa que se prostitui nos dois contextos – prostituição feminina (ou masculina homossexual) e prostituição masculina (clientes mulheres) –, por exemplo, comparando a série “Gigolos” e os vários documentários sobre mulheres que se prostituem, encontramos dois mundos radicalmente diferentes, mesmo quando incluímos as acompanhantes de luxo. Os homens gigolôs têm orgulho do que fazem e são apreciados pelas mulheres clientes que os procuram. Raramente ficam expostos ao perigo ou à violência (embora haja o risco, claro, mantendo em perspetiva que este é um reality show editado). Nas histórias das mulheres que se prostituem (e em muita da prostituição masculina homossexual) estão esmagadoramente presentes o medo, o risco, a violência, a violação, a humilhação, o isolamento, a solidão decorrente do estigma social (sobre esta questão, comparando apenas a prostituição hetero e homossexual, v. Jeffries, 2008).
Não sendo correta qualquer associação inevitável entre feminismo ou capitalismo e a defesa de uma solução de incriminação ou legalização, o debate deverá libertar-se de postulados dogmáticos e ideológicos e concentrar-se no respeito pelos valores constitucionais assumindo como finalidade a proteção de bens jurídicos. Relevante é saber se a proteção dos bens jurídicos da pessoa que se prostitui apenas é compatível com uma opção incriminadora ou se, pelo contrário, poderão ser encontradas soluções mais eficazes através da legalização e regulamentação. Contudo, porque qualquer solução de política criminal não pode abstrair-se da realidade sociocultural que pretende regular, as perceções da sociedade portuguesa sobre sexualidade, prostituição e desigualdade de género não podem estar ausentes, quer do debate, quer das soluções legislativas.
4. ALGUMAS EXPERIÊNCIAS DO DIREITO COMPARADO
No debate sobre eficácia e proteção são relevantes dois exemplos paradigmáticos do Direito comparado: a Suécia e a Nova Zelândia. A Suécia foi um dos primeiros países europeus a incriminar a prostituição (em 1999) e apresenta os seguintes resultados (Prostitution in Sweden, 2014) 2: diminuição (para cerca de metade) da prostituição de rua; aumento da percentagem de mulheres estrangeiras traficadas para fins de exploração sexual em território sueco, manutenção dos dados gerais sobre prostituição (fora do contexto da rua). A incriminação do cliente na Suécia teve apenas um efeito útil imediato: a “limpeza” de parte da prostituição de rua. Curiosamente, também na Holanda, que adota uma solução de legalização, houve uma quebra acentuada da “prostituição de rua” (“window brothels”), pois em 2006 haveria 507 “janelas” licenciadas, para apenas 195 em 2014 (Prostitution in the Netherlands in 2014, 2014 3). Em contrapartida, parece que as condições de vida de quem exerce a prostituição pioraram significativamente na Suécia (Levy, 2014), havendo dados mais animadores da realidade holandesa (Prostitution in the Netherlands in 2014, 2014). Analisando os dados dos dois relatórios, verifico uma vantagem comparativa importante: há uma maior facilidade de obtenção e compreensão dos dados reais quando se adota uma solução de legalização ou regulamentação. Verifico também que a legalização não implica a eliminação de toda a clandestinidade, havendo fatores estranhos à política-criminal com relevância, principalmente, no que toca ao tráfico de pessoas e à prostituição de menores. Tanto na Suécia (Prostitution in Sweden, 2014) como na Holanda (Prostitution in the Netherlands in 2014, 2014), aumentou o número de mulheres estrangeiras na prostituição, o que parece coerente com o facto de se tratar de países de destino para migrantes económicos. Este aumento contradiz, porém, a ideia de que a proibição seria um mecanismo efetivo de combate ao tráfico de pessoas.
