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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher
versão impressa ISSN 0874-6885
Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher no.38 Lisboa dez. 2017
(AUTO-)RETRATO
Maria Antónia Ferreira Pinto, aristocrata e tenente do exército português na I Guerra Mundial
Natividade Monteiro*
*Investigadora, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de História Contemporânea, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher, nati.monteiro@netcabo.pt
Maria Antónia Jervis d'Athouguia Ferreira Pinto Basto destacou-se como enfermeira-chefe das Damas Enfermeiras da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha (CVP), ao serviço do Hospital de Ambleteuse, em França, na I Guerra Mundial. Oriunda de uma família da aristocracia industrial, era uma senhora culta e inteligente, com esmerada educação, forte personalidade e raros dotes de diplomacia. Fluente em línguas estrangeiras e com relações de amizade nos meios sociais elevados em França e Inglaterra, usou todas as suas competências ao serviço da CVP nas negociações com o comando militar inglês e com o comissário da British Red Cross (BRC), Lord Donoughmore, Richard Walter John Hely Hutchinson, para a construção do hospital português em França. Segunda filha de Anselmo Ferreira Pinto Basto e de Sofia Cândida Jervis d'Athouguia, nasceu em Lisboa, no bairro da Lapa, em 22 de Fevereiro de 1852 e morreu na mesma cidade em 2 de Janeiro de 1930. O pai foi um dos fundadores da Companhia União Fabril, em 1865, destinada à produção e comercialização de tabaco, sabões, óleos e produtos químicos. Maria Antónia casou com Carlos Ferreira Pinto Basto, do qual não teve descendência. Era sobrinha do 1.º Visconde de Athouguia, Aloísio Jervis de Athouguia, título outorgado por D. Maria II, em 1853, e herdado pelo seu irmão mais velho, Rui de Athouguia Ferreira Pinto Basto. Entre os seus irmãos contava-se Branca Jervis de Athouguia Pinto Basto, figura conhecida da alta sociedade da época, que pertenceu à Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra, associação de matriz católica e monárquica que teve um papel importante na recolha de fundos para apoiar os militares na I Guerra Mundial.
Maria Antónia foi das primeiras senhoras a inscrever-se nos cursos de enfermagem da CVP, abertos após a declaração de guerra da Alemanha a Portugal, em 9 de Março de 1916. O seu nome figura entre outros da nobreza titular, como os da duquesa de Miranda do Corvo, das condessas de Castelo Mendo, Calhariz e Ficalho, das viscondessas dos Olivais e Santo Tirso e das filhas dos condes da Ribeira e marqueses de Tancos. Estas e outras jovens da alta-burguesia respondiam assim ao apelo da CVP para servirem nos hospitais militares e assistirem aos feridos de guerra. A maioria seguia o exemplo das mulheres dos países beligerantes que voluntariamente se ofereciam como enfermeiras, contribuindo desta forma para apoiar o esforço de guerra. A imprensa enaltecia o humanismo e as virtudes cívicas das rainhas da Inglaterra e da Bélgica e das senhoras da corte do czar da Rússia, bem como da ex-rainha D. Amélia[1], pelo seu trabalho nos hospitais da Cruz Vermelha. Os cartazes, postais e propaganda de guerra promoviam a imagem da enfermeira como o anjo protector, a mãe que cuida, guia e ampara, a irmã que consola e a companheira que partilha alegrias, medos e dores, o que entusiasmava as jovens portuguesas que, por um lado, pretendiam servir a Pátria e, por outro, exercer uma profissão de mérito que lhes garantisse liberdade e independência económica. As motivações ideológicas e políticas também não foram alheias à decisão de muitas candidatas a enfermeiras da CVP. Naqueles dias vivia-se um conflito de interesses partidários entre as monárquicas e católicas da Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra (APVG) e as republicanas da Cruzada das Mulheres Portuguesas (CMP), visto ambas pretenderem ter escolas de enfermagem próprias e competirem para tomar a dianteira na colocação das suas enfermeiras nos hospitais portugueses em França. Maria Antónia estava, por razões familiares e de amizade, muito próxima da APVG, participando muitas vezes nas festas de caridade para angariação de fundos.
