A História das Mulheres comporta um elemento desconcertante e que tantas vezes legitimou comportamentos de exclusão, mascarados de boas intenções: a presença ausente das mulheres num percurso dominado pelo masculino. Eles representavam-nas e assim diziam que as protegiam. Em nome delas, eles decidiam, votavam e votavam-nas a uma existência diluída na vontade deles.
Não restam dúvidas de que, quando se tem em conta a perspectiva feminina, o real é vislumbrado de um modo mais completo e a organização social responde mais eficazmente às vivências e às necessidades humanas. Negligenciar esta evidência, em nome de um universal neutro, acarreta elevados custos económicos, sociais e individuais. E as mulheres são aqui duplamente prejudicadas. Não apenas a sua experiência não é tida em conta, como o seu dia a dia fica mais complicado, porque têm de se ajustar a um modelo que não considerou as suas necessidades.
Esta é a tese de um livro recente, em que a autora, Caroline Criado Perez1, ilustra, com imensos exemplos, caricatos uns, surpreendentes outros, como o mundo reflecte maioritariamente a perspectiva masculina e como quase tudo é construído à sua imagem e semelhança. As mulheres, ausentes das representações, porque incluídas numa norma pretensamente imparcial mas poderosa e eficazmente masculina, não são tomadas em conta na tomada de decisões que afectam a sua vida concreta. A autora fala de um “masculino por defeito” que enviesa a percepção do mundo. Ainda que as mulheres estejam cada vez mais presentes na vida real, principalmente na que pulula fora dos espaços íntimos das casas e dos cuidados, essa realidade não ecoa na estrutura social e é abafada por um sistema que pressupõe o masculino como universal. A grande curiosidade deste livro é oferecer-nos múltiplos casos exemplificativos da forma como é afectada, no dia a dia, a vida das mulheres porque as decisões são tomadas como se elas não tivessem as suas especificidades, que as demarcam do universo masculino, autor e usufrutuário da organização do espaço e dos bens. Desde a saúde aos transportes, à segurança e a tantos outros aspectos da vida comunitária, podem ser identificados inúmeros desequilíbrios, contanto que o olhar esteja interessado em ver; e tal não tem sido apanágio de quem detém o poder. Mesmo um/a leitor/a avisado/a e consciente das questões de género se espanta e se revolta com a proliferação de evidências que constituem a assimetria das condições vivenciais de homens e de mulheres.
Isto é válido para níveis muito diferentes de análise, quer no que se refere à observação dos quotidianos das mulheres - observação transversal a culturas e a classes sociais, embora atingindo mais dramaticamente as que menos recursos têm -, quer quando falamos no plano das imagens ou das percepções.
É célebre a atribuição maioritária do masculino à palavra “cientista”. A partir de um simples teste em que se pede para representar graficamente esta ideia, a tendência é atribuir-lhe um sexo masculino, embora se saiba que esta inclinação tem vindo a sofrer alterações significativas, porventura cedendo à realidade das mulheres nas instituições científicas e ao seu empenho no desenvolvimento da ciência. A percepção é alterada a partir dos contributos das próprias mulheres cientistas, não apenas numéricos mas também de divulgação da sua imagem e afirmação. Trata-se de um outro enfoque, de uma outra abordagem, documentada, entre outros, no livro O Feminismo Mudou a Ciência?2 que assinala como a variável género pode influenciar a maneira de fazer ciência. Os tópicos tendem a ser outros quando há uma intervenção feminina no seu planeamento e gestão. Isto é, a ciência não é de modo algum neutra em relação às questões de género e, se isso é verdade em relação a uma abordagem masculino/feminino, poderá também incorporar outros elementos identitários que condicionam formas de poder, temas, posicionamentos ou prioridades. O que está, mais uma vez, em jogo é desmontar uma forma única, dominante e exclusiva de pensar e de agir, que deixa de parte toda a riqueza da multiplicidade de olhar o mundo e de nele actuar.
Assiste-se frequentemente ao apagar da memória de obras artísticas, literárias ou científicas de muitas mulheres que, apesar de celebradas no seu tempo, são esquecidas depois de mortas. Ficam fora do cânone porque este é institucionalizado pelos detentores do poder que maioritariamente ainda é branco e masculino. Não deixar que os seus nomes sejam esquecidos é um dos desafios permanentes da revista Faces de Eva. Esta sua persistência tem recebido aceitação crescente na sociedade em geral e na comunidade científica, em particular, verificável não apenas pela adesão às iniciativas da equipa de investigação como pela enorme quantidade de artigos submetidos que, infelizmente, excedem a capacidade de publicação.
A presente edição (a 45.ª) traz à capa uma cientista portuguesa, Odette Ferreira. Muito sobre ela é dito no separador “Homenagem” por mulheres que a conheceram e que com ela privaram, trabalharam ou aprenderam. Leiga como sou nos assuntos científicos que muito merecidamente a notabilizaram, é também enquanto cidadã empenhada na erradicação do preconceito e da exclusão social que admiro esta mulher, que interveio frontalmente, sem tabus nem moralidades caducas, num assunto de saúde pública que estava a flagelar milhares de pessoas, hipotecando relacionamentos e marginalizando grupos. Não terão sido apenas mulheres as grandes obreiras da luta contra a sida em Portugal, mas elas estiveram seguramente na linha da frente, enquanto promotoras ou facilitadoras, como é patente nos textos aqui publicados e que ajudam a compreender o percurso ímpar, científico, social e humano de Odette Ferreira. Faces de Eva nunca poderia ficar-lhe indiferente!