A prostituição foi legalizada na Nova Zelândia em 2003, tendo vindo a ser seguida uma abordagem multidisciplinar abrangente da prostituição, cuja finalidade é a melhoria das condições de vida e de exercício da atividade. De acordo com os relatórios oficiais, a legalização não implicou qualquer aumento real da prostituição, nem sequer da prostituição de menores ou de pessoas mais jovens, embora também não tenha havido qualquer diminuição da mesma, o que parece apontar para alguma irrelevância das políticas criminais no número de pessoas que se prostituem. A grande vantagem – tal como referida nos relatórios oficiais – da solução neozelandesa reside na melhoria dos direitos da pessoa que se prostitui, que mais facilmente recorre às autoridades e à justiça para fazer valer os seus direitos, encontrando-se, de modo global, mais protegida (Report of the Prostitution Law Review Committee on the Operation of the Prostitution Reform Act 2003, 2008) 4.
5. CONCLUSÕES
Analisados os dados estatísticos e sociais relativos à prostituição em Portugal e nos modelos comparados de proibição e legalização, existem algumas conclusões que me parecem pertinentes:
a) o modelo português de incriminação de todas as esferas da prostituição (deixando a salvo apenas a prostituta e o cliente), sendo um modelo comum de ausência de tomada de posição sobre a prostituição, parece ser o menos eficaz, quer no controlo da prostituição e do tráfico de pessoas, quer na proteção da pessoa que se prostitui;
b) o modelo sueco da incriminação do cliente, embora eficaz na diminuição da prostituição de rua, não se revela verdadeiramente eficaz na redução do fenómeno global da prostituição, nem sequer como eficaz na redução do tráfico de pessoas, mesmo no que diz respeito a países destino de mulheres traficadas;
c) o modelo da legalização não acarreta uma diminuição sensível do exercício da prostituição, mas não é incompatível com a diminuição progressiva do seu exercício, sendo antes determinantes outros fatores políticos, sociais e económicos;
d) o modelo sueco da proibição releva-se contraproducente na proteção da pessoa que se prostitui, uma vez que, não conseguindo eliminar efetivamente a prostituição, remete a pessoa que se prostitui para a clandestinidade;
e) as pessoas que se prostituem são tendencialmente favoráveis a modelos de legalização, mas veem com desconfiança a regulamentação excessiva do exercício da prostituição, preferindo um modelo de reconhecimento de direitos e de proteção da pessoa que se prostitui, sendo fator decisivo o garante do seu anonimato;
f) o sucesso de qualquer modelo de legalização depende de vários fatores: a forma de regulamentação, a caracterização socioeconómica do país, a vulnerabilidade do país ao tráfico de pessoas, a perceção social da prostituição;
g) orientar o debate em torno da legalização/incriminação de acordo com critérios puramente médicos (controlo da saúde pública) ou capitalistas (regulamentação do negócio e ganhos fiscais) não é conducente a soluções de maior respeito pela autonomia e dignidade da pessoa que se prostitui.
Paralelamente ao debate sobre a legalização, surge uma questão também incontornável: podemos tratar a prostituição como se fosse qualquer outro negócio? Uma solução de liberalização sem regras apertadas ou controlo estatal é adequada? A minha resposta tem de ser negativa. A prostituição não pode ser tratada como qualquer outro negócio porque não é socialmente vista como tal, nem é sentida como tal por muitas das pessoas que se prostituem. A mera liberalização sem regras não é adequada para proteger a pessoa que se prostitui. O estigma associado à prostituição, a desigualdade de género, e séculos de marginalização em torno desta atividade têm criado fortes relações entre a organização profissional da prostituição, o tráfico de pessoas, e as associações criminosas. Se já há um forte risco de exploração em outras áreas profissionais em que os trabalhadores são tendencialmente mais fracos do que os empregadores, este risco é muito mais elevado na prostituição e não pode ser tolerado. Pelo que qualquer solução de legalização deve ser cuidadosamente refletida e ponderada, devendo eleger, como objetivo central, a proteção dos direitos da pessoa que se prostitui.
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3 http://www.government.nl/documents/reports/2015/06/01/prostitution-in-the-netherlands-in-2014"reports/2015/06/01/prostitution-in-the-netherlands-in-2014
4. http://www.justice.govt.nz/publications/publications-archived/2005/the-sex-industry-in-newzealand-a-literature-review