Após o embarque dos primeiros contingentes do Corpo Expedicionário Português (CEP), a Cruz Vermelha preparou uma missão a França, a fim de estudar as condições de instalação de um hospital no sector português, constituída pelos médicos Jorge Cid e Alberto de Azevedo Gomes, pelo comissário Luís de Albuquerque Bettencourt, D. Maria Antónia e D. Albertina Torres, sua secretária. A missão partiu em Abril e regressou em Junho de 1917, após conversações com o Quartel-General do CEP, com o comando militar inglês e com o Comissário da British Red Cross, que os recebeu com a maior simpatia e se comprometeu a dar todo o apoio à viabilização do hospital. Maria Antónia, encarregada pela missão portuguesa de negociar os pormenores da ajuda oferecida por Lord Donoughmore, obteve as garantias de que a BRC ofereceria à CVP o projecto de engenharia e o mobiliário das enfermarias, enquanto a American Red Cross pagaria o valor da instalação eléctrica, o que veio a concretizar-se. Luís Bettencourt, em carta dirigida ao Presidente da CVP, elogiava a superior inteligência e extraordinárias aptidões de D. Maria Antónia na condução da amigável conversa com Lord Donoughmore, o qual dava provas das maiores deferências para com a CVP. As conferências particulares entre Maria Antónia e o comissário da BRC foram determinantes para o êxito da missão, já que do comando militar português foram muitos e desesperantes os entraves colocados aos desígnios da CVP, sob o pretexto da burocracia e dificuldades de comunicação entre o Ministério da Guerra e o comando do CEP.
A equipa da BRC acompanhou a missão portuguesa na visita aos hospitais ingleses e canadianos e ao terreno escolhido para a instalação do hospital português, aconselhou plantas-modelo, recomendou empresas construtoras e comprometeu-se a vigiar as obras de construção, enquanto os portugueses estivessem ausentes. Como os delegados da CVP não tivessem gostado do terreno atribuído, por ser alagadiço e exposto aos ventos agrestes, Maria Antónia convenceu os ingleses a escolher outro do seu agrado, exigiu garantias dos compromissos assumidos, participou na adjudicação da obra a uma empresa francesa e incumbiu-se da burocracia com as autoridades locais para a instalação do hospital e do pessoal da CVP.
Quando regressou a França para seguir de perto a construção do hospital e, perante as inúmeras dificuldades encontradas, desde a alteração da planta à mudança de construtora e à falta de operários, negociou prazos, prometeu recompensas e pressionou os ingleses a acelerar o processo, a ponto de o Coronel Smith da Base inglesa recomendar aos seus oficiais que prestassem especial atenção aos pedidos de Madame Pinto, pois ela era uma senhora tão decidida que a julgava capaz de começar a construir o seu hospital mesmo sem licença. A carestia e a escassez de produtos alimentares na zona de guerra foram motivo de grande preocupação para Maria Antónia. Como alimentar quase uma centena de pessoas da formação sanitária da CVP até que o hospital ficasse pronto? Mais uma vez se valeu dos seus dotes diplomáticos e negociou com os ingleses o abastecimento de rações militares.
Precavida, tratou de assegurar também a ocupação das enfermeiras que iam a caminho de um hospital inacabado. Valendo-se dos seus conhecimentos e influência, negociou com a responsável das enfermeiras britânicas a prestação de serviço das portuguesas nos hospitais ingleses. Excepcionalmente, a matron inglesa exigia apenas que cada equipa tivesse uma enfermeira que falasse inglês, o que não seria problema, visto a maioria possuir uma educação esmerada, pois pertencia à “mais fidalga estirpe portuguesa”, como afirmava Aires d'Ornellas ao Diário Nacional (18.11.1917,p. 1). Este expediente evitava que ficassem desocupadas e permitia que os militares portugueses fossem assistidos por enfermeiras portuguesas. Ana de Castro Osório, da Comissão de Enfermagem da CMP, lamentava que os feridos portugueses não tivessem à cabeceira alguém que falasse a língua da sua pátria. As barreiras linguísticas eram motivo de grande preocupação para os médicos e, sobretudo, para os soldados portugueses. As enfermeiras chegaram a França em Novembro de 1917 e, como entretanto os hospitais do CEP da Base de Ambleteuse começaram a funcionar, Maria Antónia conseguiu autorização para que elas ali trabalhassem. A opção pelos hospitais portugueses foi louvada pelos médicos mas aceite com relutância por alguns militares que preferiam contratar nurses inglesas. Os preconceitos em relação à competência das enfermeiras portuguesas irritavam os responsáveis da CVP. Elas provaram estar entre as melhores profissionais, o que lhes foi reconhecido em louvores, medalhas e condecorações, atribuídas durante e depois da guerra[2].
