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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.36 Lisboa dez. 2016

 

LEITURAS

Batista, V. (2016). Proteção e direitos das mulheres trabalhadoras em Portugal, 1880-1943. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 507 pp.

Ana Maria Pessoa*

*Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de Educação

ana.pessoa@ese.ips.pt


 

O livro de Virgínia Batista sobre a Proteção e direitos das mulheres trabalhadoras em Portugal, 1880-1943, publicado em fevereiro de 2016, pela Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, é a proposta de divulgação, para um público mais alargado, da tese de doutoramento em História Moderna e Contemporânea. Defendida pela autora, há três anos, no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – Instituto Universitário de Lisboa, foi premiada, em 2015, com o prémio António da Silva Leal, criado para obras que se destaquem no âmbito da segurança social e de solidariedade. No presente ano de 2016 a mesma obra foi também distinguida com o Prémio Maria Lamas de Estudos sobre a Mulher, Género e Igualdade, atribuído pela Câmara Municipal de Torres Novas.  

Já na tese de mestrado, publicada, em 1999, pela então Comissão para a Igualdade dos Direitos das Mulheres (CIDM), a investigadora havia analisado o papel das Mulheres no Mercado de Trabalho em Portugal, entre 1890 e 1940. No texto agora tornado público aprofundou o que então já havia estudado nas áreas do trabalho feminino, das representações e quotidianos femininos e dos cuidados materno-infantis. Um dos mais interessantes aspetos desta obra é o facto de contribuir para o conhecimento das diversas formas de proteção que, ao longo do período escolhido, vão ser instituídas (mesmo que nem sempre concretizadas) nas áreas da proteção social e da saúde das mulheres das classes trabalhadoras.

A opção pela enumeração, leitura e análise das medidas tomadas, ao longo de mais de meio século, em relação à proteção das mulheres mais desfavorecidas – sejam elas as operárias, as vendedoras, as peixeiras, as amas-de-leite, as jornaleiras ou outras do mesmo nível social – leva a autora a estudar, de forma bem interessante, as questões conceptuais que foram justificando tais medidas. É feito um bom trabalho de estudo e caracterização dos diversos conceitos de solidariedade em confronto e do conceito de caridade que, tanto em organizações públicas como privadas, assim como a nível de iniciativas de associações mutualistas, muitas vezes presidiram, durante aquele período de tempo (e até mesmo na atualidade…), às medidas tomadas nas áreas da assistência e da previdência social.

Este trabalho identifica em pormenor, para o período estudado, as leis sobre a proteção do trabalho das mulheres e da maternidade, e enumera e estuda algumas das mais significativas instituições que se centraram nos cuidados materno-infantis a desenvolver junto das mães trabalhadoras e das crianças em Portugal.

Algumas instituições especificamente vocacionadas para a proteção/apoio às mães e às crianças (como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa), diversas maternidades públicas (como a Enfermaria de Santa Bárbara) e privadas (como a Maternidade da Companhia dos Tabacos), bem como as políticas de certas associações privadas, caritativas e assistenciais ou mutualistas (como a Associação Protectora da Primeira Infância, a Associação Montepio Geral e a Associação dos Empregados do Comércio de Lisboa) são analisadas nesta vertente da proteção materno-infantil.

O estudo investiga ainda um caso específico – o Bairro de Xabregas, na zona oriental de Lisboa, então habitado pelo operariado que rumara do campo à capital em busca de melhores condições de vida. São caracterizadas algumas das instituições que tentavam mitigar as difíceis condições de vida das mulheres e das crianças que aí residiam. Incluem-se neste grupo alguns lactários, creches fabris, a Cozinha Económica e o Centro Maternal e Infantil Fundação Júlia Moreira.

O livro tem de ser visto pelas suas inúmeras linhas de força, desprezando as (poucas) fragilidades, que decorrem, sobretudo, da dificuldade de encontrar (porque muito disperso e inacessível, em alguns casos), de analisar (num período temporal extenso) e de refletir (sem poder socorrer-se de estudos semelhantes, porque ainda inexistentes em História Contemporânea e das Mulheres) sobre o enorme acervo documental que se propõe analisar.

Um dos contributos mais importantes e originais deste estudo é a forma como, a partir de um olhar de género, assumidamente feminista, e de um olhar de classe, assumidamente a partir de baixo, no que às mulheres trabalhadoras diz respeito, a autora analisa as relações do Estado e de algumas instituições privadas na proteção social às mulheres, sobretudo na forma assistencial e encarando a maternidade quase sempre como uma doença de que era necessário protegê-las.

Este estudo abarca um tempo longo (Monarquia, República e Ditadura), entre 1880 e 1943, ou seja, desde as primeiras tentativas de legislar sobre o trabalho das mulheres e de criar instituições de apoio à maternidade até à instituição, em 1935, do sistema de previdência corporativa.

Outro ponto forte é a constatação de que, na maioria das instituições de previdência privadas analisadas, sobretudo nas associações mutualistas, as mulheres têm uma intervenção até então desconhecida e então justificada pela importância e especificidade da função reprodutora, fundamental para a sociedade.

Ao analisar algumas instituições, como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ou algumas enfermarias públicas (como a Enfermaria de Santa Bárbara, no Hospital de S. José) e privadas (como a Maternidade Abraão Bensaúde), que acolhem mulheres grávidas em situação económica vulnerável e censurável, Virgínia Batista introduz, mais uma vez, o olhar que, a partir de baixo, é usado na análise de inúmeras fontes até agora inéditas ou lidas sob outra(s) perspetiva(s) teórica(s) e de diferente enquadramento conceptual.

Apenas duas observações sobre aspetos que, numa leitura deste tipo e numa revista como Faces de Eva, não é possível omitir: uma refere-se ao capítulo sobre o estudo do caso de Xabregas (cap. 5) e outra, à apresentação das referências finais e diversos anexos e índices.

O capítulo “O sítio de Xabregas em Lisboa” revela-se um estudo de caso muitíssimo interessante, mas, por vezes, apresenta-se demasiado contaminado pelas questões teóricas de leitura de género e classe que norteiam a autora na definição das hipóteses que ali coloca e às quais, embora muito pertinentes e legítimas, não é possível responder a partir do acervo documental consultado. Por outro lado, as 23 páginas de referências de fontes e bibliografia, num total de mais de meio milhar de entradas inestimáveis, poderiam ser revistas de forma a evitar remissões/omissões indevidas e desnecessárias.

Embora hoje a referência nas redes sociais não necessite das notações específicas da Classificação Decimal Universal (CDU), é pena que, na publicação em si, se apresente a catalogação na fonte muito lacunar, pois apenas remete para a História sem qualquer menção aos direitos das mulheres (34) ou até mesmo ao feminismo (39).

Não há dúvida de que este livro tem um lugar pioneiro no que à investigação sobre as condições de vida das mulheres e mães diz respeito. Traz também úteis e inéditos contributos para o estudo do trabalho (assalariado) feminino. Ao analisar os direitos e a proteção social das mulheres trabalhadoras, Virgínia Batista contribui, de forma inequívoca, a partir de um enfoque também sociológico, para uma menos empírica, mais sustentada e mais bem fundamentada história dos direitos das mulheres trabalhadoras na sociedade contemporânea portuguesa.