O hospital da CVP foi inaugurado a 9 de Abril de 1918, data da Batalha de La Lys, e foi encerrado em Fevereiro de 1919. Maria Antónia, equiparada a tenente do exército português, chefiou 36 damas enfermeiras, equiparadas a alferes. Em Julho de 1918, algumas desligaram-se da CVP para prestarem serviço no Hospital de Sangue n.º 8 do CEP, em Herbelles, mais próximo da frente de combate. As enfermeiras da CMP foram equiparadas a enfermeiras militares e trabalharam nos hospitais da Base do CEP em Ambleteuse e no Hospital Português de Hendaia. É na qualidade da mais alta representante das mulheres portuguesas ao serviço de Portugal na guerra que Maria Antónia participa no Congresso Inter-Aliado das Mulheres, realizado em Paris, em Agosto de 1918, acompanhada por Eugénia da Gama Ochôa e Maria Gil Beltrão.
Maria Antónia já se tinha distinguido como chefe das enfermeiras do Hospital da CVP em Lisboa, em instalações cedidas gratuitamente pela condessa de Burnay. Sob a direcção dos médicos Dr. Azevedo Gomes e Dr. Simões Ferreira, elas treinaram as mais modernas técnicas de tratamento em cirurgia e medicina, preparando-se para os desafios que a primeira guerra moderna colocava aos serviços de saúde. A ronda dos médicos da CVP pelos hospitais ingleses canadianos e franceses foi fundamental para se inteirarem das melhores e mais eficazes formas de tratamento e de organização hospitalar. Os hospitais da CVP na retaguarda e em França foram modelares, merecendo a preferência e o elogio dos militares e civis ali tratados. As enfermeiras eram também preferidas no seu mister por manterem a disciplina, ordem e higiene das enfermarias, pela competência profissional, pela dedicação e carinho com que tratavam os doentes.
O respeito que Maria Antónia angariou junto dos militares e civis está patente na correspondência, relatórios e actas das reuniões da CVP mas também nas memórias da guerra, vertidas em livros e jornais. Luís Bettencourt louva o seu espírito de sacrifício, capacidade de decisão e humor perante o perigo e, em carta a Affonso de Dornelas, confidencia que, quando ela visitava os hospitais ingleses ou portugueses, os doentes a saudavam com a continência militar[3]. O general Ferreira Martins elogia a sua lucidez, o espírito vivíssimo e o carinho que lhe mereciam aqueles que sofreram e morreram em França[4]. Nos louvores do Quartel-General destacam-se a inexcedível dedicação, a assiduidade e o espírito de missão. Membro da Comissão Central da CVP, o Ministério do Interior concedeu-lhe a Cruz Vermelha de 2.ª classe, em 1917. No fim da guerra, foi agraciada com a Cruz Vermelha de Benemerência e com a medalha de serviços distintos da Cruz Vermelha, com a legenda Ambleteuse. 1917-1919 França. O Ministério da Guerra atribuiu-lhe a medalha da Vitória. Campanha de França 1917-1919 e o grau de Oficial da Ordem de Cristo.
[1] D. Amélia prestou serviço num dos hospitais da British Red Cross em Inglaterra e foi condecorada pelo rei George V
[2] Cito apenas a Ordem de Serviço n.º 347 do Quartel-General da Base do CEP, de 30 de Dezembro de 1918. Foi-lhes atribuída a medalha da Vitória. Campanha de França 1917-1919 e a medalha de serviços distintos da Cruz Vermelha com a legenda Ambleteuse 1917-1919 França.
[3] Luís Bettencourt, Arquivo da CVP, Ambleteuse, cx. 1.
[4] General Ferreira Martins, Diário de Notícias, 21 de Maio de 1939, p. 3.